IDOLS YOU CAN MEET - DIFERENTES REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA IDEAL: O FENÔMENO AKB48

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Descrição do Produto

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DEPARTAMENTO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA

JULIA LOPES DE BRITO

IDOLS YOU CAN MEET DIFERENTES REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA IDEAL: O FENÔMENO AKB48

PORTO ALEGRE 2016

JULIA LOPES DE BRITO

IDOLS YOU CAN MEET

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para a Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Publicidade e Propaganda

Orientador: Profª Drª Paula Puhl

PORTO ALEGRE 2016

JULIA LOPES DE BRITO

IDOLS YOU CAN MEET

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para a Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Publicidade e Propaganda

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Paula Puhl (Orientadora)

Profª Drª Juliana Tonin Profª Ma. Susana Azevedo

PORTO ALEGRE 2016

AGRADECIMENTOS

Começo agradecendo, primeiramente, aos meus pais, Antonio e Vera Brito. Ao meu pai, por ser a melhor figura paterna que alguém pode querer; por ser não apenas um exemplo de pai, mas também de homem. Por colocar as filhas antes de tudo, por me levar a todos os lugares, por nunca me negar livros, por ser a melhor companhia para shows, por sempre entender o meu silêncio. Cada dia que passa me vejo mais em você. À minha mãe, por nunca me negar nada, por respeitar minha individualidade, por incentivar meus hobbies, por ser minha antítese e, por mais clichê que seja – pelo amor incondicional. E, claro, por ter permitido que eu adotasse meus dois gatos. À minha irmã, pelo exemplo de persistência e amor à profissão, mesmo nos momentos difíceis. Nossas áreas não poderiam ser mais opostas, mas minha admiração permanece independente dos caminhos que cada uma escolheu. À Júlia Cunha, pela companhia em todos os semestres de faculdade e também fora da vida acadêmica. Por me ensinar a ser mais solta e despreocupada, por sorrir em todos os momentos, pela eterna energia. Aos meus amigos Ana Maria Antunes e Giancarlo Rocha, pela ajuda nos momentos mais desesperadores deste trabalho. A todos os meus outros amigos que compreenderam o meu momento de reclusão durante a execução deste trabalho e em diversos outros momentos da minha vida de universitária, que nunca os impediu de, mesmo assim, me convidarem para sair. Ao Rodrigo Mu, pelo apoio, companhia e por me emprestar o ombro para chorar. À minha orientadora, Paula Puhl, pelo apoio em todos os momentos, dos mais calmos aos mais corridos, por sempre extender meus prazos – que eu teimava em não cumprir –, pelas orientações no fim de semana, por ser um exemplo de profissional. E principalmente, por entender o que é ser mulher. E por fim, à todas mulheres que, diariamente, lutam pela reconstrução de suas próprias identidades e por um mundo mais igualitário. Somos mais fortes, unidas.

“Nós ensinamos a vergonha às meninas. “Feche suas pernas”. “Cubra-se”. Nós as fazemos se sentirem como se, por terem nascido mulher, já são culpadas de alguma coisa. E assim, garotas crescem para serem mulheres que não podem ver que possuem desejos. Elas crescem para serem mulheres que silenciam a si mesmas. Elas crescem para serem mulheres que não podem ver o que realmente pensam, e elas crescem – e essa é a pior coisa que fazemos às garotas – crescem para serem mulheres que se tornaram um pretexto em forma de arte.” (CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE)

RESUMO

A presente monografia tem como tema as diferentes representações midiatícas na construção da identidade feminina ideal, a partir da análise do grupo pop AKB48. O principal objetivo deste trabalho é compreender de que formas diferentes representações de idols disseminadas pela mídia podem definir a identidade feminina. São tratados neste trabalho a importância da idol como produto cultural, o contexto em que essa identidade toma forma e o papel da mídia na disseminação da imagem feminina adolescente. Este trabalho também contextualiza temas que fazem parte do objetivo principal: gênero, sexualidade, imagem feminina, contexto histórico japonês e o culto à colegial. Analisaram-se diferentes representações midiáticas das idols do AKB48 – o clipe musical Heavy Rotation; o comercial da bala Aisu no Mi, da marca Ezaki Glico; e o vídeo game AKB1/149 Love Election – através da pesquisa bibliográfica, documental e da análise de imagem. A partir disso, descobriu-se que o que a idol representa na mídia afeta as possibilidades da identidade que assume na sua própria vida – perde-se o limiar entre virtual e real – e que sua imagem é comunicada como o ideal feminino adolescente, caracterizado pela submissão, objetificação e falta de autonomia.

Palavras-chave: Identidade. Mídia. Imagem. Feminino. Japão.

ABSTRACT

The theme of the present monograph is the different ways the construction of an ideal female identity is represented by the media, through analysis of the pop idol group AKB48. The main goal of this work is to comprehend how the various ways those idols are represented by the media can define female identity. This work looks into the importance of an idol as a product of culture, the context in which that identity takes form, and the role of the media in spreading the adolescent female ideal image. The following aspects, which are part of the main objective, are also contextualized: gender, sexuality, female image, Japanese historical context and the worshipping of high-school girls. Different media representations of the AKB48 idols are analyzed within this piece -- the music video Heavy Rotation; the TV commercial for Aisu no Mi, an Ezaki Glico candy; and the videogame AKB1/149 Love Election -- through bibliographic and documentary research, and the image analysis. As a result, it can be said that what an idol represents in the media affects the possible personalities one takes on during their own lives -- losing the line between reality and fiction -- and that their image is transmitted as the ideal adolescent girl, portrayed by being submissive, dependent, and objectified.

Palavras-chave: Identity. Media. Image. Female. Japan.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Pedido de desculpas de Minami Minegishi................................................31 Figura 2 - Ensaio de Minami Minegishi para o livro de fotos South...........................32 Figura 3 - Volume 5 de Ashita no Joe, mangá shounen de 1970..............................36 Figura 4 - Volume 1 de Versailles no Bara, mangá shoujo de 1972..........................37 Figura 5 - Quarto repleto de artigos kawaii................................................................39 Figura 6 - Quarto de um otaku...................................................................................41 Figura 7 - Idol Junko Sakurada vestindo um uniforme escolar na capa do disco Shiroi Kazeyo, de 1975.........................................................................................................43 Figura 8 - Ensaio feito pelo fotógrafo Yuki Ayoma, intitulado Schoolgirl Complex....45 Figura 9 - Angel, acrílica sobre tela............................................................................47 Figura 10 - Kogyarus em Tóquio, em 1994, sentadas de forma "masculina" na calçada.......................................................................................................................49 Figura 11 - Modelos kogyaru da revista JK egg.........................................................50 Figura 12 - Showgirl, acrílica sobre tela.....................................................................52 Figura 13 - Chisato Moritaka apresentando 17-sai em 1989.....................................55 Figura 14 - Onyanko Club apresentando Serafuku wo Nugasanaide........................57 Figura 15 - Mion Mukaichi, do grupo AKB48, na capa da revista Mangá Action de Maio de 2016..............................................................................................................60 Figura 16 - Sayumi Michishige no livro de fotos Sayuminglandoll em 2011, na época membro do grupo Morning Musume..........................................................................61 Figura 17 - Imagem promocional do single Iwake Maybe, de 2009...........................64 Figura 18 - AKB48 fazendo cover da icônica música Serafuku wo Nugasanaide, do Onyanko Club.............................................................................................................65 Figura 19 - Atsuko Maeda, que recebeu mais de 139 mil votos, discursando em frente aos fãs após ficar em primeiro lugar nas eleições gerais................................68 Figura 20 - Campanha AKB48 para Lawson..............................................................69 Figura 21 - Loja especializada na venda de fotografias cruas, em Akihabara...........70 Figura 22 - Evento de aperto de mão, em 2014 com Yuki Kashiwagi.......................71 Figura 23 - Inicio de Heavy Rotation..........................................................................76 Figura 24 - Plano de Conjunto com o AKB48............................................................77 Figura 25 - Cenas do quarto......................................................................................78 Figura 26 - Plano Detalhe (close-up) e Primeiro Plano.............................................79

Figura 27 - Cenas na sala de jantar...........................................................................80 Figura 28 - Diferentes cenários em Heavy Rotation..................................................81 Figura 29 - Sexualidade.............................................................................................82 Figura 30 - Estética kawaii e infantilização................................................................84 Figura 31 - Final de Heavy Rotation..........................................................................85 Figura 32 - Atsuko Maeda, Yuko Oshima e Aimi Eguchi no comercial Aisu no Mi da Ezaki Glico.................................................................................................................87 Figura 33 - Mariko Shinoda e Minami Takahashi, Tomomi Itano e Mayu Watanabe e Aimi Eguchi em Aisu no Mi.........................................................................................88 Figura 34 - AKB48 em Aisu no Mi..............................................................................89 Figura 35 - Aimi Eguchi em Aisu no Mi......................................................................90 Figura 36 - AKB48 na cena final do comercial para Glico..........................................90 Figura 37 - Aimi Eguchi na capa da Weekly Playboy, em 13 de Junho de 2011.......91 Figura 38 - Ensaio de Aimi Eguchi para a Weekly Playboy.......................................93 Figura 39 - Oshimen Maker da Glico..........................................................................96 Figura 40 - Interação em Love Election......................................................................99 Figura 41 - Confissão de Mayu Watanabe...............................................................100 Figura 42 - Aceitação x Rejeição..............................................................................101 Figura 43 - Cena do Beijo.........................................................................................102 Figura 44 - Love Revenge, simulador de namoro lançado em 2015.......................103 Figura 45 - Idol do AKB48 ocupando um papel tipicamente pertencente a personagens fictícias................................................................................................104

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................................11

2 A MULHER COMO IMAGEM..................................................................................15 2.1 IDENTIDADE........................................................................................................15 2.2 GÊNERO E OS USOS DO CORPO.....................................................................18 2.3 O PATRIARCADO E A CONTESTAÇÃO.............................................................22 2.4 CONTRA-ATAQUE À CONSCIÊNCIA FEMININA...............................................27

3 O NASCIMENTO DA IDOL.....................................................................................34 3.1 O FIM DA GRANDE NARRATIVA........................................................................34 3.2 O CULTO À SCHOOLGIRL..................................................................................43 3.3 LOVE-DOLLS…………………………………………………………………………..52

4 IDOLS YOU CAN MEET………………………………………………………………..63 4.1 O FENÔMENO AKB48.........................................................................................63 4.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.............................................................72 4.3 ANÁLISES DA IDENTIDADE AKB48...................................................................75 4.3.1 Heavy Rotation................................................................................................75 4.3.2 Aimi Eguchi......................................................................................................85 4.3.3 Love Election...................................................................................................97

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................106

REFERÊNCIAS........................................................................................................110

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1 INTRODUÇÃO

Em fevereiro de 2013 diversos portais de notícia ao redor do mundo divulgaram um vídeo em que Minami Minegishi, uma jovem japonesa de 20 anos, pede perdão aos fãs pelo escândalo divulgado pelo tabloide Shukan Bunshun (BBC, 2013)1. O tabloide havia divulgado fotos que comprovavam que a jovem havia passado a noite na casa de Alan Shirahama, do grupo pop EXILE/Generations. No pedido de desculpas de Minegishi, a jovem aparece com a cabeça raspada – um ato que é visto na cultura japonesa como uma forma de demonstrar arrependimento e remorso – e os olhos cheios de lágrimas (THE YOUNG TURKS, 2013)2. O vídeo gerou críticas quanto à indústria musical e a cultura japonesa, por impor padrões de comportamento exigentes e sexistas (THE VERGE, 2013)3. Muito antes de o escândalo ganhar as manchetes do ocidente, em 2008 era lançado o livro de fotos South, em que Minegishi – na época com 15 anos – aparecia vestindo uniforme escolar e diferentes biquínis em fotos sensuais. Em 2016, ela se tornou a modelo da campanha mais atual da rede de academias e personal training RIZAP4. No comercial, Minegishi faz poses sensuais e exibe o corpo em forma, vestindo apenas roupas íntimas. Tanto antes quanto após o escândalo que chamou a atenção do mundo, a imagem de Minegishi já era apresentada na mídia de forma sexualizada. Minami Minegishi é uma idol e o “crime” cometido por ela foi quebrar a regra mais importante do idol group feminino japonês do qual faz parte, AKB48, que especifica que os membros não podem namorar. A imagem sexual não é exclusiva de Minegishi, mas uma constante entre todas as garotas do grupo. Mas o que constituem as idols? Galbraith (2012) e Karlin (2012) as definem como artistas altamente produzidas, que podem ser cantoras, modelos ou simplesmente personalidades midiáticas, mas que não precisam, realmente, possuir

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AKB48 pop star shaves head after breaking band rules. Disponível Acesso em 19 de Junho de 2016. 2 J-Pop Idol’s Teary Apology for Dating. Disponível Acesso em 21 de Junho de 2016. 3 Dating AKB: the J-Pop cult banned from falling in love. Disponível Acesso em 19 de Junho de 2016. 4 Minami Minegishi shows off body in new commercial for RIZAP. Disponível Acesso em 19 de Junho de 2016.

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em

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nenhum talento desenvolvido, como cantar e dançar. Commodities que podem ser adquiridas e descartadas, produzidas para maximizar o consumo, através da venda dos mais variados tipos de produtos – música, fotos, acessórios, moda (GALBRAITH e KARLIN, 2012). Ainda segundo os autores: Ao mesmo tempo, elas são a moeda de troca na promoção e publicidade de todos os tipos de outros produtos e serviços. Para o consumidor japonês, imerso em uma cultura de celebridade, a idol está contaminada com consumo. No sistema de mídia japonês, o consumidor é posicionado como um fã. Para o fã-consumidor, a idol como objeto de desejo é uma fantasia ou uma construção ideal, um reflexo "espelhado", que ressoa com um 5 profundo significado afetivo ou emocional (GALBRAITH e KARLIN, 2012, p. 2, tradução nossa)

Os autores explicam que, graças a constante presença da idol na mídia, em nenhum outro lugar do mundo as celebridades são tão importantes e com uma participação tão notável na cultura, como é o caso no Japão. Isso é ainda mais verdadeiro para o grupo AKB48, do qual Minegishi faz parte, que é considerado o grupo pop mais importante no país atualmente (GALBRAITH e KARLIN, 2012). Formado em 2005 e contando com 48 garotas na sua formação original, o grupo é promovido como “idols que você pode conhecer” (idols you can meet) devido à grande quantidade de apresentações que fazem no seu teatro próprio no distrito de Akihabara, em contraste com outros idol groups japoneses que fazem shows apenas ocasionalmente, e das técnicas de venda que empregam para a fidelização do público. Isso inclui a venda de uma grande gama de produtos – de livros com fotos das garotas de biquíni até cartões que contém um pedaço de tecido do figurino de uma das idols – e uma série de diferentes eventos que permitem aos fãs se aproximarem da sua menina preferida – mesmo que momentaneamente. A idol é encarada pelo público como uma construção ideal, um modelo de estilo de vida e de garota adolescente (AOYAGI, 2005). A figura da idol se tornou extremamente popular nos anos 70 e 80, que foram caracterizados pela “[...] falta de imaginação política e social no Japão”6 (KINSELLA, 1995, p. 242, tradução nossa), em que a infância adquire um grau atraente e nostálgico em comparação às 5

At the same time, they are the currency of exchange in the promotion and advertising of all manner of other products and services. For the Japanese consumer, immersed in a culture of celebrity, the idol is coterminous with consumption. In the Japanese media system, organized around idols, the consumer is positioned as a fan. For the fan-consumer, the idol as an object of desire is a fantasy or ideal construct, a “mirror” reflection, which resonates with deep affective or emotional meaning. 6 […] lack of political and social imagination in Japan.

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décadas anteriores marcadas pelo pós-guerra. Essa celebração da juventude e escapismo abre às portas à figura da idol japonesa: seja ela uma cantora, atriz ou simplesmente uma celebridade sem uma habilidade bem definida, o que importa é a sua aparência jovem, atraente e seu comportamento puro, que permite ao público sonhar com ela e a posiciona como a representação da feminilidade ideal. A idol é, então, uma construção. Por isso casos como o de Minami Minegishi são encarados como escândalos pela mídia japonesa e interpretados da mesma forma pelos fãs – porque eles abalam a “realidade”. A idol é concebida em uma sociedade marcada pelo patriarcalismo que, segundo Castells (1999), compreende a autoridade institucional do homem sobre a mulher. Não coincidentemente, o AKB48 tem um homem como produtor – Yasushi Akimoto – e uma base de fãs quase que inteiramente masculina. Por isso regras que proíbem relacionamentos amorosos existem: porque a idol é empacotada para ser a fantasia ideal do fã masculino. E são esses os fãs que são afetados quando a identidade do grupo é enfraquecida por escândalos de cunho sexual. Castells (1999, p. 23) define identidade como: [...] toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz respeito a como, a partir de quê, por quem, e para quê isso acontece. A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço

Castells (1999) também argumenta que o motivo da construção de uma identidade precisa ser analisado a partir de seu contexto social. A imagem da idol que é transmitida, além de previamente construída a partir de um contexto e com um receptor em mente, também é controlada para que não sofra distorção. Manutenções são feitas em ordem a manter a imagem romântica necessária na conservação – e mais importante, fidelização - do público, por isso a idol é objetificada e sexualizada (GALBRAITH, 2012). Fazendo isso, a sexualidade da idol é confinada à sua própria imagem – empacotada como uma commodity para ser consumida pelo público masculino –, e distante da garota em si e das possibilidades que ela tem na vida real.

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A principal questão que norteia a presente monografia é: de que formas diferentes representações midiáticas de idols definem um ideal feminino? São objetivos da presente monografia: compreender a importância da idol como produto cultural; identificar o contexto que permite a consolidação desta identidade; e compreender o papel que a mídia ocupa na construção e disseminação de imagens de idols como modelos de garota ideal. Este trabalho visa refletir esses pontos através do objeto de estudo AKB48. Ele foi escolhido não apenas como delimitação para o estudo das idols (por se tratar do grupo mais popular atualmente), mas também – e principalmente – por suas controvérsias. Para isso, são utilizadas aqui a pesquisa bibliográfica e documental, e a análise de imagem. São analisados produtos audiovisuais que foram considerados importantes para os objetivos propostos. O entendimento destes objetivos permite a reflexão do lugar ocupado pela mulher

nas

sociedades

contemporâneas.

Imagens

comunicam

mensagens

(COUTINHO, 2008), e compreendê-las possibilita enxergar o papel da publicidade na construção de um mundo igualitário. As constantes discussões relativas à liberdade da mulher parecem tocar em um assunto incompleto. Depois da conquista do voto, da educação superior e da entrada efetiva no mercado de trabalho, a sensação de liberdade ainda permanece ambígua. Os discursos feministas, o interesse pelas mais variadas culturas do mundo – em especial a japonesa – e as consequências que diferentes representações femininas têm na vida de mulheres reais, são os principais pontos que motivam a autora deste trabalho. O segundo capítulo define os conceitos de identidade, gênero e sexualidade utilizados nesta monografia. Estes permitem a compreensão do jogo de poder que se estabelece envolvendo o masculino e o feminino. A partir disso discutem-se os efeitos dessa relação na vida das mulheres, com o auxílio da mídia. O terceiro capítulo contextualiza o cenário do Japão que permitiu a consolidação da identidade da idol como garota ideal, em oposição às adolescentes reais. O quarto capítulo explica a estrutura e as características do AKB48. Este capítulo também analisa os produtos escolhidos para a compreensão do estabelecimento da mulher como imagem e da identidade feminina.

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2 A MULHER COMO IMAGEM Este capítulo tem como objetivo promover as reflexões necessárias quanto à mulher como imagem: sua construção e comunicação. Para isso, entende-se o conceito de identidade através dos trabalhos de Hall (2003), Woodward (1997), Castells (1999) e Silva (2000). A compreensão da identidade como uma construção permite entender a influência do gênero e o uso da sexualidade como um artifício para definir posições que as mulheres podem ocupar, social e culturalmente. São usados os estudos de Weeks (2001), Butler (2016), Louro (2001), Lauretis (1994), Parker (2001) e Foucault (2015). Ao definir-se o papel da identidade, do gênero e da sexualidade, discutem-se também as contestações que surgem a partir disso e o contexto em que ocorrem. Dá-se destaque ao movimento feminista, em sua vertente dos anos 1970 e ao patriarcalismo como terreno da dominação masculina, através dos trabalhos de Delphy (2009) e novamente Castells (1999). As consequências da tentativa de reconstrução da identidade da mulher a partir da própria vontade feminina provoca uma reação do sistema. Para explicar essa reação, são usados os estudos de Wolf (1992), Santaella (2004) e novamente Louro (2001). Essas reflexões possibilitam a compreensão da forma como a mulher é resumida a uma imagem midiática e o controle que a ela tem sobre isso.

