Hora ambígua: significações e valores da noite cristã

August 12, 2017 | Autor: C. Salgado Gontijo | Categoria: Medieval Literature, Symbolism
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Hora ambígua: significações e valores da noite cristã Clovis Salgado Gontijo Oliveira Comunicação apresentada no V Simpósio Literatura – provocação para o pensar, realizado pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), Belo Horizonte, setembro de 2009. Publicado nos anais do Simpósio, ISSN 2176-1337. Introdução

En un vergier, sotz fuelha d’albespi, / Tenc la dompna son amic costa si, / Tro la gayta crida que l’alba vi / Oy Dieus! Oy Dieus! de l’alba tant tost ve! // Plagues a Dieu ja la nueitz non falhis, / Ni’l mieus amicz lonc de mi no·s partis, / Ni la gayta iorn ni alba no vis! / Oy Dieus! oy Dieus! de l’alba tan tost ve! 1

Esta passagem, extraída de poema composto por uma poetisa anônima do séc. XII, revela o motivo e a estrutura básica do gênero alba provençal. Três personagens o compõem: o “eu-poético”, a “amiga” (ou, neste caso, o “amigo”) e o vigia. O cenário é noturno e a iminência da aurora conduz o “drama” do poema: a chegada do sol exige a separação dos amantes, cuja união ilícita não pode se mostrar à luz diurna. Diante da constatação da afinidade entre os períodos do dia e determinados comportamentos e experiências humanas, o trovador da alba erótica deseja uma noite permanente e rechaça a aurora. No entanto, esta posição não se baseia apenas na experiência dos amantes, mas possui também uma raiz crítica. Ela se constrói como paródia à valorização cristã mais convencional dos símbolos noturno e diurno, apoiada em diversas passagens bíblicas e difundida pelos hinos de alba de Santo Ambrósio e Prudêncio. Nestes exemplos, a noite e o dia são evocados para simbolizar respectivamente a esfera do negativo e do positivo, justificando assim o ansioso desejo do fiel pela chegada da aurora.2 Deste modo, a alba provençal manifesta duplamente seu caráter subversivo: canta de maneira espontânea a consumação de um amor adúltero e inverte a 1

Tradução aproximada a partir de traduções inglesa e francesa: “Num pomar, sob folha de espinheiro, / segura a dama seu amigo contra si / até quando o vigia exclama ver a aurora. / Oh, Deus, Oh, Deus, quão cedo chega a aurora! // Que pudesse agradar a Deus que a noite nunca cessasse / e que meu amigo para longe de mim nunca partisse / e que o vigia nem dia nem aurora visse! / Oh, Deus, Oh, Deus, quão cedo chega a aurora!” 2 Alusão ao Salmo 130 (129), De profundis.

valorização cristã da noite e do dia, quando “ambos estão presentes e postos em contraste um com o outro”. 3 Assim, a moralidade cristã é subvertida juntamente com a simbologia que a representa. Nos poemas de alba erótica, o símbolo diurno migra para o polo preterido e o símbolo noturno “que o cristianismo havia visto como epítome de todos os valores negativos é elevado agora ao ápice do desejável”. 4 Cabe verificar por que motivos uma mera realidade natural pode representar, para a tradição cristã, tão radical negatividade. Em que significados da noite tal negatividade se apoia e como ela se fundamenta? Esta comunicação terá como objetivo realizar uma primeira aproximação a estas questões e também demonstrar a presença de outras valorizações do símbolo noturno dentro do mesmo imaginário cristão. Deste modo, este ensaio estará dividido em três seções, referentes a três valores associados à noite (neutro, negativo e positivo/ambíguo). Estes agruparão algumas significações do símbolo noturno, localizados nos Salmos, na Liturgia das horas, no Exultet Pascoal, em relatos medievais e em outras passagens bíblicas que contêm referências significativas à experiência, ao fenômeno e ao símbolo noturno. Valorização neutra Em diferentes passagens da Bíblia e da liturgia das horas, o substantivo noite é utilizado em conexão com o dia a fim de indicar uma totalidade temporal. Esta conexão geralmente se processa por meio de dois recursos verbais: pela locução “dia e noite” / “noite e dia” ou por paralelismos poéticos que relacionam ações diurnas a noturnas. O primeiro procedimento pode ser verificado no hino O sacrosancta Trinitas, no qual a proteção contínua concedida por Deus parece estar relacionada com a remissão igualmente contínua do religioso à divindade: “a ti, manhã e tarde, / dia e noite cantamos: / guarda-nos, em todo tempo, / para tua glória infinita”. Já os paralelismos poéticos aparecem, por exemplo, na seguinte passagem do Saltério: “No dia da angústia eu procuro o Senhor; / à noite estendo a mão, sem descanso” [Sl 77 (76), 3].

