Homo Sacer, Necropolítica e migração de trânsito no México contemporâneo

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II Congreso de Estudios Poscoloniales | III Jornadas de Feminismo Poscolonial Buenos Aires, 9 a 11 de diciembre, 2014 Mesa Temática: 7. Biopolítica e Necropolítica

HOMO SACER, NECROPOLÍTICA E MIGRAÇÃO DE TRÂNSITO NO MÉXICO CONTEMPORÂNEO

Júlio da Silveira Moreira Universidade Federal de Goiás, Brasil [email protected]

Multidões de migrantes indocumentados cruzam o território do México do sul ao norte todos os dias, buscando cruzar a fronteira com os Estados Unidos, em um movimento massivo de pessoas que envolve violações de sua condição humana. Os migrantes se submetem a viagens de mais de 30 dias, a pé ou sobre vagões do trem de carga conhecido como La Bestia. São parte de um jogo de cooptação pelos coyotes, agentes estatais, cartéis do crime organizado e movidos pelo próprio sistema político e econômico que promove essa forma de migração laboral precarizada. Sofrem extorsões, sequestros, violações sexuais, mutilações, tráfico de pessoas e assassinatos coletivos. O massacre de 72 migrantes, em agosto de 2010, evidenciou a perenidade desse processo. O filósofo italiano Giorgio Agamben tem desenvolvido conceitos para explicar essas graves vulnerações da condição humana, em que o homem se transforma em não-homem e a vida nua se conforma como um estado de existência diferente da vida e também da morte. Articula o conceito de vida nua matável e insacrificável com o Estado de exceção e o campo como paradigmas atuais da governabilidade dos corpos, desde que o campo de concentração nazista aplicou a fabricação de cadáveres como técnica para o exercício de poder. O filósofo camaronês Achile Mbembe, por sua vez, localiza esses paradigmas na colonização, muito antes dos campos de concentração nazistas, e desenvolve o conceito de necropolítica, que é aplicado à realidade mexicana por Sayak Valencia. A observação das condições de viagem dos migrantes indocumentados pelo México permite uma aplicação dos conceitos de Agamben. As rotas de migração aparecem como campo, onde se exerce o Estado de exceção convertendo o migrante num Homo sacer.

1. Retomando os conceitos de Agamben

Ao estabelecer o Homo sacer como a condição contemporânea dos seres humanos em relação ao poder soberano, Agamben aborda conceitos da ciência política e da filosofia jurídica que permitem uma explicação das opressões na sociedade contemporânea, recuperando a biopolítica de Foucault, a condição humana de Hannah Arendt, o Estado de exceção permanente de Benjamin e a teoria do poder soberano de Schmitt, trabalhando com a diferenciação aristotélica entre uma concepção integral de vida humana (vida politicamente qualificada) e a vida nua (vida matável e insacrificável). Homo sacer é um conceito do direito romano arcaico para uma punição consistente na impunidade da morte e veto de sacrifício. Dentro daquele contexto, o sacrifício representava a dignidade da morte, como oferenda aos deuses; o homem sacro não poderia ser sacrificado, mas, ao mesmo tempo, qualquer pessoa que o matasse não seria punida pelo homicídio. Tratava-se, portanto, de um ser excluído ao mesmo tempo do direito dos homens e do direito divino (ou, neles incluído por exclusão), excluído, portanto, da condição de sujeito. Ao introduzir a simbologia do homem sacro na análise do poder soberano, Agamben acrescenta, ao controle político dos corpos (biopolítica de Foucault), a busca essencialista da condição humana com a qual, por exclusão, Hannah Arendt interpreta o holocausto e o campo de concentração nazista. A possibilidade, essencialidade e universalização da condição de vida atual como vida nua, matável e insacrificável é dada porque as bases formadoras do poder soberano na modernidade continuam presentes. Dentro delas, está a soberania sobre a morte e a concepção de que há um limite a partir do qual a vida pode ser retirada por ser vida sem valor jurídico, ou vida indigna de ser vivida: “vida e morte não são propriamente conceitos científicos, mas conceitos políticos, que, enquanto tais, adquirem um significado preciso somente através de uma decisão” (AGAMBEN, 2002, p. 171). Na condição humana contemporânea, “a vida nua não está mais confinada a um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente” (2002, p. 146). Outros conceitos que integram a condição humana contemporânea na formulação de Agamben são a perenidade do Estado de exceção e do campo como nómos do espaço político em que ainda vivemos. Para abordar essa perenidade, interpreta a oitava tese de Benjamin (1987, p. 226) sobre o conceito de história, que diz: “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade”. O Estado de exceção deixa de ser uma