2.1 IDENTIDADE

Um conceito fixo de sujeito tem sido a busca de diversos ramos do conhecimento. Uma variada gama de explicações surgem para defini-lo, cada uma substituindo, agregando ou negando, de certa forma, a anterior, em uma procura incessante ao longo da história, do Iluminismo até a contemporaneidade. Começa-se pela afirmação de Hall (2003, p. 13) de que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”. No Iluminismo, o sujeito era concebido como inteiro e consolidado, e em seu centro era possível encontrar seu verdadeiro “eu”. Essa concepção de identidade se mostra muito diferente das discussões contemporâneas que se tem de sujeito na ciência social atualmente. A identidade é entendida como inata nesse sujeito, que nasce com ela totalizada e assim permanece até o final de sua vida. O que Hall (2003) argumenta

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ao dizer que a identidade unificada é uma fantasia é o que diversos outros teóricos têm chamado de “crise do sujeito” ou “crise da identidade” ao contestarem esse ser universal de séculos anteriores quando aplicado à realidade das sociedades modernas: “sociedades de mudança constante, rápida e permanente” (HALL, 2003, p. 14). Essa crise presente nas sociedades contemporâneas tem uma forte ligação com a globalização – lados opostos do planeta passam a estar em conexão. Isso modifica a estrutura das sociedades e já não se sabe o que é o todo ou se possui um centro estruturado – pelo contrário, a sociedade está sendo “deslocada por forças fora de si mesma” (HALL, 2003, p. 17). Esse ser inteiro que se acreditava existir no Iluminismo é contestado quando se considera o contexto social para definir o que é, de fato, identidade. Como esse sujeito universal “nascia” com uma essência plena em seu interior, que praticamente não se modificava ao longo da vida (HALL, 2003), o contexto pouco dizia a respeito de sua identidade: ela simplesmente existia. A autora Woodward (2000) explica que, conforme as discussões em torno da relação do indivíduo com a sociedade vão se impulsionando, também surgem questionamentos quanto à natureza desse ser individualizado, – pois a vida moderna é complicada demais para a existência de um sujeito totalizado e fechado em si mesmo. Ainda segundo a autora, são esses indivíduos modernos que [...] vivem no interior de um grande número de diferentes instituições, que constituem aquilo que Pierre Bourdieu chama de “campos sociais”, tais como as famílias, os grupos de colegas, as instituições educacionais, os grupos de trabalho ou partidos políticos. Nós participamos dessas instituições ou “campos sociais”, exercendo graus variados de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade, um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos simbólicos (WOODWARD, 1997, p. 30)

Assumir uma única identidade frente a tantos campos sociais diferentes (cada um com suas restrições e características particulares) se mostra problemático. Castells (1999) diz que as pessoas processam diversos materiais fornecidos pela cultura e reorganizam seus significados em uma estrutura social específica e em um determinado tempo/espaço. Pode-se dizer, então, que a identidade é uma construção. Mas o termo “construção” não está aqui associado a uma ideia de identidade falsa, artificial, pois Castells (1999, p. 22) sinaliza que as identidades “constituem

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fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo de individuação”. Uma pessoa assume uma determinada identidade se sentir nela refletida. Considerando-se, então, que as identidades não são fixas, como exercer essa pluralidade de possíveis identificações – que podem, em muitos casos, estarem em conflito – e posicionar-se como um indivíduo? Woodward (2000, p. 9) elucida que “a identidade é marcada por meio de símbolos” – o cigarro é uma marcação simbólica de um fumante; fraldas podem indicar a idade de uma criança; um terno pode assinalar que um homem é um executivo – e essas marcações podem tanto incluir quanto excluir um grupo de indivíduos ou ainda abrirem novas possibilidades do que eles podem se tornar. As representações dão margem à construção de novas identidades, pois criam as circunstâncias necessárias e os cenários para que uma pessoa atue – a moda pode estabelecer um padrão privilegiado de corpo, a literatura pode introduzir novos tópicos de conversa e a mídia, novos hábitos de consumo. Por isso, é necessário que o indivíduo se veja retratado na identidade e que ela seja vista como parte de um contexto cultural e social, e não independente dele. Woodward (2000, p. 10) esclarece que “a construção da identidade é tanto simbólica quanto social”. Mas ao afirmar-se como um indivíduo através do uso de diferentes recursos representativos, ou seja, ao assumir uma identidade, também se nega aquilo que não se é. Quando uma pessoa afirma “sou negra”, ela está dizendo, ao mesmo tempo, “não sou branca”. A identidade e a diferença dependem uma da outra: eu sou alguma coisa por não ser outra coisa, e vice-versa. É graças à complexidade do mundo, exigindo diversas posições de sujeito em distintos contextos sociais, que essa relação de afirmação e exclusão pode ser notada. Silva (2000, p. 75) explica que é o caráter heterogêneo da sociedade que dá lógica às asserções de identidade: “[...] em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade não fariam sentido”. Contudo,

como

Woodward

(2000)

mencionou,

essa

pluralidade

de

identificações pode entrar em conflito, ou seja, o que é imposto por uma identidade pode ser negado por outra e a marcação da diferença pode incluir um determinado grupo de indivíduos e também excluir outro socialmente. Woodward (2000, p. 19) diz que “os sistemas simbólicos fornecem novas formas de se dar sentido à experiência

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das divisões e desigualdades sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são excluídos e estigmatizados”. Algumas identidades podem ser vistas como anormais por fugirem do padrão estabelecido pelo contexto e pelas instituições dominantes de representação. Ao citar as instituições dominantes, mostra-se importante sinalizar que, apesar dos indivíduos criarem e assumirem identidades, Castells (1999) explica que não são apenas os atores que as constroem, mas que elas também podem ser formadas a partir dessas instituições se estas fornecerem o quadro necessário para que as pessoas as internalizem. Como essas instituições normalmente tem um papel importante na criação e manutenção dessas identidades, alguns movimentos sociais surgem com o objetivo de contestar e reescrever essas ideias préestabelecidas. Esse ponto é retomado no item 2.3. Este trabalho segue com essa percepção de identidade, isto é, de uma identidade não fixa, múltipla, construída e marcada pela diferença, que é assumida pelos atores em um contexto social e não independente dele (e que pode, também, ser previamente decidida por instituições dominantes). É com esse ponto definido que se começam as discussões em torno de gênero e sexualidade no próximo item.

2.2 GÊNERO E OS USOS DO CORPO

Assim como o conceito de identidade sofreu importantes transformações nos últimos séculos, a definição de gênero e sexualidade também se modificou. O sexo, por exemplo, já foi descrito como um “instinto natural”, uma necessidade básica do corpo. Também foi definido como parte da essência do homem, um traço decisório de sua identidade. Esse termo, contudo, evoluiu. O autor Weeks (2001) explica que o termo “sexo” diz respeito, nas últimas décadas, às diferenças anatômicas que separam a sociedade em homens e mulheres, ou seja, as marcações. Embora pareça fácil compreender essa diferença anatômica – questão, à primeira vista, puramente biológica –, Weeks (2001) clarifica que por trás dessa distinção

existem

sentidos

históricos

e

sociais.

Essa

marcação

binária

homem/mulher, definição aparentemente precisa e simples, afetará a forma como um indivíduo se posiciona ou como pode se posicionar no mundo, ao classificá-lo e segmentá-lo em um grupo marcado pela diferença (e excluirá aqueles que, por razões também biológicas, não podem ser facilmente “categorizados”).

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Já Butler (2016) diz que não há como analisar um corpo que não tenha sido exposto a significados culturais, e isso anula o caráter pré-discursivo do sexo, pois ele é “gênero desde o começo” (BUTLER, 2016, p. 29). Por mais que se possa definir o sexo como as diferenças anatômicas básicas que diferenciam as pessoas como homens e mulheres, essa determinação biológica dos corpos está dotada de significados culturais, pois diferentes contextos determinarão – e modificarão – o que é ser homem ou mulher. Essas marcações existem em um terreno intrincado. Apesar deste ponto, considera-se que o sexo tem caráter biológico. Isso conduz à questão do gênero, que é dito como social, pois se o sexo pode ser definido como as diferenças corporais, o gênero pode ser visto como uma representação: “é, na verdade, a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria” (LAURETIS, 1994, p. 211). Lauretis (1994) diz que a representação do gênero também é a sua construção, e essa construção se estabelece a partir da mídia, da educação, da família, da comunidade e de outras tecnologias sociais, ele é tanto produto quanto processo. Ainda segundo Lauretis (1994, p. 211): As concepções culturais de masculino e feminino como duas categorias complementares, mas que se excluem mutuamente, nas quais todos os seres humanos são classificados formam, dentro de cada cultura, um sistema de gênero, um sistema simbólico, ou um sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais. Embora os significados possam variar de uma cultura para outra, qualquer sistema de sexo-gênero está sempre intimamente interligado a fatores políticos e econômicos em cada sociedade

Já a antropóloga Mathieu (2009, p.224) diz que “o gênero ‘traduz’ o sexo”, e que deve existir uma adequação entre os dois. A autora explica que a sociedade sobrevaloriza

a

diferenciação

biológica,

pois

atribui

funções

diferentes

e

hierarquizadas aos dois sexos, e que o gênero é imposto às fêmeas e machos para que se tornem respectivamente mulheres e homens socializados. Lauretis (1994) e Mathieu (2009) mostram visões semelhantes quanto ao caráter social do gênero e às categorias a partir dele instauradas. Nota-se também que, assim como a construção de identidade discutida no item anterior – que igualmente se dá em um contexto social –, também se pensa em gênero em termos de diferença. Uma identidade de gênero (e qualquer outra identidade social) é, ao

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mesmo tempo, uma marcação – ser homem – e uma separação – não ser mulher – que organiza os sujeitos em grupos através da diferenciação. Entretanto, Weeks (2001) explica que o gênero é muito mais que uma “categoria”, é uma relação de poder historicamente enraizada. Como mencionado no item 2.1, a marcação da diferença que existe na construção de identidades cria desigualdades sociais, já que organiza os indivíduos de forma hierárquica, e os inclui e exclui mutuamente. O mesmo acontece com as identidades de gênero, pois além de se estabelecerem a partir das diferenças, também são vivenciadas em um contexto complexo, repleto de características sociais, culturais, políticas e econômicas, no qual o fato de ser mulher ou ser homem caracteriza resultados distintos e, muitas vezes, desproporcionais. A sexualidade vai se mostrar um dos principais instrumentos dessa relação de poder do gênero. A autora Lhomond (2009, p. 231) explica que “a sexualidade humana diz respeito aos usos do corpo e, em particular – mas não exclusivamente – dos órgãos genitais”. Em consequência disso, apesar da ligação entre a sexualidade e o sexo, não se deve considerá-la em termos puramente biológicos. A autora especifica: [...] a sexualidade pode ser definida como a construção social desses usos, a formatação e ordenação dessas atividades, que determina um conjunto de regras e normas, variáveis de acordo com as épocas e as sociedades. Essas regras e normas proíbem uma série de atos sexuais e prescrevem outros, e determinam as pessoas com as quais tais atos podem ou não e devem ou não ser praticados (LHOMOND, 2009, p. 231)

É, pois, um fenômeno simultaneamente histórico e geográfico. Foucault foi um dos pioneiros a analisar as características sociais da sexualidade e defini-la como um tipo de regulamentação. Ele diz que “a sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico” (FOUCAULT, 2015, p. 115). O autor explica que se produziram diferentes discursos ao longo da história com o objetivo de moldar a maneira como um indivíduo se posiciona sexualmente. Tal mecanismo existe com o propósito de “proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global” (FOUCAULT, 2015, p. 116). Weeks (2001) parte do estudo de Foucault e na definição de sexualidade que o mesmo faz ao afirmar que o gênero é uma relação de poder. Weeks (2001) alega

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que a sociedade se tornou mais preocupada com o bem-estar social, com objetivos como prosperidade econômica e saúde, por exemplo, e que essa preocupação resultou em um maior disciplinamento dos corpos. Esse dispositivo destaca identidades sexuais “desviantes” que não se enquadram no discurso regulador – a criança masturbadora, a mulher histérica, o homossexual e o casal que usa métodos contraceptivos – e afirma, ao mesmo tempo, as identidades sexuais vistas como corretas – como o homem heterossexual (WEEKS, 2001). Essa afirmação do que é correto em termos de identidade é o que Silva (2000) chama de “normalização”. Silva explica que normalizar “significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa” (SILVA, 2000, p. 83). Nota-se a partir destes autores que as identidades sexuais e de gênero não atuam em um contexto neutro e igualitário, pelo contrário, elas existem a partir de um jogo de poder intimamente enraizado na estrutura social. É problemático, então, separar gênero e sexualidade de seu terreno histórico e social, pois assim como a construção de identidade discutida no item anterior, “os corpos ganham sentido socialmente” (LOURO, 2001, p. 11). Pode-se concluir que todas as identidades existem a partir de um contexto já estabelecido que as tornam, até certa medida, coerentes. A autora Louro (2001, p. 11, grifo do autor) explica: A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade – das formas de expressar os desejos e prazeres – também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade

Essa relação de poder vai estabelecer como a sexualidade é adotada e vivida pelos indivíduos. O antropólogo Parker (2001) diz que compreender o contexto em que as interações sexuais acontecem é mais importante que o comportamento individual porque essa relação se dá através de acordos complexos, formas diversas, estruturas variadas e em diferentes locais. O mesmo autor argumenta que os indivíduos são submetidos a um processo de socialização sexual que os ensina as noções específicas de masculinidade e feminilidade, a partir do qual as pessoas aprendem desejos, papéis e práticas sociais culturalmente aceitas nos seus grupos. Percebe-se aí a influência do gênero na adoção de determinado comportamento

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sexual ou na negação de outras tantas práticas que não condizem com a comunidade na qual um indivíduo atua. Para ele, a sexualidade não se dá de forma simples: Quem tem permissão de ter sexo com quem, sob que circunstâncias e com que resultados específicos não são, nunca, questões simplesmente casuais. Tais possibilidades são definidas através de regras implícitas e explícitas e regulamentos impostos pelas culturas sexuais de comunidades específicas (PARKER, 2001, p.138)

Mas que caráter tem o contexto em que as identidades sexuais e de gênero operam? Castells (1999) declara que todas as sociedades contemporâneas têm como base o patriarcalismo. Este pode ser definido como o poder institucionalmente imposto do masculino sobre o feminino, não apenas no âmbito familiar, mas em toda a organização da sociedade (CASTELLS, 1999). Entende-se que o masculino é aquilo que se pode definir como um “grupo em posição de destaque”, que determina como os “outros” são avaliados. É o gênero como uma relação de poder, conforme argumentado anteriormente. Esse contexto, marcado pela figura masculina, influencia como a identidade feminina é construída e posicionada. O próximo item examina como as mulheres são afetadas por isso.

2.3 O PATRIARCADO E A CONTESTAÇÃO

Identidade,

gênero

e

sexualidade

são

socialmente

construídos

e

estabelecidos. Quando se confere o caráter categórico dessas construções e consideram-se as relações de poder que existem em torno e a partir desse processo, melhor compreende-se o papel que a identidade feminina (e as possibilidades da vida feminina como um todo) tem nesse contexto social de patriarcalismo que, conforme brevemente introduzido no item anterior, é marcado pela dominação da figura masculina. A definição de “patriarcado” que será utilizada neste trabalho é aquela definida pelo feminismo das décadas de 1970. Delphy (2009, p. 173), explica: Nessa nova acepção feminista, o patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de “dominação masculina” ou de

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opressão das mulheres. Essas expressões, contemporâneas dos anos 70, referem-se ao mesmo objeto, designado na época precedente pelas expressões “subordinação” ou “sujeição” das mulheres, ou ainda “condição feminina”

O patriarcalismo considera, pois, que o poder é dos homens. Segundo Castells (1999), todas as sociedades contemporâneas são organizadas a partir dessa estrutura. Ao se definir gênero como uma relação de poder e contextualizá-lo a partir do patriarcalismo, conclui-se que o feminino está em segundo plano se comparado ao masculino. Vê-se também qual é o grupo que decide o que é certo em termos de sexualidade (sendo este um importante dispositivo de dominação). Como disse Silva (2000, p. 91), “quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade”. Anteriormente, foi discutido que um indivíduo assume uma identidade por ele próprio criada, e também foi argumentado que a construção de identidade pode partir de instituições dominantes. O cenário hierárquico que o patriarcalismo estabelece influencia como essas identidades são construídas e mantidas. Woodward (2000, p. 10) diz que “os homens tendem a construir posições-de-sujeito para as mulheres tomando a si próprios como ponto de referência”. Woodward (2000) também explica que, como a identidade se dá por meio da diferença, alguns grupos são excluídos e categorizados, e por esse motivo algumas identidades são contestadas. De acordo com Butler (2001, p. 161), “a nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e também inculcação repetida de uma norma”. Quando essa nomeação estabelece uma posição-de-sujeito para as mulheres, reforçando normas definidas pelos homens, o movimento feminista irá contestar. Este movimento surge quando as mulheres não mais se veem retratadas na identidade feminina definida pelo patriarcalismo. O movimento feminista é diverso e assumiu múltiplas formas desde o séc. XIX, no entanto, esta variante não é objeto de estudo do presente trabalho. Será considerada aqui a versão mais moderna desse movimento, que data do final dos anos 1960 e início de 1970. A definição de patriarcalismo aqui assumida também tem origem dessa versão mais atual do feminismo. Tal abordagem não pretende, contudo, ignorar a importância da resistência feminina de épocas anteriores.

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Castells (1999) diz que a conscientização da mulher (na qual o feminismo tem um papel especial), seu ingresso no mercado de trabalho remunerado (que questiona o homem como provedor da família) e os métodos contraceptivos (que permitem controle sobre a gravidez), são fortes razões para o questionamento da família patriarcal. Castells (1999, p. 211) define o feminismo do século XX: [...] a essência do feminismo, como praticado e relatado, é a (re)definição da identidade da mulher: ora afirmando haver igualdade entre homens e mulheres, desligando do gênero diferenças biológicas e culturais; ora, contrariamente, afirmando a especificidade essencial da mulher, frequentemente declarando, também, a superioridade das práticas femininas como fontes de realização humana; ou ainda, declarando a necessidade de abandonar o mundo masculino e recriar a vida, assim como a sexualidade, na comunidade feminina. Em todos os casos, seja por meio da igualdade, da diferença ou da separação, o que é negado é a identidade da mulher conforme definida pelos homens e venerada na família patriarcal

Como a opressão da mulher foi identificada pela relação de poder que se estabeleceu pelo gênero masculino como grupo de destaque, isso abriu as portas à união de mulheres de diferentes origens e opiniões. Elas acreditavam partilhar o mesmo inimigo: “o feminismo tornou-se a palavra (e o estandarte) comum contra todas as causas da opressão feminina e à qual cada mulher, ou categoria feminina, vincularia seus lemas e reivindicações” (CASTELLS, 1999, p. 219). O autor diz que, ao compartilharem as mesmas resoluções e ideais, as mulheres puderam construir uma nova identidade feminina “coletiva”. Castells (1999) também argumenta que o movimento tem orientações diferentes de acordo com o contexto cultural, institucional e político em que se apresenta, e por isso se mostra variado em diferentes partes do mundo. Contudo, ele acredita que é justamente o poder de se adaptar às culturas diferentes, mostrando a sua diversidade e apelo, que caracteriza a força do movimento. Em todos os tipos de feminismo: [...] a tarefa fundamental do movimento, realizado por meio de lutas e discursos, é a de desconstruir a identidade feminina destituindo as instituições sociais da marca de gênero. Os direitos da mulher são reivindicados em seu nome como ser autônomo, independentemente do homem e do papel que lhe cabe sob o patriarcalismo (CASTELLS, 1999, p. 237)

E seria essa identidade coletiva global? Como Castells (1999) argumenta, o feminismo consegue se adaptar aos diferentes contextos sociais em que atua e

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consegue reunir, sejam em grupos mais fragmentados ou em uma única vertente, mulheres de diferentes origens e objetivos. Isso permite ao feminismo construir múltiplas identidades autônomas que redefinem o modo de ser feminino: afirmar a especificidade da mulher, rejeitar a heterossexualidade como norma, controle sobre querer ou não ter filhos e outras inúmeras reivindicações que permitem que a identidade feminina não seja subjugada pela opressão do poder masculino, mas seja, na verdade, reescrita. Talvez não se possa afirmar em uma identidade global – identidades autônomas talvez demonstrem melhor a essência do feminismo e o seu atrativo –, mas é notável o apelo que o movimento conquista (e ainda pode conquistar) em diferentes esferas e instâncias da vida feminina nas sociedades modernas. Apesar deste item se basear no feminismo dos anos 1970 que surgiu com força nos Estados Unidos, não se pretende esquecer as diferentes e múltiplas facetas que o movimento adota em diversas partes do mundo, com graus distintos de força e influência. Mesmo que o feminismo tenha garantido espaço fora do Ocidente (Castells cita Taiwan como um exemplo), ele ainda não tem a mesma força que teve nos Estados Unidos e na Europa. Cabe adiantar que o Japão permanece sendo uma exceção. O patriarcado japonês ainda é dotado de poder – e este ponto é importante na compreensão deste trabalho –; a expressão feminista, bem como o patriarcalismo e a questão da mulher japonesa são abordados nos capítulos que se seguem. Apesar do discurso atrativo do feminismo de exigir direitos iguais para ambos os gêneros, é difícil afirmar que ele seja perfeito e isento de erros. Castells (1999) observa que o movimento foi considerado elitista pela dificuldade das mulheres brancas de compreenderem que o papel ocupado pelas mulheres negras na sociedade não era o mesmo – e isso diferenciava o caráter das reivindicações –, ou ainda a discordância quanto à adesão do lesbianismo como pauta do movimento, para citar alguns exemplos. Apesar disso, o autor acredita que o impacto do movimento e o seu poder de quebrar tabus deve ser considerado, mesmo que pertencer ao sexo feminino não signifique, necessariamente, ser feminista. Para Castells (1999, p. 235) “reivindicar uma identidade é construir poder”. Como a construção de identidades considera regulamentos impostos e préestabelecidos e hierarquias enraizadas na estrutura social, quando o feminismo

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rejeita os preceitos patriarcais e o domínio masculino, mais do que uma simples afirmação feminina, é uma tentativa de reconstrução da sociedade como um todo. Como mencionado anteriormente, a sexualidade é um dos principais dispositivos do jogo de poder dos gêneros. Para manter essa relação, o patriarcalismo exige heterossexualidade compulsória, tanto para regulamentar o desejo conforme as instituições sociais, quanto para conservar a estrutura da família patriarcal intacta (pai, mãe e filhos), mantendo assim a dominação (CASTELLS, 1999). O autor explica que os movimentos em defesa dos direitos sexuais de lésbicas e gays explodiram a partir de 1969 nos Estados Unidos e depois para o restante do planeta e, apesar da aliança entre lésbicas e gays ser mais comum, o lesbianismo acabou se tornando um componente do movimento feminista, mas não sem alguma resistência inicial por parte das mulheres heterossexuais. Com resistência ou não, o questionamento às normas sexuais se mostrou o caminho lógico quando o feminismo começou a criticar o patriarcado, já que as mulheres queriam que suas identidades fossem expressas em todas as direções, sem censuras masculinas e, sendo o homem a fonte de opressão que elas tinham em comum, o lesbianismo acabou por se tornar a resposta que muitas delas estavam

procurando

(CASTELLS,

1999).

O

repúdio

à

heterossexualidade

compulsória não fez com que todas as mulheres do movimento virassem lésbicas – apesar de muitas terem optado por isso –; o feminismo como contestação da supremacia masculina firmou a pauta necessária para se discutir até que ponto elas tinham controle sobre a sua sexualidade e dos usos que gostariam de fazer dela. Podia não se tratar de uma vontade coletiva das mulheres de simplesmente desistir da vida heterossexual, mas era uma oportunidade diferente do que o patriarcado tentava impor aos grupos marginalizados – por isso os gays também participavam da luta –, já que mostrava uma perspectiva nova em termos de sexualidade, mesmo que não fosse um consenso de que todas queriam vivenciar. O importante é que enfatizava a ideia de liberdade pela qual o feminismo lutava, não apenas questionando a heterossexualidade, mas a repressão sexual como um todo. Castells (1999) acredita que para ser realmente uma liberação, ela não pode ter limites. Explicando a luta pela liberdade sexual, o autor diz: Não se trata, necessariamente, de uma luta libertadora, pois muitas vezes o desejo surge a partir da transgressão, de modo que a “sociedade sexualmente liberada” torna-se simplesmente um supermercado de

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fantasias pessoais, em que as pessoas se consumirão umas às outras em vez de produzirem-se. Porém, ao assumir o corpo como princípio de identidade, longe das instituições do patriarcalismo, a multiplicidade de expressões sexuais capacita o indivíduo para a árdua (re)construção de sua personalidade (CASTELLS, 1999, p. 275)

Apesar de abalado, o patriarcalismo não se desfaz por completo ao ser enfrentado pelo feminismo, pelos movimentos de liberdade sexual e pelos grupos marginalizados. Castells (1999, p. 172) diz que “a dominação, assim como a exploração, sempre se renovam no decorrer da História”. O patriarcalismo fará uma renovação constante do seu poder, sendo a mídia uma das principais aliadas. A sexualidade já era um tipo de domínio antes dos questionamentos quanto à supremacia da família patriarcal e continuará sendo apesar dos esforços das lutas sociais. O item 2.4 tem como foco a tentativa do patriarcalismo de manter o masculino no poder ao redefinir constantemente a identidade das mulheres a partir da mídia, através de discursos sobre imagem feminina e sexualidade.

