I SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO ASPECTOS DA MORALIDADE NA PERSPECTIVA DA AÇÃO POLÍTICA

Share Embed


Descrição do Produto

I SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO






SEMINÁRIO TEMÁTICO
"DEMOCRACIA, ESTADO DE DIREITO E CIDADANIA"





ASPECTOS DA MORALIDADE
NA PERSPECTIVA DA AÇÃO POLÍTICA



Fernanda Cristina Zacarias Coelho
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação
em Justiça Administrativa – PPGJA/UFF
[email protected]





NITERÓI/RJ
2011

ASPECTOS DA MORALIDADE
NA PERSPECTIVA DA AÇÃO POLÍTICA

Fernanda Cristina Zacarias Coelho


RESUMO

A ação política pressupõe uma interação programada para o alcance de fins
coletivos. Sua concepção já se coloca, no âmbito da justiça social, como
orientação necessária para o bem comum. O estudo da ação comunicativa,
através dos modos pré-convencional e convencional do agir, na lição de
Jürgen Habermas, possibilita a compreensão da ação política a partir da
perspectiva do que é bom "para um" e "para todos", e do que é "bom e justo
para todos", numa concepção universalista possível em um estágio de
desenvolvimento moral superior. A identificação das formas de ação
estratégica e comunicativa do poder político possui viés emancipatório e
serve de adequação para a orientação política pretendida numa sociedade pós-
convencional.
Palavras-chave: Política, agir estratégico, ação comunicativa.

1. Introdução.


Ao considerar o Estado como a realização da substância ética,
Hegel alçou a eticidade a um posto mais alto do que a moral, traduzindo a
primeira como o coroamento dos valores partilhados pela coletividade. Para
ele, o ponto de vista moral da ação e do julgamento de cada indivíduo não
faz sentido fora de um corpo social. Na ótica hegeliana, a consciência
moral subjetiva é aquela que "sabe da existência de um todo social
objetivado, que constitui a condição material de sua realização" (Freitag,
1992. p. 58).
Essa concepção ajudou a moldar, na sociologia, a substituição
dos ideais iluministas pelo que Freitag denominou "apologia da sociedade",
na qual as questões morais do agir são concebidas a partir de um
prescritivismo ético e relativista. Fica relegada à normatividade e à
sistemicidade a ordenação das condutas.
Nesse aspecto, é indiscutível a relevância da obra de Jürgen
Habermas na mudança desse paradigma. O reexame da moralidade sob a ótica da
ação comunicativa abre espaço, na modernidade, para a constituição de uma
sociedade autenticamente democrática.
O presente artigo pretende, assim, demonstrar que é possível o
encadeamento entre a moralidade e a ação política, através da compreensão
da possibilidade de entendimento mútuo a partir de interações
linguisticamente mediadas.
É necessário ressaltar, no entanto, que a análise sinóptica aqui
efetuada não desconsidera a importância de outras questões afetas à ciência
política e à filosofia social. De modo algum pretende-se afastar, também, a
enorme contribuição do filósofo alemão às demais questões inerentes à
ciência política, como a proposição reconstrutiva de um modelo de
democracia normativa e o papel civilizatório do direito. Por certo, uma
expedição por esses temas demandaria um trabalho extenso e pormenorizado, o
que afastaria a intenção principal do presente estudo, ligada a aspectos
morais inerentes ao exercício da ação política, com ênfase nos modos pré-
convencional, convencional e pós-convencional da orientação do agir.

