IDENTIDADE DE UMA CIDADE MESTIÇA

June 4, 2017 | Autor: Marcia Pinto | Categoria: Cultural History, Historia Cultural
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IDENTIDADE DE UMA CIDADE MESTIÇA.

Profª Drª Marca Pinto Bandeira
Professora convidada da Pós-Graduação em ensinio de História do Colégio
Pedro II.







O presente artigo busca discutir a formação da Identidade carioca, tendo
como referencial a própria natureza mestiça da cidade. Trata-se de uma
trabalho de natureza interdisciplinar que melhor se colocaria
academicamente no campo dos "Estudos Culturais".

















Rio de Janeiro: cidade mestiça


A cidade perfeita. Essa era a visão utópica da cidade moderna.
Urbanistas e arquitetos deveriam seguir um planejamento, ou melhor, uma
racionalidade que teria como resultado a Cidade Perfeita. A utilização do
espaço de forma racional, baseado em um planejamento prévio da ocupação de
um espaço vazio deveria seguir uma divisão simbólica (onde valores,
rejeições e desejos podiam ser identificados), e a regularidade, a
uniformidade e a homogeneidade dos elementos estariam presente.


Essa Cidade Perfeita era vista como uma encarnação espacial da
liberdade. Mas, segundo Baumam [1], para alcançar o objetivo, deve-se
rejeitar a história e demolir todos os seus vestígios. Portanto, essa
modernização é difícil de ser alcançada quando esta cidade possui
historicidade, quando esta se formou com assimilação de tradições
divergentes e absorveu inovações culturais com processos seletivos de
regras mutáveis.


Enfim, no caso do Rio de Janeiro, fazê-la uma cidade moderna era um
árduo trabalho fadado ao insucesso. O Rio de Janeiro é a partir de uma
apropriação de Martin-Barbero[2], uma Cidade Mestiça, fruto de uma
historicidade resultada de um processo de mestiçagem cultural, vinda de uma
fusão ou cruzamento de temporalidades diferentes e de uma multiplicidade de
matrizes culturais.

Para Lynch[i], o design de uma cidade é, uma arte temporal, vista de
todas as luzes e condições atmosféricas possíveis." A cada instante, há
mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um
cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados." Pois cada um
tem lembranças e significados que se associam a alguma parte da cidade,
por isso ela não é apenas um objeto percebido mas uma construção de
muitos que por alguma razão própria não alteram sua estrutura. Estruturar
e identificar o ambiente é uma capacidade vital entre todos os animais
que se locomovem. Uma boa imagem da cidade dá ao seu possuidor um
sentimento de segurança emocional. E essa imagem tem três componentes:
identidade, estrutura e significado.


Para Aldo Rossi (1977), a cidade cresce sobre si mesma, adquirindo
consciência e memória de si própria, "na sua construção permanecem os
motivos originários, mas ao mesmo tempo a cidade precisa e modifica os
motivos do seu desenvolvimento" (p.24).[ii]

Para mim perceber o Rio de Janeiro, ou a sua imagem a partir do seu
epicentro, tornado-a organizada em torno de pontos focais, mas possuidora
de pontos fragmentados e caminhos interligados. Para isso, podemos buscar
referências à imagem ambiental em relatos antigos e modernos, livros de
viagens, relatos de jornais, estudos psicológicos e antropológicos. Nesse
nosso pequeno estudo utilizaremos ainda o patrimônio cultural como ponto
de partida, da paisagem do centro do Rio de janeiro. Para compreendermos
como essa cidade se retrata, como as diferentes épocas se misturam em um
mix de paisagens e temporalidades distintas.

A paisagem que vemos nos relata identidade, estrutura e significado.
Defendo que uma paisagem pode ser "experimentada" como testemunho visual
de elementos estéticos e simbólicos construídos historicamente, e,
compartilho com a conceituação do geógrafo Milton Santos quando este
chamou de paisagem uma combinação de objetos naturais e objetos
fabricados ou sociais, que são o resultado da acumulação da atividade de
muitas gerações. Podemos identificar o caráter histórico das mesmas, e
justifica-las como objeto de estudo da História. Ressalto ainda que a
paisagem se define ainda como "o que nossa visão alcança (...) não sendo
formada apenas por volumes, mas também de cores, movimentos, odores,
sons, etc."(SANTOS, 1997, p. 61)[iii].