2.4 CONTRA-ATAQUE À CONSCIÊNCIA FEMININA

A conscientização da mulher abala a estrutura rígida e resistente que é o patriarcalismo, e segundo Castells (1999) essa é uma perspectiva assustadora para a dominação masculina. A estrutura de poder na qual a sociedade moderna se baseia precisa reafirmar as posições-de-sujeito para impedir uma revolução. O patriarcalismo, por estar enraizado em todas as esferas da sociedade, não foi derrubado, e por causa disso sabe-se que “essa não é, nem será, uma revolução de veludo7” (CASTELLS, 1999, p. 171). Além dos abalos causados pelos movimentos sociais no século XX, o trabalho de Foucault, citado no item 2.2, fomentou discussões em torno das formas como as instituições dominantes penetram no corpo e nas possibilidades da vida sexual, colocando em dúvida o caráter antes inquestionável da sexualidade humana. Esses pontos questionaram a supremacia masculina e as posições de gênero. Como a dominação se renova ao longo da história, as investidas referentes à afirmação de poder masculino também são modificadas. Essa renovação de poder será sustentada pelo que Wolf (1992) chama de “mito da beleza”. Em seu livro 7

Revolução pacífica.

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homônimo, a autora diz que o mito conta uma falsa história de beleza, que é determinada pela política das instituições sociais, dominadas pelo poder masculino: A qualidade chamada “beleza” existe de forma objetiva e universal. As mulheres devem querer encarná-la, e os homens devem querer possuir mulheres que a encarnem. Encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, não para os homens, situação esta necessária e natural por ser biológica, sexual e evolutiva. Os homens fortes lutam pelas mulheres belas, e as mulheres belas têm maior sucesso na reprodução. A beleza da mulher tem relação com sua fertilidade; e, como esse sistema se baseia na seleção sexual, ele é inevitável e imutável (WOLF, 1992, p. 15)

Wolf (1992) afirma que esse discurso não é verdadeiro, e que na verdade o domínio masculino atribui valor às mulheres hierarquicamente e as faz competir por recursos dos quais os homens se apropriaram. Ela complementa dizendo que não existe nenhuma justificativa de cunho biológico para o mito da beleza, e sim o objetivo de manter a estrutura de poder patriarcal intacta. O caráter do mito é semelhante à identidade, o gênero e a sexualidade discutidos anteriormente, já que ele também é fabricado e faz parte de uma forte relação de poder socialmente estabelecida – ele atua, na verdade, diretamente na identidade feminina. O mito foi criado, segundo Wolf (1992), porque as mulheres se aproximaram demais dos homens, ameaçando a cultura dominada por eles e causando uma reação violenta do sistema frente à perda do poder. A autora diz que isso resultou na negação dessa nova realidade feminina e na disseminação de imagens que não retratavam a verdade, em seis campos diferentes (o trabalho, a cultura, a religião, o sexo, a fome e a violência), em uma forma de afirmar a opressão exercida pelo grupo dominante: “uma economia que dependa da escravidão precisa promover imagens de escravos que “justifiquem” a instituição da escravidão” (WOLF, 1992, p. 22). Embora erroneamente se acredite que essas imagens são feitas pensando nas mulheres, Wolf (1992) argumenta que na realidade é o contrário: elas são um tipo de contra-ataque à evolução da conscientização feminina. Mas o que essas imagens comunicam? A construção dessas imagens varia de acordo com o espaço/tempo em que elas estão inseridas – um conceito de beleza não será, necessariamente, o mesmo em dois países distintos e com culturas diferentes. Independente do tipo de beleza que é transmitido, a eficácia desse padrão se dá pela sua disseminação. A autora Louro (2001, p. 16) diz que algumas imagens são tão disseminadas que “ganham uma visibilidade e uma força tão

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grandes que deixam de ser percebidas como representações e são tomadas como sendo a realidade”. Esses juízos são constantemente divulgados na mídia, e Wolf (1992) acredita que as mulheres têm poucos modelos na vida real nos quais podem se inspirar, e por isso elas os procuram na TV, nas revistas femininas, na moda. Essas imagens se mostram, então, dotadas de poder. A autora Santaella (2004) também acredita que é graças à excessiva exposição do corpo no espaço público que a aparência física é tão valorizada. Ela explica que as imagens de top models, atrizes e atores hollywoodianos e famosos em geral, funcionam como um tipo de miragem que dita o ideal corporal e estimula o investimento disciplinar sobre o corpo. Santaella (2004) complementa dizendo que a mídia exagera no ideal divulgado, e mostra-se sempre impossível alcançar a perfeição. Ela diz que “é difícil abdicar do corpo como material sobre o qual a cultura, a história e a técnica escrevem” (SANTAELLA, 2004, p. 23), já que ele está inserido em múltiplas e divergentes experiências que mostram que, longe de ser natural e estável, ele é constantemente fetichizado8 e modelado em torno de um ideal maior e específico. Considerando a importância do corpo, nota-se que algumas das imagens com mais força são do campo do sexo. Wolf (1992) diz que a nudez e o sexo são argumentos de venda poderosos, que estão presentes na publicidade, na moda e na televisão. Ela argumenta que, como são imagens constantemente disseminadas e praticamente fazem parte do cotidiano, quando essas questões são debatidas, pouco se pensa no mal que essas representações causam às mulheres. As imagens são banalizadas. Wolf (1992, p. 178) ainda alega que o problema não é se o sexo é explícito ou não, e sim o fato de não ser honesto: [...] algo surpreendente surge a respeito da representação dos corpos femininos. A representação desses corpos é extremamente censurada. [...] pedem-nos que acreditemos que a nossa cultura estimula a exibição da sexualidade feminina. Na verdade, ela exibe praticamente nenhuma. Ela censura as representações dos corpos femininos de forma tal que apenas as versões oficiais são visíveis. Em vez de vermos imagens do desejo feminino ou que atendam ao desejo feminino, vemos simulações com manequins vivas, forçadas a contorções e caretas, imobilizadas e em posições desconfortáveis sob holofotes, quadros profissionais que revelam pouco sobre a sexualidade feminina 8

Segundo o Dicionário Aurélio, fetichismo: Culto de fetiches. Perversão sexual em que se atribui a um objeto ou a uma parte do corpo o poder de produzir orgasmo, ou de ajudar a produzi-lo.

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A autora também aponta que além dessa censura dos corpos femininos, o tipo de imagem e informação que tem permissão de circular é igualmente controlado. As lutas sociais garantiram às mulheres direitos até então inimagináveis, e para combater essa nova mentalidade feminina, “imagens que transformam as mulheres em objetos ou que dão valor erótico à degradação das mulheres” (WOLF, 1992, p. 188) se espalharam. A pornografia e o cinema em geral constantemente exibem fantasias de estupro e imagens violentas de mulheres amarradas que não são censuradas, enquanto que algumas imagens relativas ao corpo masculino – que não são romantizadas pela violência ou sequer afetadas por ela – são. O corpo nu feminino é disseminado pelos mais diversos meios sociais, todavia o mesmo tratamento não é dado ao corpo masculino. Wolf (1992, p. 184) diz que “a nudez desigual quase sempre exprime relações de poder”. A “beleza” que o mito transmite está, pois, muito associada com a sexualidade. Wolf (1992) infere que ambas são erroneamente interpretadas como sendo inevitáveis e inatas, e isso dá força à ideia de que uma mulher precisa ser bonita para despertar desejo. A autora alega que tanto a definição de beleza quanto a de sexualidade são constantemente modificadas para servir à ordem social, e que a ligação entre elas é, na verdade, inventada. A sexualidade aqui é novamente vista como um dispositivo histórico, que atua na forma como a imagem feminina – confinada à beleza – é estabelecida e comunicada. Wolf (1992) também explica que a sexualidade feminina é elaborada e definida de forma negativa: ela é “virada pelo avesso” desde o nascimento por razões sociais e essa inversão diz respeito ao fato das mulheres não terem controle sobre suas próprias experiências sexuais. Ela diz que “estamos desabituados a encontrar moças na nossa cultura no papel de sujeitos que despertam para o sexo” (WOLF, 1992, p. 208), e que os homens também crescem absorvendo imagens inventadas sobre as mulheres, que não os ensinam nada sobre elas e que apenas erotizam os seus corpos, tornando-os insensíveis quanto ao desejo feminino – muitas vezes por simplesmente não o entenderem. É necessário compreender essa contradição entre a imagem feminina sexualizada e a sexualidade da mulher como um tabu. Na introdução deste trabalho, é citado o caso de Minami Minegishi, que faz parte do grupo AKB48. Minegishi pediu desculpas através de um vídeo divulgado no YouTube (conforme figura 1) após ser flagrada por paparazzis, saindo de um hotel onde supostamente passou a noite com

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um rapaz. Ela quebrou a principal regra do grupo, que especifica que as meninas não podem ter relacionamentos amorosos. Figura 1 – Pedido de desculpas de Minami Minegishi

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Fonte: BBC , 2013

Mas o mesmo grupo que proíbe os membros de terem uma vida sexual, constantemente transmite imagens eróticas em videoclipes, livros e fotos (figura 2). A quebra dessa imagem idealizada – que, não coincidentemente, é formada em uma sociedade japonesa ainda profundamente patriarcal – é vista por muitos como uma afronta, pois a excessiva circulação dessas imagens torna esse discurso real para os fãs.

9

AKB48 pop star shaves head after breaking band rules. Disponível Acesso em 17 de Junho de 2016.

em:

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Figura 2 – Ensaio de Minami Minegishi para o livro de fotos South

Fonte: HASHIMOTO, 2008, p. 30

Segundo Louro (2001), mesmo com a vigilância redobrada em torno da sexualidade, só isso não é o bastante para acabar com a curiosidade e o interesse que os membros de uma sociedade podem ter em relação à vida sexual. Eles apenas limitam a manifestação e a expressão desses desejos, como pôde ser exemplificado pelo caso de Minegishi. Ainda segundo Louro (2001, p. 27): As perguntas, as fantasias, as dúvidas e a experimentação do prazer são remetidas ao segredo e ao privado. Através das múltiplas estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditando que as questões da sexualidade são assuntos privados, deixamos de perceber sua dimensão social e política

Tanto a questão da sexualização da imagem do grupo AKB48 quanto o contexto em que isso acontece são retomados nos próximos capítulos deste trabalho. Cabe ao presente capítulo promover as reflexões necessárias quanto à identidade da mulher e as imagens sobre ela transmitidas em todas as esferas da sociedade moderna. Sendo a identidade, o gênero, a sexualidade e as imagens femininas socialmente construídas e disseminadas a partir de instituições

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dominantes, o papel da mulher como sujeito social se mostra, em muitos casos, fora do seu próprio controle. O próximo capítulo contextualiza o Japão – buscando entender sua situação social e cultural –, discute sobre o papel da adolescente japonesa – no consumo e na mídia – e explica a idol como identidade.

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3 O NASCIMENTO DA IDOL

Neste capítulo, discutem-se o contexto histórico do Japão dos anos 1970, 1980 e 1990, que permitiu uma onda de retorno e valorização da juventude que permanece até o século atual. Para isso, são utilizados os estudos de Hamm (2012), Castels (1999), Ito (2014), Kinsella (1995), Azuma (2014), Morikawa (2014), Kotani (2014) e Saito (2007). Essa valorização forma o culto à colegial japonesa – a personificação da juventude –, que é explicado a partir de Kinsella (1995), Hamm (2012), Ashcraft (2014) e Ueno (2003). Em contraste à colegial, que representa a adolescente de verdade, o último item deste capítulo explica a idol – a jovem idealizada pela mídia. Como e por que a idol se tornou uma figura tão popular na cultura do país são questões discutidas aqui. Este item utiliza os trabalhos de Aoyagi (2005), Galbraith (2012), Karlin (2012), Kinsella (1995), Ashcraft (2014) e Kotani (2014).

3.1 O FIM DA GRANDE NARRATIVA

Para compreender o fenômeno das idols no Japão, se vê necessário discutir o contexto que permitiu o nascimento dessa identidade. Após a derrota na Segunda Guerra Mundial, apesar de praticamente destruído, o Japão foi capaz de reerguer-se e se tornar uma potência mundial. Um dos principais meios que o Estado encontrou de restaurar o país abalado pela guerra foi reforçar as posições de gênero. A autora Hamm (2012) diz que a partir de 1950, o Japão sofreu uma grande industrialização que levou ao estabelecimento de um modelo específico de família nos anos 1960 – a família do salaryman10: Esta estrutura familiar necessitava que o pai, como chefe da família, possuísse um emprego salariado para toda a vida e assim funcionasse como o ganha-pão da casa. A esposa e mãe agia como dona de casa integral e era responsável por criar e monitorar a educação dos filhos (tipicamente dois). Este papel da mulher servia como continuação da ideologia de gênero "boa esposa, sábia mãe", instituída pelo estado japonês 11 durante a era Meiji (HAMM, 2012, p. 11, tradução nossa)

10

Homem assalariado. This family structure required the father as head of the household to gain salaried lifetime employment and function as the family breadwinner. The wife and mother acted as a full-time housewife and was responsible for raising and monitoring the education of the children (typically two). 11

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Nessa estrutura, os homens estão mais ligados ao trabalho e as mulheres ao lar. Hamm (2012) explica que a industrialização no período pós-guerra e o rápido crescimento econômico do país fizeram esse modelo familiar ser bem sucedido, pois esperava-se que se os homens trabalhassem bastante, eles conseguiriam manter um estilo de vida elevado para suas famílias – como a lógica capitalista prega nas sociedades industriais modernas –, além da segurança de um emprego estável e das altas chances de promoção. A figura do salaryman e da housewife tornaram-se as identidades masculinas e femininas ideais. Essas posições de gênero influenciavam nas possibilidades da vida. O autor Castells (1999) diz que a família patriarcal japonesa tem ainda muita força, e isso possibilita a afirmação dos papéis de gênero de forma hierarquizada (como é próprio do patriarcalismo). Ele explica que a força da família patriarcal impediu, até agora, o desencadeamento de uma crítica feminista expressiva no Japão, e isso impede que haja a reconstrução da identidade feminina que o movimento prega. Mas, segundo ele, o Japão possui o terreno necessário – grande participação das mulheres no mercado de trabalho e alto nível educacional – para uma futura revolução feminista. A inserção da mulher no mercado de trabalho ocorre graças a uma lei que garantia a elas, nos anos 1980, acesso a diferentes empregos – mas ainda em níveis muito mais baixos que os cargos ocupados pelos homens –, e possibilitou que muitas esperassem mais tempo para se casar e que tivessem menos filhos (HAMM, 2012). Porém, conforme se abriam as possibilidades para as mulheres – apesar de limitadas –, as opções disponíveis para os homens continuavam praticamente as mesmas desde o pós-guerra, e o caminho para a vida de salaryman tornou-se quase que obrigatório para os adolescentes. Entretanto, apesar dessa estrutura familiar mostrar-se efetiva e do alto crescimento econômico do país, as décadas de 1970 e 1980 foram relativamente mais calmas e tediosas comparadas às décadas anteriores marcadas pela guerra e pela reconstrução do país. Ito (2014, p. 26, tradução nossa), professor da Universidade de Kyoto, diz que a sensação percebida nessas décadas era de que os “[...] jovens haviam perdido suas energias”12. Ele explica que, como se esperava que os jovens seguissem a vida de salaryman – a identidade masculina ideal –, a This role for women served as a continuation of the "good wife, wise mother" gender ideology instituted by the Japanese state during the Meiji era. 12

[…] young men had run out of steam.

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produção cultural voltada a eles reforçava essa posição de gênero macho: os mangás shounen13 (figura 3) eram repletos de histórias sobre artes marciais, gangs, lutas e violência. Figura 3 – Volume 5 de Ashita no Joe, mangá shounen de 1970

Fonte: KAJIWARA, 1970

Ito (2014) diz que nos anos relativos ao pós-guerra, a produção de mangás para meninos estava em alta, mas já em 1970 a cultura voltada para as garotas estava consideravelmente maior. O autor infere que, além de desinteressante, o mangá shounen e suas histórias violentas reforçavam as ansiedades que os garotos tinham quanto ao seu próprio gênero e das pressões relativas à figura do salaryman. Alguns garotos, incapazes de se verem retratados nas histórias excessivamente masculinas transmitidas no mangá shounen, passaram a se interessar pelos produtos voltados ao público feminino. Nessa época, o mangá shoujo14 (figura 4) tornava-se cada vez mais popular e focava-se em romance e relacionamentos, ao contrário do que se via nos mangás voltados para os meninos. Esse tipo de publicação feita para meninas tornou-se a alternativa que alguns garotos precisavam: “homens e meninos começaram a pegar essas obras emprestadas

13 14

Quadrinho japonês feito para o público jovem masculino. Quadrinho japonês feito para o público jovem feminino.

37

enquanto buscavam pelo seu próprio lugar em uma sociedade mutante”15 (ITO, p. 28, 2014, tradução nossa). Figura 4 – Volume 1 de Versailles no Bara, mangá shoujo de 1972

Fonte: IKEDA, 1972

A falta de inspiração social que dominou parte dessas décadas, além de impulsionar o fortalecimento do mangá feminino como um produto cultural mais atraente, também abriu margens para o surgimento da cultura kawaii (ITO, 2014). A autora Sharon Kinsella (1995, p. 220, tradução nossa) define o termo: Kawaii ou 'bonitinho' significa infantil; o termo celebra o doce, adorável, inocente, puro, singelo, genuíno, gentil, vulnerável, fraco e inexperiente lado 16 do comportamento social e também das aparências físicas

Kinsella (1995) explica que o estilo kawaii estourou no Japão a partir de 1970, mas principalmente nos anos 1980, desde gírias infantis que os adolescentes utilizavam entre si, roupas, comidas e comportamentos fofos, até o estabelecimento da indústria que fabricava artigos de luxo (sendo a Sanrio a empresa mais notável, 15

Boys and men started to borrow from them as they searched for their own place in a changing society. 16 Kawaii or ‘cute’ essentially means childlike; it celebrates sweet, adorable, innocent, pure, simple, genuine, gentle, vulnerable, weak and inexperienced social behavior and physical appearances.

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responsável pela criação da mundialmente conhecida Hello Kitty) como brinquedos, pelúcias, material escolar, lancheiras, bolsas e outras parafernálias. O estilo kawaii podia ser encontrado nas mais variadas esferas do mercado japonês: “motéis, os quais vendem espaço físico para sexo, são nomeados em referência às boas e doces meninas como Anne de Green Gables e Laura de Os Pioneiros”17 (KINSELLA, 1995, p. 228, tradução nossa). A autora justifica o boom da cultura kawaii ao contexto dos anos 1970 e 1980 do Japão, que firmava a ideia de que a vida adulta era um período repleto de obrigações, que limitava a liberdade individual, fazendo com que a infância ganhasse um status muito mais interessante e se tornasse extremamente popular. Kinsella (1995) especifica que quando os jovens idolatravam a infância – ao consumirem os artigos de luxo e se comportarem de maneira infantil –, eles implicitamente negavam o caminho da vida adulta. A cultura kawaii propiciamente se tornou uma espécie de escapismo. Segundo Kinsella (1995, p. 243, tradução nossa): A moda kawaii foi, então, uma espécie de rebelião ou recusa de cooperação com os valores e realidades sociais estabelecidos. Ao invés de uma rebelião agressiva e sexualmente provocativa, que acentuava a maturidade e independência como as que podem ser vistas tipicamente nas culturas jovens ocidentais, era um protesto acanhado e indolente. Ao invés de serem sexualmente provocativos para enfatizar a sua maturidade e independência, os jovens japoneses agiam de forma pré-sexual e vulnerável, para enfatizar sua imaturidade e inabilidade de lidar com suas responsabilidades sociais. De qualquer forma, o resultado foi o mesmo; os professores no ocidente ficaram tão furiosos com alunos pretensiosos fingindo dureza, quanto os professores japoneses ficaram com pupilos não cooperativos escrevendo de 18 forma bonitinha e agindo de maneira infantil

Kinsella (1995) ressalta que o estilo kawaii trás consigo uma sensação agradável, em contrapartida ao sentimento de isolamento que é típico do capitalismo: a produção capitalista despersonaliza e o design fofo repersonaliza. O consumo de vários itens kawaii (figura 5) ironicamente compensava a alienação da época e da sociedade contemporânea no geral, pois mesmo que fosse difícil

17

Love hotels, which sell room space for sex, are named after good, sweet girls like Anne of Green Gables and Laura of the Little House on the Prairie. 18 Cute fashion was, therefore, a kind of rebellion or refusal to cooperate with established social values and realities. It was a demure, indolent little rebellion rather than a conscious, aggressive and sexually provocative rebellion of the sort that has been typical of western youth cultures. Rather than acting sexually provocative to emphasize their maturity and independence, Japanese youth acted pre-sexual and vulnerable in order to emphasize their immaturity and inability to carry out social responsibilities. Either way the result was the same; teachers in the west were as infuriated by cocky pupils acting tough, as Japanese teachers were with uncooperative pupils writing cute and acting infantile.

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desenvolver laços verdadeiros com pessoas, a compra e o consumo desses artigos permitia a experimentação de sensações que faltavam naquele período (KINSELLA, 1995). Figura 5 – Quarto repleto de artigos kawaii

Fonte: OKAZAKI, 2013, p. 67

É nessa mesma época de falta de imaginação social que outro fenômeno importante surgirá no Japão. Em meados dos anos 1970, um novo termo circulava: otaku. A palavra atualmente descreve pessoas que são obcecadas com mangá, anime19, e vídeo games (WIRED, 2012).20 O crítico cultural Azuma (2014, p. 171, tradução nossa) justifica a criação da identidade otaku ao contexto social do Japão na época: 19

Animação japonesa Otaku Spaces shows off collectors’ riches. 2012. Disponível em Acesso em 07 de maio de 2016. 20

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Uma das coisas que se diz frequentemente sobre a atividade otaku é que ela representa um recuo do espaço público. Otakus não mostram nenhum interesse em questões sociais, e se fecham para o domínio dos hobbies. Esse estado mental só ocorre quando a sociedade de consumo atinge um determinado nível de maturação, e não há metas políticas ou sociais maiores. O Japão atingiu esse nível de maturação na década de 1970. [...] Não há nenhuma grande narrativa que é compartilhada por todos e que mantém a sociedade unida. [...] Até os anos 1970, o Japão foi unificado pelas experiências compartilhadas da Segunda Guerra Mundial, a destruição da nação e sua reconstrução. [...] Na década de 1970, o processo tinha percorrido seu curso, e as pessoas começaram a perder o interesse na grande narrativa, ou se separaram para perseguir outras narrativas. Aqueles que começaram a buscar grandes narrativas ficcionais 21 através do anime eram conhecidos como otaku

Já o professor Ito (2014) os analisa da perspectiva do gênero e diz que os otakus se sentem mais atraídos pelas cores brilhantes da cultura feminina em oposição à cultura masculina, vista como monocromática e sem graça. Ambos os autores, contudo, conectam a figura do otaku ao contexto social e cultural do Japão dos anos 1970 – o fim da “grande narrativa” –, que estimulou a produção cultural para as meninas e a indústria de produtos kawaii que alguns garotos passaram a consumir, e o retiro para o espaço privado na forma de consumo de artigos de hobby. Em ambos os casos, os otakus se atraíram por algo que os possibilitou vivenciar um escapismo desejado na época. Em meados dos anos 1990, os otakus passaram a se concentrar geograficamente no bairro Akihabara, em Tóquio. Morikawa (2014), professor da Universidade Meiji, estudou a transformação do local e explica que as lojas da região passaram da venda de eletrodomésticos para venda de computadores e jogos, o que resultou em uma mudança de público: de famílias para hobbystas e especialistas em tecnologia. A fabricante de estatuetas, Kaiyodo, mudou sua loja para Akihabara em 1997 e passou a vender 10 vezes mais produtos, inspirando outras empresas especializadas em mangá, anime e jogos a se mudarem para lá, o que selou oficialmente a transformação de Akihabara em um bairro otaku até os dias atuais (MORIKAWA, 2014). 21

One of the things often said about otaku activity is that it represents a retreat from public space. Otaku show no interest in social issues, and shut themselves into the domain of hobbies. This mental state only occurs when consumer society reaches a certain level of maturation, and there are no larger political or social goals. Japan reached that level of maturation in the 1970s. […] There is no grand narrative that is shared by everyone and holds society together. […] Until the 1970s, Japan was unified by shared experiences of the Second World War, the destruction of the nation and its rebuilding. […] By the 1970s, the process had run its course, and people began to lose interest in the grand narrative, or splinter off to pursue other narratives. Those who started to pursue fictional grand narratives through the medium of anime were known as otaku.