medida excepcional para se tornar uma técnica de governo, e, mais que isso, se torna o paradigma constitutivo da ordem jurídica: “a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos” (AGAMBEN, 2004, p. 13). A construção deliberada de um ambiente jurídico-social permanente de guerra e segurança nacional justifica a aplicação do Estado de exceção permanente. Assim, a construção de um inimigo interno e transnacional (antes o comunismo, depois o tráfico de drogas, e por fim o terrorismo) e a mobilização psicológica da população para uma sensação generalizada de medo são parte desse paradigma. O Estado de exceção não é estranho ao poder soberano e ao ordenamento jurídico. Ele é aplicado e regulamentado pelo soberano e marca um estado de indiferenciação entre estar dentro ou fora do ordenamento jurídico. Caracteriza-se, porém, como a suspensão permanente de prerrogativas democráticas e de cidadania (aqui entendida como vínculo de responsabilidade entre indivíduo e Estado), apontando para indistinção entre vida e direito (expressando aqui seu carácter biopolítico) e para a letalidade do aparato jurídico-social. O território (ou espaço social) em que o Estado de exceção é aplicado como paradigma do ordenamento jurídico e da governabilidade dos corpos é chamado de campo, como uma generalização do significado do campo de concentração nazista para uma situação perene da vida: “Auschwitz é exatamente o lugar em que o estado de exceção coincide, de maneira perfeita, com a regra, e a situação extrema converte-se no próprio paradigma do cotidiano” (AGAMBEN, 2008, p. 57). Esse campo é “o não-lugar onde todas as barreiras disciplinares acabam ruindo, todas as margens transbordam” (p. 56). É a situação ao mesmo tempo extrema e paradigmática da vida contemporânea. O contexto pelo qual o campo é explicado é o da fabricação de cadáveres como técnica de governo, e da fabricação da vida nua, materializada na figura dos deportados que perdiam a condição humana sem terem morrido, transformandose em seres sem qualquer reação ao mundo físico e social. Quem passou pelo campo – tendo afogado ou sobrevivido – suportou tudo o que podia suportar; inclusive o que não deveria ou quereria suportar. Esse “sofrer levado à potência mais extrema”, essa exaustão do possível, já não possui, porém, nada de humano. A potência humana confina com o inumano, o homem suporta também o não-homem. (AGAMBEN, 2008, p. 83)

Portanto, o arcabouço teórico de Agamben eleva os estudos da biopolítica para a explicação das opressões do cotidiano, através de conceitos simbólicos que encontram sentido na filosofia política e jurídica. Cabe verificar se a teoria pode ser aplicada à situação específica

da migração indocumentada de trânsito pelo México. De qualquer maneira, é preciso alertar que a teoria de Agamben, ao formular conceitos simbólicos supostamente aplicáveis à realidade social, não está embasada em elementos histórico-econômicos, o que coloca o risco de que uma aplicação de seus conceitos seja um ato arbitrário e aleatório, afastando a cientificidade da análise social.

