“Hoje o tempo não me enganou”, temporalidade no romance Nenhum Olhar de José Luís Peixoto

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REGO Vânia, “Hoje o tempo não me enganou”, temporalidade no romance Nenhum Olhar de José Luís Peixoto”, in Atas do 9º Colóquio Anual de Lusofonia/14º Colóquio da Lusofonia, Bragança, Portugal, 2010. Editor: AICL, Colóquios da Lusofonia. ISBN 978-989-95891-5-5  

“Hoje o tempo não me enganou” temporalidade no romance Nenhum Olhar de José Luís Peixoto

Quando lemos o romance Nenhum Olhar de José Luís Peixoto, somos confrontados com uma narrativa lenta e que envolve o leitor num ritmo temporal que ora perpetua os gestos quotidianos ora define o caminho até à eternidade. O presente trabalho tem como objetivo principal o estudo da temporalidade no romance acima citado– ordem, duração, frequência, entre outras categorias –, tendo como bases de referência as teorias de Ricoeur, Genette, Todorov, sem esquecer Aristóteles ou Santo Agostinho. A temporalidade no romance Nenhum Olhar é muito marcada pela subjetividade do tempo nos romances fantásticos, no entanto, podemos encontrar ao longo da sua análise aspetos caraterísticos de outros tipos de narrativas ficcionais, como o conto, por exemplo. Partindo de uma análise explicativa dos diferentes planos temporais do romance, assim como das diferentes expressões que indicam o tempo e que se cruzam e confundem ao longo do texto, poderemos concluir quais as consequências imediatas que a temporalidade provoca no enredo narrativo. Nenhum Olhar é um romance com caraterísticas líricas e fantásticas no qual cada personagem vive e sente o tempo de uma forma díspar e onde quase todas as personagens têm voz e se exprimem, criando a impressão de substituição do narrador. A subjetividade inerente a cada personagem faz com que, de cada vez que uma delas se exprime, a sua perspectiva sobre o tempo seja influenciada pelas vivências pessoais, pensamentos, dúvidas ou pelas suas descobertas. Utilizando exemplos textuais, podemos centrar a nossa análise sobre a influência que a voz narrativa e a escolha da perspetiva de focalização têm sobre a temporalidade neste romance, mostrando que o tempo se apresenta de forma cíclica, o que permite a reflexão sobre o destino trágico da humanidade, sobre a oposição das figuras do tempo e da eternidade e sobre a questão da formação existencial do Homem. Quando estudamos uma obra com a riqueza narrativa de Nenhum Olhar, somos como que tentados a explicar todas as suas caraterísticas ou pelo menos todos os aspetos que mais nos seduziram na sua leitura. O estudo do tempo neste romance de José Luís Peixoto responde a essa necessidade de compreender e de explicar a noção de tempo que atravessa todo o romance e a dificuldade que o leitor tem em situar temporalmente a história ao longo da sua leitura. Essa dificuldade não se refere ao facto de haver uma tentação de datar a história, mas sim a uma questão mais filosófica e mais profunda que é a de conseguir definir o tempo. Se pensarmos bem, conseguiremos nós definir o tempo? O que é o tempo? Qual a relação entre o tempo e o desenvolvimento do Homem? Estaremos a falar de tempo quando falamos de eternidade e de existência?

Ao refletirmos sobre a temporalidade, apercebemo-nos de que o tempo que para uns corre – fazendo com que o futuro se torne rapidamente presente –, para outros passa lentamente e fica como que congelado em determinados momentos, deixando no presente uma sensação de quase passado que é o motor de sentimentos de nostalgia e de spleen que tão bons textos têm dado em literatura, nomeadamente este aqui estudado. Uma das maiores dificuldades no estudo desta temática é justamente a de encontrar um equilíbrio ou uma explicação para o tempo que ora é fugaz, ora nos enleva até à eternidade. Para qualquer autor, a escolha da perspetiva narrativa, do fio condutor que ligará a história narrada é muito importante para a definição dos níveis temporais e da forma de narrar, tal como afirma Saramago: “Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.” (1980: 59).

