Horácio, Pedro e a Gentrificação Trágica (Review Horace and Pete, Louis CK)

May 28, 2017 | Autor: R. Almeida Sousa | Categoria: Communication, Popular Culture, Digital Media, Cinema, Entertainment
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Horácio, Pedro e a Gentrificação Trágica Recensão crítica sobre “Horace and Pete” (Louis C.K.) Rodrigo Almeida e Sousa CIC.DIGITAL – Pólo da Universidade do Porto

Não deve ser só impressão minha. Lembro-me de ver, na velha estante do meu avô, o Discurso do Método assinado por ‘Renato’ Descartes e sentir de imediato a ironia a correr-me nos axónios. Corrijam-me se estiver errado, mas parece-me que não sou o único a, no mínimo, sorrir ante traduções literais de nomes, terriolas, negócios locais, comidas, etc. Existe, porém, uma grande diferença entre o filósofo francês e os personagens de Louis C.K. – é que René não é de todo um Renato, enquanto ‘Horace’ e ‘Pete’ são efectivamente, ou quase, um Horácio e um Pedro. Pois, embora Horácio não seja por cá muito frequente, nem porventura tradicional, não deixa de soar à antiga. Já Pedro, claro está, possui todas as características pretendidas. Mas, de que características estamos a falar? Talvez seja melhor explicar do início – até porque, estando praticamente no fim do ano, já podemos dar-nos ao luxo de fazer um balanço crítico, sem precipitações de internauta. A 30 de Janeiro de 2016, Louis C.K. dava-nos a conhecer por email o seu novo trabalho, Horace and Pete, uma serie fora do comum. Em primeiro lugar, pelo seu formato digital (websérie) lançado online sem pré-aviso. Em segundo, pelas suas opções estéticas – conjugando teatro, cinema e televisão, numa dinâmica de filmagem e edição a fazer lembrar desde Abigail’s Party (Mike Leigh, 1977) às sitcoms de Norman Lear (All in the Family, 1971-79; Maude, 1972-78) e dos irmãos Charles (Taxi, 1978-83; Cheers, 1982-93). Em terceiro, porque apesar de aqui e ali nos fazer rir, está longe de ser uma comédia. Algo que, aliás, transparece no seu enredo. A série conta-nos a história de dois irmãos que, segundo a tradição, herdam os nomes e o negócio familiar dos seus antepassados: Horace e Pete. Mas valerá a pena – para os actuais herdeiros – manter aquele bar velho e decadente, só para conservar a dita tradição? A irmã deles, Sylvia, acha que não, e por isso tenta convencê-los a vender. O conflito adensa-se. Até que no quinto episódio – em linguagem de guionista, middle point (a série tem dez episódios) – tomam uma decisão em conjunto: deixar tudo na mesma. Deste modo, logo na trama inicial nos deparamos com as características – normalidade, antiguidade, tradição – que há pouco mencionávamos, em torno dos