2. A condição Homo sacer dos migrantes em trânsito pelo México

Entre setembro de 2008 e fevereiro de 2009, a Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH, 2009a) do México documentou 198 sequestros de migrantes com 9.758 vítimas. Parte destes sequestros foi documentada em 25 testemunhos (CNDH, 2009b). Os relatos se aproximam dos testemunhos dos sobreviventes de Auschwitz analisados por Agamben (2008), sobretudo nos aspectos de perda da condição humana e da ausência de proteção jurídica: “el trato que le dan a uno ahí no tiene nada que ver com la humanidad, ahí lo tratan a uno peor que a un animal” (CNDH, 2009b, p. 80); “hay muchas personas, pero muchísimas, que han perdido la vida aquí en México y no son investigadas. Uno dice: los secuestradores un día van a pagar, tal vez no con la ley territorial mexicana, con la ley divina van a pagar” (CNDH, 2009b, p. 18); “en ese momento ya me sentía secuestrado, pues ellos no me daban parte de que yo pudiera expresarme. Ellos me callaban y me daban golpes. Entonces yo, personalmente, ya me sentía humillado. Mi moral no estaba ahí conmigo” (CNDH, 2009b, p. 54). Dentro dessa leitura, o campo corresponde às rotas de migração indocumentada pelo território mexicano. O mapa abaixo dá uma ideia dessas rotas:

Fonte: (CASILLAS, 2008, p. 167)

Casillas R. (2008) analisou essas rotas, os pontos de internação em território mexicano (via terrestre, marítima ou aérea), as formas de transporte utilizadas (a pé, em ônibus de linha, em carros particulares, em veículos de carga, ou sobre os vagões dos trens de carga) e os pontos de concentração de migrantes (casas de migrantes, casas de segurança, locais públicos como terminais rodoviários, estações ferroviárias, praças e mercados, centros de detenção de migrantes chamados eufemisticamente de “estações migratórias”, bloqueios dos agentes de migração), e as dinâmicas de fluidez das rotas – os grupos de migrantes, conduzidos ou não por coyotes ou por membros de cartéis do crime organizado, definem seus caminhos escapando dos bloqueios estatais. Ao longo dessas rotas, os migrantes estão expostos a diversas formas de violações: assalto e roubo; violência física; violência sexual; sequestro; torturas e amputações; chantagens; exploração laboral; exploração sexual; reclusão e morte (CASILLAS R., 2012). Nos últimos anos, o principal símbolo do terror na rota migratória tem sido encarnado nos trens de carga que cruzam o México do sul ao norte, chamados de La Bestia. Viajando noites e dias ininterruptos em cima dos vagões ou entre um vagão e outro, os migrantes estão sujeitos às intempéries climáticas, ou mesmo sujeito a caírem do trem ao dormir ou serem

lançados para fora por agentes do crime organizado que sobem ao trem para lhes roubar, ou para praticar violações sexuais. Nas rotas migratórias, os migrantes assumem a condição de vida nua, matável e insacrificável, assim determinada por um exercício de poder soberano que governa sob o paradigma do Estado de exceção. Assim como o Homo sacer de Agamben, os migrantes sofrem a ruptura do vínculo de cidadania com o poder soberano estatal, tornando-se sujeitos banidos (excluídos) da ordem jurídico-estatal – portanto, não-sujeitos – e ao mesmo tempo nela incluídos por exclusão – pois sua condição é parte de uma estrutura global que tem em vista a superexploração de sua força de trabalho. Existe algo da figura do Homo sacer na própria relação do migrante indocumentado com o paradigma estatal da proteção jurídica – identificando a crise duradoura do sistema político do Estado-nação moderno que já não pode se articular sobre um nexo funcional entre um território e um determinado ordenamento jurídico (o Estado) mediado pela inscrição da vida (o vínculo de nacionalidade pelo nascimento). Diz Agamben (2004, p. 182): “algo não pode mais funcionar nos mecanismos tradicionais que regulavam esta inscrição, e o campo é o novo regulador oculto da inscrição da vida no ordenamento - ou, antes, o sinal da impossibilidade do sistema de funcionar sem transformar-se em uma máquina letal”. O migrante indocumentado expressa essa crise, pois o Estado de origem se recusa a darlhe proteção diplomática (ainda que isso se trate de uma violação do Direito Internacional), o Estado de trânsito – no caso, o México –também se recusa, argumentando que o migrante ali entrou irregularmente, atribuindo toda a responsabilidade ao Estado de origem, e recusando-se a admitir responsabilidade estatal pelas violações praticadas pelas redes do crime organizado. O Estado de destino – no caso, os Estados Unidos – tampouco oferece sua proteção ao migrante em trânsito, embora seja este o Estado que mais se aproveita da sua força de trabalho. Com isso, o migrante indocumentado assume claramente a figura de desterrado ou banido, em relação às diversas ordens jurídicas estatais. Por isso, a vida do migrante é matável – aquele que o mata não responde por homicídio – e insacrificável – levado a um nível extremo de descartabilidade, em que não pode dar um sentido à sua morte. Isso não acontece devido a uma ausência do Estado, mas sim devido à particularidade com que o Estado regula essas vidas. Essa compreensão é reforçada pelo claro vínculo existente entre o Estado mexicano e as organizações criminosas. Em grande parte dos testemunhos registrados pela CNDH (2009b), os migrantes dizem que foram os próprios agentes de migração quem os entregaram para os sequestradores, como nesse exemplo:

