“Ih, voltou querendo fingir que é professora”: (re)construção de identidades em narrativas e avaliações de professoras de inglês

July 12, 2017 | Autor: T. Oliveira de Ar... | Categoria: Identidades, Professores De Inglês
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Congresso Internacional Linguagem e Interação 3

São Leopoldo, 2015

“IH, VOLTOU QUERENDO FINGIR QUE É PROFESSORA”: (RE)CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM NARRATIVAS E AVALIAÇÕES DE PROFESSORAS DE INGLÊS

Thamiris Oliveira de Araujo1 [email protected]

Resumo: O objetivo deste trabalho é buscar entendimentos acerca do processo de (re)construção das identidades de professores de inglês como língua estrangeira e da representação de suas práticas docentes, em particular, aquelas desenvolvidas em escolas municipais do Rio de Janeiro, a partir da efetivação do programa Rio Criança Global. À luz da visão socioconstrucionista da linguagem (MOITA LOPES, 2001, 2003), investigo como quatro professoras (re)constroem suas identidades profissionais através da afiliação a sistemas de coletividade (DUSZAK, 2002; SNOW, 2001). Conduzi esta pesquisa de cunho qualitativo-interpretativo (DENZIN e LINCOLN, 2006) em uma reunião na qual, além de pesquisadora, assumo o papel de participante junto a três professoras de inglês. As práticas narrativas são os espaços discursivos escolhidos para investigar o processo de construção das identidades, uma vez que, ao contarmos histórias, situamos os outros e a nós mesmos numa rede de relações sociais, (re)construindo identidades (BASTOS, 2005, 2008). Além disso, as narrativas são permeadas por avaliações que expressam valores, opiniões e sentimentos do narrador, contribuindo, assim, para maior entendimento do processo identitário. As marcas avaliativas são analisadas sob o enfoque do Sistema da Avaliatividade (Martin e White, 2005), considerando também as contribuições de Labov (1972) e Linde (1993) sobre o elemento avaliativo em narrativas. Os resultados da pesquisa mostram que avaliações de Afeto, Julgamento e Apreciação (MARTIN e WHITE, 2005) permeiam nosso discurso, atuando como recursos linguísticos que me permitem entrever diversos sistemas de coletividade que são acionados na construção identitária das participantes, de outros atores sociais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem e da rede municipal enquanto instituição de ensino.

Palavras-chave: Interação e ensino-aprendizagem de língua estrangeira; Rio Criança Global; identidade; narrativa; avaliação.

1. Introdução Investigar a identidade do sujeito professor significa pensar sobre as condições de trabalho na escola, o reconhecimento desse profissional na sociedade, as motivações da carreira docente e, dentre tantas outras questões, a relação entre professores e alunos, tema que abordarei no presente artigo. Analisarei narrativas de experiência pessoal produzidas por 1

Professora de inglês do ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal Fluminense, campus Maricá. Mestre em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio. 4

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um grupo de professoras de inglês atuantes em escolas municipais do Rio de Janeiro, tendo como enfoque a contribuição dos elementos avaliativos no processo de (re)construção de identidades pessoais, sociais e coletivas. Acredito que estudar as narrativas é uma maneira de estudar o ser humano, sua cultura e suas múltiplas identidades. Assim como explica Bastos (2008, p.77): “contar histórias é uma ação, é fazer alguma coisa – ou muitas coisas simultaneamente – em uma determinada situação social. Uma dessas coisas é, necessariamente, a construção de nossas identidades”. A partir de uma análise baseada em teorias da narrativa (LABOV, 1972; BASTOS, 2005; LINDE, 1993, 1997), e na Teoria da Avaliatividade (MARTIN, 2000; MARTIN e WHITE, 2005) proponho estabelecer uma correlação entre narrativa, avaliação e construção identitária. E, uma vez que a geração dos dados ocorre junto a um grupo de pessoas que exercem a mesma atividade profissional, em uma mesma rede de ensino, considero os conceitos de ingroupness e outgroupness2 (DUSZAK, 2002), assim como o conceito de weness3 (SNOW, 2001), que dão suporte para a investigação de identidades de grupos sociais ou identidades coletivas. A análise será realizada de acordo com uma metodologia qualitativa e interpretativista, sendo as questões propostas investigadas com base em práticas narrativas, as quais denomino como histórias e relatos de docência (ARAUJO, 2014), contadas pelas quatro professoras de inglês participantes da pesquisa durante uma entrevista não-estruturada (FONTANA e FREY, 1994).

