Identidades instáveis: os fragmentos do sujeito moderno

June 7, 2017 | Autor: Evanir Pavloski | Categoria: Modernidade, Identidades
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Identidades instáveis: os fragmentos do sujeito moderno

Evanir Pavloski[1]



Em meio ao turbilhão de rupturas e transformações que definiram a
modernidade, a dissolução da suposta integridade que caracterizou o
conceito tradicional de identidade é, de forma insuspeita, um dos signos
indeléveis do período. Tanto na esfera pública quanto privada, as
transfigurações dos paradigmas identitários substituíram a unicidade pela
multiplicidade e a solidez pela desconstrução. Representaria uma tarefa não
apenas utópica, mas inevitavelmente reducionista, delinear todas as causas
desse processo, uma vez que sua evolução se inscreve em um amplo horizonte
de constantes rearticulações. Como afirma Stuart Hall:

A assim chamada "crise de identidade" é vista como parte de um
processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e
processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de
referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo
social. (HALL, 2002, p. 07)

Não obstante, parece-nos relevante discorrer sobre determinados
aspectos históricos, sociológicos e filosóficos da modernidade como forma
de contribuição para o aprofundamento das questões suscitadas pelos debates
contemporâneos apresentados no presente livro.
Ainda que a datação do período que nos propomos a discutir não seja
pacífica, eventos e tendências anteriores ao século XVIII podem ser
apontados como significativos para o questionamento e subseqüente
fragmentação das identidades sociais.
Segundo Jürgen Habermas, o termo latino modernus foi primeiramente
utilizado no século V para demarcar um limite histórico entre o paganismo
anterior e o cristianismo então consolidado.

Desde então a expressão possui a conotação de uma descontinuidade
proposital do novo diante do antigo. A expressão "moderno" continuou a
ser utilizada na Europa – cada vez com conteúdos diferentes – para
expressar a consciência de uma nova época. O distanciamento com
relação ao passado imediato é alcançado inicialmente com a referência
à Antiguidade ou a qualquer outro período indicado como clássico, ou
seja, como digno de imitação. (HABERMAS, 2001, p. 168)

Para o sociólogo e filósofo alemão, a etimologia e a significação do
vocábulo permitem demarcar o início da modernidade durante o Renascimento,
haja vista a referência direta do movimento ao classicismo grego como
símbolo da ruptura com a era medieval.
Julgamos que o primeiro grande agente transformador a ser citado é o
profundo impacto que o colonialismo exerceu sobre o imaginário europeu a
partir do século XVII. Por intermédio das grandes navegações, novos
arquétipos identitários passam a ser conhecidos e, conseqüentemente, a
influenciar a autoconsciência dos habitantes do chamado Velho Mundo.
François Laplantine utiliza o termo estranhamento (depaysement) para se
referir a esse espelhamento cultural e identitário, isto é, à "perplexidade
provocada pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e
cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si
mesmo" (LAPLANTINE, 2003, p. 12-13). E prossegue:


De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos a dos
outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiência da
alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo
que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em
fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que
consideramos "evidente". Aos poucos, notamos que o menor dos nossos
comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem
realmente nada de "natural". Começamos, então, a nos surpreender com
aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento
(antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo
conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer
que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única.
(LAPLANTINE, 2003, p. 12-13)

Indubitavelmente, o contato com outros modelos de organização e
interação social direcionou o olhar crítico da intelligentsia européia para
seus próprios núcleos e padrões identitários. Entretanto, foi o progresso
econômico e cultural das próprias sociedades na Europa que determinou as
rearticulações do conceito de identidade a partir do século XVIII.
Primeiramente, é importante considerar que o progressivo afastamento
do misticismo medieval, sendo o Renascimento e o Iluminismo seus
corolários, impulsionou um grande número de teorias racionalistas, dentre
as quais destacamos a atribuição de caráter histórico para as relações
humanas. Com isso, as identidades assumidas pelos sujeitos passam a ser
vistas como produtos de um desenvolvimento das sociedades inscrito no fluxo
do tempo. Tal perspectiva, aparentemente determinista, resulta, em última
análise no reconhecimento da ação efetiva dos indivíduos enquanto agentes
históricos e éticos.