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SAVILLE, Jonathan. The Medieval Erotic Alba. p. 77. Idem. p. 89-90.

Estes exemplos indicam os dois principais contextos em que a ideia de totalidade temporal é apresentada. No hino citado, encontramos o desejo do fiel de prestar justo reconhecimento ao seu Criador, remetendo-se a ele em todos os momentos do dia. Esta dedicação contínua a Deus se expressa em diferentes modalidades da relação com o divino, como a oração 5, a meditação 6 e a adoração 7. Por outro lado, o Salmo 77 nos mostra que a continuidade temporal pode referir-se a um sofrimento interminável, que de algum modo também motiva a remissão a Deus. Neste caso, como em diversos outros salmos 8, a angústia não é uma exclusividade do período noturno, mas perpassa todas as horas do dia. 9 Assim, a noite, evocada juntamente com o dia, não estaria vinculada a uma valorização negativa quando utilizada para expressar a permanência do sofrimento. Do mesmo modo, não ganharia positividade quando relacionada à oração contínua. Nos exemplos mencionados, a noite – posta em conjunção com o dia em figuras que expressam “sempre” e “todo tempo” – não recebe uma significação específica e, assim, possui valorização neutra. Valorização negativa Na Subida ao Monte Carmelo, São João da Cruz afirma que o estado natural da noite se distingue da escuridão absoluta. 10 Porém, esta constatação não impede que, tanto para o poeta como para o imaginário humano, o ambiente noturno seja evocado como símbolo do negror e do vazio. Esta distinção entre uma noite negra e outra em certo grau luminosa encontra-se intimamente relacionada com a axiologia noturna. Se pensamos que a luz é o elemento inefável por excelência dentro do cristianismo

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“Noite e dia rogamos com instância poder rever-vos, a fim de completarmos o que ainda falta à vossa fé” [1 Ts 3, 10]. 6 “seu prazer [do homem justo] está na lei de Iahweh, / e medita sua lei, dia e noite” [Sl 1, 2]. 7 Segundo o texto apocalíptico, os “quatro Viventes” “dia e noite, sem parar, proclamam: Santo, Santo, Santo, Senhor, Deus todo-poderoso, Aquele-que-era, Aquele-que-é e Aquele-que-vem” [Ap 4, 6-8]. 8 Verificar os seguintes salmos: 42 (41), 4; 13 (12), 3; 88 (87), 2-6 e 32 (31). Nestes, o sofrimento constante é evocado através da locução “noite e dia”. 9 Apenas no sexto Salmo, o sofrimento se sintoniza especialmente com o período noturno [Sl 6, 7-8]: “Estou esgotado de tanto gemer, / de noite eu choro na cama, / banhando meu leito com lágrimas. / Meus olhos derretem-se de dor / pela insolência dos meus opressores”. 10 JUAN DE LA CRUZ. Subida al Monte Carmelo. Livro 2, capítulo 1. Obras completas. p. 223.