2. Problematização da ação política.


A doutrina clássica política tem suas raízes na teoria ética.
Aristóteles, ao enxergar no homem um animal político, defende que a
consagração de uma vida boa e justa só é possível no âmbito da polis,
situando a eticidade nas próprias leis e costumes aos quais estão
vinculados os cidadãos.
No transcurso da modernidade, em que se pretendeu inocular no
Direito um papel-chave dentro da filosofia, a separação entre política e
moral também se fez presente, operando-se uma transição do enfoque para a
realização de uma vida confortável dentro de uma ordem devidamente
elaborada. A condução da ciência política, então, vê deslocado seu objeto
de estudo: "en orden del comportamiento virtuoso se transforma en una
regulación del trafico social" (Habermas, 1997a. p. 49-51).
Immanuel Kant (1724 – 1804), por sua vez, ao fundamentar na
razão sua filosofia do conhecimento e prescrever um agir de acordo com um
princípio interior (o imperativo categórico), compreendeu a moralidade como
condição necessária e anterior à experiência, situando-a, assim, também
fora da perspectiva política e longe das sociedades constituídas (Freitag,
1992. p. 52).
Para Habermas, não basta – e nem é algo que se deva desejar –
que a ética filosófica eleve à categoria moral um predicado que defina o
que é "igualmente bom para todos"; ao contrário, ele defende que tal
predicado só possa se exprimir por meio de uma regra de argumentação para
os Discursos práticos, dos quais participem cooperativamente todos os
concernidos.
Em suas "notas programáticas para a fundamentação de uma ética
do discurso", o filósofo alemão nos convida a uma reinterpretação das
intuições morais do cotidiano, tendo em vista a inevitabilidade de
pressupostos universais sob os quais a práxis comunicativa, derivada do
entrelaçamento das relações interpessoais ordinárias, já se encontra desde
sempre (Habermas, 1989a. p. 161).
O poder político, enquanto poder instituído para atuar em nome
dos membros de uma coletividade, deve visar o alcance de interesses comuns
universalizáveis, e não de interesses particulares dos quais são detentores
sujeitos privados. Diante dessa pluralidade de agentes, pontos de dissenso
são estabelecidos na busca de metas coletivas.
Interessa-nos, aqui, quais os modos de agir se colocam como
opção (a) em um mundo sistêmico, onde impera a racionalidade instrumental,
não havendo espaço para a ação comunicativa (Freitag, 1992. p. 239); e (b)
no mundo da vida, consideradas as motivações e expectativas que movem os
indivíduos que compõem a ordem republicana de um país, personificados em
dois tipos de atores: políticos e cidadãos. Preenchendo os pontos
sugeridos acima, será possível tratar de questões da moralidade presentes
na condução da ação política que se colocam hoje na modernidade.


2.1 – A condução da ação política no mundo sistêmico.


Extrai-se tanto de Aristóteles quanto de Hegel que a sociedade
encontra sua unidade na vida política e na organização do Estado (Habermas,
1997b. p. 17). A estrutura social é sedimentada pela via legislativa e por
um poder executivo em condições de implementar os programas acordados por
meio de eleições gerais, através de uma ordem republicana burocraticamente
exercida.
Habermas entende que o sistema político é, na verdade, um
subsistema do denominado mundo sistêmico, no qual se insere tanto o poder
político, quanto o poder econômico. A racionalidade, aqui, impõe-se de
forma instrumental, diferentemente do que ocorre no chamado mundo da vida,
cuja interação pode ser mediada pela linguagem. A mediação no subsistema
político dá-se pelo poder; no econômico, pelo dinheiro (Freitag, 1992. p.
239).
No subsistema político, a vontade já está de antemão
estabelecida como garantidora do exercício da gestão e regulamentação
social, tarefas que são evidentemente pragmáticas. Não há relação interna
entre essa vontade e uma razão voltada à fundamentação de imperativos para
a ação. A vontade política já está dada; o que se decide em termos de
execução, do "proceder", são apenas os meios para a obtenção dos objetivos
do governo, funcionando o poder "quase sempre como uma simples forma da
qual o poder político se serve" (Habermas, 1997b. p. 174).
Em termos pragmáticos, não há que se falar em questões morais
advindas da ação política. A resposta exigida na ação política materializa-
se instrumentalmente, pela eficiência dos programas adequados ou pelo
auxílio de outras regras decisórias que lhe são pertinentes. O arbítrio do
Estado no exercício de um dever político, por exemplo, pressupõe interesses
e orientações de valor não como derivativos de uma escolha racional, mas
sim como dados (idem, 1989b. p. 12). A ação política, assim delimitada, é
substancialmente heterônoma – a racionalidade não é aplicável à vontade
política, apenas à instrumentação voltada para fins políticos.
A verticalização da instância governamental perante a sociedade,
aliás, conduz à constatação de que a soberania não está mais na união dos
civis ou de seus representantes eleitos, mas "na circulação de consultas e
de decisões estruturadas racionalmente", em vista de uma força motivadora
já autorizada (Arendt, 1970 apud Habermas, 1997b. p. 187).
Já nos parlamentos, os mecanismos de coordenação da ação
política, dotada de padrões de comportamento até certo ponto estáveis,
funcionam, via de regra, sobre a influenciação ou sobre o entendimento.
Eventuais desenlances partidários de apoio ou oposição ao governo,
exercidos unicamente com o intuito de pressioná-lo de forma estratégica,
são dissolvidos por seus atores em um agir instrumental, compondo, como já
visto, uma vontade política instrumentalizada como meio para a obtenção de
objetivos determinados: de interesses particulares privados a interesses
particulares partidários.
Ocorre que, se não é concretizada a coordenação de vontades
políticas –enquanto ideais necessários à defesa de determinados interesses
sociais, questões estas passíveis de racionalização –, a ação política
ganha conotação conflituosa, cuja orientação demanda uma solução guiada por
normas ou mediante compensação por interesses, o que pode se dar através da
formação coletiva da vontade (compromisso) ou da arbitragem de conflitos,
"no qual os costumes, a moral e o direito ainda se encontram interligados
simbioticamente" (Habermas, 1997b. p. 178-179). Porém, se o consenso se
abre a possibilidades comunicativas de consolidação, descortina-se, assim,
uma situação que demanda a análise do enfoque performativo dos atores.
Considerando-se que esta abordagem é também verificável na atitude
performativa ambientada no mundo da vida, onde se pressupõe uma simetria
entre sujeitos, passemos ao item seguinte.