Yo vi bien a los agentes de Migración. Yo los reconozco a esos dos. Uno era un gordo y un blanco güero de Migración, y el federal era un gordo moreno. Todos los que pasan por esa caseta van a manos de Los Zetas. Tienen una van roja ahí, yo la vi junto a ellos. Estaba parqueada junto a los policías; Los Zetas nos dijeron que si íbamos de chismosos con los policías nos iría peor, porque trabajan unidos y nada van a hacer. (CNDH, 2009b, p. 25)

Tais constatações são importantes para mostrar que os sequestros de migrantes no México não são um acidente de percurso, mas uma tecnologia política integrada ao poder soberano. Quando o Estado se revela como organização criminosa, o soberano faz jus à denominação de bando, trabalhada por Agamben (2004, p. 187): “A relação política originária é o bando (o estado de exceção como zona de indistinção entre externo e interno, exclusão e inclusão)”. Por isso também se aplica o conceito de Estado de exceção, identicamente percebido aqui como um estado de emergência permanente onde se autoriza a suspensão do ordenamento jurídico: sobretudo diante da conflagração permanente, no México, de uma Guerra às Drogas que fez aumentar as ações e frações do crime organizado, em vez de diminuí-las. Tal modelo de governança através do discurso da guerra é percebido no cotidiano mexicano, com uma constante mobilização psicossocial de defesa diante da ameaça permanente da violência extrema do crime organizado. A Guerra às Drogas é uma congênere da Guerra ao Terror lançada por Bush após 2001, e serve para implantar os mesmo padrões, mecanismos e tecnologias de segurança nacional. O migrante indocumentado, tanto no México como nos Estados Unidos, aparece sem distinção com os agentes do crime organizado, sendo portanto alvo dessas políticas de segurança. O fato paradigmático que expõe a relação entre política migratória e crime organizado no México é o massacre de 72 migrantes em agosto de 2010. Tal massacre reforçou as denúncias de sequestros massivos que já vinham sendo praticados desde anos anteriores, e, diante de lacunas e revelações posteriores, expôs a participação estatal na violência contra migrantes, especialmente no estado mexicano de Tamaulipas, onde novas fossas clandestinas com centenas de corpos foram encontradas em 2011 e agentes do Instituto Nacional de Migração foram exonerados por denúncias de que haviam entregado migrantes para sequestradores. Assim concluo: “O Estado mexicano, ao importar o modelo de guerra às drogas dos EUA, incorpora o discurso da guerra, do medo e da exceção. Ao mesmo tempo, esse Estado só pode existir, em sua estruturação atual, com a participação dos cartéis do crime organizado nas estruturas de poder” (MOREIRA, 2014, p. 191).