41

Figura 6 – Quarto de um otaku

Fonte: GALBRAITH, 2012

Embora o objetivo deste item seja explicar o contexto que permitiu a popularização da idol no Japão – que é abordado no restante deste capítulo –, é necessário ressaltar de antemão a importância de Akihabara e do público otaku no caso do idol group AKB48. Uma das características mais importantes do grupo em comparação a tantos outros que existem atualmente no país é o fato de possuírem seu próprio teatro em Akihabara. Isso possibilita ao AKB48 apresentações semanais, permitindo assim a construção de um público fiel. A localização do teatro fez com que grande parte desse público fosse formada pelos otakus que frequentam constantemente o distrito. Kotani (2014), uma das fundadoras da Associação Japonesa de Ficção Científica Feminista, diz que o otaku tenta memorizar e catalogar tudo que pode sobre o seu objeto de interesse, seja com personagens fictícios de anime ou com idols. Apesar do otaku se interessar mais por narrativas ficcionais do que com a realidade e questões sociais – Ito (2014) chega a especificar que eles mantêm distância física do sexo oposto –, muitos dedicam seu tempo a elas e escolhem meninas específicas às quais se “devotar”. Kotani (2014, pg. 35, tradução nossa) diz

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que “uma idol existe apenas na mídia e está distante das mulheres reais”.22 Este fato é similar ao interesse que esse público tem por obras ficcionais, pois “as imagens dessas mulheres são independentes da realidade” (KOTANI, 2014, p. 36, tradução nossa).23 Saito (2007), que estudou a sexualidade dos otakus, diz que frequentemente eles são taxados como imaturos e acusados de não conseguirem distinguir realidade e ficção – incapazes de entender que uma personagem de mangá não é verdadeira –, quando, na verdade, é exatamente o contrário: eles desejam um objeto ficcional justamente por ser fictício. Com a popularização do mercado de produtos kawaii, da cultura voltada às garotas, e com um público otaku apaixonado por ficção, o Japão estava vivendo um período nostálgico de retorno à infância. Não por acaso, a juventude ganha um status de peso nos anos 1970 – que permanece nas décadas seguintes, até os dias atuais –. A figura da idol, no auge da sua juventude, encontra o terreno necessário no Japão dessa década para se firmar. Segundo o autor Ashcraft (2014, p. 39, tradução nossa), as idols estão presentes no Japão desde os anos 1950, mas é nesse período de calmaria social que uma nova leva de garotas domina o Japão: Foi na década de 1970 que as idols meninas conquistaram sucesso. Essa nova geração de pop stars japoneses cresceu em um período muito diferente de seus pais. Foi uma era livre do imperialismo japonês e bombardeio americano (...). O futuro era agora, e sonhos femininos de se 24 tornar uma pop star eram possíveis

Nesse período de valorização da juventude, as idols não apenas compartilhavam entre si o fato de serem jovens, mas também uma peça que podia ser encontrada no guarda-roupa de todas elas: o uniforme escolar.25 Kotani (2014) diz que a época do colégio é um dos períodos mais valorizados no Japão, por ser o período mais “puro”, onde todos têm sonhos e tudo parece promissor – “duas coisas parecem universais: um, esse é o período em que as pessoas começam a se apaixonar, e dois, todos estão vestindo um uniforme escolar” (2014, p. 36, tradução

22

An idol exists only in the media and is distant from real women. These images of women are independent of reality. 24 It was in the 1970s that girl idols would truly come into their own. This new generation of Japanese popstars had grown up in a very different period from their parents. It was an era free of Japanese imperialism and American firebombing (…) The future was now, and girlish dreams of becoming a pop star were possible. 25 Em japonês, seifuku. 23

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nossa).26 Segundo a autora, esse momento ainda não foi comprometido pela cultura institucional do salaryman. Figura 7 – Idol Junko Sakurada vestindo um uniforme escolar na capa do disco Shiroi Kazeyo, de 1975

Fonte: ASHCRAFT, 2014, p. 39

A colegial japonesa ganha um status tão importante quanto o da idol a partir dessa década. Muitas idols eram, de fato, colegiais, e muitas colegiais sonhavam em seguir a carreira de idol. O uniforme escolar era tão importante na identidade dessas artistas – e permanece sendo no século XXI – que o item 3.2 será dedicado a elas: as schoolgirls27.

3.2 O CULTO À SCHOOLGIRL

O momento vivenciado pelo Japão nas décadas de 1970 e 1980 deu à juventude um status de grande importância. A participação das mulheres no mercado de trabalho a partir dos anos 1980, que as afastava lentamente do lar; o

26

Two things seem universal: one, this is the time when people start to fall in love, and two, everyone is wearing a school uniform. 27 Em japonês, joshi kousei

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forte consumo de produtos kawaii que incentivou o desejo em meninas jovens de permanecerem livres, isto é, sem filhos, sem marido e sem obrigações sociais; o público otaku atraído pela ficção, que muitas vezes focava-se em uma adoração exagerada e na fetichização de personagens femininas jovens28. Todas essas características presentes nessa época foram associadas às mulheres. Segundo Kinsella (1995, p. 249, tradução nossa) “as mulheres foram consideradas culpadas por feminizar a sociedade”29, e alguns intelectuais criticavam essa “infantilização” na qual o Japão estava passando. Infantil e feminino eram tidos como sinônimos. Kinsella (1995) explica que o comportamento feminino descrito pelos críticos não se parecia com o comportamento tradicional que a mulher japonesa tinha anteriormente, mas uma recusa em seguir a identidade submissa clássica. O comportamento kawaii era considerado egoísta por alguns teóricos por negar as obrigações sociais firmadas no pós-guerra e por “afetar” diretamente os homens, em seu papel superior na sociedade patriarcal: Salarymen sobrecarregados têm sido encorajados a ver a fonte de sua miséria como a nova geração de mulheres jovens e temperamentais, que egoisticamente fazem o que querem e demandam exigências exageradas dos homens. Existe um consenso geral que, hoje, os homens estão sendo passados para trás e humilhados por mulheres jovens, fofas, manipulativas e exigentes. De fato, na primeira metade dos anos 1980, mulheres jovens trabalharam mais do que em qualquer momento anterior no pós-guerra. No entanto, o grande envolvimento de mulheres jovens solteiras na força de trabalho também tem sido interpretado como mais um ato de egoísmo intencional por parte delas, que foram acusadas de deliberadamente competir com os homens por bons empregos e, simultaneamente, negar30 lhes parceiras conjugais (KINSELLA, 1995, p. 249, tradução nossa)

Críticas quanto ao comportamento “egoísta” das mulheres não se limitaram apenas a esse período. Uma matéria no site Financial Times (2015)31 diz que as mulheres ainda são taxadas como egoístas quando optam por não terem filhos para darem continuidade à carreira. Porém, as trabalhadoras que decidem ter filhos 28

Também chamado de Lolita Complex. Women were blamed for feminizing society. 30 Overworked salary men have been encouraged to see the source of their misery as the new generation of stroppy decadent young women, who selfishly do whatever they wish and make unreasonable demands on men. That is a general consensus that, today, men are hard done by and humiliated by manipulative, choosy, cute young women. In fact, in the first half of the 1980s, young women worked more than any time previously in the postwar period. However, the greater involvement of young unmarried women in the labour force has also been interpreted as another act of willful selfishness on the part of women, who were accused of deliberately vying with men for good jobs and simultaneously denying them marriage partners. 31 Japan: Women in the Workforce. Disponível em Acesso em 19 de Junho de 2016. 29

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sofrem “assédio de maternidade” e são expulsas do posto de trabalho assim que engravidam. Essa prática é tão comum no país que possui um nome abreviado: matahara. Ainda segundo o Financial Times, essa situação as obriga a não terem filhos, mesmo se quiserem. A diferença entre os salários de homens e mulheres no Japão é a terceira mais alta do mundo (em 2015) e pelo menos 30% delas ainda prefere ser dona-de-casa (FINANCIAL TIMES, 2015). A recusa em cooperar com os valores sociais tradicionais esperados das mulheres que foi característico dos anos 1980 e 1990 era, de certa forma, uma maneira de reescrever a identidade feminina, mesmo que não necessariamente de forma consciente. O estilo fofo, tanto em aparência quanto em comportamento, ainda é celebrado no Japão e é parte importante da cultura do país, mas quando supostamente afetava os homens em alguma esfera, era então encarado como um problema. Para reestabelecer a ordem masculina afetada pelo “egoísmo feminino”, a sexualização da imagem da schoolgirl se mostrou um caminho eficaz – em moldes semelhantes ao o que aconteceu nos Estados Unidos e na Europa, com o avanço do feminismo dos anos 1970, como Wolf (1992) descreveu em O Mito da Beleza. Figura 8 – Ensaio feito pelo fotógrafo Yuki Ayoma, intitulado Schoolgirl Complex32

Fonte: AOYAMA, 2012

Mas por que a schoolgirl? Ela representava, de certa maneira, todos esses receios. De acordo com Hamm (2012), a possível resistência ao lema “boa esposa, 32

Schoolgirl Complex. Disponível em Acesso em 15 de maio de 2016.

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sábia mãe” – criado para as mulheres e que firmava o poder masculino – era associada à figura da schoolgirl. Ela era jovem, livre, e com um forte poder de consumo. Hamm (2012, p. 39, tradução nossa) diz que “a schoolgirl é projetada como sendo inocente e sexualmente inexperiente, tornando sua identidade controlável”33 e que os homens a desejam para reafirmar a sua masculinidade – em crise desde os anos 1970. Ela completa afirmando que, graças a isso, existe um fetiche constante em torno da figura da schoolgirl na cultura popular e no consumo masculino. No Japão, nada representa tão bem a juventude como uma garota de uniforme escolar. A schoolgirl é uma personagem recorrente nos mais variados tipos de mídia, do anime ao mangá, em filmes famosos como Kill Bill (2003) e Babel (2006), nos mais variados tipos de publicidade, como protagonista de livros e jogos, como uma figura popular na pornografia34 e como musa de artistas. Hamm (2012) explica que a figura da schoolgirl se conecta aos adultos por ser jovem, livre, e por vivenciar um período da vida que será lembrado de forma nostálgica. O mangá shoujo, popularizado nos anos 1970, em muitos casos carregava uma schoolgirl como protagonista, uma vez que tinha como público-alvo as próprias garotas. A figura da colegial se tornou popular, também, entre o público otaku masculino quando este passa a consumir a cultura feminina. Essa figura está tão disseminada que atualmente se mostra constante na produção de mangás para homens jovens e adultos. O autor Schodt (2006, p. vii, tradução nossa) diz que os mangás São uma janela aberta para a id japonesa, uma vista – não necessariamente da realidade propriamente dita – mas das aspirações, 35 sonhos, pesadelos, fantasias e fetiches de uma cultura

Mais do que um desejo pessoal, o que é apresentado no mangá tem muito a ver com os anseios coletivos de uma sociedade. As representações da schoolgirl em mangás e animes varia de acordo com o público consumidor, mas ela frequentemente é retratada como “[...] sexualizada, objeto passivo disponível para

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The schoolgirl is projected as innocent and sexually inexperienced, making her identity controllable O autor Brian Ashcraft (2014) diz que ao pesquisar por joshi kousei (colegial) no Google japonês é possível encontrar mais de 20 milhões de resultados, sendo boa parte deles de material pornográfico. 35 Are an open window onto the Japanese id, a view – not necessarily of reality itself – but of a culture’s aspirations, dreams, nightmares fantasies, and fetishes 34

47

dominação”36 (HAMM, 2012, p. 43, tradução nossa) quando a produção tem como foco o público masculino. Um gênero de mangá conhecido como lolikon – abreviação de Lolita Complex37 – é um exemplo notável de tentativa de controle da imagem feminina através de um tipo de produção cultural (voltada ao público masculino). Kinsella (2000) explica que os temas tratados no mangá lolikon mostram uma fixação complexa com garotas jovens, ou com a ideia de garotas jovens. Ela infere que a popularidade desse tema aumentou muito nos anos 1990, uma época em que se notou um aumento de poder das adolescentes. Figura 9 – Angel, acrílica sobre tela

Fonte: KAZUHIRO, 2012

38

Esse fato pode ser observado desde a década anterior com o fenômeno que ficou conhecido como joshi kosei boom39, nele colegiais já tinham uma grande importância na sociedade devido ao seu alto grau de consumo e com a lenta entrada 36

[…] Sexualized, passive object available for domination. Roriita Konpurekkusu. A origem não poderia ser mais clara: Lolita, romance de 1955 de Vladimir Nabokov que conta a história de um pedófilo obcecado por uma garota de 12 anos. 38 Angel, 2012, acrylic on canvas. Disponível em Acesso em 17 de Junho de 2016. 39 Boom das garotas colegiais. 37

48

da mulher japonesa no mercado de trabalho que modificou as possibilidades da vida feminina. Em resposta a isso surgiu “[...] um desejo reativo de ver essas garotas jovens infantilizadas, despidas e subordinadas”40 (KINSELLA, 2000, p. 122, tradução nossa). Uma das características desse aumento de poder das adolescentes começa quando algumas garotas chamam a atenção ao encurtarem as saias do próprio uniforme escolar, como uma espécie de rebeldia ao conservadorismo do vestuário exigido pelas escolas que frequentavam. Sendo o uniforme escolar um dos principais símbolos do fetichismo com as schoolgirls – pois ele é a prova visual mais concreta da juventude dessas meninas –, esse ato não passou despercebido. O uniforme se tornou tão popular nesse período que além de estilizado, ele também foi se tornando falso (KINSELLA, 2014). Algumas marcas passaram a comercializar uniformes chamados de nanchatte seifuku41, que não eram uniformes de verdade, mas que podiam ser vistos pelo bairro Shibuya em garotas que talvez não fossem schoolgirls realmente, mas pareciam ser. O uniforme escolar se tornou um ícone da moda japonesa. Atualmente, é possível encontrar lojas importantes de nanchatte em shoppings populares de Shibuya – como a marca CONOMI42. Além da saia encurtada, era recorrente o uso de meias brancas e largas, pele bronzeada, cabelo castanho ou loiro, saltos plataforma e maquiagem carregada. Esse tipo de garota que se vestia de forma mais sexual ficou popularmente conhecida nessa década como kogyaru, ou simplesmente kogal43. Hamm (2012, p. 31, tradução nossa) diz que a kogyaru “representava a schoolgirl que desafiava as normas tradicionais através da roupa, do discurso e do comportamento”44 (figura 10).

40

[…] a reactive desire to see these young women infantilized, undressed, and subordinate. Literalmente “uniforme de brincadeirinha”. 42 http://www.conomi.jp/ Acesso em 15 de maio de 2016. 43 Kogyaru ou kogal são formas abreviadas de koukousei gyaru, que significa literalmente “garota colegial”, sendo gyaru a adaptação da palavra inglesa girl. 44 Represented the schoolgirl who defied tradicional norms through dress, speach and behavior. 41

49

Figura 10 – Kogyarus em Tóquio, em 1994, sentadas de forma “masculina” na calçada

Fonte: KINSELLA, 2014

Essas garotas foram relacionadas à promiscuidade sexual e viraram alvos da mídia, que vinculava o enjo kosai – “namoro subsidiado”, uma espécie de prostituição – à figura da kogyaru. Hamm (2012, p. 9, tradução nossa) define: Envolvendo garotas do ensino fundamental ou ensino médio indo a encontros com homens de meia idade por dinheiro e/ou presentes, enjo kosai pode incluir qualquer coisa desde jantar e conversação, karaokê ou 45 atividades em grupo, até relações sexuais

Hamm (2012) e Kinsella (2014) dizem que a polêmica envolvendo schoolgirls com prostituição teve mais influência da mídia do que das garotas em si. Kinsella (2014) infere que a mídia implicava que um grande número de garotas estava fazendo enjo kosai, mas que uma pesquisa com uma amostra significativa jamais foi feita. Apesar dos números incertos, isso não impediu que uma gama de reportagens surgisse para falar das garotas sexualmente precoces – sempre tendo como alvo o comportamento “inapropriado” das schoolgirls e ignorando o papel dos homens que pagavam pelo enjo kosai. O retrato constante que a mídia fazia do enjo kosai – insinuando que todas as colegiais estavam fazendo –, de fato incentivou algumas garotas a participarem. Mas Kinsella (2014) especifica que a grande quantidade de informações produzidas 45

Involving junior high or high school girls going on dates with middle-aged men for money and/or gifts, enjo kosai can include anything from dinner and conversation, karaoke or group activities to sexual relations

50

sobre as schoolgirls que – aparentemente – se prostituíam partiam de homens jornalistas, críticos e sociólogos, e grande parte do material publicado sobre o assunto saía em jornais e revistas voltados ao público masculino. Discursos criados por homens, para homens. A autora diz que muitos jornalistas pagavam para entrevistar schoolgirls que encontravam na rua – colegiais verdadeiras ou garotas já formadas e adeptas do uniforme nanchatte? –, e que muitas delas simplesmente diziam o que imaginavam que eles queriam ouvir. Figura 11 – Modelos kogyaru da revista JK egg46

47

Fonte: Modelpress JP , 2012

As meninas tinham pouco controle do que era dito e pensado sobre elas já que as informações eram escolhidas e manuseadas pela mídia – a falta de uma voz independente permitiu que a identidade da schoolgirl fosse construída por outros (HAMM, 2012). As garotas eram fotografadas nas ruas – com sua moda considerada promiscua e seu comportamento, desleixado – e isso resumia a participação da maioria delas na construção dessa identidade. Assim como a disseminação de 46

JK egg (joshi kosei egg) foi uma publicação paralela da revista egg. A revista egg surgiu nos anos 1990 com o boom da moda kogal e teve sua última edição publicada em 2014. A versão JK focou em colegiais. 47 Disponível em Acesso em 17 de Junho de 2016.

51

imagens femininas definidas pelos homens como contextualizou Wolf (1992) em “O Mito da Beleza”, o mesmo processo aconteceu com a figura da kogyaru: Exceto no sentido mais controlado e esquemático de envolvimento, como aparecendo como os rostos das fotografias dos leitores, as garotas foram 48 excluídas do processo de fabricação de imagens de garotas (KINSELLA, 2014, p. 40, tradução nossa)

Apesar do sensacionalismo da mídia quanto ao enjo kosai – nunca comprovado por números significativos –, a cultura da schoolgirl estava firmada. Um documentário de 2015 do VICE News49 mostra o poder da colegial na cultura japonesa, em que homens podem comprar serviços oferecidos por schoolgirls: caminhadas, leitura da sorte, conversas e até massagens. O documentário mostra um show de idols colegiais, que se apresentam para uma plateia quase inteiramente masculina – composta não somente por garotos adolescentes, mas por homens com mais de 40 anos – que, ao final da apresentação, pagam para conversar e segurar a mão de sua idol preferida, ou simplesmente comprar uma foto exclusiva da garota. Não há comprovação de que todos os homens que pagam pela companhia de schoolgirls também negociam atividades sexuais, mas o risco de prostituição de menores aumenta quando essas garotas estão disponíveis à venda dessa forma (VICE NEWS, 2015).

48

Except in the most managed and schematic sense of involvement, such as appearing as the faces in readers’ photographs, girls were excluded from the process of making images of girls. 49 Schoolgirls for sale in Japan. Disponível em Acesso em 19 de Junho de 2016.

52

Figura 12 – Showgirl, acrílica sobre tela

Fonte: KOIDE, 2005

Seja com o retrato de schoolgirls inocentes e controláveis ou como a colegial rebelde que se envolve em problemas, a imagem da adolescente foi moldada e deturpada na mídia de acordo com a vontade masculina. Segundo Ueno (2003, p. 317, tradução nossa), estudiosa feminista, o “[...] fetichismo masculino ligado à inocência cria um valor adicional às meninas juvenis”50. Esse valor vai se refletir na forma como a identidade das idols – jovens, inocentes e de uniforme escolar – é definida.

3.3 LOVE-DOLLS

Desde os anos 1950, no período do pós-guerra, a figura da idol já marcava presença na sociedade japonesa, mas foi na década de 1970 que essa identidade ganhou um destaque significativo. Em um período de desejável escapismo – em que ser jovem marcava uma vida longe da realidade dos adultos, as “idols vieram a representar a adolescência”51 (AOYAGI, 2005, p. 4, tradução nossa). Se a mídia deturpou a imagem da schoolgirl, a idol, em contrapartida, se mostra a jovem colegial que foi, na maioria das vezes, idealizada por ela. O autor Galbraith e Karlin (2012) explicam que os idols, sejam homens ou mulheres, tendem a ser jovens – ou parecerem jovens – e que seus fãs pertencem a 50 51

[…] male fetishism attached to innocence creates an additional value to juvenile girls. Idols came to represent adolescence.

