HUMANISMO Críticas e Aproximações a partir da ‘Carta ao Humanismo’ de Heidegger

July 22, 2017 | Autor: Victor Marques | Categoria: Antropología filosófica
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HUMANISMO
Críticas e Aproximações a partir da
'Carta ao Humanismo' de Heidegger

Victor Hugo de Oliveira Marques
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Resumo
Falar de "fundamentos filosóficos" para os Direitos Humanos, apesar da
ampla literatura existente, não é uma tarefa nada fácil. Em primeiro lugar
temos que pressupor duas coisas: que temos ciência tanto da suficiente
dignidade do ser humano, de modo a conferir-lhe direitos, quanto do que é
isso que dizemos por 'Humano'. Assim, nesta comunicação queremos nos ater
apenas ao segundo problema em específico: o que queremos dizer quando
utilizamos o termo 'Humano' para significar o 'Ser' do homem? A fim de
problematizar essa questão, tomamos por referencial teórico as reflexões
herméticas de Heidegger, de modo especial, sua famosa carta direcionada a
Jean Beaufret em 1946, popularizada sob título Brief über den "Humanismus".
O que pretendemos com essa questão é expor as problemáticas intrínsecas à
própria questão de se pensar o homem em sua humanidade e, com ela, repensar
os modelos teóricos do próprio humanismo, haja vista que, segundo
Heidegger, todo movimento de reforço da humanidade do humano, já mostra sua
ausência de sentido. Em termos conclusivos, seria, então, o caso de se
reavaliar que sentido ainda tem a defesa do humano e em que medida
Nietzsche teria razão quando anunciou a própria superação do humano.
Palavras-Chave: Humanismo. Heidegger. Humano do ser do homem.

Introdução e apresentação do problema

Falar de "fundamentos filosóficos" para os Direitos Humanos, apesar
da ampla literatura existente, não é uma tarefa nada fácil. Em primeiro
lugar temos que pressupor duas coisas: que temos ciência tanto da
suficiente dignidade do ser humano, de modo a conferir-lhe direitos, quanto
do que é isso que dizemos por 'Humano'. Ambas as suposições possuem
amplitude, magnitude e autonomia suficientes, o que significa dizer que não
é possível abordá-las em uma passada de olhos. Por essas e outras, neste
estudo queremos nos ater apenas ao segundo problema em específico: o que
queremos dizer quando utilizamos o termo 'Humano' para significar o 'Ser'
do homem? E, uma vez definido o ser do homem, avaliar se ainda é legítima a
expressão Humanismo.
O que pretendemos com essa questão, e com esse modo de análise nada
ortodoxo, não é delinear uma resposta aos moldes tradicionais i. é,
encontrar a essência humana, de modo a corroborar para os propósitos deste
Congresso. Talvez essa pergunta – pelo 'Humano' do ser do homem – em si
mesmo não tenha uma resposta; mas, ao contrário, bem ao estilo
heideggeriano, nós pretendemos expor as problemáticas intrínsecas à própria
questão de se pensar o homem em sua humanidade. No entendimento de
Heidegger, desde Ser e Tempo, grande parte dos problemas do pensamento
filosófico tradicional concentrava-se mais no modo de postular a questão do
que nas respostas oferecidas[1]. E estas, com efeito, fracassavam mais pela
dependência a um modo encoberto pela tradição da pergunta do que
propriamente por seus conteúdos. Prova disso é o modo como foi proposta a
questão das questões, ou seja, a questão do ser pelo pensamento
tradicional, que, por seu turno, acabou caindo no esquecimento.
De modo semelhante é que abrimos a pergunta pelo 'Humano' do homem,
qual seja, levantar a questão se as relações entre a pergunta e as
respostas sobre a essência do homem condizem com a própria Humanidade do
homem, a fim de legitimar os movimentos humanistas oriundos dessa relação.
A fim de problematizar essa questão, tomamos por referencial teórico as
reflexões herméticas de Heidegger, de modo especial, sua famosa carta
direcionada a Jean Beaufret de 1946, popularizada sob título Brief über den
"Humanismus"[2] e publicada no volume 09 da Gesamtausgabe. Destarte,
reconstruiremos as críticas que Heidegger faz à pergunta pela essência do
homem e sua tradicional resposta enquanto animal racional. Na sequência,
procuraremos mostrar como essa relação pergunta-resposta, a partir do
conceito de animal racional, prejudicou e encobriu a própria investigação
pela essência humana, haja vista que essa relação enseja um pensamento
metafísico que não libera os verdadeiros horizontes da Humanidade. E por
fim compreender até que ponto o Humanismo deve ser uma meta a ser
perseguida, a despeito de toda crítica de Nietzsche e dos movimentos pós-
humanistas.