2. Identidades e sistemas de coletividade Os atuais estudos da linguagem, da psicologia social e da sociologia que versam sobre a questão identitária partem da premissa de que as identidades são construídas socialmente através do discurso (perspectiva socioconstrucionista), afastando-se de uma concepção essencialista de identidades como qualidades inerentes dos seres humanos. Moita Lopes (2003: p.19) explica que a temática das identidades surge em meio a uma concepção de linguagem como discurso, ou seja, “uma concepção que coloca como central o fato de que todo uso de linguagem envolve ação humana em relação a alguém em um contexto interacional específico”. A noção de identidade é, portanto, um construto de natureza social, construída

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Ingroupness: afiliado ao grupo; outgroupness: não-afiliado ao grupo. We-ness: Sentido coletivo de nós. 5

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nas práticas discursivas em que interagimos com o outro em um determinado momento histórico. As práticas discursivas são os espaços onde as identidades sociais se manifestam, pois “embora a identidade possa ser construída de diversas formas, ela é sempre construída no simbólico, ou seja, na linguagem” (SARUP, 1996: p.48). Então, ao participarmos de uma prática discursiva, além de percebermos a identidade social dos outros e posicionarmos nossa identidade social baseados nessa percepção, também trabalhamos na reconstrução das identidades sociais dos participantes, assim como das nossas próprias, no momento da interação. Partindo dessa perspectiva, o processo de construção de nossas identidades passa de uma dimensão individual para uma dimensão social. Em outras palavras, pode ser encarado como um processo de coconstrução. O processo de coconstrução de identidades permite que indivíduos ratifiquem discursivamente afiliação a grupos sociais e profissionais. Para Snow (2001), essa noção de pertencimento a categorias identitárias, que demonstramos quando compartilhamos interesses, opiniões, atitudes e/ou atividades em comum, está ligada à noção de identidade coletiva. O autor entende o processo de (re)construção de identidades coletivas como o reconhecimento – consciente ou não – de um senso comum de “nós” [we-ness, no original], o qual se estabelece a partir de “atributos reais ou imaginários compartilhados e em experiências entre aqueles que compõem a coletividade e em relação ou contraste a um ou mais grupos de ‘outros’” (ibid., 2001: p.1). Duszak (2002) aborda o conceito de identidades coletivas através da distinção que fazemos entre o “nós” e os “outros”. Segundo a autora, essa distinção se desenvolve naturalmente, uma vez que costumamos nos aproximar de pessoas com as quais temos afinidades, enquanto nos afastamos daqueles que são diferentes de nós. A maneira como demonstramos proximidade ou distanciamento a um grupo proporciona afiliação/inclusão (ingroupness) ou não-afiliação/exclusão social (outgroupness), que são desenvolvidos “com base em nossos valores, crenças, estilos de vida, experiências e expectativas” (DUSZAK, 2002: p.2). Assim, somente ao comparar nós mesmos com os outros é que podemos construir nossos alinhamentos e não-alinhamentos. Portanto, é através de manifestações de solidariedade ou desinteresse em relação ao outro que (re)construímos nossas identidades, uma vez que, conforme afirmam Forgas e Tajfel (1981 apud DUSZAK, 2002: p.2), “nós somos o que somos, porque eles não são o que nós somos”.