Com Montesquieu e Rousseau as instituições, costumes e normas sócio-
jurídicas passam a ser entendidas como produto das condições, do
comércio, e contrato dos seres humanos, a certa altura de suas
relações coletivas, isto é, em certo momento da história da sociedade,
mas de uma sociedade de indivíduos dotados de direito natural.
(GUINSBURG, 2005, p. 14)

É justamente nesse contexto de valorização de um racionalismo
analítico-crítico que a obra do supracitado Jean Jacques Rousseau se revela
proeminente. Dentre as inegáveis contribuições do filósofo suíço para o
pensamento sociológico, destacamos as considerações do autor sobre a
bipartição do sujeito em identidades que atendem aos pressupostos
dicotômicos do "ser" e do "parecer". Para Rousseau, a posição titubeante
entre esses dois pólos, na qual o indivíduo moderno é permanentemente
colocado, equivale ao resultado de imperativos sociais que promovem a
homogeneização das identidades públicas e a retração daquelas assumidas nas
esferas privadas. Assim, o ser humano é inserido em um ambiente repleto de
discursos e dispositivos coercitivos que buscam moldar padrões de
comportamento e pensamento, ainda que esse processo jamais seja pacífico ou
definitivamente consumado.

Já não se ousa parecer o que se é; e nessa sujeição perpétua, os
homens que formam esse rebanho que se chama sociedade, colocados nas
mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas, se motivos
mais poderosos delas não os desviam. Portanto, jamais se saberá bem
com quem se trata [...] Que cortejo de vícios não acompanhará essa
incerteza? Não mais amizades sinceras; não mais estima real; não mais
confiança fundada. As suspeitas, as desconfianças, os temores, a
frieza, a reserva, o ódio, a traição serão ocultados incessantemente
sob esse véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade tão
louvada que devemos às luzes de nosso século. (ROUSSEAU apud
STAROBINSKI, 1991, p. 17)

Como vimos, Rousseau entende como danosa a dissociação identitária
dos sujeitos nas primeiras sociedades industriais, pois considera que a
adaptação individual a um comportamento público específico redunda em
conflito, artificialidade e, finalmente, normalização. Contudo, ao
reconhecer essa bipartição na vida cotidiana dos sujeitos, o filósofo rompe
com o conceito de identidade sustentado ao longo do Iluminismo que, segundo
Stuart Hall,

Estava baseado numa concepção de pessoa humana como um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior que
emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se
desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo
ou "idêntico a ele – ao longo da existência do indivíduo. (HALL, 2002,
p. 10)

Dessa maneira, a desmitificação da solidez e da imutabilidade das
identidades sociais possibilitou a reorganização de parâmetros de
significação que, para alguns pensadores, eram mantidos solapados pela
idéia de sujeito no Iluminismo. Benedito Nunes, por exemplo, enfatiza que
no período em questão

Haveria, portanto, entre o interior e o exterior, entre o homem e o
mundo, um prévio "circuito de comunicação" da natureza das coisas e da
natureza humana: circuito que caracterizou a direção epistemológica do
pensamento da época clássica, fundada num achatamento do sujeito,
encaixado como sujeito universal do conhecimento, a uma Natureza cuja
ordem e cuja regularidade se prolongaram na ordem dos discursos
científico, religioso, estético, jurídico e político do século XVIII.
(NUNES in GUINSBURG, 2005, p. 57)

A percepção do caráter histórico e socialmente construído das
identidades foi também valorizada pelos pensadores do Sturm und Drang,
posicionamento que influenciou sobremaneira a sensibilidade romântica.
Johann Gottfried Herder analisa a questão sob dois focos distintos,
mas complementares. Em primeiro lugar, Herder defende a multiplicidade de
perfis identitários em oposição a uma padronização coercitiva dos
comportamentos individuais. Para o filósofo, a pluralidade e a diversidade
das identidades sociais são elementos fundamentais para a sua concepção de
cultura. Como salienta Rüdiger Safranski ao se referir ao pensador alemão:

"O" homem é uma abstração; há apenas "os" homens. Assim como a vida em
geral, em cada etapa do seu desenvolvimento, tem seu próprio direito e
seu próprio significado, também o tem a raça humana. Cada indivíduo
marca de forma singular aquilo que o homem é e pode ser. Herder
defende um personalismo radical. Há a humanidade como uma grandeza
abstrata e há a humanidade à qual cada um tem de atentar em si próprio
e de trazer a uma forma individual. (SAFRANSKI, 2010, p.28)

O amálgama de tantas identidades distintas não é, no entanto,
inconsistente com a ordem social e o desenvolvimento da cultura de um
determinado grupo. Contrariamente, Herder afirma que ao comporem uma
unidade cultural, os indivíduos assumem uma nova identidade que se conecta
aos ideais de Nação e Povo.