"A cidade é pedra e é nuvem passageira.
A pedra é continuamente reiluminada. A nuvem é fugidia e
mercurial. O Rio, caleidoscópio, é permanentemente fonte
de fascínio"

Carlos Lessa[iv]


O que o geografo Milton Santos[3] chamou de paisagem, ou melhor, uma
combinação de objetos naturais e objetos fabricados, ou sociais, que são o
resultado da acumulação da atividade de muitas gerações. Esta paisagem é
mais ou menos durável, é um ponto determinado no tempo, representa
diferentes momentos de desenvolvimento, um resultado de uma acumulação no
tempo.






O Rio de Janeiro: uma cidade Mestiça


Pois bem, o Rio de Janeiro, por ser uma cidade mestiça e possuir os
destempos, oferece um misto de paisagens simultâneas, portanto, achamos
conveniente lembrarmos Carlos Lessa[4], quando afirmou que o Rio de Janeiro
é uma espécie de aglutinado das variedades do país, uma síntese de
características e potencialidades nacionais, espaço aberto a todos que aqui
chegam. Tomando como base os tipos apresentados por Silva[5], o Rio de
Janeiro apresenta um espaço turístico de grande potencial.


Esclarecemos que a mestiçagem a que nos referimos não é algo restrito
ao passado, e muito menos pode ser somente racial. Ela é uma trama de tempo
e espaço, de memórias e de imaginários.


Cada cidade é uma construção humana. Cada cidade, assim, é singular.
Representa a síntese de tensões sociais existentes. São espaços especiais,
onde uma trama de atrações, serviços, simbolismos e produções culturais
formam uma rede, a rede urbana, e promove algo específico como a
comunicação urbana. Toda cidade tem um grande poder de sedução.


Na cidade do Rio de Janeiro, ainda podemos trabalhar, diferentes
relações do tempo na cultura, ou ainda, com o conceito de destempo, que
busca demonstrar os conflitos entre as diferentes temporalidades. Este fato
pode ser facilmente constatado com exemplos como a manchete do "O Globo",
caderno Retratos do Rio, de sete de abril de 2001: "COMO NO PASSADO: Rio
tem a maior incidência de Tuberculose do país e ainda convive com doenças
já erradicadas nas Metrópoles desenvolvidas, diz ONU". Quando o assunto é
saúde podemos verificar a existência desses destempos, onde nessa mesma
reportagem encontramos informações como:






"Em pleno século XXI, a população carioca ainda
convive com doenças que há muito deixaram de existir em
países desenvolvidos. É o caso da dengue, da meningite,
da leptospirose e da tuberculose... O Rio tem a segunda
maior rede de hospitais públicos do Brasil (perde apenas
para Brasília), que reúne 63% dos leitos... 12% dos
cariocas nunca foram ao dentista..." (Globo, abril/2001).






A cidade do Rio de Janeiro, capital do Estado brasileiro durante
séculos, sempre pode ser compreendida como um espaço de mediações, um
espaço de trocas tanto de bens simbólicos como de bens materiais. Foi, sem
dúvida, palco de inúmeras tentativas de se tornar uma cidade moderna, de
ser reformulada para se enquadrar em uma forma já pré-estabelecida por
arquitetos modernos, principalmente os europeus.


Para os intelectuais que desejavam criar o Brasil Moderno, a sua
capital não poderia chegar ao século XX, com ruas estreitas, cortiços,
vacas de leite circulando nas ruas e principalmente, sem um planejamento
urbano. Tínhamos que nos tornar modernos. Afinal o Brasil deveria se tornar
uma sociedade urbana-industrial. Deveria, finalmente, abandonar a antiga
ordem, representada pela escravidão e pela monarquia e ir ao encontro do
progresso, com uma nova ordem republicana e urbana.