medieval,11 o aumento ou a redução da luminosidade no ambiente noturno implicará necessariamente uma modificação na sua valorização. Deste modo, quando concebida como total ausência de luminosidade, a noite manifesta sua configuração mais negativa. Esta imagem se apoiaria no primeiro relato da Criação apresentado pelo Gênesis, que inicialmente compreende a noite como um “nome” dado às trevas quando estas são separadas da luz. 12 Deste modo, a noite é pensada como um quase-equivalente do estado de indiferenciação que antecede o ato criador. Sob essa perspectiva, a noite não teria uma realidade ontológica, aproximando-se assim ao “não-ser” parmenídico, que também é evocado a partir de metáforas noturnas. Equivalente à esterilidade do nada, ao caos de algum modo independente da operação divina, é possível imaginar que Deus não participa dessa configuração negra da noite. Esse juízo taxativo, que demonstra a negatividade absoluta do período noturno, pode ser identificado no hino Aeterne lucis conditor: “Autor da eterna luz, / e Tu mesmo Luz e dia, / oh Deus, tua natureza / não sofre nenhuma noite”.13 Retomando Parmênides, a inconsistência ontológica acarreta consequências epistemológicas. O “não-ser” não pode ser conhecido nem verbalizado devido à sua esterilidade, à sua ausência de inteligibilidade. Do mesmo modo a noite tenebrosa, ao ver-se destituída de luz e de ser, serve como imagem para uma série de realidades negativamente incompreensíveis, das quais Deus tampouco participa. Dentre estas, destacam-se “o mal, a morte, a doença, o erro e o pecado”, que, seguindo os passos do filósofo V. Jankélévitch, poderiam ser compreendidas como “seres noturnos”.14 Também o cristianismo inseriu estes “seres” dentro de um “regime noturno da imagem”. 15 Porém, tal conexão não se deve apenas às possíveis relações filosóficas entre noite e “não-ser”, mas também a aspectos observados na experiência humana e natural da noite, a eventos históricos ocorridos durante o período noturno e a algumas 11

“Como escreve justamente Michel Pastoureau, baseando-se na mentalidade medieval: [a luz] ‘é a única parte do mundo sensível que é simultaneamente visível e imaterial. É visibilidade do inefável e, como tal, emanação de Deus’.” DELUMEAU, Jean. Historia del Paraíso. v. III. p. 219. 12 “Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’ (...)” [Gn 1, 5]. 13 Hino Aeterne lucis conditor. 1ª estrofe. Tradução a partir da versão espanhola de Correa. 14 JANKÉLÉVITCH, V. La musique et les heures. p. 228. 15 Gilbert Durand, em sua obra Estruturas antropológicas do imaginário, organiza sua classificação dos símbolos e arquétipos do imaginário universal a partir de duas “constelações” dominantes: o “regime noturno” e o “regime diurno da imagem”.

constantes presentes em nosso imaginário. Assim, novos motivos se somam, por exemplo, à associação entre morte e noite: o cenário noturno ambienta a décima praga perpetrada contra os egípcios 16 e propicia o sono, arquetipicamente entrelaçado a thanatos. 17 Já a face noturna do mal, compreendido como violência e terror, poderia se justificar pelos perigos naturais que açoitam a noite. Como nos revela o Salmo 104, nesta se manifesta a natureza selvagem, indomável, que se opõe à esfera do inteligível, do humano, inscrita no período diurno. Esbocemos agora algumas das justificativas para a configuração noturna do pecado. Filosoficamente, o pecado se relaciona com a irracionalidade e com a ignorância – relação que se repete no imaginário cristão. 18 Fenomenologicamente, a noite revela-se como terreno que propicia o tropeço 19 (físico, moral e espiritual), que permite enganos e camuflagens. É nela que se produz, na Idade Média, “a maior parte das más ações”. 20 É “no coração da noite e da sombra” que se realiza o encontro entre o “jovem insensato” e uma mulher “vestida como prostituta, com falsidade no coração”. 21 E é também no cenário noturno que se unem os amantes dos poemas de alba. Valorização positiva/ambígua “Enquanto durar a terra, / semeadura e colheita, / frio e calor, / verão e inverno, / dia e noite / não hão de faltar.” 22