A pessoa que se desenvolve em um indivíduo é e permanece o centro
significativo, mesmo quando ela – o que não se pode negar – sempre
precisa de uma comunidade. Esta, porém, deve, segundo Herder, estar
organizada de modo que cada um possa fazer desabrochar sua semente
individual. A comunidade é uma união para ajuda mútua nesse
desenvolvimento. [...] Para Herder o ser humano, como indivíduo está
incluído na comunidade – uma espécie de indivíduo maior. (SAFRANSKI,
2010, p. 28)

Como fica claro na passagem acima, Herder é um dos primeiros
intelectuais a conceber a nação como uma entidade orgânica, a partir da
qual surgiria o conceito de identidade nacional. Tais reflexões embasaram
discursos nacionalistas que se propagaram ao longo do século XIX, tanto em
apoio quanto em oposição aos desdobramentos da Revolução Francesa.


O movimento do Sturm und Drang será o precursor desse nacionalismo que
busca as raízes originais do Volk e que posteriormente as encontrará
não somente na pré-história, mas fundamentalmente na biologia. Esse
nacionalismo terá em Herder o seu precursor, devido em grande parte à
influência da concepção rousseauniana sobre a importância das etapas
primitivas e pré-civilizadas da evolução humana. (GUINSBURG, 2005, p.
43)


Se considerarmos a bipartição identitária postulada por Rousseau,
podemos afirmar que a identidade nacional corresponde a um terceiro nível
de fragmentação do indivíduo na esfera social. Outras concepções e
análises, no entanto, são difundidas no mesmo ritmo vertiginoso de
transformações e deslocamentos que caracterizam as décadas posteriores à
queda da Bastilha. Remetemo-nos novamente a Habermas, para quem um novo
ciclo da modernidade se inicia nesse período. Na virada para o século XIX,
o autor salienta um novo momento de afastamento do passado e instituição de
novos paradigmas sociais. Em outras palavras, o Romantismo oitocentista se
inscreve em um segundo fluxo de mudanças e inovações deflagrado a partir da
Revolução Francesa.

Também essa consciência romântica revela o traço característico de um
novo início que se destaca daquilo que então deve ser transcendido.
Porque se deve quebrar com uma tradição que alcança até o presente, o
espírito "moderno" deve desvalorizar essa pré-história imediata e
distanciá-la para fundar-se de modo normativo a partir de si mesmo.
(HABERMAS, 2001, p. 168)

O desejo por romper com a tradição e a conseqüente busca por novos
horizontes de significação impulsionam os românticos para diversas
reflexões e teorizações sociológicas e filosóficas que, irremediavelmente,
perpassam a questão identitária. Movimento cultural extremamente
multifacetado e complexo, o Romantismo resiste a simplificações e
generalizações ideológicas ou estéticas. Dessa forma, manteremos nosso foco
sobre duas vertentes da dicção romântica que têm na problematização das
identidades sociais um de seus aspectos centrais.
A primeira delas recupera, até certo ponto, o lapso entre o "ser" e o
"parecer" apresentado por Rousseau, mas atribui a essa questão um caráter
essencialmente metafísico. A concepção filosófica do Eu-absoluto,
inaugurada por Kant e aprofundada por Fichte, retoma o personalismo de
Herder e o reveste de ideais transcendentais e universalistas. Segundo essa
visão, todas as significações do mundo derivam do indivíduo e de suas
relações com a realidade empírica. Contudo, há uma cisão entre a verdadeira
identidade do sujeito (Eu) e aquela imposta pela sociedade e suas
instituições (Não-eu). A imposição de padrões comportamentais externos
produz uma limitação que é constantemente entendida pelos indivíduos como
uma autolimitação, o que dificulta o exercício da própria individualidade.
Conseqüentemente, a supremacia do Não-eu sobre o Eu cria a ilusão de que o
mundo é externo ao sujeito quando, na verdade, o universo material se
constrói a partir dele e por meio da linguagem. Para Fichte, o despertar
da autoconsciência e o combate aos modelos arbitrários de identificação
representam um caminho efetivo para um amplo universo de possibilidades e
de experiências. Assim comenta Rüdiger Safranski sobre a dicção libertária
de Fichte:

A liberdade continua em jogo como um sentimento de possibilidades,
também no que diz respeito aos duros fatos. Também quando reconhece,
não apenas quando age, o homem é um ser que poderia não apenas agir de
outro modo, mas também ver as coisas de outra maneira. Ele vive de
possibilidade. A realidade se constitui num horizonte de
possibilidades. Isso é liberdade. (SAFRANSKI, 2010, p. 73)

Além do potencial crítico-social dessas reflexões, os pensadores
filiados à busca da preeminência do Eu acreditavam que o contato com a
própria essência humana e a sua projeção enquanto identidade social
possibilitava a relação direta entre entidade abstrata e divinizada que
habita no interior de todos os sujeitos. Em outros termos, olhar para
dentro de si mesmo seria uma maneira efetiva de olhar nos olhos de Deus. "É
o sentido do infinito, do absoluto interior à alma humana condenada à sua
finitude, e que se extravasa no romântico sob forma de nostalgia" (BORNHEIM
in GUINSBURG, 2005, p. 92).
Dessa forma, cria-se um "Eu transcendental" que, diferentemente da
identidade privada de Rousseau, se define pela sua ligação com o universo
ideal e infinito. "A força que movimenta a natureza e a história é do mesmo
tipo que experimentamos no ativismo, na espontaneidade do nosso eu. [...] A
experiência do próprio eu nos leva ao mundo como universo da
espontaneidade" (SAFRANSKI, 2010, p. 75).
Não obstante os riscos de produzir reações niilistas ou egotistas, o
transcendentalismo romântico é uma resposta às aparentes limitações do real
nas sociedades industriais do século XIX. Diante disso, busca-se alcançar o
ideal e o sublime a partir da individualidade de cada sujeito. Em certo
sentido, espiritualidade e identidade se fundem em uma nova visão do ser
humano.
Já a segunda vertente que nos propusemos a analisar se dedica a
criticar a realidade social e desnudar a conflituosa posição dos indivíduos
modernos: o romantismo anticapitalista.
Zygmunt Bauman, ao analisar a modernidade como um processo de
"liquefação" dos conceitos e paradigmas "sólidos", enfatiza o inédito
horizonte econômico que se descortina.

O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia
de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais.
Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termos
econômicos. Essa nova ordem deveria ser mais "sólida" que as ordens
que substituía, porque, diferentemente delas, era imune a desafios por
qualquer ação que não fosse econômica. (BAUMAN, 2001, p. 10)

O autor salienta que a fragmentação das estruturas tradicionais
transmite a sensação de liberdade individual, que se torna ambígua diante
do fato de que essas estruturas foram derrubadas apenas para serem
substituídas por outros parâmetros, aparentemente mais liberais, mas tão
rígidos quanto os anteriores. O capitalismo não ocupou apenas um espaço
vazio no fluxo da modernidade, mas funcionou como um agente catalisador na
formação desse espaço. O indivíduo se vê diante de um conjunto maior de
possibilidades individuais e sociais, mas o apelo para a inclusão nas
categorias arbitrariamente definidas continua fazendo parte dele. "Na
verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse substituído por outro"
(BAUMAN, 2001, p. 13).
Diante de tais desdobramentos, parte considerável da intelligentsia
romântica encontra na consolidação do capitalismo a causa para os
sentimentos de frustração, estranhamento e homogeneização individual.

A estrutura social emergente dessas mudanças não oferecerá ao processo
de individualização condutos abertos para a vida coletiva. Tornada
menos móvel e mais estranha, como um mecanismo alheio à
consciência, atrofiando a individualização à falta de reajustamentos
internos, a vida coletiva contribuirá para a alienação, a introjeção,
a subjetividade e a introversão das energias sublimadoras. (NUNES
in GUINSBURG, 2005, p. 55)

Nesse contexto, os autores românticos vislumbram na crítica ao
racionalismo capitalista uma forma de questionar os paradigmas sociais
vigentes e problematizar o exercício da individualidade e a formação das
identidades como processos condicionados a imperativos econômicos. Ao
criticar a liberdade ilusória proporcionada pelo materialismo, esses
pensadores objetivam recuperar, pelo menos idealisticamente, um modelo de
liberdade aparentemente perdido.