Quando o modernismo chegou ao Brasil, deveríamos enquadrar-nos em uma
forma. Tínhamos que ser claros e objetivos. A cidade deveria ser funcional,
prática, atender e possibilitar as exigências do Novo. Surge então uma
febre, onde incêndios eliminam muitas vezes o velho e no seu lugar um
prédio novo, moderno, prático e funcional era construído. O Rio de Janeiro,
ironicamente, por ser uma cidade sempre ligada aos movimentos de vanguarda,
foi palco do modernismo em suas maiores expressões arquitetônicas.


Hoje, este fato já não é dominante, pois observamos no mundo, um
movimento maior para restaurar e recuperar do que para derrubar e
construir. Diversos autores como A. Huyssen (2000) e Martín-Barbero(2000),
vivemos uma febre da memória. Segundo Graham Dann (2000), hoje dedicamos
muito "tempo e energia à evocação do passado". Para ele, esse fato ocorre
devido a uma tentativa de resgatar épocas passadas retratadas pela mídia
como tempos melhores, tempos mais coerentes do que o presente "caótico" e o
futuro "temido".


Atualmente, as cidades se transformaram, ou melhor, assumiram
definitivamente a sua posição de zona de contato. A própria questão do
movimento migratório, fez com que cidades globais como Nova York ou Berlin
passassem a possuir fronteiras além do território do seu Estado-Nação. O
desenvolvimento dos meios de comunicação, principalmente através do
desenvolvimento das redes eletrônicas e dos meios de transportes rápidos,
permite aos imigrantes um intercâmbio permanente de dinheiro, mensagens e
imaginários com o seu lugar de origem, proporcionando à cidade uma
reafirmação da sua característica de zona de contato, de espaço de
mediações e de um espaço multicultural, deixando de ser apenas locais de
assentamento. Ainda podemos falar nas áreas de translocalidades[6]
descritas por Appadurai (1997). No caso do Rio de Janeiro, verificamos essa
cidade como uma área de translocalidades devido ser uma região turística, e
como tal possuidora de paisagens turísticas e de cenários construídos, para
atender a exigências de mercado, exigências de uma sociedade contemporânea,
ou do espetáculo.


Vejo, o Rio de Janeiro ou as cidades "tradicionais" como
desalienadas,segundo Lynch (2010), essas permitem que cada indivíduo
construa seu mapa de acordo com a trajetória de seus movimentos, que são
reconstruídos como um conjunto articulado, dotado de historicidade, que
pode ser retido na memória. A cidade é uma grande obra, que pode ser
apreendida pelas suas partes. A unidade das partes é dada fundamentalmente
pela história, pela memória que a cidade tem de si mesma. A cidade é a soma
de muitas partes que se diferenciam entre si pelas características
sociológicas e formais, é uma criação que nasceu de vários e diferentes
momentos de formação.


Para Baumam (1998), hoje a "boa cidade" é a que dá às pessoas a
possibilidade de assumir responsabilidade por seus atos em uma sociedade
histórica imprevisível, e não em um mundo pré-determinado, onde os
indivíduos podem multiplicar suas possibilidades de ser, agir, sentir,
pensar e imaginar. Assim, podemos reportar-nos ao pensamento exposto por
Aldo Rossi[7],que define a cidade como uma arquitetura, concebendo
arquitetura em um sentido "positivo" como criação de um ambiente mais
propício à vida, como uma criação incindível da vida civil e da sociedade;
coletiva; é uma criação humana que cresce sobre si mesma, adquirindo
consciência e memória de si própria."As pessoas moralmente maduras são as
que precisam do desconhecido e de uma certa anarquia em suas vidas – amam a
alteridade".(Baumam, p.54).