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Ex 12, 29-30. A irmandade entre hypnos e thánatos pode ser verificada na oração final de completas, que marca o final da jornada. Esta oração, repetida diariamente, é concluída da seguinte maneira: “O Senhor todo-poderoso nos conceda uma noite tranquila e, no fim da vida, uma morte santa”. 18 Na oração de laudes de sexta-feira (I semana), verifica-se a “face escura” da ignorância: “Oh Deus, que iluminaste as trevas da ignorância com a luz de tua Palavra”. É interessante notar como esta oração confirma o elo, presente na tradição filosófica grega, entre a luz e a verdade e entre a noite ou a escuridão e as noções irreais e ilusórias. O termo “ilusórias” nos faz lembrar que também a ilusão, emparentada com a ignorância devido à sua inconsistência ontológica e relacionada com o sonho, pode ser compreendida como um “ser noturno”: “phantasma noctis”. Esta expressão é utilizada nos seguintes hinos: Aurora iam spargit polum e Te lucis ante terminus. 19 Jo 11, 9-10. 20 VERDON, J. La nuit au Moyen Age. p. 21. 21 Pr 7, 7-10. 22 Gn 8, 22. 17

Esta promessa realizada por Deus após o dilúvio também emprega a já mencionada locução “dia e noite” para indicar totalidade. No entanto, mais que à totalidade de tempo, o texto parece referir-se à totalidade criada. Toda a natureza, conforme configurada inicialmente, será preservada “enquanto durar a terra”. É interessante observar que esta passagem cita alguns pares de realidades contrárias sem estabelecer hierarquia entre elas. O papel fundamental exercido por cada elemento natural no “funcionamento” da vida terrena impede, nesse momento do texto sagrado, uma desvalorização do período noturno. Deste modo, uma primeira forma de se justificar a positividade da noite seria a partir de sua participação no harmonioso plano divino. A noite possui uma função na natureza e na vida humana: permite o descanso e concede variedade à existência. 23 É dentro desta justificativa que podemos encontrar, no Cântico dos três jovens, a presença da noite – e também das trevas – entre as “obras” que louvam o Senhor 24. Porém, a compreensão destes “seres” obscuros como “obra” é algo subversiva dentro da teologia cristã. Já na primeira página da Bíblia de Jerusalém, lê-se a seguinte nota: “A luz é uma criação de Deus, as trevas não o são: elas são sua negação”. 25 Se as trevas simbolizam o “não-ser” e a noite é, como vimos, de algum modo equivalente às trevas, seria possível afirmar, como o teólogo ortodoxo Evdomikov: “As trevas e a noite não foram criadas por Deus... A noite não é mais que um signo do que não existe”. 26 Novamente nos deparamos com o problema do estatuto ontológico da noite e das trevas. A valorização positiva do período noturno pelo Gênesis e pelo Cântico citado parecem não se sustentar dentro da metafísica hierarquizada que se expressará, por exemplo, na concepção apocalíptica e medieval da Nova Jerusalém. Nesta, haverá dia sem noite, primavera sem inverno, um espaço interior sem exterioridade, eternidade sem temporalidade 27, transcendência sem imanência.