2.2 - A condução da ação política no mundo da vida.


Partindo da diferenciação arendtiana entre poder e violência,
Habermas demonstra que a formação discursiva de uma vontade comum, possível
na esfera pública, perfaz a dimensão comunicativa existente no que se
entende por poder político. O poder comunicativo dá vazão ao poder político
enquanto produto da capacidade humana de associação entre pares numa
formação discursiva da vontade. O poder comunicativo transmuta-se em poder
administrativo em vista de permissões legais possibilitadas pela via do
direito legítimo (Habermas, 1997b. p. 185-186).
Na dimensão de um processo democraticamente instituído, é
oportunizada a abertura de um espaço normativamente legitimado para a
discussão sobre quem estaria apto a exercer cargos eletivos. A presunção
necessária é a de que os membros da coletividade identifiquem-se com
aqueles que pretendem ocupar a instância central autorizada a agir em nome
do todo, concedendo a governantes e parlamentares eleitos a prerrogativa de
gerir e regulamentar a máquina pública, a fim de manter a identidade de uma
convivência juridicamente organizada, visando, ainda, o preenchimento de
pressupostos sociais que conduzam ao aproveitamento simétrico de direitos
que são particulares a cada um. Nesse ponto, vale destacar que:


Ao passar da socialização horizontal dos civis, que se
atribuem reciprocamente direitos, para formas verticais de
organização socializadora, a prática de autodeterminação
dos civis é institucionalizada – como formação informal da
opinião na esfera pública política, como participação
política no interior e no exterior dos partidos, como
participação em vontades gerais, na consulta e tomada de
decisão de corporações parlamentares, etc. (ibidem. p. 172-
173).