O romance estudado narra a história de um grupo de personagens que vivem numa aldeia e que se vêem confrontadas com a pobreza, o amor, o ciúme, a violência humana e a da natureza e as dificuldades em lidar com as relações humanas. Num espaço em que o leitor facilmente identifica ao Alentejo, as personagens vivem de forma cíclica os acontecimentos e partilham de geração em geração as misérias da vida humana. José, o pastor, vive na dúvida constante em relação à fidelidade da sua mulher. É esta personagem que conduzirá o leitor nas reflexões mais profundas apresentadas no texto, pondo em questão a vida, a morte, a eternidade, o tempo. Para além de José, o velho Gabriel, personagem secular e de cariz bíblico, serve de contraponto à figura do diabo também presente no texto. Outras personagens de caráter fantástico presentes neste texto são os irmãos siameses unidos apenas pelo dedo mindinho e que definham à medida que o amor por uma mulher os consome por dentro. A presença feminina neste romance é mais reduzida, a mulher de José e a mulher de Salomão são as únicas que fazem uso da palavra para enunciar os seus medos e os seus sentimentos. Os acontecimentos narrados neste romance são os momentos do quotidiano das personagens: os casamentos, os batizados, as mortes e as dores do dia a dia que se perpetuam de pais para filhos como uma maldição até ao fim dos tempos. Em Nenhum Olhar, o discurso repetitivo marca a frequência temporal (Genette: 1972). Os episódios da história são narrados de forma repetitiva, sendo que cada um é narrado na perspetiva de três ou quatro personagens diferentes, criando no leitor uma sensação quase compulsiva em relação ao tempo, dado que o fio temporal circular frustra as expectativas do leitor que procura a continuação da história e espera para ver ser desenrolado o fio narrativo. No romance, no episódio do casamento de José, por exemplo, o narrador introduz, para além da sua, a perspetiva de três outras personagens: Moisés, Elias e o velho Gabriel falam do casamento de José, da cerimónia em si e do comportamento de outras personagens: “ O velho Gabriel pensava no casamento de José e pensava em Moisés a puxar pelo irmão pelo dedo, quase a esganar-lhe o mindinho, para se aproximar da cozinheira no altar; pensava que o Moisés pensasse na mulher de José ainda rapariga no telheiro e pensava que Elias pensasse o mesmo que o irmão. Moisés pensava no casamento de José e na cozinheira que conhecera nesse dia.” (2008: 45-46) “Elias pensava no casamento de José e pensava no irmão a derreter-se para a cozinheira nesse dia.” (2008: 47) – seguindo-se a descrição na primeira pessoa de cada personagem.

Esta forma de narrar os acontecimentos aliada a processos de marcação temporal como as analepses permite ao autor criar um efeito de circularidade temporal no texto, como se os acontecimentos narrados impedissem a caminhada das personagens no espaço temporal, impedindo assim a inexorável caminhada dos seres humanos em direção à morte ou, pelo contrário, como veremos mais à frente, assinalando a impossibilidade de fugir a esse destino e prendendo as personagens num tempo presente, fugaz, marcado por momentos únicos que conduzem ao destino final: “E o mundo acabou. Inexplicavelmente, ou sem uma explicação que possa ser dita e entendida. O mundo acabou, como num instante em que se fechassem os olhos e não se visse sequer o que se vê com os olhos fechados.” (2008: 239).

Como podemos então estudar o tempo? Santo Agostinho afirma nas suas Confissões que “ si bien que ce qui nous autorise à affirmer que le temps est, c’est qu’il tend à n’être plus.” (1964: 264). Ou seja, o tempo só pode ser compreendido quando não é mais tempo, quando o momento passou. A fugacidade do tempo é, aliás, uma das suas verdades. No entanto, a eternidade e a sua duração também o são. Esta ambiguidade é uma das razões pelas quais a questão do tempo tem apaixonado tantos estudiosos. A ordem temporal na escrita de Peixoto – seja em Nenhum Olhar seja no romance Uma casa na escuridão ou em Cemitério de pianos – é marcada pela memória das personagens e pela vivência de cada uma, o que provoca inversões na ordem cronológica do texto. O texto inicia-se num momento de reflexão de José após o encontro com o diabo – narrado posteriormente pelo narrador, pelo filho de Paulo e também pela mulher de José. As constantes analepses permitem, assim, o retorno ao passado para explicar como José conheceu a sua mulher, o passado desta e do gigante, a história de abuso sexual e permite compreender o porquê do surgimento da figura do diabo enquanto elemento destabilizador da história. Nenhum Olhar apresenta uma ordem temporal essencialmente psicológica. Nela o leitor pode compreender o estado interior subjetivo de cada personagem. Cada uma vive o tempo de forma diferente e os instantes narrados são meras perspetivas sensoriais sobre acontecimentos presentes e, sobretudo, passados. Em jeito de exemplo: “E esta noite sepultou-me. E esta noite sem ti foi muito tempo, muito mais que uma noite, muitos anos a gastarem-me” (2008: 111) “E todo esse tempo antes parece-me ter perdido o sentido.” (2008: 160) “Os dias passam. Penso: um dia pode ser mil anos. Penso: ninguém sabe ao certo se passou um ano, ou mil anos, ou uma hora rápida, num dia que passou.” (2008: 200).