Ora, o desenvolvimento do sujeito individual está diretamente ligado à
história e à pré-história do capitalismo: o indivíduo "isolado"
desenvolve-se com e por causa do capitalismo. Entretanto, aí está a
fonte de uma importante contradição da sociedade capitalista, pois
esse mesmo indivíduo por ela criado só pode viver frustrado em seu
seio e acaba por revoltar-se contra ela [...] O romantismo representa
a revolta da afetividade reprimida, canalizada e deformada sob o
capitalismo, e da "magia" da imaginação banida do mundo capitalista.
(LÖWY et SAYRE, 1993, p. 26)

As reflexões dos intelectuais anticapitalistas são, indubitavelmente,
reforçadas pelas teorias socialistas e marxistas que, diante do panorama
contraditório citado acima, questionam a construção de identidades híbridas
atribuídas taxativamente aos indivíduos de acordo com a posição que estes
ocupam na pirâmide social e no sistema de produção.

On the one hand, there have started into life industrial and
scientific forces, which no epoch of the former human history had ever
suspected. On the other hand, there exist symptoms of decay, far
surpassing the horrors recorded of the latter times of the Roman
Empire. In our days, everything seems pregnant with its contrary:
Machinery, gifted with the wonderful power of shortening and
fructifying human labour, we behold starving and overworking it; The
newfangled sources of wealth, by some strange weird spell, are turned
into sources of want; The victories of art seem bought by the loss of
character. At the same pace that mankind masters nature, man seems to
become enslaved to other men or to his own infamy. Even the pure light
of science seems unable to shine but on the dark background of
ignorance. All our invention and progress seem to result in endowing
material forces with intellectual life, and in stultifying human life
into a material force.[2] (MARX, 1978, p. 577-578)

No século XX, o conflito entre a individualidade e a existência em
sociedade permanece latente, mas agora atenuado pelos símbolos de status e
poder proporcionados por um sistema erigido sobre a lógica consumista. Os
bens materiais são transformados em fonte de afirmação pessoal e minoração
do mal-estar causado pela massificação realimentada pelo próprio
consumismo. Como afirma Sérgio Paulo Rouanet, "a individualidade submerge
cada vez mais no anonimato do conformismo e da sociedade de consumo: não se
trata tanto de pensar os pensamentos que todos pensam, mas de comprar os
videocassetes que todos compram, nos aviões charter em que todos voam para
Miami" (ROUANET, 2001, p. 09).
Entretanto, as transformações e pluralizações do conceito de
identidade na transição entre os século XIX e XX não se restringe àquelas
motivadas pelo materialismo capitalista. Stuart Hall descreve cinco grandes
discursos de ruptura com a noção de um sujeito dotado de uma identidade
íntegra e coerente.
O primeiro deles é a teoria marxista, uma vez que seus postulados
concebem a imagem de um sujeito cuja autonomia está irremediavelmente
dependente dos recursos materiais e culturais que lhes foram transmitidos
como herança pelas gerações anteriores.
O segundo descentramento conceitual se dá por meio da psicanálise
freudiana. Segundo Hall, ao valorizar a experiência da alteridade e o
potencial do insconsciente em modelar a realidade, Freud rompe com a idéia
de uma essência original do indivíduo, a partir da qual o seu perfil
identitário e relacional se desenvolveria de forma concreta e coerente.

A teoria de Freud de que nossas identidades, nossa sexualidade e a
estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos
psíquicos e simbólicos do nosso inconsciente, que funciona de acordo
com uma "lógica" muito diferente daquela da Razão, arrasa com o
conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade
fixa e unificada [...] A formação do eu no "olhar" do Outro inicia a
relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela mesma e é,
assim, o momento de sua entrada nos vários sistemas de representação
simbólica – incluindo a língua, a cultura e a diferença sexual [...]
Entretanto, embora o indivíduo esteja sempre partido ou dividido, ele
vivencia sua própria identidade como se ela estivesse reunida e
"resolvida", ou unificada, como resultado da fantasia de si mesmo como
uma "pessoa" unificada que ele formou na fase do espelho. Essa, de
acordo com esse tipo de pensamento psicanalítico, é a origem
contraditória da "identidade". (HALL, 2002, p. 36, 37, 38)

Percebemos, dessa maneira, que o discurso psicanalítico busca, por
meio da exploração dos processos inconscientes e da interação social,
atenuar a lacuna entre o "ser" e o "parecer", mesmo que apenas na dimensão
subjetiva da vida de cada sujeito.
De acordo com Hall, o terceiro grande discurso de ruptura advém dos
estudos lingüísticos de Ferdinand de Saussure. Ao caracterizar a língua
como um artefato social e não individual, o lingüista suíço priva os
sujeitos da capacidade de exprimir significados e de produzir sistemas
simbólicos sem recorrer ao conjunto de possibilidades de expressão já
incutido na língua e na cultura. Diante dessa limitação, a produção
lingüística de um significado final para o próprio conceito de identidade
se torna inviável.