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“Criador sempiterno das coisas, / que governas as noites e os dias, / e alternando a luz e as trevas / o tédio evitas” [Hino Aeternum rerum conditor noctem diemque qui regis]. Tradução do autor a partir da versão espanhola de Bernárdez. 24 “Noites e dias, bendizei o Senhor: / louvai-o e exaltai-o para sempre! / Luz e trevas, bendizei o Senhor: / louvai-o e exaltai-o para sempre!” [Dn 3, 71-72]. 25 A Bíblia de Jerusalém. p. 31. nota “e”. 26 Apud: PEDRO H., Aquilino. Liturgía de las horas. p. 89. 27 A partir do Gênesis, seria possível pensar numa temporalidade que inclua a eternidade – assim como numa totalidade natural que inclua tanto o dia como a noite. Se não fosse pela desobediência cometida, o homem viveria eternamente, mas dentro do tempo cíclico caracterizado pela alternância noite-dia.

A metafísica dualista de matriz platônica assimilada pelo cristianismo possui importantes implicações estéticas. A hegemonia do polo diurno – associado ao inefável e ao transcendente – somente poderia compreender como belo um ambiente dotado de luz. Assim, a imagem noturna usualmente valorizada pelo imaginário cristão e medieval não é uma noite escura, mas uma noite luminosa, 28 noite do quarto dia da Criação, na qual foram incluídos os luzeiros e as estrelas. 29 Porém, a noite dotada de maior positividade para o cristianismo se distancia da noite natural. Trata-se da noite da Ressurreição, na qual a presença de Cristo é simbolizada pelo círio pascoal, cuja luminosidade tem como objetivo “afugentar as trevas desta noite”. 30 A “beata nox” é uma noite “clara como o dia”. 31 Portanto, podemos concluir que a máxima valorização estética e ontológica da noite resulta, de certo modo, de sua auto-anulação, ou, ao menos, da anulação da configuração obscura que a constitui. A Vigília Pascoal também oferece um segundo modo de conceber positivamente o período noturno. De acordo com o Exultet nela entoado, a noite da Vigília, mais que rememorar, traz à presença do ouvinte quatro momentos noturnos fundamentais32, que compõem a história de salvação do povo cristão. Utilizando-se terminologia hegeliana, poderíamos dizer que as quatro noites citadas são “momentos necessários”, assim como foi necessário o pecado de Adão (“O felix culpa”) para a vinda de Cristo e a redenção da humanidade. Porém, a concepção de um “momento necessário” também implica a provisoriedade e imperfeição de uma etapa a ser superada. E a superação da noite, paralela à superação do pecado, parece não incluir sua conservação, como ocorreria na Aufhebung hegeliana. Tanto o hino quanto a

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“na Idade Média, [a noite] não é representada em negro, mas sim em azul. Um azul escuro, porém um azul que se distingue claramente do negro” [VERDON, J. Op. cit. p. 137]. 29 Gn 1, 14-19. 30 Esta passagem, assim como a expressão “beata nox”, encontra-se no Exultet Pascoal. 31 “Haec nox est, de qua scriptum est: et nox sicut dies illuminabitus”: referência do Exultet ao Salmo 139 (138), 11-12. 32 1ª noite: saída do Egito e travessia do Mar Vermelho [Ex 14, 19-23; Dt. 16, 1-8]; 2ª noite: Deus guia seu povo através de uma coluna de fogo [Ex 13, 21-22]; 3ª noite: os cristãos são restituídos à graça e introduzidos na comunhão dos santos; 4ª noite: vitória de Cristo sobre a morte [Mc 16, 9; Jo 20, 1].