3. Narrativa: modelo laboviano e outras questões 6

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Na década de 60, Labov e Waletzky iniciaram o desenvolvimento de estudos acerca da estrutura das narrativas orais de experiência pessoal. Labov e Waletzky (1967) estabeleceram, a partir de dados gerados em situação de entrevista, que a estrutura da narrativa é formada por orações relacionadas a eventos temporais do discurso relatado. Labov (1972, p.359-360) apresenta a narrativa como uma forma de “recapitular uma experiência passada, combinando uma sequência oral de orações à sequência de eventos que (podemos inferir) realmente aconteceu”. Os enunciados que apresentam sequencialidade temporal ao abordar um evento único do passado são denominados como histórias de docência, enquanto aqueles que enfatizam a recorrência de eventos que podem ainda ocorrer são chamados de relato de docência (ARAUJO, 2014). Embasada no modelo laboviano, defendo que os relatos de docência se incluem ao universo da narrativa, uma vez que apresentam reportabilidade. Conforme afirma o autor (1972: 370), “se o evento é deveras comum, não é mais uma violação da norma de conduta esperada” e, portanto, não é reportável. Labov e Waletsky (1967) acrescentam que uma narrativa, para ser considerada completa, deve ser organizada por meio de seis componentes estruturais, a saber: resumo, orientação, ação complicadora, resolução, avaliação e coda. Para o presente estudo, entretanto, apenas o elemento avaliação será relevante para discussão e análise. Os autores definem avaliação como “a parte da narrativa que revela a atitude do narrador em relação à estória, ao enfatizar a importância relativa de unidades de narrativa em relação a outras partes dela” (1967, p. 37). Em outras palavras, a avaliação é o ponto da narrativa, ou seja, é o meio que o narrador usa para demonstrar a razão da narrativa estar sendo contada. O ponto da narrativa também pode reforçar sua reportabilidade, explicando porque a estória seria (re)contável e relevante. Labov (1972) afirma que a avaliação possui a função de informar sobre a carga dramática e/ou emocional da situação e/ou dos protagonistas. Assim, a avaliação demonstra um envolvimento do narrador com a estória narrada e uma tentativa do narrador de envolver também seus interlocutores. As possibilidades de apresentação da avaliação em narrativas são categorizadas por Labov (1972) como avaliação externa e avaliação encaixada. Na avaliação externa, o narrador interrompe a narrativa para introduzir um comentário avaliativo, que pode ser uma opinião ou emoção acerca dos eventos, cenário ou personagem da história. Já na avaliação encaixada, o narrador introduz suas avaliações acerca da estória narrada durante o processo de narração, ou seja, não interrompe a sequencialidade da narrativa. Além disso, Labov (1972, p.378-380) chama atenção para alguns recursos linguístico-discursivos que são organizados na narrativa para intensificar determinado evento: 7

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• Gestos: às vezes usamos gestos ao invés de sons. • Intensificadores lexicais: muito, bastante, todos. Ex: “Na época éramos tão felizes!”. • Fonologia expressiva: elementos prosódicos como entonação, alongamento de vogal, aceleração ou diminuição do ritmo ou tom da voz. Estes elementos são demonstrados através de símbolos adicionados na transcrição dos dados. • Repetições de itens léxico-gramaticais: Ex: “Aí ele não voltou, não voltou, entendeu?”. Ainda sobre a questão da avaliação em narrativas, é essencial realçar os estudos de Linde (1997) que contribuíram para expandir a noção de avaliação da perspectiva laboviana. Segundo a autora (ibid.,1997, p.152), o elemento avaliação está presente em “qualquer instanciação produzida pelo falante que tenha sentido social ou que indique o valor de uma pessoa, coisa, evento ou relacionamento”. Em outras palavras, a avaliação trata da expressão de um julgamento normativo do falante, é parte importante da dimensão moral da linguagem. Linde (1997) redimensiona a noção de avaliação proposta por Labov (1972), para tomá-la como elemento de negociação em interações sociais. A autora (ibid.) considera a avaliação como uma prática social que, assim sendo, não pode ser entendida como expressão de significados morais de um só indivíduo, mas como uma coconstrução particular de julgamentos negociados entre narrador e ouvinte no momento da interação. Assim, nossas avaliações tornam compreensível o tipo de pessoa que somos ou que parecemos ser em determinado contexto social. Através das avaliações demonstramos quais comportamentos achamos adequados ou não e, consequentemente, deixamos transparecer nossos valores morais. Por isso, quando avaliamos um ponto específico da narrativa, uma experiência ou ação humana, estamos construindo a nossa identidade social e a identidade social do outro (a quem avaliamos).

4. Teoria da Avaliatividade: o sistema da Atitude

A teoria da Avaliatividade é dividida em três categorias que se interrelacionam: Atitude, Engajamento e Gradação (MARTIN & WHITE, 2005). O interesse teórico e analítico deste estudo concentra-se no sistema da Atitude, que lida com a expressão de sentimentos e opiniões. Assim, pretendo investigar como as professoras participantes adotam posturas morais, expressam emoções e constroem personas textuais (WHITE, 2012) através de argumentos elaborados e manifestados em suas narrativas de experiência pessoal.