Eu sei quem "eu" sou em relação com "o outro" (por exemplo, minha mãe)
que eu não posso ser. Como diria Lacan, a identidade, como o
inconsciente, "está estruturada como a língua". O que os modernos
filósofos da linguagem – como Jacques Derrida, influenciados por
Saussure e pela "virada lingüística" – argumentam é que, apesar de
seus melhores esforços, o/a falante individual não pode, nunca, fixar
o significado de uma forma final, incluindo o significado de sua
identidade. (HALL, 2002, p. 41)

Michel Foucault é o representante do quarto descentramento apontado
por Hall. A genealogia do sujeito moderno proposta pelo filósofo e
sociólogo francês coloca o indivíduo como o produto de um poder disciplinar
estabelecido e disseminado por meio de práticas cotidianas e instituições
socioculturais. O exercício desse poder, ainda que de foro coletivo, isola
e individualiza ainda mais o sujeito para que dele possa ser extraído uma
forma de conhecimento que refine ainda mais a estrutura de controle e para
que a vigilância de cada membro do grupo possa alcançar o máximo de sua
eficiência. Conseqüentemente, as identidades sociais são construídas e
distribuídas de acordo com as necessidades do imperativo disciplinar e com
as instituições pelas quais os indivíduos transitam. Como salienta Stuart
Hall:

Não é necessário aceitar cada detalhe da descrição que Foucault faz do
caráter abrangente dos "regimes disciplinares" do moderno poder
administrativo para compreender o paradoxo de que, quanto mais
coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade
tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do
sujeito. (HALL, 2002, p. 43)

Finalmente, o último discurso de ruptura se propaga a partir dos
movimentos feministas da década de 60. Por meio da crítica à formação dos
sujeitos como produtos generificados e da ênfase nas particularidades das
identidades de gênero, o feminismo trouxe para o campo político as
discussões sobre os processos de identificação calcados em concepções
tradicionalistas e falocêntricas. Em outras palavras, "aquilo que começou
como um movimento dirigido à contestação da posição social das mulheres
expandiu-se para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero"
(HALL, 2002, p. 46).
Seguindo o exemplo das feministas, outros grupos sociais considerados
minoritários ou marginalizados iniciaram movimentos semelhantes de
contestação dos aspectos normativos e excludentes da formação identitária.
A valorização de identidades étnicas, raciais e homoeróticas, por exemplo,
se expande como mecanismo de reconhecimento e afirmação da diversidade e da
pluralidade diante do suposto risco de homogeneização derivado, dentre
outras fontes, do processo de globalização.
Como resultado dessa consistente multiplicação das possibilidades de
identificação e dos grupos que as viabilizam o sujeito moderno encontra na
fragmentação e na instabilidade os signos indeléveis de sua identidade.
Nesse sentido, Hall enfatiza que

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente.
Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas [...] A identidade plenamente unificada,
completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida
em que o sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante
e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais
poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2002, p.
13)

Obviamente, processos e movimentos reacionários intra e
interculturais se proliferam tanto como resposta à desconstrução dos
processos de identificação quanto como tentativa de recuperação de um
conceito íntegro e estável de identidade. "Existem também fortes tentativas
para se reconstruírem identidades purificadas, para se restaurar a coesão,
o 'fechamento' e a Tradição, frente ao hibridismo e à diversidade" (HALL,
2002, p. 92).
Em sua obra O mal-estar na pós-modernidade, Zygmunt Bauman descreve
tendências sociais pautadas na normalização e normatização de identidades
consideradas exemplares. Segundo o autor, a determinação de padrões
comportamentais e, conseqüentemente, a distinção e a marginalização dos
supostos desvios permeia as interações humanas atuais. Tal procedimento -
denominado por Bauman como a criação e a anulação de estranhos - não é
imposto verticalmente pelo poder estatal reconhecido, mas permeia
horizontalmente as relações mais cotidianas. Nesse sentido, a
estigmatização daqueles que não compartilham dos sistemas éticos e
simbólicos modelares representa, de certa forma, a consolidação e o
fortalecimento desses mesmos paradigmas.

Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade
produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria
maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas que não se
encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo — num desses
mapas, em dois ou em todos três; se eles, portanto, por sua simples
presença, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve
ser uma coerente receita para a ação, e impedem a satisfação de ser
totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia, ao
mesmo tempo que fazem atraente o fruto proibido; se, em outras
palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que
devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a
incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido
— então cada sociedade produz esses estranhos. Ao mesmo tempo que
traça suas fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos e
morais, ela não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados
fundamentais para a sua vida ordeira e significativa, sendo assim
acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais dolorosa e
menos tolerável. (BAUMAN, 1998, p. 27)

Dessa forma, percebemos nas sociedades contemporâneas a existência de
dois discursos claramente antitéticos: aquele que defende o reconhecimento
da diversidade e da pluralidade identitária; e aquele que, diante da
assustadora fluidez da modernidade, anseia pelo retorno de uma matriz
conceitual estável e redentora. O conflito ideológico e ético entre essas
duas perspectivas compõem o atual capítulo da dialética que, desde o
Renascimento, define o pensamento sobre a formação das identidades sociais.

Diante disso, poderíamos questionar: de que forma as atuais discussões
recuperam concepções e postulados inscritos no fluxo do tempo? O exotismo
inerente a certas representações midiáticas de povos e sociedades produziu
um mecanismo de espelhamento semelhante àquele oriundo das grandes
navegações. A recente valorização das culturas e identidades nacionais ou
regionais não dialoga com as reflexões de Herder no século XVIII? A
exteriorização de uma suposta transcendência individual plasmada na
religiosidade e em determinados perfis identitários pode ser considerada
uma readequação do sistema filosófico de Fichte ou representa apenas um
retorno a um modelo de sujeito cultivado no passado? Qual o verdadeiro grau
de rigidez das identidades distribuídas pelo racionalismo capitalista? E
combatê-la não significa assumir um posicionamento reacionário pautado nos
modelos sociais pré-capitalistas? De que forma a psicanálise pode
contribuir para a formação de sujeitos capazes de buscar um ideal de
liberdade ao menos próximo daquele apregoado pelos românticos? A escola
pode ou deve exercer um papel efetivo nesse processo? A fragmentação das
identidades não estabelece espaços de interação que podem se tornar não
apenas fechados, mas também intolerantes?
Com o objetivo de promover discussões que se remetessem a essas e
diversas outras questões, o VI CIEL – Ciclo de Estudos em Linguagem
apresentou o seguinte mote: Configurações contemporâneas da (des)construção
das subjetividades e das identidades. Os textos que compõem a presente obra
resultam dos debates desenvolvidos nas mesas-redondas do evento e delineiam
um quadro geral das reflexões que, reunindo pesquisadores de diferentes
localidades do Brasil, teve o sujeito moderno e os inúmeros fragmentos
identitários que o constroem como o tema central.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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_______________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001.

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Zahar, 1998.

GUINSBURG, J. (org.) O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005.

HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo:
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
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LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003.

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SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo. Uma questão alemã. Trad. Rita Rios. São
Paulo: Estação Liberdade, 2010.

STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: A transparência e o obstáculo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.



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[1] Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Professor Assistente da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG).
[2] Tradução livre: De um lado, tiveram acesso à vida forças industriais e
científicas que nenhuma época anterior, na história da humanidade, chegara
a suspeitar. De outro lado, estamos diante de sintomas de decadência que
ultrapassam em muito os horrores dos últimos tempos do Império Romano. Em
nossos dias, tudo parece estar impregnado do seu contrário. O maquinado,
dotado do maravilhoso poder de amenizar e aperfeiçoar o trabalho humano, só
faz, como se observa, sacrificá-lo e sobrecarregá-lo. As mais avançadas
fontes de saúde, graças a uma misteriosa distorção, tornaram-se fontes de
penúria. As conquistas da arte parecem ter sido conseguidas com a perda do
caráter. Na mesma instância em que a humanidade domina a natureza, o homem
parece escravizar-se a outros homens ou à sua própria infâmia. Até a pura
luz da ciência parece incapaz de brilhar senão no escuro pano de fundo da
ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar de vida
intelectual às forças materiais, estupidificando a vida humana ao nível da
força material.
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