Humano e Animal Racional

A questão que apetece a esse estudo é: o que torna o 'Ser' do homem
'Humano'? Esse modo de pró-pôr a questão, além de ser condição de
possibilidade para a segunda pergunta fundamental intrínseca aos Direitos
Humanos – o que é que torna o Humano digno de ter direitos, abre-nos uma
perspectiva de análise. O ato mesmo de pôr a questão revela o ambiente a
qual ela deve repousar. Interrogar o que faz o 'Ser' do homem 'Humano' é,
ao mesmo tempo, averiguar o que o Humano tem que ver com o Ser. É, por isso
mesmo, abrir uma via ontológica da pergunta, haja vista que Humano é tomado
como Ser. Ora, de que modo Humano e Ser podem ser postos em relação? A
respeito desse modo de conceber a pergunta pelo Humano do homem, tomando
como termo médio a ideia de Ser, é que as reflexões de Heidegger são-nos
pertinentes e conduzem ao delineamento da questão.
O texto Brief über den "Humanismus" de 1946 apresenta as reflexões de
Heidegger, bem como seu posicionamento, a respeito do Humanismo e da
pergunta pelo Humano do homem. A carta endereçada a Jean Beaufret tem por
motivação a pergunta do filósofo francês: "Comment redonner um sens au mot
'Humanisme'?"[3]. Heidegger (1979a), em sua resposta, se posiciona de modo
contrário ao Humanismo e defende a tese de que o Humanismo impediu que a
essência do homem, o Humano do homem, pudesse ser compreendida bem como
qualquer possibilidade de construção de princípios e direitos que pudessem
ser tomados sob um sistema ético Para compreender as razoes do filósofo é
necessário reconstruir seus argumentos.
À pergunta feita pelo interlocutor francês a respeito do sentido atual
da palavra Humanismo, Heidegger (1979a, p.150) responde negativamente
alegando que, tal como "Humanismo", todas as expressões que se utilizam dos
sufixos "-ismos" mais servem ao "mercado da opinião pública" que "exige
constantemente novos" do que aos fins que elas se propõem. Assim como
"Lógica", "Ética" e "Valores", o Humanismo é uma expressão que,
lamentavelmente, aponta para a pobreza do pensamento que chega a sua
exaustão; e justifica afirmando: "os gregos pensaram sem tais títulos"
(HEIDEGGER, 1979a, p.150). No entender de Heidegger, um momento histórico
que necessita enfatizar os rótulos das grandes questões demonstra mais a
falência e o desgaste dessas do que propriamente um reforço racionalmente
necessário. Neste ponto aparece inevitavelmente um problema que diz
respeito ao próprio Congresso dos Direitos Humanos: se entendemos que esse
Congresso deve ocorrer em virtude de uma necessidade de nosso momento
histórico, e se levarmos a sério a crítica heideggeriana, ao contrário do
que pareceria – um momento de intensa valorização, afirmação e garantia de
direitos promovidos pelas discussões sobre Direitos Humanos – temos um
momento de muita pobreza do pensar humano sobre tais questões e que,
provavelmente, fracassamos nelas. Mas é cedo para um julgamento apressado.
Em continuidade, Heidegger (1979a) se propõe a mostrar que quando se
fala de Humanismo, na perspectiva filosófica, não se pensa em uma expressão
unívoca, mas em sentidos vagos que mais dispersam do que contribuem para a
questão da essência do homem:
Mas de onde e como se determina a essência do homem?
Marx exige que o 'homem humano', seja conhecido e
reconhecido. Ele o encontra na 'sociedade'. O homem
'socializado' é para ele o homem 'natural' [...] O
cristão vê a humanidade do homem, a humanitas do
homo, desde o ponto de vista de sua distinção da
Deitas. Ele é, sob o ponto de vista da história da
salvação. Homem como 'filho de Deus', que, em Cristo,
escuta e assume o apelo do Pai (HEIDEGGER, 1979a,
p.152).