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Martin identifica três dimensões de avaliação no sistema da Atitude: Afeto, Julgamento e Apreciação, respectivamente relacionados com emoção, ética e estética. Nóbrega (2009) adverte que, apesar de cada um destes subsistemas possuírem características próprias (que explicarei mais a frente), eles se encontram interligados a partir do Afeto. Segundo Martin (2000, p.147), o Afeto é considerado o “sistema básico”, uma vez que os demais subsistemas da atitude estão conectados ao campo das emoções. O Afeto indicará o quanto o autor do enunciado se encontra envolvido positivamente ou negativamente com o alvo de seu discurso. Em outras palavras, o posicionamento afetivo engloba respostas emocionais positivas ou negativas do autor. O subsistema Afeto pode ser classificado

em

três

categorias:

felicidade/infelicidade,

segurança/insegurança,

satisfação/insatisfação. E se pautam por três graus de intensidade: baixo, médio e alto. Além disso, o Afeto pode ser classificado em autoral (expresso em primeira pessoa, o falante/escritor toma a responsabilidade do posicionamento para si) e não-autoral (expresso em segunda ou terceira pessoa, o autor não assume a responsabilidade direta pelo seu posicionamento). Nóbrega (2009, p.95) explicita que, lexicalmente, o Afeto é representado, por palavras que denotam emoção, como por exemplo, por verbos (amar, adorar, odiar, enraivecer, agradar, sorrir, chorar, etc.), advérbios – geralmente de modo (felizmente, tristemente, etc.), adjetivos (feliz, triste, confiante, preocupada, etc.) e substantivos (alegria, ódio, raiva, etc.). Contudo, ressalta a autora (ibid.), tal categorização é apenas ilustrativa, pois a avaliação na Teoria da Avaliatividade vai além da léxico-gramática. Logo, sempre que expressamos como nos sentimos em relação a uma pessoa, coisa, acontecimento ou situação, estamos demonstrando uma avaliação no domínio do Afeto. O subsistema Julgamento conecta-se ao que Linde (1997) chamou de dimensão moral da linguagem, pois se relaciona à avaliação normativa dos comportamentos humanos, afastando-se da perspectiva do avaliador para considerar as qualidades do avaliado. Esse subsistema trata de regras convencionais de certo ou errado relacionadas a questões de moral e ética. Assim como o Afeto, o Julgamento também se orienta positivamente ou negativamente em relação ao comportamento em questão, pode ter sua intensidade graduada e pode ser feito de maneira mais ou menos explícita. No Julgamento, o foco de análise é “a linguagem que elogia, critica, aplaude ou condena certos comportamentos, ações, crenças, façanhas, motivações, etc.” (NÓBREGA, 2009, p.97). De acordo com Martin e White (2005), um Julgamento pode ser classificado em estima social ou sanção social. A estima social envolve admiração ou crítica, sem implicações 9

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legais, e se relaciona a aspectos de normalidade (o quão comum/incomum alguém é), capacidade (o quão capaz alguém é) e tenacidade (o quão decidido/confiável alguém é). Já os julgamentos de sanção social estão relacionados aos conceitos de veracidade (honestidade) e conduta (ética) de alguém ou de um grupo, podendo até ser comparados a um ato ilegal. O ultimo subsistema de posicionamento da Atitude, a Apreciação (MARTIN, 2000), volta-se para a avaliação positiva ou negativa, implícita ou explícita, intensa ou não, de objetos, performances e fenômenos naturais. A preocupação central desse subsistema encontra-se na estética, composição ou impacto do objeto sobre o avaliador. Martin e White (2005, p.56-57) classificam a Apreciação em três tipos: reação, composição e valor. A reação se subdivide em impacto (Prendeu minha atenção?) e qualidade (Eu gostei?). A composição se divide em equilíbrio (Faz sentido?) e complexidade (Foi difícil acompanhar?). O valor se refere à importância social (Valeu a pena?). Em seguida, apresento uma síntese do sistema da Atitude:

Figura 1 – O sistema da Atitude (ARAUJO, 2014: p.55)