Deste ponto de vista, José Luís Peixoto inculca no seu texto uma perspetiva mais subjetiva, que podemos associar à teoria kantiana sobre o tempo, já que para este filósofo o tempo não é um conceito empírico, mas uma perceção que deriva do interior de cada ser e da sua intuição. Assim sendo, este fundamento justifica ou pode justificar a subjetividade do tempo neste romance, dado que aquilo que nos é narrado é a representação temporal de cada personagem sobre os mesmos acontecimento e, por isso, o que as personagens e o narrador contam é temporalmente invisível e, portanto, impossível de situar cronologicamente. Iminentemente lírico, Nenhum Olhar toca outros universos literários, inserindo-se também na categoria de romance fantástico influenciado pela tradição do conto tradicional e popular português. A

esfera do fantástico age na narrativa como um elemento de mistificação do tempo e do espaço, dado que as personagens – facilmente identificáveis a habitantes de uma pequena aldeia que pode existir no Alentejo (pensemos no calor constante e na presença do sol abrasador) – convivem com seres fantásticos como o gigante e bíblicos como o diabo. Essa mistificação do texto e, dentro dele, do tempo, permite elevar o quotidiano destas personagens à esfera de exemplo mítico. Assim, os acontecimentos íntimos e os momentos de expressão de cada personagem permitem compreender os pensamentos, as dúvidas e as angústias do ser humano: “E compreendem as dores que explicam, olhando-se. E, num instante fora do tempo, aproximam-se, lentamente, como duas árvores (...)” (2008: 200) “Penso: o lugar dos homens é uma linha traçada entre o desespero e o silêncio. (...) E morro devagar. Dissipo-me em cada gesto deste mundo que não me pode oferecer mais nada (...) Dissipo-me no tempo e no silêncio.” (2008: 202) “E sei que estamos fechados num tempo imóvel.” (2008: 218) “E só se pode caminhar no tempo, ainda que os pés pisem a terra, como os meus parecem pisar, só se pode caminhar no tempo.” (2008: 237).

Estes exemplos, assim como muitos outros, permitem-nos compreender como o mistério do tempo e o seu estudo contribuem para o estudo do mistério do homem. O tempo é a prova da fragilidade humana no espaço. O corpo que morre e a degradação corporal nada mais são do que a prova de que o tempo que se esvai não volta. A sucessão obrigatória do passado, do presente e do futuro, que os autores e os seres humanos procuram por vezes contrariar, nada mais é do que um último esforço para contrariar as leis da natureza. Aristóteles defendia um modelo de explicação temporal baseado justamente numa teoria cósmica, associando a alma aos astros para explicar a passagem do tempo, explicando que a noção de presente é a única que existe para o Homem – o que permite inferir sobre a questão da eternidade já que se o presente é o único tempo do Homem, ele é eterno e contínuo –, pois ele só se define e só define o estado do seu corpo e da sua alma num dado espaço e esse espaço está no tempo presente, no instante mesmo em que o homem respira. No entanto, esse corpo que vive no espaço presente só existe em relação a uma memória, ou seja, ao passado, quase sempre associado à impossibilidade, ao momento que não volta mais. Para além disso, esses mesmos corpo e alma precisam do desejo de atingir outros estados, virtuais, porque projetados no futuro, onde a concretização é possível e onde o presente deixa hipoteticamente de ser doloroso e fruto de angústias carregadas no passado e na memória. Esta temporalidade lírica do romance de Peixoto, típica como já afirmamos do romance fantástico, escapa ao tempo cronológico – e vivido – indo encontrar um presente intemporal que suspende a sucessão temporal. Tal como Aristóteles afirmava, o tempo só existe no presente e, portanto, ele é uma sucessão de instantes eternos, de eternidades. Esta suspensão do movimento temporal dá lugar a uma temporalidade cíclica que permite mostrar a fatalidade do destino e a tragicidade da vida do ser humano: “(...) os homens depois da derrota inevitável da vida, a nunca quererem aceitar a noite, a nunca quererem anoitecer e tornarem-se ontem amanhã, memória, os homens depois da vitória da terra sobre o corpo (...). E o tempo desfigurou-se (...). Era um tempo parado. Parado. (...) Era um tempo morto numa angústia.” (2008: 67 e 68) “O mundo acabou e nem o tempo prosseguiu.” (2008: 240).