À moda de exemplo de Marx e do Cristianismo, Heidegger ressalta a
disparidade radical dos conceitos de Humano à medida que se tornam
irreconciliáveis. A fim de reconstruir histórica-filosoficamente essa
dissonância do Humano do homem, por um lado, o filósofo procura mostrar que
o Humanismo, enquanto aquela medida que faz o homem voltar-se para a sua
humanidade mesma – a sua Humanitas – é dependente do conceito de Humanitas
erigido sob a cultura greco-romana. Humanitas seria aquele caráter que
distingue o "homo romanus" do "homo barbarus" (HEIDEGGER, 1979a, p.153).
Por outro, há aquele sentido em que o Humanismo é visto dependente de
conceitos como liberdade e natureza, o que é um problema, já que em cada
caso, é necessário que tais conceitos sejam estabelecidos em seus
fundamentos. Como exemplo, Heidegger lembra que o humanismo de Marx e de
Sartre não remetem à Antiguidade por possuírem já conceitos de ensejados em
suas próprias teorias. Seja por um ou por outro, Heidegger (1979a, p.153)
conclui que:


[...] todas elas [espécies de humanismo] coincidem
nisso que a humanitas do homo humanus é determinada a
partir do ponto de vista de uma interpretação fixa da
natureza, da história, do mundo, do fundamento do
mundo, e isto significa, desde o ponto de vista do
ente em sua totalidade.


Logo, o Humanismo, desde o ponto de vista da reconstrução filosófica
feita por Heidegger, pouco ou nada contribuiu para que a essência humana
pudesse ser reconhecida de modo que dele decorresse a garantia dos direitos
humanos. Isso porque o Humanismo não esclarece a relação que há entre o
'Humano' e o 'Ser' do homem. O que ele propõe, em termos de compreensão
filosófica, são conceitos que submetem o Humano a um "ente na sua
totalidade". Ele coloca o homem sob o mesmo nível ontológico dos demais
entes.
Essa tese de Heidegger de que o ser do homem não pode ter o mesmo
nível ontológico dos demais entes não humanos não é nova na Brief über den
"Humanismus". Na verdade ela já é presente na Conferência de 25 de julho de
1924 intitulada O conceito de tempo, a qual Heidegger (1998, p.33) afirma:
"Ninguém na cotidianidade é si mesmo. Isto que ele [Dasein] é, e o modo em
que ele é, não é [como] ninguém". Contudo, somente em Ser e Tempo que
Heidegger oferece os fundamentos ontológicos para sua tese: "O Dasein não é
um ente que só sobrevenha entre outros entes. Ao contrário, ele é
onticamente assinalado, pois para esse ente está em jogo em seu ser esse
ser ele mesmo" (HEIDEGGER, 2012, p.59). O Dasein, o modo de ser do homem,
no entendimento de Heidegger, não pode ser compreendido a partir de alguma
substância, pois tal procedimento, além de ignorar o seu "ser ele mesmo",
incorre no processo de coisificação do humano.
É importante frisar que a tese de Heidegger de que o ser do homem é
ontologicamente distinto do ser das coisas é corroborada pelos pensamentos
de Scheler e Husserl, como reconhece Heidegger (2012, p.153):


Apesar de todas as diferenças na interrogação, no
procedimento e na orientação de weltanschaulichen, as
interpretações da personalidade em Husserl e em
Scheler concordam no que negam [ou seja, que a pessoa
não é nem coisa, nem substância, nem objeto].