53

demografias variadas. Os autores adicionam que os idols não precisam ter uma habilidade específica desenvolvida, como cantar ou dançar, e que eles transitam pelas mais variadas plataformas midiáticas simultaneamente. Este item focará em idols mulheres. A década de 1970 foi um período de considerável crescimento e popularização desses artistas, mas a indústria de idols floresce efetivamente nos anos 1980, quando a cultura kawaii já está consolidada e o público otaku consideravelmente expandido. Esse período de grande popularização dessas garotas ficou conhecido como a era de ouro das idols52, e em média 40 a 50 idols debutavam por ano (GALBRAITH e KARLIN, 2012). Segundo Kinsella (1995), as idols que surgiram nos anos 1980 tinham em média quatorze a dezesseis anos; dominavam a televisão, as revistas e a música, e também apareciam como hosts em programas. De acordo com Galbraith e Karlin (2012), no pós-guerra a televisão era considerada um artigo de luxo, e as pessoas reuniam-se em espaços públicos para desfrutar dessa mídia que tinha pouca participação no espaço privado. Os autores explicam que, nos anos 1970, a televisão já fazia parte do dia-a-dia dos japoneses, e a experiência que os telespectadores tinham com ela passou de coletiva para pessoal e rotineira – “o meio da televisão é uma tecnologia da intimidade”53 (GALBRAITH e KARLIN, 2012, p. 9, tradução nossa). Segundo os autores, o fato de esses artistas participarem de diferentes tipos de mídia fez com que eles se tornassem parte da vida dos japoneses, que sentiam que conheciam o idol em um nível mais pessoal. Os autores também inferem que durante uma rotina diária no Japão atual, uma pessoa pode ter mais contato com um idol, pela sua excessiva exposição, do que com um membro de sua própria família, sendo essa “a base para sentimentos de intimidade”54 (GALBRAITH e KARLIN, 2012, p. 9, tradução nossa). O trabalho dos idols não se limitava apenas à música – na verdade, muitos deles sequer sabiam cantar. Essa “falta” de talento ajudou a tornar esse tipo de artista popular, porque além da sensação de familiaridade que o público sentia graças à grande exposição do idol na mídia, o fato de se mostrarem, de certa forma, “desajeitados”, tornava a imagem deles mais real. Aoyagi (2005), pesquisador que

52

Aidoru no ogon jidai. The medium of television is a technology of intimacy. 54 This is the basis for feelings of intimacy. 53

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estuda idols desde os anos 1980 explica que os japoneses são incentivados a dar mais valor às opiniões coletivas que as individuais e o ato de pensar bem de si mesmo é desencorajado. Ele diz que o idol japonês [...] normalmente retrata imagens que são bastante normais: aparência, habilidade e charme que são acima da média, mas não o bastante para alienar ou ofender a audiência. [...] Os japoneses aludem essa característica como tōshindai, ou "tamanho natural". Idols de tamanho natural mantém o ritmo com suas audiências: eles performam como personalidades familiares, 55 em vez de estrelas excepcionais (AOYAGI, 2005, p. 67, tradução nossa)

Galbraith (2012) diz que, conforme mais e mais idols debutavam na indústria, muitos passaram a destacar sua própria artificialidade. O autor dá como exemplo a idol Chisato Moritaka, que ficou famosa em meados de 1989 com a música 17-sai (17 anos), cover de Saori Minami – idol que teve uma carreira ativa nos anos 1970 –, mostrando que era uma versão “reciclada” de sua precedente. A música fazia parte do álbum Hijitsuryoku-ha Sengen – “proclamação de não capacidade” –, que segundo Galbraith (2012, p. 190, tradução nossa) mostrava a falta de habilidade vocal de Moritaka e possuía letras que explicitavam “[...] que ela não tem habilidade, nunca teve e não quer ou não precisa”56. Em uma apresentação de 198957, Moritaka aparece usando uma saia longa que cobre suas pernas por inteiro e uma blusa que veste completamente a parte superior do seu corpo. Ela se posiciona em frente ao microfone e começa a se despir, revelando um figurino prateado e brilhante por baixo, as pernas e braços desnudos, e começa a dançar – passos simples e descomplicados – e a cantar o hit 17-sai. Após cantar duas frases da letra, a idol dá alguns passos para o lado e tropeça na própria roupa.

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[...] typically depict images that are fairly standard: appereance, ability, and charm that are above average, but not so much as to alienate or offend the audience. […] Japanese allude to this characteristic as tōshindai, or “life-sized”. Life-sized idols keep pace with their audiences: they perform as familiar personalities rather than outstanding stars. 56 […] that she has no ability, never did, and does not want or need it. 57 Disponível em Acesso em 21 de Maio de 2016

55

Figura 13 – Chisato Moritaka apresentando 17-sai em 1989

Fonte: YOUTUBE, 2013.

Foi essa aparente normalidade que diferenciou as idols de outras celebridades e artistas, pois os fãs se atraíam mais pela garota que não sabia cantar ou dançar, mas se esforçava para progredir, do que com artistas pop já consolidadas. O fato de serem jovens e vestirem roupas mais infantis – ou simplesmente um uniforme escolar – atraía em especial o público masculino. Aoyagi (2005) diz que as idols representavam um espaço paralelo no qual os homens podiam fugir da realidade dura da vida social. Não havia, pois, nada de ameaçador na imagem delas em um período de certo aumento da confiança feminina e de homens em crise com sua própria sexualidade e seu papel na esfera social. Elas eram não apenas um colírio para os cansados salarymen, mas uma espécie de modelo para os jovens: Idols são concebidos para estabelecer a indústria no mercado em virtude de suas habilidades para atrair pessoas e performar como modelos de estilo de vida. Sejam eles amados ou detestados, amplamente admirados ou ridicularizados, idols informam seus telespectadores sobre aparências e qualidades que são consideradas socialmente apropriadas e modernas. Como tal, idols constituem uma vitrine de individualidade em referência a qual os consumidores, especialmente os jovens, podem construir suas 58 próprias auto-imagens (AOYAGI, 2005, p. 3, tradução)

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Idols are designed to contribute to the industry’s establishment in the market by virtue of their abilities to attract people and perform as lifestyle role models. Whether they are loved or disliked, widely admired or ridiculed, idols inform their viewers about appearances and personal qualities that are considered socially appropriate and trendy. As such, idols constitute a showcase of selfhood in reference to which consumers, especially young people, can construct their own self-images.

56

Aoyagi (2005) também diz que, apesar de o estilo kawaii poder ser interpretado como uma opção para opor a ideia de “boa esposa, sábia mãe” – a juventude se mostrava mais atrativa do que a vida de housewife –, ele incentivava uma espécie de feminilidade frágil: kawaii quer dizer bonitinho, fofo, adorável, mas o termo deriva da palavra kawaiso, que por sua vez significa patético, lamentável, coitado. E sendo as idols construídas para servirem como modelos – em uma sociedade profundamente patriarcal –, o fato de agirem de maneira fofa e infantil, segundo Aoyagi (2005), resignava sua imagem como mulheres disponíveis para a dominação sexual masculina. O autor também explica que um dos possíveis significados do termo idol é a junção do termo “ai”, que significa amor em japonês, com a palavra “doll”, boneca em inglês – “love-dolls”. Ele infere que esse termo indica que as idols são entendidas como bonecas que os rapazes querem possuir e que as garotas gostariam de personificar. O termo é aberto à interpretações, mas essa, em especial, vai contra a ideia da idol como uma pessoa e firma a questão da artificialidade e da objetificação. Sendo a idol moldada em torno de objetivos específicos, Aoyagi (2005) explica que as garotas não tem controle sobre seus corpos e das imagens que são disseminadas. Tudo é controlado pelas gravadoras e é comum a existência de um produtor – homem – por trás da garota ou do grupo feminino. Para manter a imagem “pura”, de modelo exemplar, algumas regras acompanham a configuração da idol: Porque grande parte da receita da agência vem de idols aparecerem em comerciais, se torna ainda mais importante proporcionar uma imagem estável e segura, que é controlada de modo a não prejudicar a imagem dos patrocinadores corporativos e dos produtos anunciados. A agência assume esse papel, treinando e gestando seus talentos. Isso é especialmente verdadeiro para idols mulheres, que não podem beber álcool, fumar, ou 59 serem vistas na companhia de homens (GAILBRAITH e KARLIN, 2012, p. 8, tradução nossa)

Um dos melhores exemplos disso é grupo Onyanko Club60. Formado em 1985 e composto por 52 garotas que foram escolhidas pelo critério de o quão interessante 59

Because much of the agency’s revenue comes from idols appearing in commercials, it becomes even more important to provide a stable, safe image that is controlled so as not to damage the image of corporate sponsors and advertised products. The agency takes up this role, training and micromanaging its talents. This is especially true for female idols, who cannot drink alcohol, smoke, or seen in the company of men. 60 Clube das Gatinhas.

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elas eram – e não por habilidades vocais ou de dança –, o grupo tinha seu próprio programa de TV chamado Yuyake Nyan Nyan61: nele, os membros participavam de jogos infantis e respondiam perguntas frívolas (GALBRAITH, 2012). De acordo com Galbraith (2012), o grupo era produzido por um homem, Yasushi Akimoto – que viria a criar o grupo AKB48 em 2005 –, e tinha como foco o público masculino. Isso era evidenciado pelo uso da frase nyan nyan no título do programa e em muitas de suas letras, pois nessa época, “nyan nyan suru” ou “fazer miau miau” era uma gíria para sexo (KINSELLA, 1995). A primeira música do Onyanko Club, Serafuku wo Nugasanaide62, foi um hit. A letra claramente tinha uma mensagem sexual, com frases como “não é divertido ser uma virgem”63 e “eu quero fazer sexo antes de todos os meus amigos”64. Mas apesar disso, não havia nada de explícito na forma como as garotas se apresentavam. Vestindo uniforme escolar, dançando uma coreografia tola e dessincronizada, muitas delas com vozes desafinadas, eram adolescentes comuns e desajeitadas diante de uma plateia quase que inteiramente masculina. Algumas garotas pareciam sequer ter certeza do motivo de estarem no palco. Figura 14 – Onyanko Club apresentando Serafuku wo Nugasanaide65

Fonte: YOUTUBE, 2013.

De acordo com Galbraith (2012), o grupo personificava uma tensão entre o “puro” e o “sexual”, e os fãs achavam aquilo atraente. O público não se incomodava com garotas adolescentes cantando sobre relações sexuais porque as regras que 61

Gatinhas do Pôr-do-sol. “Não tire o meu uniforme escolar”. 63 Baajin ja tsumaranai. 64 Tomodachi yori hayaku ecchi wo shitai. 65 Disponível em Acesso em 21 de Maio de 2016. 62

58

proibiam sexo e drogas acompanhavam o Onyanko Club. Não há nada de preocupante em schoolgirls que falam de experiências normais da adolescência porque elas simplesmente não vivenciavam nenhuma dessas coisas. Segundo Ashcraft (2014), quanto mais “real” uma idol se parece, mais “irreal” ela é percebida pelos fãs. Ainda segundo o autor: Elas eram boas garotas, que você podia admirar, imitar e sonhar. Mas para se certificar de que elas permaneceriam puras aos olhos do público, o Onyanko Club teve que obedecer a um conjunto de regras bastante conservador: nada de garotos; nada de danceterias; não faltar à escola; não fumar. Coisas normais de ensino médio, você pensaria, mas essas não eram adolescentes normais. Elas eram idols, e se quebrassem as regras as 66 consequências eram duras (ASHCRAFT, 2014, p. 42, tradução nossa)

Essa regra custou alguns membros do Onyanko Club quando um tabloide flagrou seis garotas do grupo fumando em uma cafeteria que ficava perto de seu estúdio de gravação: isso resultou em cinco das seis garotas sendo oficialmente expulsas e o assunto se tornou um tabu (ASHCRAFT, 2014). Apesar do incidente – que ocorreu nos primeiros meses de vida do grupo –, o Onyanko Club teve uma carreira bem sucedida nos rápidos dois anos de vida em que manteve suas atividades. Como as idols não precisam ter grandes habilidades, isso também as torna substituíveis (GALBRAITH, 2012), e para manter o grupo “atual”, ocorriam audições para a escolha de novos membros e também graduações – afinal, eram schoolgirls – de membros antigos. Essa estrutura que acompanhava o Onyanko Club – regras, audições e graduações – seguiu em grupos que vieram depois dele, como Morning Musume no final dos anos 1990 e AKB48 nos anos 2000. O tempo de vida de algumas idols mostrava-se, em muitos casos, consideravelmente curto. A grande quantidade de garotas que participavam do Onyanko Club acabou tornando-se um traço comum nos idol groups das décadas seguintes. Quanto mais garotas, mais opções para os fãs. Não é de se surpreender, então, que os fãs mais fervorosos são, em geral, otakus. Galbraith (2012) parte da interpretação de otakus como indivíduos que se atraem por contextos ficcionais, e que dividem esse contexto em diversas camadas e as consomem individualmente, formando um

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They were good girls, ones you could admire, emulate, and dream about. But to make sure they stayed pure in the eyes of the public, Onyanko Club had to abide by a rather conservative set of rules: no boys; no dance clubs; no skipping school; no smoking. Normal high school stuff, you’d think, but these weren’t normal high school girls. They were idols, and if they broke the rules the consequences were harsh.

59

quadro narrativo novo e amplo. Ele diz que a idol é vista como um personagem fictício – ela é apresentada como uma jovem normal, mas na realidade é muito diferente de uma adolescente comum – e que assim como fazem com personagens de mangá e anime, os fãs tentam coletar o máximo de informações que puderem sobre sua idol preferida – entrevistas em revistas, apresentações, fotos –, a fim de formar a grande narrativa. O autor também explica que os fãs descrevem a sua relação com a idol como algo “puro”67. É por esse motivo que regras como as que acompanhavam o Onyanko Club nos anos 1980 e que também fazem parte de grupos atuais são consideradas importantes. Galbraith (2012) diz que essa relação pura exige uma espécie de castidade e certas virtudes que acompanham a identidade da idol. O autor completa: A fim de manter a idol "pura", é necessário deslocar o desejo sexual em torno da idol para outras imagens/objetos. A relação pura com a idol é mantida substituindo-a com uma série de objetos sexuais intercambiáveis [...] Isso é incentivado pela apresentação de idols na mídia - por exemplo, idols jovens vestindo biquínis em revistas masculinas, ao lado de mulheres 68 mais maduras vestindo menos roupas (talvez até nuas) (GALBRAITH, 2012, p. 196, tradução nossa, grifo do autor)

Galbraith (2012) diz que atualmente quase todas as revistas de mangá direcionadas ao público masculino levam uma idol na capa e contém uma seção com fotos da garota – comumente de biquíni. Essas revistas existem para a publicação de histórias em quadrinhos, mas “desenhos de mulheres ‘fictícias’ aparecem ao lado de fotos de mulheres ‘reais’”69 (GALBRAITH, 2012, p. 191, tradução nossa). O autor especifica que essas revistas catalogam idols e dão informações específicas para os fãs otakus, como fotos e até medidas corporais, e que essas meninas são, então, associadas à ficção – algo que atrai esse tipo de fã em particular.

67

Junsui. In order to keep the idol “pure,” it is necessary to displace sexual desire from the idol onto other images/objects. The pure relationship with the idol is maintained by replacing her with a series of interchangeable sex objects […] This is encouraged by the presentation of idols in the media—for example, young idols wearing swimsuits in men’s magazines beside more mature women in less clothing (perhaps even nude). 69 Drawings of “fictional” women appear right beside photos of “real” women. 68

60

Figura 15 – Mion Mukaichi, do grupo AKB48, na capa da revista Mangá Action de Maio de 2016

70

Fonte: FUTABASHA , 2016.

Saito (2007, p. 241, tradução nossa) define o desejo sexual do otaku homem como “o desejo de possuir através da ficcionalização”71. O autor explica que o que atrai o otaku é exatamente o fato de o objeto desejado estar faltando, não existir. Quando o fã coleta itens variados com a imagem da idol preferida, é a forma típica que este público utiliza para possuir a garota em si, já que ela, assim como as personagens de mangá e anime, existe nos limites da mídia – ou assim é apresentada. Além dos clipes lançados e das capas de revistas em que elas normalmente aparecem, outras mídias conhecidas pela função de “deslocar” o desejo sexual da idol para a imagem são os image videos e os photobooks (figura 12) – apesar dos indícios de que idol e imagem são, na verdade, a mesma coisa ou ao menos são assim percebidas pelo público. Galbraith (2012) diz que os image videos, ou AV, são comuns o bastante para serem encontrados à venda em lojas de conveniência, e mostram a idol – ou modelos, atrizes e outras artistas mulheres – em situações cotidianas, como de biquíni na praia ou cozinhando. Segundo o autor, já foram considerados um tipo de pornografia, mas atualmente são apenas classificados como material “erótico” por não exibirem nudez. Galbraith (2012) diz que os fãs 70 71

Disponível em Acesso em 22 de Maio de 2016. The desire to possess through fictionalization.

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assistem a esse tipo de material não da forma como assistem à pornografia – apesar do tom sexual –, mas sim com o propósito de curar os estresses do dia-a-dia, energizar e assistir ao crescimento da idol e se sentir conectado a ela. Figura 16 – Sayumi Michishige no livro de fotos Sayuminglandoll em 2011, na época membro do grupo Morning Musume

Fonte: LIDA, 2011, p. 13

Os photobooks são livros que podem ter mais de uma idol como protagonista ou apenas uma garota. São ensaios fotográficos temáticos colecionados pelos fãs que mostram a idol em diferentes situações e, assim como o AV, algumas fotos tem uma atmosfera sexual. Sobre esses itens e demais produtos que os fãs colecionam, Galbraith (2012, p. 197, tradução nossa) completa: Mesmo como as interações e prazeres são imediatos e intensos, a idol como imagem evapora sem substituições constantes para evocá-la e firmála. Isso leva a compra de fotografias, vídeos e outros bens estampados com a imagem da idol (e imbuídos com a sua "alma"). Na forma de commodity 72 física, a idol pode ser possuída, manuseada, exibida, coletada

Como Ashcraft (2014) constatou, quanto mais real, mais irreal. As idols são moldadas para representar a adolescência, mas não representam adolescentes de

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Even as interactions and pleasures are immediate and intense, the idol as image evaporates without constant replacements to evoke and ground her. This leads to purchasing photographs, videos, and other goods emblazoned with the image of the idol (and imbued with her “soul”). In the form of a physical commodity, the idol can be possessed, handled, displayed, collected.

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verdade – apenas um eco distante que mais se assemelha a uma fantasia masculina que uma pessoa de carne-e-osso. Nessa perspectiva, uma idol é mais parecida com uma personagem de anime e mangá que com uma mulher real, apesar dos traços que a fazem parecer – quase – humana. Os fãs sabem se tratar de uma fantasia. Contanto que nada perturbe essa representação, o público não se importa em participar do “jogo da ficção”73 (GALBRAITH, 2012, p. 190, tradução nossa) – e para isso elas precisam seguir as regras. O próximo capítulo analisa o idol group que é considerado o mais bemsucedido da história do Japão, e que propõe laços mais íntimos com seus fãs através do slogan idols you can meet74.

73 74

Fiction game. Idols que você pode conhecer.

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4 IDOLS YOU CAN MEET

O capítulo 4 explica o idol group AKB48, apresentando sua estrutura, técnicas de fidelização do público e seus produtos. Para isso, são utilizados aqui os estudos de Galbraith (2012), Karlin (2012), Aoyagi (2005) e Ashcraft (2014). O item seguinte apresenta os procedimentos metodológicos utilizados para a análise do grupo. Os procedimentos são conceituados através do trabalho de Stumpf (2008), Moreira (2008) e Coutinho (2008). O último item deste capítulo é dividido em três partes, em que cada uma é dedicada à análise de um produto diferente, para responder os objetivos estabelecidos neste trabalho. Nessas análises, são evocados os autores utilizados anteriormente para a base teórica desta monografia.

4.1 O FENÔMENO AKB48

AKB48 é considerado o grupo feminino de maior sucesso do Japão (GALBRAITH e KARLIN, 2012). Formado em 2005 em Tóquio, contava, inicialmente, com 48 garotas em sua formação original, dispostas em três grupos distintos com 16 garotas em cada: A, K, B. As iniciais presentes no nome do grupo são uma referência à Akihabara, distrito de Tóquio conhecido por concentrar um grande número de lojas voltadas ao comércio de itens relacionados à mangá, anime e games, e famoso pela grande circulação de otakus. A alusão ao bairro Akihabara não é coincidência: o grupo possui seu próprio teatro no distrito onde faz apresentações regularmente. O grupo ultrapassou a contagem de 48 membros e em 2014, a contagem estava próxima de 90 (ASHCRAFT, 2014), e além da formação original, também se dividem nos grupos 4, 8 e kenkyusei (esse último composto por trainees). Além do crescimento do grupo principal, o produtor Yasushi Akimoto – responsável pelo grupo Onyanko Club nos anos 1980 – criou grupos paralelos em diferentes cidades do Japão, como, por exemplo, o SKE48, do distrito Sakae da cidade de Nagoya, NBM48, do distrito Namba da cidade Osaka e até mesmo um grupo internacional

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que tem base na Indonésia, o JKT48 (GALBRAITH, 2012). O AKB48 detém o recorde mundial de Maior Grupo Pop segundo o Guiness World Record75. Figura 17 – Imagem promocional do single Iwake Maybe, de 2009

Fonte: ASHCRAFT, 2014, p. 51

Assim como as idols de gerações anteriores, as garotas do AKB48 não precisam ter nenhum talento altamente desenvolvido. Yasushi Akimoto, em entrevista ao The Wall Street Journal76 (2011) explica a diferença entre as garotas do AKB48 de artistas pop típicas do ocidente: Na América, os artistas são escolhidos através de audições rigorosas de milhares de pessoas, e aqueles com mais talento tem que passar por lições difíceis e treinamentos antes que estejam "completos" [...] As meninas do AKB48 são "inacabadas". Em outras palavras, elas ainda não são muito boas em cantar ou dançar. Os fãs estão apoiando e torcendo pelas garotas enquanto elas gradualmente melhoram – enquanto elas se tornam o artigo 77 acabado – é isso que o AKB48 é (THE WALL STREET JOURNAL, 2011, tradução nossa) 75

Disponível em Acesso em 24 de Maio de 2016. 76 The man who made AKB48. Disponível em Acesso em 18 de Junho de 2016. 77 In America, performers are chosen through strict auditions of thousands of people, and those with the most talent have to go through difficult lessons and coaching before they’re “complete” and can finally stand on the stage. AKB48 girls are “unfinished.” In other words, they’re still not very good at

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Por possuírem o mesmo produtor, o AKB48 tem grandes semelhanças ao antigo Onyanko Club. Assim como seu predecessor, o grupo faz audiências para a escolha de novos membros e também graduações de membros antigos, e possui a mesma série de regras que acompanhava seu precursor: proibido namoros ou qualquer tipo de relação paralela com o sexo masculino – inclusive serem vistas em público com homens –, proibido fumar e beber e qualquer outro ato que possa causar tumulto entre os fãs e também escândalos midiáticos. Figura 18 – AKB48 fazendo cover da icônica música Serafuku wo Nugasanaide, do Onyanko Club

78

Fonte: YOUTUBE , 2015

De acordo com Galbraith (2012), AKB48 se destacou de outros idol groups – Buono!, Morning Musume, ºC-ute, E-girls e tantos outros presentes no país – pela relação íntima que mantém com os fãs. O autor explica que o grupo é promovido como idols you can meet79 graças ao seu teatro no distrito de Akihabara, onde se apresentam semanalmente, em comparação a outras idols que fazem shows de forma esporádica. Além do teatro, o autor diz que o grupo pratica técnicas de venda focadas especificamente na quantidade e na qualidade dos prazeres que podem proporcionar aos fãs.

singing or dancing. The fans are supporting the girls and cheering them on as they gradually get better – as they become the finished article – that’s what AKB48 is all about. 78 Disponível em Acesso em 18 de Junho de 2016. 79 Comumente escrito em inglês ou em japonês como ai ni ikeru idol.