3. Governo das populações, racismo de Estado

O conceito de governo das populações, trabalhado primeiramente por Foucault (2008), também encontra pertinência na análise da violência contra migrantes em trânsito pelo México, especialmente se conectado com o conceito de racismo de Estado (FOUCAULT, 2002; GIGENA, 2012) com os conceitos de gestão das multidões e massacre na perspectiva descolonial de Mbembe (2011). O governo das populações se diferencia da perspectiva do sujeito de direito que obedece ao soberano com base em padrões de legalidade. O fundamento para o governo, agora, não é a busca da obediência ao soberano através da lei, mas o controle das populações – o que também compreende o indivíduo atomizado, porém em um quadro de tecnologia política em que o mais importante não é forçar o cumprimento da lei, mas naturalizar, condicionando, os desejos e obediências (através de campanhas publicitárias ou educativas, pesquisas de opinião, etc.), ou melhor dizendo, condicionando indiretamente os indivíduos através do controle das variáveis que atuam sobre eles. Mbembe explica melhor esses processos ao tratar da gestão das multidões no mundo colonizado. Ali, a vida nua se manifesta mais cabalmente, já que o sujeito colonizado é objetivado e dominado, o poder soberano de dar morte não encontra limites (daí a acepção do massacre), e se passa uma espacialização da ocupação colonial. A gestão das multidões corresponde a “tentativas brutales de inmovilizar y neutralizar espacialmente categorías completas de personas, o, paradójicamente, liberarlas para forzarlas a diseminarse en amplias zonas que rebasan los límites de un Estado territorial” (MBEMBE, 2011, p. 62). Aqui está presente não só o elemento massacre, mas o aspecto do deslocamento forçado de pessoas como estratégia de colonização que expõe as origens das migrações internacionais contemporâneas. Ao analisar o México e a América Central na atualidade, Fuentes Díaz (2012) retoma as relações sociais formadas desde a colonização e reforçadas sob a égide da Guerra ao Narcotráfico. O controle autoritário da população, diferindo dos cânones eurocentrados, se exerce através da força e do terror, formando sociedades com uma cultura política autoritária e “una subjetivación no disciplinaria en el ejercicio del poder, que permitia una estructura de sentimiento de alta tolerancia al dolor y a la violência” (FUENTES DÍAZ, 2012, p. 42). Esse marco teórico se dá sobre o conceito de racismo de Estado, segundo o qual o Estado, possuindo uma atividade normalizadora, cria critérios de distinção que podem ser chamados concreta ou abstratamente de racismo de Estado, de discriminação mais além da cor – o que desemboca na necropolítica como poder de dar morte a grupos populacionais inteiros:

“el racismo atiende a la función de muerte en la economía del biopoder, de acuerdo con el principio de que la muerte de los otros significa el fortalecimiento biológico de uno mismo en tanto miembro de una raza o población” (FOUCAULT, apud GIGENA, 2012, p. 20) Para Mbembe (2011, p. 22), “la raza ha constituido la sombra siempre presente sobre el pensamiento y la práctica de las políticas occidentales, sobre todo cuando se trata de imaginar la inhumanidad de los pueblos extranjeros y la dominación que debe ejercerse sobre ellos”. Quijano (2010, p. 84) refaz o lastro do racismo de Estado entre a colonização e o tempo atual, com o conceito de colonialidade, como [...] um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social cotidiana e da escala societal.

Com tais concepções, é possível analisar a violência contra migrantes em trânsito pelo México como fruto de um processo de colonização e de permanência enquanto colonialidade. A política migratória aplicada pelo Estado mexicano reproduz a política geral de segurança dos Estados Unidos (a Estratégia de Segurança Nacional nos marcos da Guerra ao Terror). A política dos Estados Unidos contra os imigrantes mexicanos é estendida para dentro do próprio território mexicano, e, por sua vez, o Estado mexicano reproduz essa política contra os migrantes centro-americanos. O racismo de Estado é aplicado, num primeiro momento constituinte, pelos Estados Unidos contra todos os trabalhadores imigrantes e na exportação (regionalização) dos modelos de Guerra às Drogas e terror de Estado, e, num segundo momento constituído, pelo Estado mexicano contra os centro-americanos.