Os problemas na definição do Humano do homem da história do pensamento
filosófico e seu subjugamento ao plano dos entes simplesmente dados ficam
mais claros quando Heidegger mostra os problemas da clássica definição do
homem como "animal rationale". Advinda, de modo geral, dos Humanismos
filosóficos, a clássica expressão do homem como animal racional carrega
consigo problemas que afastam o homem de sua Humanitas. De acordo com
Heidegger (1979a) na Brief über den "Humanismus", é questionável o modo
como a razão (λόγος) se relaciona com a animalidade (ζῷον). Sob um primeiro
prisma, deve-se, antes de tudo, determinar que tipo de razão se adéqua a
essa relação: se é "a faculdade dos princípios" ou se é "a faculdade das
categorias" (HEIDEGGER, 1979a, p.154). Em outras palavras, apenas dizer que
o ser humano é, em sua essência, uma razão alocada em um animal vivente,
não responde ao problema, haja vista que não se determinou qual o caráter
da razão é capaz de ser a razão do ser vivo.
Sob um segundo prisma, compreender o homem a partir de sua animalidade
mais o afasta de sua Humanitas do que aproxima, por entendê-lo sob o julgo
de sua Animalitatis. As pretensões do biologismo – olhar o ser humano
apenas na perspectiva orgânica – é reduzir a Humanidade à Animalidade, e
por isso mesmo, se afastar da questão central: o Humano do homem. Assim, é
patente que a compressão humanista do homem como animal racional mais
afasta da pergunta pela essência do homem do que nos conduz a ela. Na
verdade, tal definição planifica Humano do homem ao mesmo nível das coisas
em geral não fazendo as devidas distinções. Essa planificação do Humano à
coisa ocorre, explica Heidegger (1979a), se deve ao fato de que todo
Humanismo é um discurso Metafísico.

Humanismo e Metafísica

Não é novidade que Heidegger, na esteira de Kant e Nietzsche, é um dos
grandes críticos à Metafísica. Desde o seu tratado de 1927, Ser e Tempo,
Heidegger tem mostrado os limites do discurso metafísico. No texto em
questão, Heidegger acusa o Humanismo de ser metafísico, isso porque:


Na determinação da humanidade do homem, o humanismo
não apenas deixa de questionar a relação do ser com o
ser humano. Mas o humanismo tolhe mesmo esta questão,
pelo fato de, por causa de sua origem da Metafísica,
não conhecê-la nem compreendê-la (HEIDEGGER, 1979a,
p.153).

De acordo com o filósofo, o limite do Humanismo é o fato de que este,
na busca pela essência do homem, não põe em questão como o Humano do homem
se relaciona com o Ser. Ao contrário, ele se exime dessa pergunta
recolocando em seu lugar algum ente para funcionar com essência humana.
Argumenta Heidegger (1979a, p.153):


O primeiro humanismo, a saber, o romano, e todos os
tipos de humanismo que, desde então até o presente,
tem surgido, pressupõem como óbvia a 'essência' mais
universal do homem. O homem é tomado como animal
rationale. Esta interpretação não é apenas a tradução
latina da expressão grega zõon lógon ékhon, mas uma
interpretação metafísica.