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Isso pode ser exemplificado pela venda de CDs. Galbraith e Karlin (2012) dizem que o grupo é conhecido por vender o mesmo produto diversas vezes, e dão como exemplo o oitavo single – Sakura no Hanabiratachi –, lançado em 2008, que vinha empacotado com um pôster aleatório, de 44 no total, cada um exibindo uma garota diferente. Os fãs que conseguissem coletar todos os pôsteres poderiam atender a um evento especial que contaria com a participação do grupo – mas para conseguirem isso, provavelmente teriam que comprar muito mais que 44 singles, já que os pôsteres vinham aleatoriamente (GALBRAITH e KARLIN, 2012). Os autores dizem que, graças às reclamações feitas pelos fãs online, que consideravam que a prática ia contra os direitos do consumidor, o evento foi cancelado. Esse é um exemplo de várias ocasiões em que os fãs receberam a oportunidade de experimentar um grau maior de intimidade com as idols do AKB48 a partir do consumo de uma grande quantidade de produtos. Como o exemplo citado, nem sempre essas oportunidades são bem recebidas, mas comumente essa técnica se reflete nas vendas musicais do grupo: Os últimos 12 singles consecutivos do AKB48 lideraram as paradas no Japão, e eles já venderam cerca de 11.8 milhões de CDs, tornando-os o grupo feminino mais bem sucedido na história do Japão (em Janeiro de 2012). Estes números de vendas atestam o sucesso comercial do grupo, mas, com fãs comprando múltiplas cópias, as vendas de CDs podem exagerar sua popularidade real. Em outras palavras, ao contrário do passado, as vendas de CDs não são uma medida precisa do número de 80 pessoas que escuta sua música (GALBRAITH e KARLIN, 2012, p. 21, tradução nossa)

Galbraith e Karlin (2012) dizem que os fãs não sentem que estão comprando CDs, e sim uma experiência que ressoa com um significado emocional relativo à frequência com que investem na idol. Além do grande número de apresentações e da quantidade de vendas de CDs, o AKB48 também dá a oportunidade aos fãs de decidirem a estrutura do grupo. Galbraith e Karlin (2012) também explicam que o AKB48 faz eleições81 em que os fãs podem votar em suas idols preferidas. Segundo eles, na eleição realizada em 2011, 1.16 milhão de votos foram feitos, e isso proporciona aos fãs a sensação de participarem ativamente da vida do grupo – não 80

AKB48’s 12 latest consecutive singles have topped the charts in Japan, and they have sold nearly 11.8 million CDs, making them the most successful female group in Japanese history (as of January 2012). These sales figures attest to the group’s commercial success, but, with fans purchasing multiple copies, CD sales may exaggerate their actual popularity. In other words, unlike in the past, CD sales are not an accurate measure of the number of people who listen to their music. 81 Senbatsu Sousenkyo.

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à toa eles se consideram “apoiadores”, e não meros fãs. Galbraith e Karlin (2012) dizem que para ter direito a votar, a pessoa obrigatoriamente precisava ter adquirido o single mais recente do grupo –, já que cada CD comprado equivalia a um voto. Yuko Oshima, uma das garotas mais populares82 do AKB48 e que se graduou em 2014, disse que os votos equivalem ao amor do fã83, e de fato muitos deles compraram cópias e mais cópias do CD para demonstrarem isso: Em uma semana, vendeu 1.334.000 cópias, um novo recorde para um single vendido no Japão. Os resultados da eleição geral foram anunciados durante uma cerimônia ao vivo no Budokan, onde algumas das mais famosas atrações musicais do mundo já performaram. A cerimônia também foi transmitida ao vivo em 86 teatros (97 telas) no Japão, em todos os lugares a partir de Hokkaido, no norte, até Okinawa, no sul, e em Hong Kong, Taiwan e na Córeia do Sul (Barks Global Media 2011a). Fãs estavam desesperados por um lugar - seja no local real ou nos teatros - mas os ingressos esgotaram quase que instantaneamente. Isso foi mais do que 84 apenas fanatismo. Era um evento midiático e um espetáculo público (GALBRAITH e KARLIN, 2012, p. 1, tradução nossa)

Essa eleição também define qual das garotas ocupará a posição central em um single – tanto na capa quanto no vídeo clipe –, mostrando aos fãs o que o seu voto representou. Atsuko Maeda foi a vencedora na eleição de 2011 (figura 19) e se tornou o centro do single Flying Get. De fato, Maeda foi considerada o “rosto” do AKB48 durante os oito anos em que participou do grupo e foi o centro de quase todos os singles dos quais fez parte, até a sua graduação em 2012, quando então seguiu carreira solo. As eleições são anuais – até o presente momento85 já foram realizadas oito votações – sempre com grande atenção por parte da mídia.

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Oshima ficou em segundo lugar nas eleições gerais de 2011 e em primeiro lugar em outras duas eleições enquanto fez parte do grupo. 83 “Watashi tachi ni totte, hyousuu to iu no wa, minna-san no ai desu”. Disponível em Acesso em 26 de Maio de 2016. 84 In a week, it sold 1,334,000 copies, a new record for a single sold in Japan.1 The results of the General Election were announced during a live ceremony at the Budokan, where some of the most famous musical acts in the world have performed. The ceremony was also streamed live to 86 theaters (97 screens) in Japan, everywhere from Hokkaido in the north to Okinawa in the south, and in Hong Kong, Taiwan, and South Korea (Barks Global Media 2011a). Fans were desperate for a seat— be it at the actual venue or the theaters—but tickets sold out almost instantly. This was more than just fanaticism. It was a media event and a public spectacle. 85 Até Maio de 2016.

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Figura 19 – Atsuko Maeda, que recebeu mais de 139 mil votos, discursando em frente aos fãs após ficar em primeiro lugar nas eleições gerais do AKB48 em 2011

86

Fonte: YOUTUBE , 2013.

Assim como outras idols, AKB48 não se resume apenas à música. Como mencionado anteriormente, photobooks são lançados com ensaios fotográficos solo de algumas garotas do grupo, alguns image videos também são comercializados, e elas fazem aparições constantes em capas de revistas de mangás para o público masculino (vide capítulo anterior). Galbraith e Karlin (2012) explicam que as garotas aparecem em anúncios dos mais variados produtos (de computadores a café); que as bancas de revistas estão repletas de materiais com elas nas capas; tabloides mostram as últimas fofocas envolvendo o grupo; na televisão, protagonizam novelas e são hosts de programas. Em 2016, o grupo fez uma parceria – que poderia ser considerada inusitada em outros países – com a rede de lojas de conveniência Lawson. A parceria prevê a venda de um snack exclusivo que contém um adesivo de uma das garotas como brinde – mais uma vez mostrando a tática de vender múltiplas vezes um mesmo produto –, pastas plásticas, cases para celular e até relógios despertadores87. Todos os produtos mostram as idols vestindo o uniforme das redes Lawson. As garotas se mostram colecionáveis a partir dos mais variados itens.

86

AKB48 22nd Single Senbatsu Sousenkyo. Disponível em Acesso em 26 de Maio de 2016. 87 AKB48 campaign. Disponível em Acesso em 26 de Maio de 2016.

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Figura 20 – Campanha AKB48 para Lawson

88

Fonte: LAWSON , 2016.

Com tantos produtos diferentes à venda, alguns fãs buscam por itens mais “autênticos”. Galbraith (2012) cita como exemplo as fotografias autografadas, sejam com uma assinatura da idol ou com a marca do seu batom, ou ainda borrifadas com o seu perfume – dadas aos fãs mais fiéis ou simplesmente vendidas. Ele argumenta que às vezes a imagem por si só não é o suficiente, e alguns colecionadores também adquirem cartões de traje (isho kado), um cartão que contém um pedaço do tecido da roupa utilizada pela garota - os colecionadores mais sérios, contudo, arrumam meios de comprar a fantasia completa, usada. O autor dá destaque às fotografias cruas (nama shashin), fotos tiradas por fãs – sem qualquer tipo de retoque – e comercializadas entre eles e em lojas de Akihabara. Ele explica que essas fotografias mostram algo a mais, possuem um significado maior, mas que não são reveladoras o bastante para que ela seja vista como um ser humano. Isso seria uma infelicidade para os fãs otakus, que valorizam especificamente a ficção, e precisam que a idol [...] seja uma “existência absoluta” (zettaiteki na sonzai), que é imutável e fora do cotidiano, proporcionando uma fonte de segurança e apoio 89 inabalável para os fãs [...] (GALBRAITH, 2012, p. 186, tradução nossa)

88

AKB48 campaign. Disponível em Acesso em 26 de Maio de 2016. 89 […] the need for the idol to be an “absolute existence” (zettaiteki na sonzai) that is unchanging and outside the everyday, providing a source of security and unwavering support for fans […]

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Figura 21 – Loja especializada na venda de fotografias cruas, em Akihabara

Fonte: GALBRAITH, 2012, p. 198

O grupo também é conhecido pelos “eventos de aperto de mão”90 que promove. Para experimentar um grau maior de “intimidade”, os fãs podem apertar a mão de sua idol favorita – isso ao custo de um CD, é claro, e várias cópias para aqueles que quiserem segurar a mão de mais de uma garota (GALBRAITH, 2012). Questionamentos quanto à segurança desses eventos vieram à tona quando, em 2014, um homem atacou duas garotas do grupo, Anna Iriyama e Rina Kawaei, com um serrote91 (NATIONAL POST, 2014). Elas sofreram ferimentos nas mãos e na cabeça e foram levadas para o hospital; o homem de 24 anos foi preso e sentenciado a seis anos de prisão92 (CNN, 2015). Esses diferentes produtos e eventos – muitas vezes polêmicos – têm como objetivo tornar a experiência mais real. Há sempre um cuidado, porém, em não mostrar a idol como uma pessoa alcançável, como algo possível, apesar dos esforços de aproximação empenhados pelos fãs. Quando alguma delas se mostra 90

Akushukai. Members of Japanese girl group AKB48 injured after saw-wielding man attacks pop stars at event. Disponível em Acesso em 27 de Maio de 2016. 92 Japanese men sentenced to 6 years for saw attack on AKB48 pop stars. Disponível em Acesso em 27 de Maio de 2016. 91

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tangível – normalmente através da exposição de sua vida privada pela mídia, através de escândalos de cunho sexual – sua existência, ao invés de verdadeira, é considerada injuriosa pelos fãs. Aoyagi (2005) entrevistou fãs otakus, em meados de 1995, durante seu estudo sobre a produção simbólica das idols. O autor diz que os otakus defendiam a idol como a representação da adolescência ideal, em comparação às garotas que eles consideravam “egoístas” – isto é, as kogyaru, citadas no capítulo anterior. Esses fãs sentiam-se pouco seguros perto dessas garotas, acreditando que elas tinham raiva do mundo e que talvez fossem influenciadas pelo feminismo americano. Ao estimarem as idols, com sua imagem pura, eles acreditavam estarem valorizando a feminilidade clássica – apesar de afirmarem que sabiam se tratar de uma imagem inventada (AOYAGI, 2005). Figura 22 – Evento de aperto de mão, em 2014, com Yuki Kashiwagi

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Fonte: RAKING SHARE , 2014

A artificialidade é vista como um ponto positivo, na verdade. Aoyagi (2005) diz que a ideia tradicional de feminilidade estava mudando, supostamente graças à liberação sexual americana (ou assim os otakus acreditavam), deixando os homens desconfortáveis frente a esse novo comportamento e os fazendo interpretar essas novas garotas como egocêntricas. A idol, como uma construção midiática era propícia aos fãs homens. Um dos entrevistados disse ao autor: 93

Kashiwagi Yuki saikai shita AKB akushikai, "tanoshikatta". Disponível Acesso em 27 de Maio de 2016.

em

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Eu acho que há muitos casos em que as imagens construídas pela mídia influenciam o estilo de vida de pessoas reais. Então, se pudermos continuar a adorar garotas de aparência pura, eu tenho certeza que podemos lembrar ao mundo sobre o tipo de personalidade que não deve ser esquecido. Onde há um esforço para preservar idols puras, sempre haverá uma chance que essas idols e o que elas representam irá reviver. Não queremos que as pessoas nos julguem como um bando de gente estranha e retrógrada. Nós queremos que eles entendam que nós nos importamos com o futuro da 94 feminilidade japonesa (AOYAGI, 2005, p. 218, tradução nossa)

Essa visão que os fãs tinham anteriormente pouco mudou nos anos 2000. Quando a mídia e os fãs descobrem que uma idol quebrou alguma das regras – como quando Minami Mineguishi foi flagrada, em 2012, deixando um hotel onde passou a noite com o namorado –, isso não é bem encarado pelo público. As regras firmam, afinal, a composição “pura” que a idol precisa personificar. Se ela abraça uma parte normal da vida (como relacionamentos amorosos), ela se torna comum. Ashcraft (2012) diz que se a garota tem um namorado, a fantasia está morta para os fãs. O autor diz que as idols evitam compartilhar sentimentos e problemas pessoais com os fãs, pois eles consideram isso uma informação “excessiva” – afetando, então, o escapismo que eles tanto buscam e que a idol pode prover. O próximo item definirá os procedimentos metodológicos que serão utilizados para a análise do grupo AKB48.

4.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para uma análise bem fundamentada, alguns procedimentos são necessários no presente trabalho. São utilizados aqui a pesquisa bibliográfica e documental e análise de imagem. O primeiro deles, a pesquisa bibliográfica, trata-se do levantamento de informações referentes ao tema do trabalho através da leitura e pesquisa de obras relevantes e consagradas sobre o assunto. Por se tratar de um trabalho que se baseia muito em contextos históricos e culturais, a leitura de diferentes tipos de obras é fundamental e a base para qualquer trabalho acadêmico. Segundo a autora Stumpf (2008, p. 51), esse tipo de pesquisa “visa identificar informações 94

I think that there are many instances in which media-constructed images influence the lifestyle of real people. So, if we can continue to adore pure-looking girls, I am sure that we can remind the world about the kind of personality that should not be forgotten. Where there is an effort to preserve pure idols, there will always be a chance that these idols and what they stand for will revive. We don’t want people to look down upon us as a bunch of strange and backward people. We want them to understand that we care about the future of Japanese womanhood.

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bibliográficas, selecionar os documentos pertinentes ao tema estudado e proceder à respectiva anotação ou fichamento das referências [...]”. A pesquisa bibliográfica utilizada nos capítulos anteriores é empregada aqui com o objetivo de estabelecer um parâmetro entre os temas já discutidos – previamente decididos de acordo com a relevância que teriam para o entendimento do objeto de estudo e para responder as principais questões que orientam este trabalho – e as análises no próximo item. Para complementar a pesquisa bibliográfica, a análise documental também é utilizada. Moreira (2008) diz que as fontes usadas nesse tipo de análise muitas vezes são de origem secundária (constituem dados e informações reunidos anteriormente). A autora define como fontes secundárias jornais, revistas e vídeos, por exemplo. Notícias são utilizadas neste trabalho como um complemento ao conteúdo bibliográfico escolhido. Sendo a imagem uma questão constantemente debatida neste trabalho, uma técnica específica na compreensão de seu significado é fundamental. A autora Coutinho (2008) explica que as imagens são capazes de comunicar mensagens, e esse é o principal ponto desta técnica. Segundo a autora: [...] interessa à Análise da Imagem compreender as mensagens visuais como produtos comunicacionais, especialmente aquelas inseridas em meios de comunicação de massa: fotografias impressas em jornais, an ncios publicitários, filmes, imagens difundidas pela televisão ou ainda disponíveis na Internet (COUTINHO, 2008, p. 330, grifo do autor)

Coutinho (2008) diz que ao se definir o tipo de imagem a ser analisado, o pesquisador automaticamente indica a relevância daquela mensagem para a sua pesquisa, e o tipo de dado ou dedução a ser buscado na análise está diretamente ligado às hipóteses previamente estabelecidas na concepção da pesquisa. A autora também explica que a análise de imagem é importante pelo próprio peso que as representações têm na sociedade e na construção do ser humano. Segundo a mesma autora, um dos aspectos mais importantes do entendimento de uma imagem é o enquadramento que o artista dá a ela, seja esta estática ou em movimento, pois ele indica um recorte feito pelo produtor. Coutinho (2008) também explica que há uma série de diferentes enquadramentos que são utilizados pelo produtor para “moldurar” – e significar – a mensagem que será

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comunicada. São citados aqui Plano de Conjunto (PC)95, Plano Detalhe (close-up)96, Primeiro Plano (PP)97, Primeiríssimo Plano (PPP)98 e Plano Americano (PA)99. Outros pontos destacados por Coutinho (2008) são relações de cor, luz e contraste, normalmente utilizados para dar destaque ao elemento representado. Diferentes cenários também podem ser analisados, tanto para compreender mensagens mais diretas e presentes na representação, quanto detalhes implícitos que exigem maior atenção do espectador – Coutinho (2008) explica que, apesar das imagens serem bidimensionais por definição, a relação entre fundo e figura dá a sensação de profundidade. Segundo a mesma autora, os movimentos da câmera têm um papel importante na análise de imagem, tanto por indicar o tempo a ser dedicado a determinado enquadramento – muitas vezes sinalizando a importância de uma cena – quanto por transmitir diferentes emoções que podem ser experimentadas pelo espectador através da movimentação causada pela lente. Coutinho (2008) dá como exemplo o zoom in e zoom out100, que são realizados sem a movimentação da câmera. Cada um deles com suas respectivas particularidades e que podem causar diferentes efeitos na imagem e na sua compreensão. Os objetivos e funções de uma imagem precisam sempre ser considerados, pois o papel dela nas pesquisas de comunicação é de mensagem visual (COUTINHO, 2008). Quando atribuímos sentido a uma imagem, temos maior facilidade em compreender o papel que ela ocupa perante determinado público, e como no caso do grupo AKB48 ela pode ser considerada uma mercadoria – já que, como explicado anteriormente, ela é previamente fabricada –, a análise de imagem permite-nos entender que mensagem determinada imagem comunica. Os objetos de análise escolhidos no presente trabalho são: o clipe da música Heavy Rotation, de 2010, disponível no canal oficial do AKB48 no YouTube; o comercial da bala Aisu no Mi, de 2011; e o jogo Love Election, que é aqui representado por um vídeo também disponível no YouTube. O primeiro, Heavy Rotation, foi escolhido pela presença de imagens femininas altamente erotizadas e 95

Mostra um grupo de personagens reconhecíveis e o ambiente em que se encontram (MNEMOCINE, 2009). 96 Enquadra e destaca partes do corpo ou objetos (MNEMOCINE, 2009). 97 Enquadra o busto dos personagens (MNEMOCINE, 2009). 98 Enquadramento do rosto (MNEMOCINE, 2009). 99 Corta os personagens na altura da cintura ou coxas (MNEMOCINE, 2009). 100 Alteração gradual do ângulo de visão: o zoom in diminui o ângulo e o zoom out aumenta (MNEMOCINE, 2009).

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objetificadas, que foram concebidas para representar a adolescência. O comercial do produto Aisu no Mi é analisado neste trabalho por ilustrar a idol como uma imagem fabricada. Por último, o vídeo presente no jogo Love Election posiciona as garotas do AKB48 como personagens disponíveis para o público masculino. Os três produtos mostram a artificialidade da identidade da idol, que são comunicadas como um ideal feminino, mas estão completamente distantes de mulheres reais.

4.3 ANÁLISES DA IDENTIDADE AKB48

Neste item são analisados diferentes produtos audiovisuais para a compreensão da imagem feminina retratada na figura das idols do AKB48. O clipe musical Heavy Rotation é a primeira análise, seguido pelo comercial da bala Aisu no Mi e do game Love Election.

4.3.1 Heavy Rotation Nome do vídeo: 【MV】 ヘビーローテーション/ AKB48 [公式]101 Tempo: 5 minutos e 44 segundos Descrição do vídeo: Heavy Rotation é o 17º single do AKB48, lançado em 2010102. A música é performada pelas 21 garotas mais votadas pelos fãs nas eleições gerais do mesmo ano. Yuko Oshima, primeiro lugar na votação, ocupa a posição central do vídeo. O clipe foi dirigido por Mika Ninagawa, renomada fotógrafa e diretora japonesa. Devido à duração longa do vídeo, a análise não se dá em todos os planos presentes. Algumas cenas específicas foram escolhidas por representarem a ideia e o sentido geral do clipe, permitindo a visualização e compreensão do quadro completo. A primeira imagem (figura 23) a aparecer em Heavy Rotation é uma cena com Yuko Oshima. A cena começa com um buraco de fechadura, um zoom in faz a câmera se aproximar lentamente, revelando um cenário diferente por trás. Esse 101

[MV] Heavy Rotation / AKB48 [Oficial]. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=lkHlnWFnA0c> Acesso em 29 de Maio de 2016. 102 Informação disponível em Acesso em 18 de Junho de 2016.

<

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movimento de câmera aproxima o público da ação. Nele, através de uma perspectiva voyeurista, o espectador vê Oshima despindo-se lentamente, em um ambiente que se assemelha a um quarto. Quando a música começa a tocar, Oshima nota que está sendo observada e faz uma expressão de surpresa. Figura 23 – Início de Heavy Rotation

Fonte: AKB48, 2010

A partir desta cena, as idols sabem que estão sendo observadas: a lingerie rosa que Oshima mostra neste primeiro plano passa a ser seu figurino em quase todo o restante do vídeo clipe, indicando a continuidade deste fato. Não por acaso, a próxima cena (figura 24) mostra Oshima cantando “um, dois, três, quatro!” e logo se transforma em um Plano de Conjunto (PC), com um cenário colorido, onde as garotas estão uniformizadas e de frente para a câmera. Tanto a fala de Oshima quanto a mudança de câmera para um plano grande e abrangente, que mostra o

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grupo completo encarando o espectador, demonstram que o voyeurismo se transformou em uma apresentação para um público específico. Figura 24 – Plano de Conjunto com o AKB48

Fonte: AKB48, 2010.

Um cenário (figura 25) que estará presente em diversos momentos do vídeo mostra uma cama extensa e as garotas do AKB48 vestindo diferentes roupas íntimas: trata-se do mesmo cenário introduzido no início do clipe. O espectador pode observar as idols fazendo guerras de travesseiro, chupando pirulitos e dormindo uma ao lado da outra. Apesar de se tratar de cenas claramente íntimas, algumas ações – como Yuko Oshima mostrando um urso de pelúcia para a câmera – interagem diretamente com o público. A perspectiva voyeurista anterior e as roupas que as idols vestem indicam que as imagens foram feitas para o público masculino. As idols do AKB48, com frequência se apresentam uniformizadas em shows e vídeo clipes. Esses figurinos são semelhantes a uniformes colegiais, invocando uma imagem jovem, adolescente e enérgica. Mika Ninagawa, diretora de Heavy Rotation, em entrevista à revista M Girl de 2011103, explica que queria mostrar como as garotas eram na vida real. Ninagawa diz que, ao observar como as idols eram próximas no camarim, criou um conceito: meninas do ensino médio. Heavy Rotation representa, então, a vida das

103

Entrevista disponível em Acesso em 18 de Junho de 2016.

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adolescentes retratadas através da imagem do AKB48 – que pode ser acessada pelos homens através da concepção de Mika Ninagawa. Figura 25 – Cenas do quarto

Fonte: AKB48, 2010.

Mas essa vida adolescente é formada a partir de fetiches. Alguns close-ups (figura 26) são estrategicamente enquadrados para mostrar partes específicas dos corpos das garotas (como as pernas e a região por baixo das saias), confirmando o foco no público masculino. A presença de Planos Detalhe focados na região inferior do corpo impossibilita a identificação da idol, firmando uma objetificação (que também é reforçada quando as garotas vestem figurinos idênticos e padronizados). A mulher confinada à imagem do corpo é uma característica típica do patriarcalismo e do mito da beleza. Este vídeo tem, do início ao fim, um receptor claro em mente.

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Figura 26 – Plano Detalhe (close-up) e Primeiro Plano

Fonte: AKB48, 2010.

Outra cena mostra as idols vestindo diferentes lingeries e comendo doces em uma grande mesa de jantar (figura 27). Todas usam roupas cor-de-rosa e orelhas e caudas de gato, mostrando novamente um figurino fetichizado para a audiência masculina. “Nyan nyan suru” foi uma gíria para sexo nos anos 1980 e também muito evocada pelo idol group Onyanko Club, predecessor do AKB48. Vestimentas com essa temática são traços típicos de produtos culturais voltados ao público adulto masculino, como mangás lolikon e animes, que mostram personagens sexualizadas e infantilizadas. Tons de rosa acompanham praticamente o vídeo todo, proporcionando uma atmosfera fantasiosa. Os objetos que decoram os cenários também passam a percepção de ambiente imaginado, irreal. A repetição de tons forma o mesmo filtro em todas as imagens e confunde o espectador quanto ao tempo, que parece não passar.