5. Metodologia

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Este estudo insere-se no campo da Linguística Aplicada (LA), uma ciência social cujo foco volta-se para o entendimento de situações de “uso da linguagem enfrentadas pelos participantes do discurso no contexto social, isto é, usuários da linguagem (leitores, escritores, falantes, ouvintes) dentro do meio de ensino/aprendizagem e fora dele” (MOITA LOPES, 1996: p.20). Esta área de estudo procura refletir sobre situações reais de uso da linguagem para ser capaz de não apenas teorizar sobre a vida social, mas também problematizá-la, buscando compreender a sua complexidade. O paradigma de pesquisa que norteia a análise dos dados é qualitativo e interpretativista, isto é, considera “a natureza socialmente construída da realidade, a íntima relação entre o pesquisador e o que é estudado, e as limitações situacionais que influenciam a investigação” (DENZIN e LINCOLN, 2006: p.3). Para gerar os dados desta pesquisa, convidei três professoras de inglês para uma reunião com o intuito de conversarmos sobre nossas experiências profissionais, em especial, aquelas vivenciadas na rede municipal do Rio de Janeiro. O corpus constitui-se da gravação de nossa reunião que durou cerca de uma hora e meia. Para o presente estudo, contudo, apenas um trecho foi selecionado, cujo tema versa sobre a relação professor-aluno na rede pública de ensino. Os dados foram analisados visando discutir a construção de identidades pessoais, sociais e coletivas através de narrativas e avaliações segundo as perspectivas teóricas anteriormente propostas, bem como estabelecer uma relação entre avaliação, narrativa e identidade. Pretendo discutir, a seguir, como um grupo de professoras constroem significados sobre suas vidas profissionais e quais paisagens identitárias emergem nesta interação. 6. Análise dos dados Nos dados aqui apresentados, as professoras narram e relatam algumas situações de embates com seus alunos. Naquele momento conversávamos sobre o comportamento indisciplinado dos alunos. Algumas das ações citadas foram: os alunos entram correndo na sala, não nos dão bom dia, pedem a todo momento para beber água ou ir ao banheiro, dormem na aula, perguntam porque viemos para a escola trabalhar, etc. Ocorre também uma comparação entre dois tipos de professores: os que são mais respeitados e os que são menos respeitados. No excerto 1, Tainá inicia a cena três contando uma história de docência que ocorreu em uma de suas aulas na escola municipal. A partir deste excerto, as participantes começam a 11

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construir as identidades de seus alunos da rede municipal com base em situações nas quais eles demonstram um não alinhamento com as professoras em sala de aula. Excerto 1 Tainá

Carla Tainá

Carla

Tainá

Todas Tainá

01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20

é nessas horas que eu dou um fora.eu tava no quadro e falam alto pra você ouvir. “se eu fosse a professora ia pra casa.” aí eu nem me movi e continuei, “se eu fosse você eu calava a boca.” “ae:: uh::” ah é eles adoram, você dá um fora em unzinho. a turma toda adora aí, é o momento, depois desse u u que eles calam a boca, e aí você vai e taca matéria, que aí eles aprendem alguma coisa. porque ficaram calados depois do fora.e, eu acho isso chato cara. eles só, se, só param um pouco na grosseria. não conseguem, sabe? [ter um diálogo] [mas tem professor] que fala isso pra mim. que é grosso porque eles só entendem na grosseria. você ser...carinhosa, você ser legal, eles pisam em cima [de você]. [mas é o que] eu tava conversando lá. os professores mais velhos. são poucos mas são os mais respeitados.eles chegam e você passa assim, você vê... todo mundo quietinho, copiando, fazendo. a maioria dos mais novos, que são os ama:dos.e::u, o professor de ciências. sabem que são os esculachados. por que? os mais legais não tratam eles de qualquer jeito, não ficam [ ] [é::] não puxam pelo braço. sabe, tudo é na base do medo. eles não tem medo de você. eles gostam de você en[tão]