É justamente essa negligência ontológica – a respeito da relação entre
o Humano e o Ser – e essa pressuposição ontologicamente não fundamentada –
o homem como animal racional – que torna o Humanismo metafísico. Em outras
palavras, a metafísica representa o homem como um ente dentre os demais,
dotado de capacidades e por isso mesmo ele permanece atado à diferença
despercebida entre ser e ente (HEIDEGGE, 2006, p.63) Segundo Heidegger
(1979a, p.154), o limite da metafísica está no fato de ela ao representar o
ser do ente não se dar conta da diferença que há entre ambos, nos termos do
filósofo, ela "não levanta a questão da verdade do ser mesmo". E por isso,
pelo fato de ela não deixar-se guiar pela verdade do ser, ela não consegue
fazer a relação entre o Humano do homem com a verdade do ser. Para melhor
compreendermos os limites do Humanismo enquanto metafísica é necessário
clarear o solo ontológico que Heidegger está pisando.
A questão do esquecimento do ser é uma tese que Heidegger cultiva
desde os primórdios de seu pensamento e ela, segundo o filósofo, é uma
prerrogativa do pensamento metafísico. Contudo, as mudanças que o
pensamento de Heidegger sofreu durante seu percurso, sobretudo depois de
seus escritos sobre a verdade da década de 30, levaram Heidegger a concluir
que o problema do esquecimento não dependia de atos humanos, mas "um facto
que concerne de alguma maneira ao próprio ser e, portanto, é um 'destino'
que o homem não pode deixar de assumir" (VATTIMO, 1996, p.85). É nesse
sentido que Heidegger escreve: "Este velamento [do ser], porém, não é uma
lacuna da Metafísica, mas o tesouro de sua própria riqueza e ela mesma
recusado e ao mesmo tempo apresentado" (HEIDEGGER, 1979a, p.158). Assim,
para Heidegger, o problema da Metafísica está na sua intrínseca ocultação
da verdade do ser.
O que Heidegger compreende por verdade do ser está ligado à sua
observação feita posteriormente à conferência Sobre a essência da verdade
da década de 30. Afirma ele: "A questão decisiva (Ser e Tempo, 1927) do
sentido, quer dizer (Ser e Tempo, p.151), do âmbito do projeto, quer dizer,
da abertura, ou ainda, da verdade do ser e não apenas do ente, fica
propositalmente não-desenvolvida" (HEIDEGGER, 1979b, p.145). Nos termos de
Zarader (1990, p.76), "se o ente é verdadeiro na medida em que aparece, no
Aberto, como manifesto ou desvelado, o derradeiro problema, e o mais
decisivo, é o da abertura desse Aberto". Segundo a comentadora, a verdade
do ser diz respeito à "abertura do Aberto", ou seja, diz respeito àquela
condição de possibilidade que permite a própria abertura da verdade velar-
se e desvelar. Somente a abertura é capaz de manifestar a essência da
verdade, ou seja, manifestar seu desvelamento do ente seu ocultamento. A
verdade do ser, portanto, é compreender que nessa abertura original ocorre
a ocultação da ocultação, que é a ocultação do ser que já é oculto na
abertura e o prevalecimento do desvelar do ente. Em outras palavras, a
metafísica não consegue pensar naquilo que ela mesmo é formada, ou seja, na
verdade do ser que é o retiro do velamento do ser. É dentro dessa
perspectiva teórica, denominada de História do Ser que Heidegger escreve a
Brief über den "Humanismus".
Consequentemente, o fato do discurso metafísico não por em questão a
verdade do ser, i. é, promover seu esquecimento, o Humanismo calcado sob
seus princípios e fundamentos também não consegue fazer a leitura do homem
a partir de seu ser. O Humanismo enquanto discurso metafísico não
estabelece as relações necessárias para que o Humano possa ser tomado como
Ser do homem, pois ela não reconhece o Ser em sua verdade, que é o retiro
da ocultação. Nos termos de Heidegger (1979a, p.154): "A Metafísica não
levanta a questão da verdade do ser mesmo. Por isso ela também jamais
questiona o modo como a essência do homem pertence à verdade do ser".
O que propõe Heidegger diante do insucesso do Humanismo? Heidegger
(1979a, p.165) acredita que é necessário devolver ao Humanismo "um sentido
historial que é mais antigo que seu mais antigo sentido". Esse "devolver",
argumenta o filósofo, não é prescindir totalmente da expressão Humanismo,
pelo contrário, é reencontrar o "Humanum" enquanto essência do homem. Essa
essência, por seu turno, deve ser experimentada mais originariamente, ou
seja, sem nenhuma interpretação a partir das coisas. Para Heidegger
(1979a), a essência do homem consiste em vê-lo como "ec-sistência". Este
seria o modo próprio do 'Ser' do homem que o torna 'Humano', ou seja, o que
faz o Ser do homem ser tomado como Humano é sua ec-sistência.
Reconstruamos, por conseguinte, o pensamento de Heidegger a fim de
compreender o que isso significa.
Em primeiro lugar, a ec-sistência não pode ser vista como algum ente
ou um modo de ser semelhante a qualquer outro ser-vivo. Em segundo, o fato
de o homem ser ec-sistência confere-lhe o título de "clareira do ser", pois
ele é o "aí" do ser. (HEIDEGGER, 1979a). Em outras palavras, o homem é
aquele que tem uma maneira diferenciada de ser, diferenciada dos outros
entes, pois ele não apenas "é", mas ele sustenta o ser na medida em que ele
repousa na linguagem. Desse modo, homem e ser podem se encontrar na
linguagem e é ela também que torna possível a co-pertença entre Ser e
Humano:


O pensar consuma a relação do ser com a essência do
homem. O pensar não produz nem efetua esta relação.
Ele apenas oferece-a ao ser, como aquilo que ele
próprio foi confiado pelo ser. Esta oferta consiste
no fato de, no pensar, o ser ter acesso à linguagem.
A linguagem é a casa do ser. Nessa habitação do ser
mora o homem (HEIDEGGER, 1979a, p.149).