nomes dos protagonistas. Pois, de facto, estas são apenas algumas das várias peculiaridades que, no seu conjunto, inserem a websérie de C.K. no fenómeno mais em voga desde o início do nosso século, a Gentrificação. A começar pelo espaço – um bar antigo, negócio familiar (com regras e tradições a condizer), com 100 anos de existência (1916-2016), situado em Brooklyn (onde é que havia de ser?) – passando pela banda sonora de Paul Simon, e a acabar nos personagens, tão idiossincráticos quanto castiços: - Leon, da geração dos 70’s, é um ex-alcoólico que agora bebe sumo de maçã - Marsha, alcoólica, também da mesma geração, vai àquele bar porque lhe dão bebidas de graça (motivo: ter sido a última amante do falecido Horace VII) - Kurt, entre os 30 e os 40 anos, tem uma maneira de estar com traços dos 90’s, sempre relaxado, “na dele”, e a criticar a sociedade de uma forma tão realista quanto destrambelhada – alegando, por exemplo, que se a América votar em Trump é porque quer ir abaixo… logo, porque não votar mesmo nele e ir abaixo de uma vez por todas? - Por fim, o magnífico Tio Pete. Um exemplar vivo do tempo dos Beatniks, detentor do paradigma existencial da sua geração e correspondentes dilemas (suicídio, experimentação, rebeldia sem causa), assim como de uma sabedoria genuína, que lhe permite dizer: “o racismo não depende do que dizes, mas do que fazes” (algo contrastante com os nossos dias, onde a censura do que se diz parece vingar sobre a ética do que se faz) Assim, todo o panorama da websérie de C.K. nasce a partir deste ambiente de recuperação de cenários pós-modernos que, desde os 50’s, nos providenciaram os mais variados estilos de vida e respectivos consumismos. Porém, de modo algum esse revivalismo se produz em tons coloridos e irónicos, como os da década passada (20002010). Se há coisa que não se respira naquele bar é a frescura do optimismo Hipster. Ali ninguém sorri para o amigo, ostentando-lhe os novos óculos à James Dean que encomendou no ebay, ou a nova t-shirt flower power que comprou numa feira alternativa – entre outros produtos da cultura pop. Pelo contrário, Horace and Pete é o bar onde essa mesma cultura pop, esgotada de tanta Gentrificação, vai afogar-se em whisky enquanto pensa no suicídio. Por isso, aliás, é que aos hipsters se lhes cobra 1.5$ mais por uma Budweiser que a um cliente normal. Pois, pelo preço de uma cerveja o jovem millennial consome, além da bebida, uma mais-valia irónica por ali estar, num bar decadente e castiço; enquanto o cliente normal se fica pela Budweiser. Trata-se, portanto, de uma espécie de imposto para idiotas.

Com efeito, para qualquer dos personagens, e sobretudo para os protagonistas, a Gentrificação não se presta à ironia, senão à tragédia. Ela está na raiz da condenação das suas vidas. Horace fala em renovar o bar – mas não por motivos de divertimento ou bom gosto, à maneira do millennial hipster – somente como argumento de último recurso para continuar a mantê-lo. Primeiro, por si mesmo, pois é claro que ele não sabe quem ele próprio é, nem o que ali esteve a fazer a vida toda, mas com certeza saberia ainda menos caso vendesse o estabelecimento. Segundo, por causa de Pete que, sofrendo de uma doença mental, nunca arranjaria emprego noutro lado. Ou seja, aquele objecto de Gentrificação está condenado a sê-lo uma e outra vez, sem fim à vista. Contudo, não no sentido gracioso e superficial, já que a dita renovação exterior nem sequer chega a acontecer. Pelo contrário, por mais que Horace and Pete tivesse tudo para ser um produto de recuperação estética, requintado pela ironia, ele não funciona como tal. Assim como a tradução literal dos seus nomes para Horácio e Pedro, a fórmula que dávamos por garantida, afinal não faz rir. Por outras palavras, C.K. apresenta-nos o outro lado da moeda artística do nosso século. Em vez da Gentrificação Irónica – propositadamente superficial, típica dos millennial hipsters e da década passada (2000-2010) – o autor propõe-nos a Gentrificação Trágica, de intenções profundas, inspirada nos autênticos hipsters, os originários, chamados Beatniks (1950’s), simbolizados pelo velho Tio Pete. Não sendo, portanto, de estranhar que a única ironia presente na série seja a do absurdo existencial – por exemplo, dos esforços vãos de um indivíduo frente à sua loucura genética (Pete), ou do ridículo que é um assunto tão importante como o amor estar tão condicionado pelo mero acaso do instinto bioquímico (episódio 3), entre outros dilemas e angústias. Com efeito, nada disto tem lá muita graça. Mas, nascida da crise de 2008 e seguida das dívidas soberanas, conflitos na Síria, drama dos refugiados e crescente tensão entre EUA e Rússia, a nossa década também já não está para brincadeiras.

22/10/2016

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