A narrativa apresenta momentos de avaliação encaixadas e externas à narrativa. Na fala relatada do aluno existe uma avaliação implícita no sentido semântico da oração “se eu fosse a professora ia pra casa”, que denota uma Apreciação negativa da aula ou da vida escolar ou, ainda, um JULGAMENTO negativo da professora. A fala relatada de si mesma, demonstra que Tainá entendeu o comentário do aluno como uma agressão a sua imagem de regente de turma, pois ela responde que ele deveria “calar a boca”. Mandar o aluno “calar a boca” funcionou como uma forma de devolver a agressão e reafirmar seu poder naquele contexto. No entanto, tal expressão pode ser considerada ofensiva, por isso a dimensão do Afeto negativo é predominante. Em seguida, Tainá relata a reação dos alunos perante tal diálogo através de sons “ae:: uh::” que simbolizam uma espécie de euforia causada pela resposta/“fora” da professora no colega de classe. A euforia pode ser entendida como uma Apreciação positiva de impacto e qualidade da situação narrada, o que é reforçado pelo comentário de Carla (ah é eles adoram, você dá um fora em unzinho. a turma toda adora, linha 04). A participante Tainá inicia as avaliações externas à narrativa, com uma Apreciação negativa da situação narrada (eu acho isso chato, linha 07). O pronome demonstrativo “isso”

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faz referência à resposta que a professora se viu obrigada a dar ao aluno, e o adjetivo “chato” exprime que ela não se sente confortável ao tomar tal atitude. Logo depois, a mesma tece um JULGAMENTO negativo do comportamento de seus alunos, que se relaciona a aspectos de normalidade e de capacidade, respectivamente (eles só, se, só param um pouco na grosseria. não conseguem, sabe? [ter um diálogo], linhas 07-08). Carla, então, relata a opinião de um terceiro professor, reforçando a avaliação negativa do comportamento dos alunos ([mas tem professor] que fala isso pra mim. que é grosso porque eles só entendem na grosseria. você ser...carinhosa, você ser legal, eles pisam em cima [de você], linhas 09-11). Ocorre um trabalho de coavaliação negativa da estima social dos alunos e de coconstrução identitária dos mesmos a partir destas críticas sobre seus comportamentos. Tal assunto dá margem a uma avaliação também dos professores e, consequentemente, a uma construção identitária desses profissionais. Tainá constrói avaliações de JULGAMENTO positivo para os professores mais antigos (os professores mais velhos. são poucos mas são os mais respeitados. eles chegam e você passa assim, você vê... todo mundo quietinho, copiando, fazendo, linhas 12-14) e JULGAMENTO negativo para os professores mais jovens (a maioria dos mais novos, que são os ama:dos. e::u, o professor de ciências. sabem que são os esculachados. por que? os mais legais não tratam eles de qualquer jeito, não ficam [ ] não puxam pelo braço, linhas 14-17 e 19). Ela atribui aos professores mais velhos o adjetivo “respeitados”, o qual é explicado pela descrição de uma conduta mais disciplinada dos alunos “quietinho”, “copiando”, “fazendo”. Já os professores mais novos são caracterizados por dois adjetivos que lhes conferem uma imagem positiva, “amados” (com ênfase no som) e “legais”, mas é o adjetivo negativo, “esculachados”, que sobressai na oração. As atitudes dos professores mais novos, descritas pela participante Tainá, podem ser consideradas as mais corretas para o contexto escolar, “não tratam de qualquer jeito” e “não puxam pelo braço”. Por conta disso, elas despertam uma avaliação na dimensão do Afeto positivo não-autoral nos alunos, construída através da expressão “não ter medo” e do verbo “gostar” (eles não tem medo de você. eles gostam de você en[tão], linhas 19-20). O Afeto positivo dos alunos é a explicação dada pela participante para a falta de respeito e disciplina que ela encontra em suas aulas (tudo é na base do medo, linha 19). A aproximação semântica dos substantivos “medo” e “respeito” evoca uma construção identitária do aluno como alguém que não respeita seus professores por apreciar ou considerar importante as suas aulas, mas por sentir-se acuado perante uma relação mais assimétrica. O turno seguinte é tomado por Carla que, no excerto 2, conta como é sua relação como professora de português com os alunos de outra escola. Trata-se de um relato de docência, 13

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pois sua fala aborda eventos recorrentes sobre seu cotidiano escolar. O ponto do relato é reforçar a narrativa anterior, uma vez que ambas constroem identidades similares sobre os tipos de professores através das avaliações. O processo de construção identitária do profissional da educação, que é tecido ao longo dos excertos 1 e 2, é marcadamente dicotômico, alternando entre características ora mais negativas ora mais positivas. Excerto 2 Carla