revelação apocalíptica localizam no momento final da história a expulsão definitiva da escuridão noturna.33 Deste modo, a valorização da noite como “momento necessário” implica problemas semelhantes à sua valorização como integrante de uma totalidade harmoniosa. Em ambos os casos, a positividade da noite não se fundamenta nela mesma, mas sim no grande “quebra-cabeça” da história ou da criação, que possui – ou um dia possuiu – peças noturnas. Uma terceira forma de se pensar a positividade do período noturno seria a partir de sua “afinidade” com a prática da oração. A noite conduz a uma atitude de escuta 34, de quietude, de maior introspecção e aproximação ao mundo invisível. 35 Por este motivo, para o monge, “o ofício noturno é o momento mais favorável à meditação, ao exercício tranquilo da oração”. 36 Já no início do monaquismo, Cirilo de Jerusalém confirma esta concepção, ao perguntar-se: “O que pode haver de mais favorável à sabedoria que a noite? Então praticamos a leitura e a contemplação das coisas divinas. Quando nosso pensamento está mais atento a salmodiar e a orar? Não é durante a noite? Quando chegamos a nos lembrar com mais frequência de nossos próprios pecados? Não é durante a noite?” 37 No entanto, esta passagem revela que, mesmo dentro dessa compreensão, a noite é dotada de ambiguidade. O período noturno predispõe o homem à oração não apenas por ser experimentado como “hora tranquila” 38, mas também por nos aproximar de nossa negatividade moral. A escuridão natural da noite desperta a consciência de nossa escuridão interna e, consequentemente, o desejo de buscar a luz: “Já o profeta aconselhava / buscar de noite o Deus da luz. / Deixando pois o nosso

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No Exultet, a presença de Cristo faz com que a terra “inundada de tanta claridade (...) se sinta livre das trevas que cobriam o orbe inteiro”. De modo similar, o Apocalipse descreve a morada definitiva como um ambiente onde “não haverá noite: ninguém mais precisará da luz da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e eles reinarão pelos séculos dos séculos” [Ap 22, 5]. 34 Samuel escuta o chamado de Deus durante a noite [1 Sm 3]. 35 “A noite é o tempo em que, ao diluir-se o mundo visível, o mundo invisível pode alcançar o homem. É no paganismo a hora dos espíritos, na tradição judaico-cristã a hora do encontro com Deus, que se manifesta por sonhos ou por outras vias” [Dictionnaire de spiritualité. p. 519]. 36 MARTIMORT, A. G. L’église en prière. p. 873-874. 37 Dictionnaire de spiritualité. p. 519. 38 Hino Primo dierum omnium. 4ª estrofe.

sono, / vimos em busca de Jesus.39 Assim, a positividade da noite da oração se encontraria vinculada, em certa medida, a um efeito de chiaroscuro, no qual a escuridão noturna é valorizada quando contraposta à luz.40 Além de se verificar no âmbito da oração, o mesmo efeito poderia ser identificado nas profecias e revelações noturnas41, frequentemente representadas como visões de luz na escuridão. 42 Conclusão Como sugere o título deste ensaio, as horas que compõem a noite cristã são “horas ambíguas”. A ambiguidade do período noturno para o cristianismo pôde ser constatada tanto por seus três valores contrastantes quanto pelo estudo de suas possíveis significações positivas. Como vimos, a maioria destas, quando desenvolvidas, apontam à “face” negativa do símbolo noturno. Por outro lado, as poucas significações inequivocamente positivas – como a “hora tranquila” e a noite que concede variedade à existência – parecem insuficientes para inverter a relação noite e dia convencionalmente repetida pela tradição cristã. Isso porque a ontologia da luz subjacente ao cristianismo impede, muitas vezes, uma apreciação da noite independente do dia ou da luminosidade. A apreciação autônoma do momento noturno parece acontecer de forma mais efetiva e espontânea dentro de outro modo de compreensão da realidade. Este modo, que poderia ser chamado

noturno,

descobre

uma

possível

positividade

nos

fenômenos

indeterminados, temidos pela ortodoxia medieval devido à imprecisão de seu conteúdo e origem. É assim que, além da própria noite, a musicalidade, os sonhos, o amor, a beleza feminina e os prazeres da sensibilidade são valorizados pela poesia provençal. 39

2ª estrofe do hino Primo dierum omnium. Tradução do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças. 40 Esta compreensão também aparece numa das visões de Santa Brígida: “A luz foi feita a fim de que o homem, participando nas coisas superiores e inferiores, saiba e possa suportar as penas no dia e arrepender-se na noite por haver perdido a luz eterna. A noite também foi feita para o repouso do corpo, a fim de que provoquemos em nós um desejo ardente de chegar ao lugar onde não há noite nem penas, mas apenas um dia contínuo e uma glória eterna” [DELUMEAU, J. Op. cit. p. 222]. 41 Em Is 21, 6-9; 11-12, o profeta aparece como sentinela noturna,capaz de avistar o dia e a noite seguintes. 42 Como exemplo do chiaroscuro da revelação, verificar visão noturna de São Bento relatada por São Gregório Magno. GREGÓRIO MAGNO. Vida e milagres de São Bento.