A perspectiva de uma representatividade política a partir da
socialização horizontal de indivíduos – que se atribuem reciprocamente
direitos – pressupõe um ideal de equidade entre todos, podendo esta ser
ilustrada com uma passagem contida na obra "À paz perpétua", de Immanuel
Kant.
Em seu opúsculo, o filósofo utiliza-se de fina ironia para
ressaltar que, assim como não é o Estado patrimônio daqueles que são
escolhidos como representantes do povo, "no que concerne à nobreza da
função (como se pode denominar a posição de uma magistratura superior e que
se tem de adquirir por mérito), a posição não se cola, como propriedade, à
pessoa, mas ao posto, e a igualdade [entre os cidadãos] não é ferida por
isso, porque, quando alguém deixa sua função, ele ao mesmo tempo perde sua
posição e retorna ao povo." (Kant, 2010. p. 26).
O filósofo nos chama a atenção para o fato de que governantes e
governados, eleitos e eleitores, todos, enfim, advém da mesma esfera
pública; apesar de os primeiros virem a ocupar posição política
hierarquicamente superior, com poder de mando, todos estão,
inevitavelmente, expostos a relações interpessoais ordinárias que compõem a
práxis cotidiana.
Na concepção republicana de governo, o detentor do poder
político assume um papel social de caráter que é, naturalmente,
dissimétrico (não igualitário); contudo, tal caráter, sob a ótica do mundo
da vida, está associado não ao ocupante desta função, mas somente à
"cadeira".
Nesse ponto, é importante a compreensão da internalização de um
papel social por atores motivados e movidos por expectativas recíprocas e
complementares. Na interação entre ego e alter, "os atores estão motivados
para obter o máximo de gratificações possível na situação. Eles orientam
sua ação pela ação dos outros, partilhando um sistema de normas e valores
comuns" (Parsons, 1964 apud Freitag, 1992, p. 137).
A conjugação da interação "eu/tu" aos estágios de adoção de
perspectiva investigados por Robert Selman – a passagem da perspectiva
diferenciada e subjetiva para a perspectiva auto-reflexiva na segunda
pessoa, e, em outro momento, à perspectiva em que se insere a terceira
pessoa, o "ego observador" –, pode auxiliar na análise (a) da forma como se
dá a estrutura de coordenação da ação; (b) das orientações que se fazem
presentes na ação, tendo em vista a transição do nível pré-convencional ao
convencional; e (c) da intersubjetividade necessária à consecução do agir
para o entendimento mútuo.

2.2.1 – Abordagem das perspectivas para a compreensão dos estágios de
interação.


No primeiro estágio proposto por Selman, de perspectiva
subjetiva, temos uma criança de tenra idade que já consegue falar e,
portanto, "endereçar um proferimento a um ouvinte numa intenção
comunicativa e, inversamente, a se compreender como destinatário de
semelhante proferimento." Porém, "a relação recíproca entre falante e
ouvinte está estabelecida no plano da comunicação, mas não ainda no plano
do agir" (Habermas, 1989a. p. 178).
A segunda perspectiva é recíproca e auto-reflexiva na pessoa do
outro: a criança já desenvolveu a capacidade de "vincular de maneira
reversível as orientações de ação do falante e do ouvinte", colocando-se no
lugar do outro, possibilitando uma interação. (ibidem, p. 179). Em idade
mais avançada, atinge-se uma nova perspectiva, com a introdução da figura
de uma terceira pessoa:


Agora, os adolescentes aprendem a voltar-se, a partir
dessa perspectiva do observador, para a relação
interpessoal que estabelecem numa atitude performativa com
o participante da interação. Essa atitude, eles ligam-na à
atitude neutra de uma pessoa presente mas não envolvida,
que assiste ao processo de interação no papel do ouvinte
ou do espectador. Nessas condições, a reciprocidade das
orientações da ação, instaurada no estádio precedente,
pode ser objetualizada e trazida à consciência em seu
contexto sistêmico. (ibidem, p. 180)


O discernimento adquirido pelo falante e pelo ouvinte, ao
objetualizarem as relações recíprocas entre ego e alter, a partir da
perspectiva de um observador, cria o alicerce de um mundo social e dá
ensejo ao que Habermas define como um sistema completo de perspectivas do
falante, determinante não só na organização do diálogo, mas "para a
transformação do comportamento de conflito guiado por interesses em agir
estratégico" (ibidem, p. 192).
A conversão de um agir guiado por interesses em um agir
estratégico está vinculada à interpretação habermasiana do estágio de
domínio pré-convencional das interações.
Utilizando-se ainda de Selman, Habermas considera que é a partir
do segundo estágio que se identifica uma interação, constituindo, assim,
uma reciprocidade da ação. Esta, diz Habermas, ocorre ou de forma
simétrica, ou de forma não-simétrica; a última caracteriza-se como "uma
complementaridade entre tipos diferentes de expectativas de comportamento",
situação que revela condições de desnível de autoridade, diferentes das
condições verificáveis numa relação de amizade igualitária, onde há
simetria.
Os atores, enquanto em situações de simplificadas
características sócio-cognitivas, baseadas em atribuição de intenções
latentes, na autoridade exercida por pais ou educadores, e de motivação
orientada em função de fins por meio de trocas (troca de obediência por
recompensa, por exemplo), apóiam-se em modos pré-convencionais da
coordenação da ação, sendo este inventário pré-convencional também
suficiente para quem age estrategicamente, pois para este "basta derivar
expectativas de comportamento a partir de intenções atribuídas, compreender
motivos em termos de orientação em função da recompensa e do castigo, bem
como interpretar a autoridade como uma faculdade de prometer ou ameaçar
sanções positivas ou negativas" (ibidem, p. 184-185).
Todavia, com a complexidade adquirida pelas situações
problemáticas, derivadas de comportamentos competitivos, não mais
constituem resposta suficiente os modos pré-convencionais de coordenação da
ação. Faz-se necessário, agora:


"(...) um mecanismo de coordenação de ações não-
estratégicas, orientada para o entendimento mútuo,
mecanismo esse independente dos dois lados – tanto da
relação de autoridade com pessoas de referências concretas
quando da relação direta com os interesses próprios. O
estágio desse agir convencional, mas não-estratégico exige
conceitos sócio-cognitivos básicos, centrados no conceito
do arbítrio supra-pessoal. (...) As representações dos
laços sociais, da autoridade, da lealdade desprendem-se
dos contextos e pessoas de referência particulares e
transformam-se nos conceitos normativos da obrigação
moral, da legitimidade de regras, da validez deontológica
de ordens autorizadas." (ibidem, p. 186-187)


Há, assim, a transformação de um arbítrio imperativo atribuído a
uma pessoa superior, de referência concreta, na autoridade de um arbítrio
supra-pessoal, assumindo "a figura externa de normas sociais, na medida em
que as sanções a eles associadas são internalizadas", às quais irão
sobrepor as vontades individuais de A ou B a uma espécie de "arbítrio
combinado, por assim dizer delegado à expectativa de comportamento
socialmente generalizada" (ibidem, p. 188). É, assim, possibilitada a
passagem do comportamento cooperativo/conflituoso de uma ação guiada por
interesses, de nível pré-convencional, para uma ação baseada na coordenação
dos papéis, cuja dimensão moral delineia-se num estágio mais abrangente do
que o anterior.
Inspirando-se nos estudos de Lawrence Kolhberg (1927 – 1987), é
enfim esclarecido por Habermas o que se entende por "estádio pré-
convencional": aquele caracterizado pela "reciprocidade das perspectivas de
ação dos participantes", basicamente orientada pela complementaridade da
ordem e da obediência e pela simetria das compensações, voltada
instrumentalmente para fins específicos. Já o "estádio convencional" define-
se como "o sistema de perspectivas de ação que tem origem pela coordenação
da perspectiva do observador com as perspectivas do participante do estádio
antecedente" (ibidem, p. 192), cuja reciprocidade é orientada "por
expectativas de comportamento que se encontram vinculadas nos papéis
sociais" (ibidem, p. 197).
Por outro lado, encontramos também inserida no estágio
convencional outra forma de busca por equilíbrio na convivência, em que os
papéis sociais são generalizados como constituintes de um sistema de
normas. O entendimento dessa nova orientação, de um agir guiado por normas,
prescinde do entendimento habermasiano ao tratar de questionamento de G. H.
Mead: "por que os padrões de comportamento particulares só podem ser
generalizados depois que A aprendeu a assumir uma atitude objetivante em
face de sua própria ação" (ibidem, p. 188).
Da mencionada perspectiva do observador, from the third-person
or generalized orther perspective (Selman, 1981 apud Habermas, 1989a. p.
175), é possível o alcance de uma interpessoalidade legitimamente ordenada
que oriente o restabelecimento do entendimento. Há, assim, uma reelaboração
do agir estabelecido nas perspectivas dos papéis sociais para o conceito de
uma interação guiada por normas (ibidem. p. 190).
Nessa situação de "ideal role-taking", os papéis sociais antes
específicos são socialmente generalizados num sistema de normas legitimado
pela vontade coletiva impessoal, à qual se confere, por sua vez, autoridade
intersubjetiva (idem, 1997b. p. 190).
É interessante notar como os estágios de interação, a partir de
um descentramento progressivo da compreensão do mundo, exprimem um
desenvolvimento direcionado e cumulativo (idem, 1989a. p. 200).
Nessa compreensão descentrada do mundo, em que se baseia o agir
orientado para o entendimento mútuo, o ator é levado à racionalização dos
componentes do mundo da vida (Bannwart Jr., 2002. p. 17), sendo este
formado por suposições habitualizadas culturalmente, por solidariedades de
grupos integrados por intermédio de valores e por competências dos
indivíduos socializados (Habermas, 1989a. p. 166-167). Para isso, terá que
desprender desse horizonte de referências lingüísticas e culturais, de
conteúdos explícitos e certezas implícitas, intuitivamente presentes, uma
tomada de posição em face da oferta de um ato de fala, ou aduzir pretensões
cuja validade requer confirmação, renovação ou revogação, através de atos
de fala. Deflui daí a caracterização habermasiana do ator no agir
comunicativo, como "o iniciador, que domina situações por meio de ações
imputáveis" e ao mesmo tempo, "o produto das tradições nas quais se
encontra, dos grupos solidários aos quais pertence e dos processos de
socialização nos quais se cria" (ibidem. p. 166).