Tainá Suelen Carla

21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41

[aqui em São Gonçalo]quando eu dou aula.eu vejo muito assim, os professores que até, todo mundo sabe que: têm o maior respeito. que a turma toda tem medo, respeitam. mas na hora de eleger um professor representante, não são esses. esses não são escolhidos. escolhido é você que é legalzinha, você que deixa ir no banheiro toda hora. você que é boazinha, que trata eles que conta da sua vida. eu sou assim cara, eu sou assim com meus alunos. eles são adolescentes eu acho o máximo, eu já passei por isso. eles me perguntam, eu converso. eles me enrolam às vezes, eu converso e tal. eles me escolhem pra tudo. eles querem que euajude eles a dançar, euajude eles a fazer isso, eu ajude - mas eles dizem, “ih só na sua aula que acontece isso. só na sua aula que tem essa bagunça. só na sua aula” por que... eu não chego lá gritando, não chego lá não mando quaseninguém descer. não tiro de sala, não dou advertência, suspensão. eu deixo passar, fico ameaçando e não faço. os outros professores não. olhou pro lado, “DESCE, advertência lá embaixo”. eles mesmos falam. eles odeiam, acham os professores super chatos, mas respeitam. é, é muito difícil [você equilibrar] [e é triste né.] porque, elessabem, eles falam, “ah só na tua aula que acontece isso”, “pô, professora. não vai fazer nada não?” é, é. é eles falam mesmo.

Carla inicia seu relato tecendo uma avaliação de Afeto negativo não-autoral dos professores mais velhos (professores que até, todo mundo sabe que: têm o maior respeito. que a turma toda tem medo, linhas 22-23). Trata-se de uma avaliação sobre o envolvimento emocional dos alunos novamente com base em uma aproximação semântica entre os substantivos “medo” e “respeito”, transmitindo, assim, uma ideia de causa e consequência: os professores têm o maior respeito, porque a turma toda tem medo deles. Em seguida, ela começa a avaliar um tipo de professor que não desperta o medo nos alunos e que, por isso, é escolhido para representá-los (escolhido é você que é legalzinha, você que deixa ir no banheiro toda hora. você que é boazinha, que trata eles que conta da sua vida, linhas 24-26). Esse perfil de professor, ao qual a participante parece se enquadrar, recebe um Julgamento positivo através dos adjetivos “legalzinha”, “boazinha” e das ações “deixar ir ao banheiro”, “falar da sua vida” que denotam uma conduta menos rígida.

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Carla relata como é seu relacionamento com seus alunos, construindo um Julgamento positivo de sua própria conduta como professora. As avaliações ocorrem no nível semântico, através das ações que ela diz fazer ou não, e no nível fonológico, através das ênfases no som de algumas palavras (eu converso e tal. eles me escolhem pra tudo. eles querem que eu ajude eles a dançar, eu ajude eles a fazer isso, eu ajude (..) por que... eu não chego lá gritando, não chego lá não mando quase ninguém descer. não tiro de sala, não dou advertência, suspensão. eu deixo passar, fico ameaçando e não faço, linhas 29-34). E, enquanto constrói avaliações positivas de si, Carla tece um Julgamento negativo dos outros professores, utilizando o recurso da fala relatada que imita a voz e o tom dos mesmos (os outros professores não. olhou pro lado, “DESCE, advertência lá embaixo”, linha 34-36). A avaliação negativa dos professores “respeitados” e “temidos” traduz o que seria a interpretação de Carla sobre a avaliação dos alunos de tais professores. Por isso, ela lança mão de uma avaliação não-autoral de Afeto negativo de alta intensidade, baseada no verbo “odiar”, e de uma avaliação de Julgamento negativo, devido ao intensificador “super” e ao adjetivo “chato” (eles odeiam, acham os professores super chatos, mas respeitam, linhas 36-37). Mas não é só os outros professores que a participante avalia negativamente através de sua percepção sobre o olhar os alunos. Utilizando-se da fala relatada dos alunos, Carla constrói uma Apreciação negativa de suas aulas (mas eles dizem, “ih só na sua aula que acontece isso. só na sua aula que tem essa bagunça. só na sua aula”, linhas 31-32). A participante constrói uma identidade positiva dos professores que, assim como ela, assumem um posicionamento mais simétrico em sala de aula. No entanto, a mesma admite que os alunos confundem essa divisão mais harmônica do poder com uma liberdade para fazer “bagunça”. Nos excertos 1 e 2, Tainá e Carla elencam aspectos identitários de dois grupos de professores. Tainá faz referência explícita a categorias de identidade entre os professores “mais velhos” e os professores “mais novos”, enquanto Carla faz uma referência implícita a categorias de identidade entre os professores “mais rígidos” e os professores “menos rígidos”. Em seus discursos, Tainá e Carla se enquadram, respectivamente, no grupo dos professores “mais novos” e “menos rígidos”, e as outras participantes corroboram tal identificação através de suas coavaliações. À luz da teoria de Duszak (2002), vejo que ocorre um alinhamento entre as participantes (ingroupness) e um não-alinhamento entre elas e os outros tipos de professores (outgroupness). A distinção nós-outros entre os grupos de professores é tecida, muitas vezes, envolvendo o comportamento ou a opinião dos alunos. As participantes fazem uso de elementos avaliativos como adjetivos, verbos, substantivos e intensificadores, como destaco no quadro 1. 15