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Figura 27 – Cenas na sala de jantar

Fonte: AKB48, 2010

Os diferentes cenários presentes em Heavy Rotation, quando analisados em conjunto (figura 28), formam o cenário de uma casa: sala, sala de jantar, quarto e banheiro. A cena inicial com a fechadura também indica este ponto. A soma desses cenários com a paleta de cores utilizada passam a ideia de um ambiente fechado onde o tempo é relativo e onde o que acontece é real apenas naquele universo, mas não fora dele. O clipe é uma representação do escapismo que os fãs buscam através do consumo das imagens de idols. Ele é, na verdade, semelhante aos image videos que mostram idols em situações “cotidianas” (que são, na verdade, encenadas). A mensagem que está sendo transmitida neste vídeo é construída, fantasiosa, bem como as personagens que nele atuam. A idol se mostra uma identidade arquitetada, como todas as identidades, e especialmente artificial e idealizada. Se o que é representado neste vídeo é a adolescência segundo o AKB48 (de acordo com a diretora Ninagawa), a juventude feminina, neste sentido, é igualmente concebida desta forma.

81

Figura 28 – Diferentes cenários em Heavy Rotation

Fonte: AKB48, 2010.

Essa concepção da identidade da idol se relaciona com o que Wolf (1992) diz sobre as imagens de mulheres que são disseminadas, que partem de um ideal decidido pelos homens – mas que não representam a realidade. Dentre essas imagens, as que possuem um forte cunho sexual e que servem ao desejo masculino são constantemente transmitidas, pela força que possuem para definir as identidades: como Foucault (2015) elucida, a sexualidade é um mecanismo utilizado para o controle da população. A sexualidade da idol é gerenciada para estabelecer não apenas um modelo de garota adolescente, mas o tipo de feminilidade ideal (vista a importância que a colegial tem na cultural do país). Galbraith (2012) diz que (para manter a imagem pura que a idol precisa ter) é necessário deslocar o desejo sexual para outras imagens, e é precisamente o que acontece em Heavy Rotation. Além do vestuário sexy, o espectador se depara com diversas cenas de intimidade das garotas entre si (figura 29). A diretora Ninagawa disse na mesma entrevista para a revista M Girl (2011), que as cenas em que as garotas se beijam e interagem de maneira sugestiva não eram sexuais, pois é comum entre as schoolgirls o uso de lingeries atrativas. Ela também diz que as garotas costumam mostrar as roupas íntimas às colegas na sala de aula. Pode-se

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entender, a partir da entrevista de Mika Ninagawa, que as imagens sexuais transmitidas no vídeo não são sexuais de fato. Figura 29 – Sexualidade

Fonte: AKB48, Youtube, 2010.

Tal afirmação pode parecer contraditória, porém é o que acontece constantemente com as idols. Existe uma sugestão através da imagem sexual, mas não há concretização – pois isso arruinaria a idol como uma “existência absoluta”, como explicou Galbraith (2012). Sendo o tempo/espaço do clipe aparentemente ilusório, as interações que as garotas praticam entre si também fazem parte de um “faz de conta”. Funcionam, na verdade, como um deslocamento do desejo sexual para uma utopia inofensiva. O fato de encararem constantemente a câmera indica que suas ações são feitas para o público espectador – e não para elas próprias. Aqui, não há sexualidade feminina para o gênero feminino. Como Wolf (1992) explicou, o sexo transmitido na mídia não é honesto, pois a sociedade está desabituada a ver mulheres no controle de sua própria sexualidade. Quem tem permissão de fazer sexo com quem é estabelecido a partir de um conjunto de regras implícitas e explícitas em cada comunidade (PARKER, 2001). Essas regras são explícitas no caso do AKB48.

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Logo, as imagens do vídeo não ilustram o que é, de fato, permitido às idols quanto aos usos do corpo (que é decidido a partir de acordos pré-estabelecidos e firmados com os fãs). As ações sugestivas das garotas do AKB em Heavy Rotation não são encaradas como verdadeiras, pois elas não estão se relacionando de forma física sexual com nenhum homem. Elas podem, então, relacionarem-se entre si sem ferir o público masculino que as observa – ao menos no universo de Heavy Rotation. Sendo a idol uma construção, uma imagem orientada pela mídia segundo Kotani (2014) – uma identidade falsa, neste sentido –, não apenas o que ela é precisa ser fictício, como as possibilidades em que pode atuar. De acordo com Woodward (2000), as representações midiáticas afetam a maneira como os indivíduos constroem e vivenciam a sua identidade. Como as idols configuram um ideal de feminilidade (que atende à vontade masculina), a representação da adolescência a partir do AKB48 e de outras idols influencia o “estar no mundo” das schoolgirls. As mulheres japonesas estavam lentamente se aproximando dos salarymen; estes, em crise com sua própria sexualidade e seu papel na esfera social. A schoolgirl é fetichizada por ser jovem e possuir uma identidade maleável (como se observa nos casos envolvendo prostituição) como um contra-ataque ao aumento do poder feminino. A perspectiva voyeurista mostrada no início de Heavy Rotation, os close-ups citados anteriormente e a atmosfera sexual do vídeo mostram a obsessão masculina em torno da adolescente. Apesar de o clipe ser dirigido por uma mulher, a cena inicial da fechadura indica que todas as imagens são vistas a partir da ótica masculina. Woodward (2000, p. 9) também diz que “a identidade é marcada por meio de símbolos”. Neste vídeo, diversos símbolos infantilizam as imagens. A sexualidade que as garotas exercem parece um tipo de brincadeira. Elas comem doces, ou seja, um tipo de alimento que é tipicamente associado à infância. Uma cena mostra as garotas lendo um livro infantil (figura 30). Elas são jovens em um universo em que o tempo parece não passar – dando a estima necessária a essa fase da vida. Como citado no capítulo anterior, a estética kawaii e a infantilização firmam a ideia de submissão feminina que atrai o público masculino que consome idols como imagens e mercadorias (AOYAGI, 2005). Novamente, não há nada de ofensivo para os homens neste tipo de representação feminina, afinal, não se assemelha com imagens de mulheres reais. A idol é, então, a expressão máxima da schoolgirl sem autonomia. Uma adolescente passiva à dominação masculina.

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Figura 30 – Estética kawaii e infantilização

Fonte: AKB48, 2010.

Todo o contexto ficcional e feminino que representa este vídeo forma uma mensagem que conversa com o público otaku – que não se sente atraído pela realidade e valoriza a ficção. Ashcraft (2012, p. 34, tradução nossa) diz que “[...] as garotas do AKB48 são acessíveis, mas fora do alcance, e os fãs verdadeiros não aceitariam de outro jeito”104, mostrando que, embora o consumo da idol como uma commodity se mostre constante, ele é sempre quase e jamais completo. A aproximação excessiva poderia mostrar que ela é comum. A imagem da idol precisa ter um efeito efêmero, para que o fã busque por ela continuamente em diferentes mídias e imagens. A grande narrativa nunca se mostra inteira. Não por acaso, o final do clipe mostra uma cena com Yuko Oshima (figura 31), que apareceu na primeira imagem do vídeo se despindo através de uma fechadura. Oshima aparece novamente em frente à mesma fechadura, enquanto a câmera dá um zoom out sinalizando que aquela representação está terminando. O tempo pode parecer infinito dentro daquele universo em que as garotas estão, mas o que é permitido aos fãs observarem tem um tempo limite.

104

[…] the girls of AKB48 are approachable but just out of reach, and true fans would not have it any other way.

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Figura 31 – Final de Heavy Rotation

Fonte: AKB48, 2010.

A crítica feminista Kotani (2014) diz que os produtores modificam as imagens femininas de acordo com o desejo masculino – em uma linha similar ao que Wolf (1992) infere em seu estudo – e argumenta que as idols existem apenas na mídia. O gesto de Oshima também demonstra que aquilo não existe fora do universo de Heavy Rotation. A partir deste vídeo, é possível confirmar o motivo de a mídia ser fundamental na criação e na própria existência da idol como um todo: quando se perde o acesso a essas imagens, também perde-se o acesso à elas.

4.3.2 Aimi Eguchi Nome do vídeo: AKB48 アイスの実105 Aisu no Mi CM (with Eguchi Aimi 江口愛実106) 2011107 Tempo: 14 segundos Descrição do vídeo: Comercial de 2011 da bala Aisu no Mi, da marca Glico, com o grupo AKB48. As garotas que aparecem neste comercial são Atsuko Maeda, Yuko Oshima, Aimi Eguchi, Tomomi Itano, Mariko Shinoda, Minami Takahashi e Mayu Watanabe. Com exceção de Aimi Eguchi, todas as idols presentes neste 105

Aisu no Mi. Eguchi Aimi. 107 AKB48 Aisu no Mi CM (com Eguchi Aimi). Disponível Acesso em 05 de Junho de 2016. 106

em

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comercial fazem parte do grupo Senbatsu, que é escolhido através das eleições gerais anuais, que determinam as garotas mais populares do AKB48 e que serão protagonistas em singles e comerciais posteriores. Quando este comercial foi ao ar, em Junho de 2011, Aimi Eguchi ainda era consideravelmente desconhecida, pois não havia, até aquele momento, aparecido em nenhuma atividade do grupo AKB48 e sequer fazia parte do Senbatsu. Ela era, na realidade, uma idol nova. O comercial, que tem duração de 14 segundos, traz como música de fundo “Aisu no Kuchizuke”, do próprio AKB48, e começa com um Primeiríssimo Plano (PPP) com Atsuko Maeda, encarando a câmera e falando de forma tímida a frase “Watashi wa”. Essa cena é seguida por outro PPP, dessa vez com Yuko Oshima, que continua a frase de Maeda dizendo “Anata wo”. A frase é finalizada em um PPP com Aimi Eguchi, a nova idol do AKB48, que diz “Aisu no Mi”. Esses planos analisados juntos (figura 32) formam a frase “Watashi wa anata wo aisu no mi”. Esta frase pode ser traduzida de forma literal como “Eu sou a sua fruta de sorvete”, mas também se trata de um trocadilho com o nome do produto, Aisu no Mi, que pode ser entendido como “Eu lhe darei apenas amor”.

87

Figura 32 – Atsuko Maeda, Yuko Oshima e Aimi Eguchi no comercial Aisu no Mi da Ezaki Glico.

Fonte: YOUTUBE

108

, 2011.

A próxima cena mostra Mariko Shinoda e Minami Takahashi em um Primeiro Plano (PP), ambas segurando a bala Aisu no Mi. Elas sorriem para a câmera e falam em uníssono “Watashi to...”. A cena seguinte é um PPP com Tomomi Itano e Mayu Watanabe, que também seguram a bala nas mãos e continuam a frase dizendo “...anata no...”. Aimi Euguchi novamente completa a frase com “....aisu no mi”, em um PPP, levantando a mão e mostrando que, assim como as companheiras das cenas anteriores, ela também está segurando o produto. As cenas juntas (figura 33)

108

Disponível em Acesso em 05 de Junho de 2016.

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formam a frase que significa, em uma tradução literal, “a fruta de sorvete que é minha e sua”109. Figura 33 – Mariko Shinoda e Minami Takahashi, Tomomi Itano e Mayu Watanabe e Aimi Eguchi em Aisu no Mi

Fonte: YOUTUBE, 2011.

A cena seguinte (figura 34) consiste em um Plano Americano (PA) com todas as idols do comercial. Elas estão vestindo figurinos quase idênticos, com a mesma paleta de cores. Algumas pequenas bolas coloridas fazem parte de suas roupas – nas saias e nos acessórios que usam no cabelo – e representam a Aisu no Mi. Todas estão segurando uma bala em uma das mãos e sorrindo diretamente para a

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Watashi to anata no aisu no mi.

89

câmera, diante da frase “AKB48 with”110, que é narrada em off111 por elas mesmas e não por um sujeito fora do contexto. A frase é uma insinuação à parceria entre o idol group e a marca de sorvetes. Aimi Eguchi, além de ter ocupado mais tempo no comercial que as outras garotas do grupo, também ocupa a posição central no vídeo. Figura 34 – AKB48 em Aisu no Mi

Fonte: YOUTUBE, 2011.

Um PPP mostra novamente Aimi Eguchi, dessa vez também dando destaque à embalagem do produto (figura 35). Eguchi repete a fala aisu no mi, que foi a mesma durante todo o vídeo, formando a frase “AKB48 com Aisu no Mi”, segura o doce em uma das mãos e o leva diretamente à boca. Enquanto ela come a bala, a assinatura do anunciante aparece no canto inferior direito.

110

AKB48 com Vozes ou sons presentes sem se mostrar a fonte emissora. Disponível Acesso em 13/06/2016 111

em

90

Figura 35 – Aimi Eguchi em Aisu no Mi

Fonte: YOUTUBE, 2011.

A última cena do vídeo é um PA com as sete idols (figura 36). Ao fundo, o nome AKB48 tem destaque, bem como os produtos da Glico. As garotas aparecem apontando para cima, para os itens da marca. Elas apenas apontam e sorriem, os movimentos restritos aos braços e às cabeças, sem saírem do lugar. Figura 36 – AKB48 na cena final do comercial para Glico

Fonte: YOUTUBE, 2011.

91

Como mencionado anteriormente, Aimi Eguchi ainda não havia participado de nenhuma atividade musical envolvendo o AKB48 – ela sequer era conhecida pelo público –. Sua primeira aparição se deu na capa da revista Weekly Playboy, alguns dias antes do comercial da Glico ser divulgado (GALBRAITH, 2012). No artigo da revista, de acordo com Galbraith (2012), foi divulgado que Eguchi iria estrelar o comercial de Aisu no Mi ao lado de garotas importantes do AKB48, ou seja, ocuparia a posição central112 – importantíssima para os fãs, uma vez que dava à garota o principal destaque, que normalmente era definido através da votação das eleições gerais. Um artigo do site Tokyohive (2011)113 dava evidência aos termos utilizados para definir Eguchi na matéria da revista, que se referiam a ela como a garota de beleza e talento absoluto; as fotos do ensaio, inclusive, acompanhavam a expressão “love bomb absoluta”114. O termo love bomb pode ser entendido como “cheia de amor para dar”. Figura 37 – Aimi Eguchi na capa da Weekly Playboy, em 13 de Junho de 2011.

Fonte: TOKYOHIVE, 2011. 112

Senta pojishon. AKB48’s Eguchi Aimi is an ultimate love bomb in Weekly Playboy. Disponível em Acesso em 05 de Junho de 2016. 114 Ultimate Love Bomb. 113

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Galbraith (2012) diz que alguns fãs ficaram enfurecidos com o artigo da Playboy, pois não conheciam Aimi Eguchi, insinuando que ela não tinha direito de ocupar uma posição antes pertencente a nomes importantes como Atsuko Maeda e Yuko Oshima (que haviam ficado em primeiro lugar em eleições do grupo) e que Eguchi não era uma idol de verdade. Mais tarde, foi revelado que, assim como os fãs “previram”, Aimi Eguchi, de fato, não era uma idol de verdade: ela era uma idol virtual que foi construída a partir de características faciais e partes do corpo de algumas garotas do AKB48 para ser, especificamente, uma “personagem fictícia”115 da Glico (GALBRAITH, 2012). Em uma matéria do The Telegraph (2011)116, um vídeo oficial mostra o processo de criação de Aimi Eguchi, e diz que que ela foi formada a partir das melhores genéticas do AKB48117, e acrescenta ainda que no site oficial do grupo era possível encontrar a “ficha” da idol virtual, que informava a sua idade, tipo sanguíneo e até seu hobby preferido. Galbraith (2012) destaca o fato de Yasushi Akimoto, produtor do grupo, ter chamado Eguchi de “idol absoluta”118, indicando que ela era a idol perfeita e que possuía todas as características essenciais que uma idol precisava ter – apesar de ser inteiramente falsa –. O autor infere que, de fato, Eguchi parecia natural ao lado das idols verdadeiras, mas que isso mostrava, na verdade, o quão produzidas as garotas do AKB48 realmente eram. O ensaio de Aimi Eguchi na Weekly Playboy mostrava a “garota” vestindo roupas curtas, exibindo as pernas, os braços e a barriga em poses sensuais, seguido por fotografias de modelos reais de lingerie. Além do tom sexual, as fotos também eram infantilizadas: não apenas pelo figurino (uma espécie de lingerie com babados), mas pelo fato de Eguchi ter sido criada para “ser” uma idol de 16 anos, segundo sua ficha. No vídeo promocional de Aisu no Mi, Eguchi veste o mesmo figurino que suas companheiras, mostrando que ela tem, a princípio, o mesmo grau de participação que as outras no AKB48. Mesmo para o público que ainda não a conhecia, o fato de Aimi Eguchi estar vestindo as mesmas roupas que as meninas mais populares do 115

Imeji kyarakuta. How fake popstar Aimi Eguchi was brought to life. Disponível em Acesso em 05 de Junho de 2016. 117 O cabelo e o corpo de Yuko Oshima; o contorno de Minami Takahashi; os olhos de Atsuko Maeda; o nariz de Tomomi Itano; a boca de Mariko Shinoda; as sobrancelhas de Mayu Watanabe; a voz de Yukari Sasaki. Com exceção de Sasaki, todas as garotas participam do comercial da Glico, ao lado da idol virtual. 118 Kyukyoku idol. 116

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grupo, automaticamente a posicionou como uma idol. Mas Eguchi ocupa a posição central e recebe mais tempo de câmera que qualquer outra garota do AKB48 a participar da campanha. Apesar de falar somente uma frase durante todo o comercial, Eguchi a repete três vezes. Ao protagonizar o vídeo e “posar” para a capa da revista, Eguchi “se posicionou” acima do seu grupo, mesmo que apenas momentaneamente (efemeridade é próprio da configuração da idol). Ela era, afinal de contas, a idol absoluta segundo seu produtor: melhor que suas companheiras de carne e osso. Figura 38 – Ensaio de Aimi Eguchi para a Weekly Playboy

Fonte: YUMEKI

119

, 2011.

O figurino de Aisu no Mi não apenas as uniformiza como idols como também representa o próprio produto. Em diferentes partes das roupas, como nas saias e nos ombros, e até nos acessórios que usam nos cabelos, bolas coloridas estão atreladas às vestimentas e representam as balas Aisu no Mi. A primeira frase a ser dita no comercial, watashi wa anata wo aisu no mi, além do trocadilho que significa 119

Gracias a Aimi Eguchi, AKB48 se populariza en el mundo. Disponível em Acesso em 12 de Agosto de 2016.

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“eu lhe darei apenas amor”, pode ser entendida de forma literal como “eu sou a sua aisu no mi”. O primeiro Plano Americano a aparecer neste comercial consiste em todas as garotas reunidas, e cada uma segura uma bala Aisu no Mi de cor diferente. Tanto a frase quanto a vestimenta indicam que, assim como o doce que está sendo anunciado, as idols podem ser consumidas a partir de uma série de opções que o público pode escolher120. A ordem que as outras garotas aparecem no comercial também é importante. A primeira a aparecer é Atsuko Maeda, em um plano só dela. Como citado no item 4.1, Maeda foi considerada a idol mais importante do AKB48 até a sua graduação oficial, além de ter vencido duas eleições anuais do total de três das quais participou. A segunda é Yuko Oshima, também estrelando um plano sozinha, e que da mesma forma venceu ao todo duas eleições e é considerada a segunda idol mais popular do grupo nessa época. Assim como as duas meninas mais importantes do AKB, Aimi Euguchi tem um plano só para ela. Os planos seguintes são formados em duplas, com outras idols do AKB48 que conquistaram posições altas nas eleições anuais. A posição que as garotas ocupam no comercial não foi decidida por acaso. Foi estabelecida, implicitamente121, pelos fãs que votaram nas eleições. Com exceção de Aimi Eguchi, que era até certo ponto completamente desconhecida, a importância que cada idol tem no comercial partiu do desejo de seu público predominantemente masculino122. O gênero é uma relação de poder que está enraizada na estrutura social, em que o masculino está acima do feminino. Conforme discutido no capítulo 2, os homens

definem,

hierarquicamente,

posições-de-sujeito

para

as

mulheres

(WOORDWARD, 2000). A estrutura do AKB48 também é uma hierarquia (para isso existe uma eleição), e uma imagem que não condiz com aquilo que foi préestabelecido é vista com desconfiança por parte dos homens. Não por acaso uma parte deste público ficou aborrecida com o artigo da Weekly Playboy, que anunciava

120

Importante lembrar que um dos motivos do AKB48 ter tantos membros é para torná-lo plural: o público tem várias opções para escolher uma favorita. Além da possibilidade de dividi-las em grupos menores e lançar múltiplas mercadorias, bem como diversas versões de um mesmo produto. 121 É uma escolha implícita, neste caso, porque a eleição decide a ordem hierárquica das garotas e garante à vencedora protagonizar ao menos um single. Mas não especifica, necessariamente, quais comerciais e campanhas no geral as meninas irão participar. O fã vota na sua preferida, mas não tem controle exato sobre onde ou o que acontecerá em termos de publicidade. 122 Não se trata de uma regra que todos os fãs do AKB48 são do sexo masculino, mas nas eleições é possível observar que os fãs mais fervorosos (que garantem lugar na cerimônia e que votam várias vezes na mesma garota) são homens.

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que Eguchi apareceria no comercial (GALBRAITH, 2012). A idol fazia parte do grupo kekyuusei do AKB48, composto por trainees, logo, estava longe de ser uma Atsuko Maeda ou uma Yuko Oshima. Os fãs nunca votaram por ela (afinal, ela não existia até o momento) e o fato de Eguchi ocupar a posição mais importante, sem a aprovação prévia do público masculino, não foi bem recebido pelos fãs mais fervorosos. Essa irritação estava ligada ao fato de que o público acreditava que Eguchi era uma idol “de verdade”: quando foi revelado se tratar de uma imagem computadorizada, tudo estava em ordem novamente. A possibilidade de criar sua própria idol no site da Glico surgiu ao mesmo tempo em que foi revelado que Eguchi era uma imagem virtual. O Oshimen123 Maker permitia ao consumidor a criação de uma idol a partir de características faciais de suas garotas preferidas do AKB. As pessoas podiam, então, acessar o site da Glico e criar a sua própria oshimen – isto é, sua própria Aimi. Quando um fã tarja uma idol como sua oshimen, ou seja, quando aponta a garota como sua favorita, ele está dizendo, ao mesmo tempo, que a considera melhor que as demais. Não necessariamente melhor em termos de habilidades, mas superior pelo fato de a ter escolhido a partir de uma pluralidade de opções, pela razão que for. As possibilidades de criação do Oshimen Maker mostravam como era supérfluo e simples a configuração de uma idol: commodities intercambiáveis (GALBRAITH e KARLIN, 2012) e substituíveis. Eguchi é um ótimo exemplo para ilustrar o quão artificial uma idol é, pois apesar de não haver nada de verdadeiro na sua imagem, ela foi posicionada como uma idol assim como as demais e permitiu a fabricação de outras imagens femininas tão irreais quanto ela.

123

Oshimen é um termo utilizado para se referir ao membro favorito de um grupo pop.

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Figura 39 – Oshimen Maker da Glico

Fonte: YOUTUBE

124

, 2011.