Seriam necessários ainda alguns séculos para que, um pouco ao sul de Provença, a lógica subversiva das albas eróticas pudesse ecoar na poesia cristã: “¡Oh noche que guiaste! / ¡oh noche amable más que el alborada! / ¡oh noche que juntaste / ¡Amado com amada, amada en el Amado transformada!” 43 Bibliografia A Bíblia de Jerusalém. Vários tradutores. Tradução dos Salmos: Ivo Storniolo. São Paulo: Paulinas, 1973. Traduction Œcuménique de la Bible. Édition Integrale. Ancien Testament. Paris : CERF, 1975. BERNÁRDEZ, Francisco Luis. Himnos del breviario romano. Buenos Aires: Losada, 1952. CANTALAMESSA, Roberto. O mistério da Páscoa. Tradução: Pe. Luiz Gonzaga Scudeler. Aparecida : Santuário, 1993. CORREA, J. Rigoberto. Poemas que no mueren: los himnos del oficio divino. Quito: Colegio Técnico Don Bosco, 1978. CHAVE BÍBLICA. Tradução: João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Sociedade bíblica do Brasil, 1970. DE BRUYNE, Edgar. La estética de la Edad Media. Tradução: Carmen Santos (texto em francês) y Carmen Gallardo (textos latinos). Madrid: Visor Distribuciones, 1994. DELUMEAU, Jean. Historia del Paraíso. v. III. ¿Qué queda del Paraíso? Tradução: María del Pilar Ortiz Lovillo. Madrid: Santillana, 2005. DURAND, Gilbert. Las estructuras antropológicas del imaginario: introducción a la arquetipología general. México: Fondo de Cultura Económica, 2006. Dictionnaire de Spiritualité. Ascétique et Mystique. Doctrine et Histoire. Beauchesme: Paris, 1982. GREGÓRIO MAGNO. Vida e milagres de São Bento: livro segundo dos diálogos de Gregório Magno. Tradução: Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1977. JANKÉLÉVITCH, Vladimir. La musique et les heures. Paris : Seuil, 1988.

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JUAN DE LA CRUZ. Noche oscura. 5ª estrofe. Op. cit. p. 536.

JUAN DE LA CRUZ. Obras completas. Sétima edição preparada por Eulogio Pacho. Burgos: Monte Carmelo, 2000. Liturgia das horas segundo o rito monástico. Tempo comum. Belo Horizonte: Mosteiro de Nossa Senhora das Graças. Liturgia de las horas o nuevo oficio divino reformado según los decretos del Concilio Vaticano II. v. I. Laudes, Hora Intermedia, Vísperas, Completas. (Diurnal). Madrid: Comisión Episcopal Española de Liturgia. LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. Tradução: João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 1993. PEDRO H., Aquilino. Liturgia de las horas: introducción a la oración de la Iglesia. Santiago: San Pablo, 1998. SAVILLE, Jonathan. The medieval erotic alba: structure as meaning. Nova Iorque e Londres: Columbia University Press, 1972. VERDON, Jean. La nuit au Moyen Age. Perrin, 1998. Fontes eletrônicas: http://www.preces-latinae.org/thesaurus/Hymni/PrimoDierum.html http://www.archive.org/stream/greathymnsofmidd00brai/greathymnsofmidd00brai_d jvu.txt ).

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