4. Necropolítica em um contexto de Poscolonialidade

Em tais processos de racismo de Estado, o soberano tem o poder de escolher quem pode viver e quem deve morrer - isso aplicado, inclusive, no contexto colonial, em que a decisão de dar morte é aplicada contra grupos sociais inteiros (genocídio). Ao conceituar a necropolítica, o paradigma das tecnologias políticas de governo fundadas no poder de dar morte é deslocado, por Mbembe (2011, p. 25 e 36), do campo de concentração nazista para a ocupação colonial – antiga ou contemporânea: “Las premisas materiales del extermínio nazi pueden localizarse por una parte en el imperialismo colonial y por otra en la serialización de los mecanismos técnicos

de ejecución de las personas”; “Vemos en la segunda guerra mundial la extensión a los pueblos ‘civilizados’ de Europa de los métodos anteriormente reservados a los ‘salvajes’”. A ocupação colonial tardia, cuja expressão mais completa, para Mbembe, é a situação da Palestina, combina o poder disciplinar, a biopolítica e a necropolítica, em que a violência e soberania da força de ocupação reivindica um direito divino, e “la identidad nacional se concibe como identidad contra el Otro, contra otras deidades” (MBEMBE, 2011, p. 46) – aqui retomando análises próximas às de Enrique Dussel e Boaventura de Sousa Santos, e também fazendo lembrar do processo de imposição da religião católica sobre os povos nativos da América, que eram levados a abandonar suas crenças autóctones para que se consumasse sua submissão e opressão – perfazendo o que Santos (2010, p. 61) chama de epistemicídio, análogo e correspondente ao genocídio: “um epistemicídio maciço tem vindo a decorrer nos últimos cinco séculos, e uma riqueza imensa de experiências cognitivas tem vindo a ser desperdiçada”. A permanência desses processos enquanto necropoder é ressaltada: “a negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar como universal. O meu argumento é que esta realidade é tão verdadeira hoje como era no período colonial” (SANTOS, 2010, p. 39). Sayak Valencia aplica a leitura de Mbembe a um espaço subjetiva e geopoliticamente situado – o México contemporâneo em que as máfias e cartéis do crime organizado se articulam com o Estado pela ação de sujeitos endriagos, formando um tipo de reprodução capitalista chamado de capitalismo gore – expressão tomada de um gênero de filmes de violência explícita e aberrante. Tal forma de capitalismo se baseia no necroempoderamento, como práticas e processos de aquisição e conservação de posições sociais fundados na causação da morte e sua ostentação. O endriago é uma figura bestial da literatura medieval que a autora usa para designar os mecanismos de reprodução do capitalismo gore a partir de sujeitos localizados no contexto do pós-fordismo, excluídos das cadeias regulares de consumo, que rompem com a lógica do mundo do trabalho e fazem uso da violência extrema como ferramenta de empoderamento e aquisição de capital. Valencia incorpora aqui o conceito de individualismo selvagem como fruto da sociedade de hiperconsumo em Lipovetsky (2007, p. 123): “que combina lógica da privação (pobreza, situação de fracasso, insatisfação consigo) e lógica de excesso, lógica de frustração e lógica de ‘heroicização’, pulsão de ódio e estratégia utilitária”. Inserido na lógica do sistema, o endriago é “un empresario que aplica y sintetiza literalmente las lógicas y las demandas neoliberales más aberrantes” (VALENCIA, 2010, p. 145)