A questão da temporalidade cíclica está ligada também à perceção do tempo de forma tanto sensorial como racional. A inteligência temporal do homem – termo muito utilizado depois de filósofos como Husserl ou Kant – está ligada à própria existência do ser humano, porque o tempo só condiciona o Homem na medida em que este é, ou seja, na medida em que o homem nasce e vive fisicamente no espaço – e acrescento aqui – para depois viver só na memória dos outros. O tempo ou o não-tempo de Nenhum Olhar permite-nos analisar a questão do ser humano em construção e em busca de si e da sua existência no tempo e no espaço. Esta noção de temporalidade permite também o estudo da figuração do tempo em oposição com a eternidade, porque os dias, os meses e os anos se fundem e não têm mais valor independente, transformando a vida das personagens num vazio no qual o tempo cessa de existir: “(...) pois o pai do José é um homem morto, parado na eternidade, e na eternidade, sem fim e sem princípio, um segundo é eterno, e o tempo a passar na eternidade são eternidades sucessivas” (2008: 82) “Toda esta planície superior ao tempo. Esta planície profundamente triste, enterrada na sua própria eternidade.” (2008: 86)

Esta questão da eternidade, abordada por Santo Agostinho – e retomada por Paul Ricoeur em Temps et Récit – toma contornos diferentes já que este não concorda com a teoria cosmológica de Aristóteles em que o presente é a eternidade, como já vimos anteriormente. Contrariando a teoria cosmológica de Aristóteles, Santo Agostinho afirma que o tempo presente é: “ la succession d’une multitude d’instants, qui ne peuvent se dérouler simultanément…” (1991: 261) e, por isso, este tempo presente não pode estar ligado à eternidade. No entanto, uma leitura mais aprofundada de Santo Agostinho permite-nos compreender que a sua noção de eternidade não é totalmente contrária à de Aristóteles, dado que ele também define o Homem como um ser que passa e se desvanece, define-o como um ser em busca de eternidade, mas de uma eternidade que está presa na sua memória daquilo que já foi : “Au contraire, dans l’éternité, rien n’est successif, tout est présent, alors que le temps ne saurait être présent tout à la fois” (1991: 261). Assim sendo, podemos concluir que as personagens de Nenhum Olhar, José, Salomão, entre outros, vivem nada mais nada menos do que o desaparecimento do futuro no passado – a mistura diluída dos momentos que ainda não aconteceram na matéria ou na vida que já não é, ou seja, a angústia de conhecer no presente aquilo que não acontecerá no futuro e que é irrecuperável no passado. Esta temporalidade baseada no momento presente permite compreender o porquê do final do mundo já que o tempo acabou e acaba com ele o ser humano.              

 

 

Bibliografia

Obra utilizada do autor: Ø

PEIXOTO José Luís (2008), Nenhum Olhar, Lisboa: Bertrand.

  Outras obras do autor: Ø

PEIXOTO José Luís (2004), Uma casa na escuridão, Lisboa: Temas e Debates.

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PEIXOTO José Luís (2007), Cemitério de pianos, Lisboa: Quetzal.

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Obras teóricas consultadas e/ou citadas: Ø

ADAM Jean-Michel et REVAZ Françoise (1996), L’analyse des récits, Paris: Seuil, col. Mémo.

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ESTEVES J. M. da Costa (2008), La littérature portugaise contemporaine: le plaisir du partage, Paris: l’Harmattan.

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GENETTE Gérard (1972), Figures III, Paris: Seuil, col. Poétique.

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NUNES Benedito (1988), O tempo na narrativa, São Paulo: Ática, col. Fundamentos.

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RICOEUR Paul (1991), Temps et récit, Paris: Seuil.

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SANTO AGOSTINHO (1964), Les Confessions, Paris: Garnier-Flammarion.

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SARAMAGO José (1980), Levantado do chão, Lisboa: Caminho.

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