O que faz do homem humano, na perspectiva heideggeriana, é o fato de
ambos o ser e homem repousarem na linguagem, ou seja, Declara Heidegger
(1979, p.156): "Em sua essência, a linguagem não é nem exteriorização de um
organismo nem expressão de um ser vivo [...] Linguagem é advento iluminador-
velador do próprio ser". Para Heidegger, um novo Humanismo ou seja lá o que
for, deve, impressindivelmente, repensar a linguagem.

Humanismo: Conservar ou Superar?

Comenta Sloterdijk (2000, p.23) sobre a resposta de Heidegger:

para que exaltar novamente o ser humano e seu auto
retrato filosófico padrão como solução no humanismo,
se a catástrofe do presente acaba de mostrar que o
problema é o próprio ser humano, com seus sistemas
metafísicos de auto-explicacao e auto-elevação?

Nesse sentido, Sloterdijk (2000) entende que Heidegger procura
desmascarar a omissão européia para o problema do Humanismo que foi não
ter, competentemente, oferecido uma resposta para a pergunta o que é o
homem? Essa pergunta, por sua vez, uma vez omitida pelo Humanismo, não
permitiu que o pensamento avançasse e que uma correta valorização do ser do
homem fosse conquistada. Ou seja, a omissão da pergunta pelo Humano
enquanto Ser do homem, substituída pelo inquerimento da essência do homem
na condição de animal racional sublevou a própria condição humana.
Ao contrário das posteriores críticas recebidas, Heidegger, ao refutar
abertamente o humanismo construído filosoficamente não defende, como isso,
um inumanismo. Ele pretende oferecer à pergunta o que é o homem a dignidade
que lhe compete. Nesse sentido vale ressaltar duas intuições heideggerianas
importantes: a equação entre homem e linguagem e homem e clareira. Para
Heidegger, o homem é tanto linguagem quanto clareira. Isso significa que a
pergunta pelo Humano enquanto Ser do homem deve levar em consideração o
aspecto de que a Humanitas do homo deve ascender na linguagem e no aspecto
de doção do próprio ser, que é a clareira.
Se Heidegger está certo, o Humanismo realmente deve ser superado, pois
os seus gritos de socorro já são audíveis, à medida que esse humanismo
insiste e persiste em não reconhecer o que é o homem. E, portanto, é
necessário superar o Humanismo a partir da clareira e da linguagem. Em
termos práticos, enquanto a linguagem, mediante um discurso de abertura,
não for a condutora das relações humanas, jamais a humanidade do homem se
dará a ele e suas pressuposições estarão a frente de sua ação.
 
Referências

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Unicamp;
Petrópolis: Vozes, 2012.
_____. Sobre o 'humanismo'. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São
Paulo: Abril Cultural, 1979, pp.146-175. (Coleção Pensadores).

_____. Il concetto di tempo. 2.ed. Milão: Adelphi Edizioni S.P.A., 1998.

_____. A superação da metafísica. In: Ensaios e Conferências. 3.ed.
Petrópolis: Vozes, 2006.

SLOTERDIJK, P. Regras para um parque humano. São Paulo: Estação Liberdade,
2000.

VATTIMO, G. Introdução a Heidegger. 10.ed. Lisboa: Piaget, 1996 (Pensamento
Filosofia).

ZARADER, M. Heidegger e as palavras da origem. Lisboa: Instituto Piaget,
1990.


-----------------------
[1] Refiro-me aqui ao § 2 de Ser e Tempo, cujo esforço do filósofo é de re-
pensar o próprio modo do perguntar, ou seja, nos termos de Heidegger, a
pergunta "exige uma adequada transparência" (HEIDEGGER, 2012, p.39)
[2] Utilizaremos nessa comunicação a tradução de Ernildo Stein contida no
volume de Heidegger da Coleção aos Pensadores. Cf. HEIDEGGER, M. Sobre o
humanismo. In: Conferências e Escritos Filosóficos, 1979a, pp.146-175.
[3] "Como tornar a dar sentido à palavra Humanismo"? (tradução de Ernildo
Stein)
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