Silva (2000) diz que para firmar um tipo de identidade como “correta” ocorre um processo chamado de normalização: atribui-se a uma certa identidade todas as características positivas possíveis, fazendo com que as outras só possam ser avaliadas de forma negativa. Eguchi possuía todas as características necessárias para ser uma idol, segundo seu criador, que a considerou não apenas mais uma garota do AKB48, mas sim a idol absoluta. Eguchi não participou de nenhuma música do grupo ou nenhum evento (como os de aperto de mão); ela estava confinada à campanha publicitária da Glico e ao artigo da Weekly Playboy. Aimi Eguchi não transitava por diversos produtos como suas companheiras por estar limitada a uma reprodução virtual, mas isso não a impediu de ser apontada como melhor que todas as outras. A normalização se deu através da união das “melhores partes” do AKB48: Eguchi foi considerada perfeita por ser o resultado da junção das melhores imagens. A melhor idol do AKB48 era imagem pura e simplesmente, mostrando que talento, habilidade e personalidade não importavam. A identidade correta era inteiramente fabricada. Wolf (1992) diz que imagens femininas, que não representam as mulheres de fato, se espalham e tornam-se exemplos a serem seguidos – a partir da vontade 124

Disponível em Acesso em 11 de Junho de 2016.

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de um grupo dominante –. A autora especifica que essas imagens precisam ser disseminadas para firmar um ideal de beleza que as mulheres precisam personificar. Eguchi não poderia ser um ideal se estivesse presa à apenas uma campanha publicitária, por isso o Oshimen Maker tem um papel importante na firmação dessa representação, pois permite a circulação de outras imagens igualmente fabricadas. Quando Akimoto diz que uma pessoa virtual é superior à pessoas verdadeiras e oferece a possibilidade da disseminação de outras imagens igualmente produzidas, é o mito da beleza posto em prática. Eguchi não demonstra muitas emoções no comercial da Glico – a idol mal consegue piscar, já que está limitada à uma produção virtual –. Ela não consegue se movimentar por diferentes mídias e produtos como os outros membros do AKB48, pois está confinada à campanha. Nesse caso, sua imagem é tão efêmera quanto à de suas companheiras, no sentido de que os fãs não têm acesso a outras imagens para formar uma representação maior. Mas ela também não pode se envolver em escândalos. Não pode compartilhar com os fãs informações que eles possam considerar “excessivas”; estragar o fiction game que eles tanto querem participar e muito menos produzir ruídos no conto de fadas125 que gostam de consumir. A idol virtual impossibilita uma aproximação além dos limites que revele que ela é “comum”. Sua aparência será sempre a mesma e ela pode ser reproduzida. Em suma, ela não pode fazer nada de errado. Ela é apenas imagem, formada a partir das melhores imagens. Nesse sentido, Aimi Eguchi é, realmente, a idol perfeita.

4.3.3 Love Election

A marca Bandai lançou uma série de games do grupo AKB48. Dentre esses jogos, uma linha de simuladores de namoro é particularmente popular entre os fãs. Até o momento, três simuladores foram lançados: AKB1/48 Idol to Koishitara126; AKB1/48 Idol to Guam de Koishitara127; AKB1/149 Renai Sousenkyo128. A versão mais atual do simulador é a Renai Sousenkyo, conhecida no ocidente como AKB1/149 Love Election. 125

Um dos termos utilizado para caracterizar Aimi Eguchi no artigo da Weekly Playboy foi “ultimate fairy tale”. 126 AKB1/48 Quando você se apaixona por uma idol. 127 AKB1/48 Quando você se apaixona por uma idol em Guam. 128 AKB1/149 Eleições do Amor.

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O último simulador foi lançado em 2012 para as plataformas PSP, PS Vita e PlayStation 3. O jogador escolhe qual garota ele gostaria de “namorar” e a convida para encontros, pois o objetivo do simulador é fazer a idol se declarar. O jogador tem, ao todo, 149 garotas como opção129. A grande quantidade de idols presentes no jogo foi um argumento de venda utilizado, já que as versões anteriores contavam com “apenas” 48 meninas130. O jogador começa o game com uma lista telefônica com os números de todas as garotas do jogo e pode convidá-las para encontros. O player “interage” com a idol e tem três opções para responder as perguntas que ela faz (uma resposta negativa, uma neutra e uma positiva). O jogador precisa conquistar a idol a partir de respostas positivas para que consiga terminar o jogo com a garota certa. As outras 148 opções são rejeitadas no processo. O jogo consiste em uma série de fotos das garotas (produzidas em fundo verde e aplicadas sobre um background de acordo com a situação) e por falas narradas por elas e acompanhadas de uma legenda (figura 40). Quando uma idol se declara para o jogador, a cena, ao invés de estática como no caso das fotografias, é feita em vídeo. O player poderá corresponder à declaração; neste caso, um vídeo aparece mostrando a reação da garota, seguido por uma cena de beijo. Se o jogador optar por rejeitar a idol, um vídeo também aparecerá com a reação dela.

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Neste jogo, não apenas as garotas do AKB48 estão presentes, como também algumas idols do NBM48, HKT48 e SKE48. 130 AKB48 dake janai. Disponível em: Acesso em 12 de Junho de 2016.

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Figura 40 – Interação em Love Election

Fonte: YOUTUBE

131

, 2013.

Para auxiliar na compreensão desse simulador de namoro, foram escolhidas cenas do jogo mais recente, Love Election. Um vídeo compilação no YouTube mostra todas as cenas em vídeo da idol Mayu Watanabe disponíveis no jogo: confissão, aceitação, rejeição e beijo. O único critério utilizado para a escolha desse vídeo em especial foi o fato de pertencer a edição mais atual do simulador. Deste vídeo, foram analisadas apenas as imagens consideradas mais importantes para esse trabalho.

Nome do vídeo: [eng subs] Watanabe Mayu - AKB 1/149 ending confession gameplay132 Tempo: 2 minutos e 18 segundos Descrição: este vídeo-compilação começa com a confissão de Mayu Watanabe, ou seja, a parte do jogo em que ela irá se declarar ao jogador. As cenas deste vídeo (e de todos os outros presentes no jogo Love Election e demais versões) são feitas em câmera subjetiva, que reproduz o ponto de vista de um personagem133 (neste caso, do próprio jogador), e permitem que as idols interajam diretamente com ele. Na confissão de Mayu Watanabe, o jogador chega ao pátio de uma escola infantil (onde a idol trabalha como professora) e começa a “interagir” 131

[PS3] AKB1/149 Love Election Promotion Video / AKB48 Oficial. Disponível em Acesso em 12 de Junho de 2016. 132 Disponível em Acesso em 12 de Junho de 2016. 133 Linguagem Audiovisual – Um pequeno glossário de termos para Produção Audiovisual. Disponível em Acesso em 12 de Junho de 2016.

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com ela. Ao contrário da parte convencional do jogo, que consiste na escolha das perguntas e respostas corretas, nos vídeos o jogador não pode praticar nenhuma ação até que a cena seja concluída. Watanabe conversa com o jogador e, após algumas frases, se confessa em um Primeiro Plano (PP). A cena termina com Mayu Watanabe encarando a câmera e aguardando a resposta do jogador (figura 41), que precisa decidir se irá aceitá-la ou rejeitá-la. Como essa parte do jogo consiste em uma situação ininterrupta, a confissão é concretizada em uma única cena. Figura 41 – Confissão de Mayu Watanabe

Fonte: YOUTUBE, 2015

Se o jogador optar por aceitá-la, a cena seguinte (figura 42) continuará com a estrutura de um PP. A cena de aceitação é uma fórmula pronta independentemente da idol escolhida: a garota sorri e demonstra estar feliz com a reciprocidade por parte do jogador. Mas uma cena diferente aparecerá se o jogador decidir rejeitar a idol (figura 38). A cena começa, novamente, com um PP mostrando Watanabe em

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estado de choque, encarando o jogador, visivelmente desapontada. Quando o player rejeita uma idol em Love Election, não será possível nenhuma interação futura com a garota e ela será excluída da lista de opções do game (a menos que o player recomece o jogo). Figura 42 – Aceitação x Rejeição

Fonte: YOUTUBE, 2015

A cena de beijo só é possível se o jogador aceitar a declaração dela. Na rota de Mayu Watanabe, o player está ao lado da idol, que novamente se mostra em um PP, mas dessa vez mais próxima ao jogador. Ela sorri e fecha os olhos e forma um beijo com os lábios (figura 43). Watanabe permanece nessa posição por alguns segundos e depois para, abrindo os olhos e sorrindo para o jogador. Assim termina a cena.

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Figura 43 – Cena do beijo

Fonte: YOUTUBE, 2015

O nome Love Election não é ao acaso. O jogador, ao escolher qual idol ele deseja “conquistar”, elege a vencedora entre as demais. O simulador de namoro funciona mais como um simulador de rejeição, pois o player tenta conquistar uma idol ao final do jogo, rejeitando todas as outras no caminho. A idol escolhida só é, de fato, escolhida, por ter recebido a aprovação do jogador – isto é, a aprovação masculina –. O rumo e resultado de cada história do gênero feminino depende das decisões do gênero masculino. As garotas podem “desistir” do jogador, seja pela falta de atenção dedicada a elas pelo player ou por o terem flagrado em um encontro com outra garota, mas isso só acontece a partir de ações que ele próprio pratica no jogo – nesse sentido ele define as posições-de-sujeito das idols, mesmo que não explicitamente e diretamente. Lauretis (1994) diz que o gênero é produto e processo simultaneamente, pois qualquer sistema de sexo-gênero está conectado à fatores políticos em uma sociedade. Apesar de tratar-se de um simulador de namoro que tem como objetivo a conquista de uma garota em especial, o jogador pode descartar as demais. Love Election mostra o sistema sexo-gênero envolvendo o AKB48 e seus fãs: eles escolhem quais garotas consumir, e elas são posicionadas como dependentes dessa escolha. Ashcraft (2014) explica que jogos voltados ao público masculino e que consistem em interações com diversas personagens femininas diferentes são muito populares no Japão. Alguns desse jogos são tarjados como eróticos e focados

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especificamente no público adulto. A diferença de Love Election para a maioria dos simuladores de namoro lançados no país é a presença de pessoas reais como personagens. Comumente são utilizados personagens fictícios (conforme figura 44), desenhados no estilo mangá/anime, e a grande parte desses jogos tem como cenário o colegial, com schoolgirls vestindo uniforme escolar. Não existe uma regra que especifique que um simulador de namoro precise ter um colégio ou a vida escolar como cenário e tema, mas é um consenso que todas as personagens tenham, no mínimo, aparência jovem. Figura 44 – Love Revenge, simulador de namoro lançado em 2015

Fonte: YOUTUBE

134

, 2016

Love Election e os outros simuladores do AKB48 são posicionados na mesma categoria que os simuladores de namoro de personagens de anime (figura 45). A estrutura dos dois tipos de jogos é exatamente a mesma: rotas que o jogador pode escolher e a possibilidade de confissão e de rejeição. As idols são vistas, então, como personagens fictícias. Os fãs sabem que as cenas são atuadas, afinal, é um jogo (Mayu Watanabe não é uma professora de verdade). Uma idol do AKB48 não poderia namorar alguém na vida real, e isso inclui o fã que experimenta o ponto de vista do simulador. A cena do beijo nunca é concretizada efetivamente, pois isso iria contra a identidade dela.

134

Disponível em Acesso em 13 de Junho de 2016.

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Figura 45 – Idol do AKB48 ocupando um papel tipicamente pertencente a personagens fictícias

Fonte: YOUTUBE

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, 2014

Tal ponto também iria em oposição ao otaku homem, principal fã do grupo e consumidor do jogo, pois a sua sexualidade consiste no fato de que o objeto desejado não está a seu alcance (SAITO, 2007). É comum para os fãs otakus encararem uma idol da mesma forma que uma personagem de anime porque assim ela é apresentada em diversas mídias – como nas capas das revistas de mangá (GALBRAITH, 2012). A sexualidade otaku se dá através “do desejo de possuir através da ficcionalização” (SAITO, 2007, p. 241), e eles sabem que o objeto desejado não é real. Quando o fã conquista a idol no jogo Love Election, ele a está possuindo através da ficcionalização da garota como personagem. Essa é uma das premissas do AKB48: idols que podem ser possuídas e manuseadas através da venda de diferentes mercadorias (GALBRAITH, 2012). A nica forma de “possuir” a garota é através de itens variados que, ao serem colecionados, representam uma imagem maior. Assim como Chisato Moritaka nos anos 1980, que como cantora afirmou sua própria falta de habilidade e talento vocal; e o Onyanko Club e suas letras sexualmente sugestivas apesar do conjunto de regras que proibia qualquer prática deste tipo; o AKB48 confirma sua artificialidade em Love Election. Sendo as identidades socialmente fabricadas e parte de um contexto (CASTELLS, 1999), a identidade da idol existe em um cenário que mais valoriza uma fantasia. Mas para 135

Disponível em Acesso em 13 de Junho de 2016.

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que essa imagem se mostre coerente, as identidades das idols do AKB precisam ser afirmadas em todas as situações em que são apresentadas: isso impossibilita a separação da idol (a imagem presente na mídia) da garota de carne e osso. Por isso o retrato da idol no simulador de namoro é uma afirmação da sua identidade fabricada – a identidade feminina ideal –, pois atua nos limites definidos pelos homens como um mero objeto, um personagem de jogo. Neste sentindo, as confissões em Love Election, sejam aceitas ou rejeitadas, e que podem culminar em uma cena íntima, são imagens oficiais de uma realidade censurada. Segundo Wolf (1992) os corpos femininos são censurados para que apenas as versões oficiais sejam visíveis. Pode-se relacionar isso à regra que proíbe que as garotas exerçam suas sexualidades fora da vida de idol. Aqui, os usos do corpo são limitados a representações encenadas que não podem existir fora de si mesmas – como em Heavy Rotation. Por isso não há problema para os fãs jogarem um simulador que permite a conquista de sua idol favorita; é, na verdade, mais um exemplo de deslocamento do desejo sexual (GALBRAITH, 2012) que permite que a idol permaneça uma existência absoluta136. A idol como uma existência absoluta depende da proibição de atos sexuais que destruam a sua imagem, por isso a objetificação dela justifica sua falta de autonomia sexual e dá sentido ao que ela representa para o público. Novamente as imagens de idols simbolizam um ideal de identidade que não condiz com a realidade feminina: seja a realidade de outras mulheres ou de si mesmas. Após feitas as análises destes três produtos, nota-se que as identidades das idols são reforçadas pelo uso constante de suas imagens, misturando, assim, os papéis que elas ocupam dentro e fora da mídia. Suas identidades também são construídas e legitimadas a partir dos desejos e vontades de um público. A constante representação da idol na mídia confunde os limites das garotas na vida real – bem como o que o público espera delas.

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Segundo Galbraith (2012), Zettaiteki na sonzai.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta monografia teve como objetivo compreender como a idol é comunicada em diferentes plataformas midiáticas, buscando entender pontos como a importância da idol como produto cultural e o papel da mídia na disseminação dessas imagens. O objeto de estudo escolhido foi o grupo AKB48, devido à sua importância como principal idol group presente atualmente no Japão. Este estudo teve como problema identificar de que formas diferentes tipos de representações midiáticas de idols definem a identidade feminina ideal. Para isso, foram analisados um video clipe, um comercial e um game (voltado ao público masculino), relacionando-os com as pesquisas bibliográficas e documentais realizadas e utilizando a técnica de análise de imagem para a compreensão das mensagens comunicadas. A partir do referencial teórico foi percebido que maioria dos indivíduos acreditam que suas identidades dependem apenas da forma como desejam serem vistos e como se posicionam do mundo. Quando não se percebe o papel da própria sociedade e das instituições dominantes na construção de indivíduos, ou seja, quando se esquece da importância do contexto social em que se vive, também perde-se o entendimento do valor das representações na formação do ser humano. Diferentes sociedades se misturam, se conectam, se perdem, se transformam, e a cultura acompanha essas modificações e assume diferentes facetas para representar uma pluralidade de indivíduos diferentes. Acreditar que um sujeito assiste à essas transformações sem ser afetado por elas é esquecer-se da complexidade da vida contemporânea. Uma identidade fixa e plenamente unificada não sobreviveria em um mundo que não para de mudar. Esse mundo complexo e heterogêneo organiza os sujeitos em grupos através da diferenciação. Mulheres e homens estão em categorias diferentes que existem em um terreno irregular – uma relação de poder, então, se estabelece. Um dos artifícios mais efetivos para firmar esta relação desigual é a sexualidade. As possibilidades dos usos do corpo para as mulheres são definidas a partir da categoria, da relação à qual pertencem – do gênero feminino. Mas as identidades de gênero, sexuais e todas as outras identidades existem a partir de dimensões sociais, políticas e culturais, e se a mulher está inserida em uma categoria que está abaixo ou sujeita à outra – neste caso, a masculina –, isso afeta as dimensões que suas identidades assumem.

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A sexualidade pode ser usada como uma afirmação de identidades sexuais e comportamentos “corretos”, partindo de um contexto hierárquico em que a mulher, na maioria das vezes, sai perdendo. A grande disseminação de imagens (principalmente imagens sexuais) femininas firma ideais de beleza, e ajuda a perpetuar um mito que confina à mulher a sua própria aparência – retratada como um corpo, um objeto. Aí reside o seu “verdadeiro” valor. As garotas do AKB48 são comunicadas em diferentes produtos como adolescentes perfeitas mas, ao mesmo tempo, não representam adolescentes de fato. Estão mais próximas de uma fantasia masculina. As representações das idols dão destaque à sexualidade, mas as garotas em si não podem decidir os usos que fazem dela. A suposta adolescente ideal não tem, então, controle sobre o próprio corpo. A idol se mostra mais como um escapismo que os fãs homens podem acessar para aliviar as tensões do dia-a-dia. Neste sentido, ela é apenas um produto, que pode ser consumido como um livro, um jogo, um programa de televisão. A idol precisa existir como imagem e nada mais. Representações muito próximas podem revelar que a garota é comum e a fantasia é, então, destruída. Heavy Rotation mostrou, teoricamente, como as idols eram na vida real. Mas elas trocam beijos e interagem de forma íntima e sexual umas com as outras e também com a câmera. Tais ações não poderiam ser praticadas na realidade, por isso a mídia funciona como o “local” em que essas ideias tomam forma, estabelecendo os limites dessas representações. Quando esses limites são estabelecidos, pode-se construir a imagem das garotas do AKB48 sem interferências em sua identidade. O que o fã pode visualizar em Heavy Rotation já está decidido, e acaba ali. A representação da idol sexualizada em Heavy Rotation ilustra uma garota passiva à dominação masculina. A sua sexualidade só é exercida quando é falsa, uma brincadeira, e quando existe como um espetáculo para o público que a assiste. Tudo o que ela faz é para a câmera, e não para si mesma. Por isso ela é representada em uma casa fechada, sem a presença ativa de nenhum indivíduo masculino, onde o tempo é distante da realidade. Partir da definição de que Heavy Rotation mostra a vida real das idols, é encarar a sua sexualidade como algo inexistente e que não precisa ser levado à sério, pois um conjunto de regras explícito estabelece esse comportamento como proibido. Ele é aceito, porém, se servir aos própositos do consumidor – e a mídia tem, aqui, esse papel.

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Mas como reprimir a curiosidade sexual quando sua própria sexualidade é constantemente exposta em diferentes representações? Louro (2001) diz que a vigilância dos corpos não é o bastante para controlar as vontades e os desejos que uma pessoa possa ter sobre a vida sexual, e isso fica claro quando as idols do AKB48 protagonizam escândalos. Como separar a imagem ideal da pessoa verdadeira e de sua vida fora da mídia? A idol virtual Aimi Eguchi foi uma solução. Seu “criador”, o mesmo de suas companheiras reais. Eguchi, inteiramente formada a partir de outras garotas, é considerada superior, a idol absoluta, apesar de estar impossibilitada de existir fora da mídia – e o próprio espaço midiático em que Eguchi atua é menor que o das demais. O fato de estar inteiramente presa à mídia é o que a torna, na verdade, a idol perfeita do AKB48. Eguchi é imagem pura: tudo o que ela significa está no domínio das representações midiáticas. Aimi não pode ser sexualmente reprimida por simplesmente não possuir nenhum tipo de curiosidade sexual. Ela não pode quebrar nenhuma regra, não pode envelhecer, não pode protagonizar escândalos. O único defeito de Aimi Eguchi é não permitir uma aproximação maior do público – que busca por isso através do consumo de diferentes imagens, na forma de produtos. Por isso foi necessário disponibilizar Eguchi para reprodução: permitir ao público decidir sobre seu corpo – isto é, sua imagem – é a forma de deixá-lo consumir a própria idol. A falta de um corpo real impossibilita que a idol pise fora do domínio de sua representação – sua identidade permanece correta. Love Election faz algo semelhante com as idols verdadeiras. Elas são transformadas em personagens fictícias de um jogo, seguindo um enredo préestabelecido em um universo igualmente limitado. Aqui, o público possui todo o poder de decisão: não há possibilidade de escolha por parte da garota. A forma utilizada pelo fã de “possuir” o objeto desejado é através da ficcionalização: transformar as garotas reais do AKB48 em personagens de um simulador de namoros é como deixá-las mais parecidas com uma Aimi Eguchi. Love Election também funciona como uma afirmação do controle que o público tem sobre os corpos delas. A partir destas análises percebe-se, então, que a identidade idol e a identidade garota não podem se separar. O objetivo do presente trabalho era identificar as formas que diversas representações midiáticas das idols do AKB48 definem a identidade feminina esperada de garotas reais. Constata-se que o que a

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garota representa na mídia afeta como ela própria atua na vida real; é uma conexão necessária para a sua existência que se dá, somente, através de imagens. E sendo ela comunicada como o modelo ideal de adolescência, sua imagem transmite a mensagem de uma jovem sem autonomia, passiva à dominação masculina, sem vontades ou desejos próprios, construída por outros. Essa é a imagem da colegial – da adolescente – que é celebrada no Japão. A idol não depende de nenhum talento verdadeiro para se apresentar como o padrão: o modelo feminino, na verdade, é de uma garota que não é boa demais para afastar o público, é a menina que o fã masculino sente que está ajudando a progredir. Eles nem ao menos querem serem vistos como “fãs”, isso seria deveras passivo e configuraria uma relação de mão única. Eles são “apoiadores”, fornecem a base necessária e ajudam a idol a moldar uma imagem mais próxima do que querem que ela seja. Idol e imagem são, no fim, uma coisa só, e significam um ideal feminino que depende do masculino para ser correto. As ideias presentes neste trabalho dialogam com a realidade feminina em diferentes partes do mundo e atestam o poder da mídia, da publicidade e da comunicação como um todo na transformação da mulher em commodity e também na criação e afirmação de identidades. Se vê, a partir disto, a importância das imagens que são disseminadas no processo de comunicação, que funcionam como mensagens que afetam o imaginário coletivo. As idols são utilizadas na estratégia da marca AKB48 como uma série de fragmentos que podem ser coletados e manuseados, maximizando as experiências e os prazeres para o público que busca formar um quadro maior. Mas esses fragmentos são produzidos de forma a tornar a experiência sempre incompleta e limitada, transformando o consumo de produtos em uma tarefa contínua. Esta monografia poderia ser expandida para o estudo de idols virtuais, fênomeno que chama cada vez mais atenção no país. Também poderia ser realizado um estudo comparativo com imagens adolescentes disseminadas em outras culturas do mundo – analisando as dimensões que a mídia ocupa no estabelecimento de diferentes facetas de uma mesma identidade.

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