Portanto posso com clareza verificar que a Cidade do Rio de Janeiro,
cidade mestiça, onde tramas de temporalidades distintas, redes culturais
que perpassam espaços lisos e estriados, proporcionam uma construção rica
em História, jamais poderia ser enquadrada nos moldes de cidade moderna. O
Rio de Janeiro possui em sua formação um acidente, que fez com seus espaços
fossem construídos quase que de forma aleatória, onde o poder representado
na sua formação pelo Estado e a Igreja ocupavam a parte central, e em volta
o comércio, as finanças e as manufaturas. Mas, que podiam facilmente se
confundir com o mar, com a praia, com o porto ou ancoradouro. O Porto ou
ancoradouro estava presente também no centro da cidade, de frente para o
poder. A atual Praça XV, por onde chegavam os navios, e por onde também
chegavam os estrangeiros (esses a principio mal vindos) também eram áreas
de recreação, áreas da vida social, espaço de socialização, é muito comum
encontrarmos gravuras de época que retratem a vida cotidiana da cidade no
espaço citado. Uma heterogeneidade de funções, instituições, atividades e
de espaços caracterizam a cidade do Rio de Janeiro, pois, não existia uma
ordem no seu crescimento que pudesse um dia torná-la uma cidade moderna.
Com uma historicidade própria construída através de todo o seu crescimento,
originando cenários e paisagens distintas, não poderia nunca se tornar uma
cidade moderna, e abrir mão de seu passado.


Todas as suas paisagens, criações que combinam sua natureza a sua
produção cultural, portanto símbolo da sua mestiçagem e da sua
originalidade, gerou tramas de espaços que não podem ser definidos com
facilidade, assim produzindo um misto de paisagens que fazem dela uma
cidade mestiça.










BIBLIOGRAFIA


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nº 49,novembro 1997


BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed.,1998.


________________. Globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.


CANCLINI, Nestor G. A Globalização Imaginada. São Paulo: Ed. Iluminuras,
2003.


__________________. La Épica de la globalizacion y el melodrama de la
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___________________.O patrimônio Cultural e a Construção Imaginária do
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1994.


___________________.The future of the Privatization of Culture.
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HUYSSEN, Andréa. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

LESSA, Carlos, O Rio de todos os Brasis, Rio de Janeiro, Ed. Record,2001
LYNCH, Kevin. A imagem da Cidade. São Paulo, Martins Fontes; 1997.

MARTIN-BARBERO,Jesus. Dos meios às mediações, Rio
Janeiro,Ed.UFRJ,2001.2ªed.


MUNFORD, Lewis. A Cidade na História. Suas origens, transformações e
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ROSSI, Aldo. Arquitectura da cidade; Lisboa; Cosmos;1977.

SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo, Hucitec, 1986.

SANTOS, Paulo. Formação de Cidades no Brasil Colonial. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2001.


ARTIGO


( O GLOBO:


Sábado, 07 de abril de 2001 – Retratos do Rio.


Domingo, 13 de maio de 2001 – Caderno Morar Bem.


Domingo, 08 de julho de 2001 – 1° Caderno – p.15


Domingo, 21 de novembro de 2004 – 1º Caderno – p.26









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[1] Zygmunt Bauman.O mal-estar da pós-modernidade,RJ.,Zahar,1998
[2] Jesus Martin-Barbero, Dos meios às mediações,RJ.,Ed.UFRJ,2001.2ªed.
[3]
[4] Carlos Lessa, O riio de todos os Brasis, Rio de Janeiro, Ed.
Record,2001
[5] ob.cit.2004:24.
[6] Arjun Appadurai, Soberania sem territorialidade in Revista Novos
Estudos nº 49,novembro 1997
[7] Rossi, Aldo. Arquitectura da cidade; Lisboa; Cosmos;1977.


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[i] Lynch, Kevin. A imagem da Cidade. São Paulo, Martins Fontes, 2010.

[ii] Rossi, Aldo. Arcquetura da Cidade. Lisboa: Edições Cosmos, 1977.[iii]

[iv] SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec,
1997.
[v] Lessa, Carlos. O Rio de todos os Brasis Rio de janeiro, Record,2001.
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