2.2.2 – Da possibilidade de uma autonomia moral no âmbito da esfera pública
política.

No estágio convencional, a moralidade ainda não se tornou
autônoma. Com a transferência de interações baseadas em expectativas sobre
papéis sociais a interações guiadas por normas, todas as relações sociais
adquirem um caráter implicitamente ético, tendo em vista os imperativos
generalizados que acabam por associar-se a padrões de comportamento. Tais
padrões evoluem para uma situação de eticidade por conta da especificidade
de um grupo que, através de seu poder unificado, "exige e ao qual se
demonstra lealdade" (Habermas, 1989a. p. 189).
No horizonte de uma esfera pública política, evidenciam-se,
assim, situações em que se fazem necessárias a mediação entre moralidade e
eticidade.
Em termos éticos, da ação política executada é possível se
determinar a compreensão de si que tem o indivíduo – compreensão esta
vinculada, desde Aristóteles, a questões clínicas (klinisch) do bem viver
(idem, 1989b. p. 7), determinantes às inclinações e às preferências
contingenciadas por decisões de valor grave. A ação política, desse ponto
de vista, é conduzida estrategicamente, objetivando "não apenas o possível
e o que é adequado a fins, mas também o bom", seja para si, seja para fins
inerentes a um grupo partidário, seja para um objetivo político específico.
Já uma consideração da ação política objetivada na moralidade só
é possível ao analisarmos "se nossas máximas são conciliáveis com as
máximas de outros", exigindo para tanto uma ruptura com a perspectiva
egocêntrica, uma vez que a reflexão irá albergar a conotação simétrica
existente no respeito "que cada um demonstra pela integridade de todas as
outras pessoas" (ibidem, p. 9). Assim:


"[O julgamento moral de ações e máximas] serve à
elucidação de expectativas legítimas de comportamento em
face de conflitos interpessoais que atrapalham o convívio
regulado de interesses antagônicos. Neste caso, trata-se
da fundamentação e da aplicação de normas que estabelecem
deveres e direitos recíprocos. O terminus ad quem de um
discurso prático-moral correspondente é uma compreensão
sobre a solução justa de um conflito." (ibidem, p. 11)


Retornando ao estágio convencional, pautado por um agir guiado
por normas, em vista da dependência de um sistema normativo existente não
há que se falar, pois, em autonomia. Uma nova exigência surge da
necessidade de substituir a heteronomia vinculada a este agir, a ser
substituído pelo agir comunicativo.
Numa situação de ação, em que os sujeitos exercem cognitivamente
uma atitude objetivante diante da relevância de um dado objeto tematizável
(seguida, em cada caso, de uma atitude conforme a normas, em face de
relações interpessoais legitimamente reguladas; ou de uma atitude
expressiva, em face das próprias vivências), há a inevitável instauração do
discurso no momento em que é determinada a carência de entendimento mútuo.
A situação de ação, aqui, adquire sentido prático-linguístico,
caracterizando-se numa situação de fala. Os atores assumem papéis
comunicacionais alternadamente e possuem cada um sua perspectiva
intersubjetiva, no interior de um processo argumentativo – dialógico,
racional e democrático, no qual a perspectiva de cada um é universalmente
ampliada.
O agir comunicativo constitui, assim, um novo estágio de
interação, mais avançado e complexo, em que as estruturas cognitivas do
estágio convencional "se vêem substituídas, mas também conservadas sob uma
forma reorganizada" (ibidem, p. 201-202), num plano metacomunicativo:


O almejado "ponto de vista moral", anterior a todas as
controvérsias, orienta-se de uma reciprocidade fundamental
embutida no agir orientado para o entendimento mútuo. Essa
reciprocidade apresenta-se inicialmente, como vimos, sob
as formas da complementaridade regulada pela autoridade e
da simetria regulada por interesses; em seguida, na
reciprocidade de expectativas de comportamento que se
encontram vinculadas nos papéis sociais, bem como na
reciprocidade de direitos e deveres, que estão vinculados
em normas; e, finalmente, na troca ideal de papéis da fala
discursiva que deve assegurar a possibilidade de se valer
sem coações e igualitariamente dos direitos de acesso
universal e a participação equitativa na argumentação.
Nesse terceiro estádio da interação, uma forma idealizada
da comunicação torna-se a destinação da busca cooperativa
da verdade de uma comunidade comunicacional em princípio
ilimitada. Nesta medida, a moral fundamentada na ética do
Discurso apóia-se num modelo que é, por assim dizer, desde
o início inerente à empresa do entendimento mútuo
lingüístico. (ibidem, p. 197)


O olhar reflexivo de um participante do Discurso, ao objetivar
temas do mundo da vida cujo conteúdo normativo se pretende resgatar através
de pretensões de verdade e correção, não se satisfaz com o acervo factual
das normas tradicionais, que passam a necessitar de uma justificação com
base em uma "orientação em função de princípios de justiça e, em última
instância, em função do processo do Discurso em torno da fundamentação das
normas", o que faz abalar as certezas que afluem intuitivamente ao mundo
social, conduzindo à sua inevitável moralização (ibidem, p. 199).
O sujeito, agora, orienta-se por pretensões de validez
reflexivamente examinadas: "o agir moral está sob a pretensão de que a
solução de conflitos de ação só se apóia em juízos fundamentais – trata-se
de um agir guiado por discernimentos morais" (ibidem, p. 196).
Habermas busca em Kohlberg subsídios para demonstrar que o
aparato sócio-cognitivo, para atingir o estágio pós-convencional, deve se
submeter a operações reconstrutivas de auto-aplicação (reflexividade), de
generalização e de abstração idealizadora, privando do mundo social sua
"estabilidade nativa" enquanto totalidade das relações interpessoais
legitimamente ordenadas (ibidem, p. 211), fazendo com que, do ponto de
vista deontológico, as questões morais sejam extraídas de seus contextos
para a obtenção de respostas que conservem tão-somente a força da motivação
racional dos discernimentos:


O adolescente pode utilizar a distância que acabou de
conquistar relativamente a um mundo de convenções que, em
virtude de sua inserção hipotética num horizonte de
possibilidades, perdem a força ingênua da validez social e
assim se tornam reflexivamente desvalorizados. Ou ele há
de procurar preservar também o novo nível de reflexão, a
partir dos destroços do mundo das convenções dotadas de
validez factual, o sentido da validez de normas e de
proposições deontológicas – e, então, ele terá que
reconstruir os conceitos básicos da dimensão moral sem
abrir mão da perspectiva ética. Ele terá que relativizar a
validez social das normas factualmente existentes à luz de
uma validez normativa que satisfaça aos padrões da
fundamentação racional. Aferrar-se dessa maneira ao
sentido reconstruído da validez normativa é uma condição
necessária para a passagem para o modo de pensar pós-
convencional. Ou então o adolescente desprender-se-á do
modo de pensar convencional sem passar para o pós-
convencional. Nesse caso, ele compreende o desmoronamento
do mundo das convenções como o devassamento da falsidade
de uma pretensão cognitiva, à qual estavam associadas até
aí as normas e proposições deontológicas convencionais.
Então, os conceitos morais básicos, em sua forma
convencional cognitivamente desvalorizada, precisarão
retrospectivamente de explicação. (ibidem, p. 221)


A imbricação na qual o adolescente de Kohlberg se encontra no
citado "nível transicional" – "nível pós-convencional, mas ainda não regido
por princípios" – demonstra uma dissonância "entre as intuições morais,
pelas quais o seu saber e agir quotidianos não-refletidos continuam a ser
determinados como dantes, e o (presumido) discernimento do caráter ilusório
dessa consciência moral convencional (que, de fato, está desvalorizada na
reflexão, mas de modo nenhum posta fora de função no quotidiano)" (ibidem,
p. 221).
Descortina-se, aqui, um problema de ancoramento motivacional que
também se faz presente na ação política. A consciência ética que não é pós-
convencionalmente renovada constitui um obstáculo ao alcance da moral pós-
convencional.