No exemplo mexicano, o poder soberano de dar morte não está clara e exclusivamente situado numa força política legítima ou legitimada como forma estatal, mas é exercido de maneira exponencial nas disputas e associações constantes pela ocupação do poder legítimo realizadas pelo crime organizado e pelas forças estatais com uma mesma base de interesses materiais: “este ejercício necropolítico está logrando hacerse con el poder del Estado mexicano por medio del control de su economía dada la dependencia que ésta mantiene con la economía criminal” (VALENCIA, 2010, p. 145) Outros autores reforçam tal análise. Benítez Rivera (2011) mostra que não existe crime organizado sem apoio institucional; Flores Pérez (2010) mostra que as estruturas de cumplicidade entre as redes delitivas e as esferas de governo vêm de longa data e não foram desarticuladas nas sucessivas porém superficiais mudanças de regime no país, estabelecendo novos equilíbrios na estrutura política. Correa-Cabrera (2012) aponta o enraizamento das estruturas do crime organizado em que as lógicas da governabilidade, da sociabilidade e da estabilização social passam a só funcionar se essas estruturas estiverem presentes. Em outras palavras, o crime organizado assume o monopólio do uso legítimo da força, exercendo esse poder sobre a população de forma impositiva – inclusive através de crimes de sangue – com atuação intra e extraoficial. Atuando dentro de posições estatais, tem o poder de gerar legalidade a seu favor, ou de impor códigos de conduta não oficiais. Tais grupos “não só se envolvem no controle severo e violento e práticas de limpeza, mas também ultrapassam funções do Estado no sentido de segurança e de projeção de poder” (CORREA-CABRERA, NAVA, 2013, p. 105, traduzi). Por isso explica Valencia (2010, p. 145): “La necropolítica detenta un carácter múltiple, ya que es igualmente ejercida por los actores ilegítimos como por los actores legítimos de la biopolítica (el gobierno, el Estado, el discurso), y se legitima a través de estos”.

5. Considerações finais

O presente trabalho buscou cumprir dois objetivos fundamentais, preenchendo uma lacuna sobre a aplicação dos conceitos de Giorgio Agamben à situação específica dos migrantes indocumentados expostos a vários tipos de violações no trânsito pelo México, e trazendo à luz autores que permitem pensar a necropolítica desde o ponto de vista dos estudos pós-coloniais, especialmente Mbembe e Valencia, que aplica o conceito nas especificidades do quadro político mexicano. Quando abordamos a situação dos migrantes em trânsito pelo México, ficou evidente a aplicação da figura simbólica do Homo sacer, especialmente pela situação do migrante

indocumentado em relação a estar vulnerável e tendo suspensos os vínculos de cidadania fixados num paradigma estatal de proteção que não lhes alcança. Também, somados a esse conceito, verificou-se a caracterização das rotas migratórias como campo e sob a vigência do Estado de exceção permanente. Ao se aprofundar em autores posicionados geopoliticamente no Sul Global, essa compreensão fica maior: Mbembe estabelece o nexo entre necropolítica (como vulnerabilização e violência legitimada) e a colonização (e a sua permanência enquanto colonialidade do poder e do saber), retomando o tema do racismo de Estado já abordado anteriormente por Foucault. Por fim, Valencia aplica o conceito de necropolítica à uma contemporaneidade mexicana marcada pelo poder político dos cartéis do crime organizado associados às esferas estatais, trazendo à luz os conceitos de sujeitos endriagos e necroempoderamento, que completam as explicações, dentro do campo de saber da biopolítica e da necropolítica, sobre a violência contra migrantes no país. Por fim, é importante ressaltar que: (1) as expressões de opressão humana e negação da própria condição humana aqui expostas não se dão fora de um contexto da reprodução do modo de produção capitalista e suas particularidades em cada situação geopolítica e período histórico. O funcionamento da máquina capitalista, descrito por Marx, aqui se encontra plenamente reafirmado; (2) a poscolonialidade, o capitalismo gore, e as formas de atuação do Estado mexicano em relação ao crime organizado transnacional não podem assim ser vistos como uma exceção ao capitalismo. Não é possível separar a realidade mexicana (também presente em outros países da América Latina) do processo global de acumulação e exploração, como se houvesse aqui um capitalismo diferente. Essa separação reforçaria o imperialismo e a colonialidade que são os próprios causadores da situação presente, o que fica demonstrado quando são estudados, por exemplo, os efeitos do desmonte econômico causado pelo Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN) e sua relação com a atual configuração do Estado mexicano.

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