3. Considerações finais

A abordagem feita no presente trabalho buscou, ainda que
timidamente, trilhar o caminho que levou Habermas a afirmar "age moralmente
quem age com discernimento." (1989a, p. 196). O viés emancipatório da ética
do Discurso detém sua inestimável relevância na constituição de uma teoria
moral de orientação para o agir.
Mas há de se ressaltar, também, que a formação moral de uma
esfera pública política demanda a diferenciação entre as questões morais
"que podem, em princípio, ser decididas racionalmente do ponto de vista da
possibilidade de universalização dos interesses ou da justiça" e questões
valorativas "que se apresentam sob o mais geral dos aspectos como questões
do bem viver (ou da auto-realização)" (ibidem. p. 130).
Além disso, afigura-se necessário também o que Habermas chama de
"autolegislação", consistente na autonomia moral para a vontade particular
que adquire, na formação coletiva da vontade, o significado de autonomia
política (idem, 1997b. p. 197).
A prática política correta é pública. O poder político implicado
instrumentalmente na realização de fins coletivos encontra sua
estabilização no direito, não necessitando de se abrir a questionamentos
morais. Já a ação política que se pretende "boa e justa" não se realiza se
não estiver, evidentemente, guiada por critérios de justiça.
De sua parte, a vontade que se pretende autônoma, mas que se
manifesta somente na eticidade, se fragiliza: no momento em que se opta por
algo que é "politicamente bom" mas não "moralmente justo", no momento em
que se justifica um crime concluindo "se todos roubam, por que não eu?", o
costume é institucionalizado e a ação passa a ser irrepreensivelmente
aceita ou, no máximo, a ser vista como "degeneração dos costumes". Perante
o poder, aliás, a sociedade brasileira tem se destacado pela apatia e pela
omissão.
Na práxis cotidiana pós-convencional, as interações
comunicativas conduzem-se racionalmente: pela verdade toma-se conhecimento
das possíveis causas e implicações de uma ação; pela justiça, é possível
querer uma norma que todos também possam querer e aceitar, orientando a
ação. É assim composto o princípio de universalização (U) que irá reger o
procedimento discursivo: "age de modo que o princípio de tua ação possa
transformar-se em uma lei (Handlungsgesetz) que todos queiram" (Freitag,
1992, p. 277). A injúria moral diante de atos de corrupção é diretamente
proporcional à internalização sócio-cognitiva desse princípio.
Quando nos damos conta de que, sob condições democráticas, é
pressuposta uma equidade entre cidadãos, a dissimulação política torna-se
ainda mais perversa aos nossos olhos, já que as manobras de engodo são
aplicadas sobre cidadãos que, enquanto eleitores livres e conscientes,
interpretaram a relação política como simétrica. A justiça e a
solidariedade nas relações sociais não podem ser suplantadas por práticas
pré-convencionais presentes na condução de políticas públicas.
À evidência, sob pena de incorrer num impasse existencial, o ser
político não pode, tal qual o cético que se refugia na recusa do Discurso,
se desvencilhar da compreensão de sua condição de membro da sociedade e
negar que cresceu em contextos em que se fazem presentes elementos do agir
comunicativo. Habermas chega a dizer que, ainda que ele renegue a
moralidade, não pode imiscuir-se da eticidade das relações vitais em que se
mantém. Do contrário, "teria que se refugiar no suicídio ou numa grave
doença mental" (Habermas, 1989a, p. 123).



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BANNWART JÚNIOR, Clodomiro José. Moral pós-convencional em Habermas.
Campinas: Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2002.
FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona. A questão da moralidade.
Campinas: Papirus, 1992.
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido
Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989a.
_____________. Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. Trad.
Márcio Suzuki. São Paulo: Estudos Avançados – USP, 1989b.
_____________. Teoria y Praxis: estudios de filosofia social. Trad.
Salvador Mas Torres. Madrid: Tecnos, 3ª ed. 1997a.
______________. Direito e Democracia: entre facticidade e validade.
Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997b. p. 169-210.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.