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Professores “mais velhos” e/ou “mais rígidos

Professores “mais novos” e/ou “menos rígidos”

Excerto 1 os professores mais velhos. são poucos mas são os mais respeitados. eles chegam e você passa assim, você vê... todo mundo quietinho, copiando, fazendo a maioria dos mais novos, que são os ama:dos.e::u, o professor de ciências. sabem que são os esculachados. por que? os mais legais não tratam eles de qualquer jeito, não ficam [ ] não puxam pelo braço. sabe, tudo é na base do medo. eles não tem medo de você. eles gostam de você en[tão]

Excerto 2 os professores que até, todo mundo sabe que: têm o maior respeito. que a turma toda tem medo, respeitam. (..) eles odeiam, acham os professores super chatos, mas respeitam escolhido é você que é legalzinha, você que deixa ir no banheiro toda hora. você que é boazinha, que trata eles que conta da sua vida.(...) mas eles dizem, “ih só na sua aula que acontece isso. só na sua aula que tem essa bagunça. só na sua aula” por que... eu não chego lá gritando, não chego lá não mando quase ninguém descer. não tiro de sala, não dou advertência, suspensão.

Quadro 1 – Processos de distinção identitária entre grupos de professores (ARAUJO, 2014: p.100)

Forma-se um paradoxo que é traduzido por Carla através de uma avaliação de Apreciação negativa sobre a relação professor-aluno (é, é muito difícil [você equilibrar, linha 37). Ao utilizar a repetição e o intensificador “muito” junto ao adjetivo “difícil”, a professora revela a complexidade envolvida no fazer pedagógico. Ao final do trecho, quando as outras participantes se manifestam, é para reforçar as avaliações já tecidas por Carla. Assim, Tainá começa a construir, no excerto 3, outra história de docência que vai abordar esse tópico da difícil relação entre docentes e discentes. Excerto 3 Tainá

Thami Tainá Carla Tainá Suelen Thami Tainá

42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 53 54

esses dias, foi o que. na volta das férias eu fiz alguma coisa, “cala a boca, gente, num sei o que lá”. aí a menina virou e falou assim... “ih, voltou querendo fingir que é professora.” pô, aquilo eu fingi que não ouvi, porque [ela não falou pra eu ouvir] [] e aquilo sabe, pô magoa. estudei tantos anos. to querendo fazer um trabalho legal com [eles] [eu vivo escutando isso] [e] eles falando que eu não sou professora. o que que eu to indo fazer lá? to indo [brincar com eles?] [outro dia eles falaram assim pra mim] [fiquei arrepiada com essa história] [é] é triste, eu ouvi, eu vi que ela não falou pra eu ouvir, fingi que não ouvi, mas fiquei chateada.

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Avaliações são encontradas encaixadas às falas das personagens da narrativa. Na fala que Tainá relata de si mesma, ela usa a expressão “cala a boca” referindo-se aos seus alunos. A avaliação se enquadra, então, no Afeto negativo de alta intensidade, demonstrando que a professora se sentia bastante insatisfeita com o comportamento dos alunos naquele momento. Na fala de sua aluna, a avaliação denota um Julgamento negativo em dois aspectos. Ao afirmar que Tainá estava “querendo fingir ser uma professora”, entende-se que a aluna avalia a atitude da professora de impor disciplina como estranha ao seu habitual e que não a considera capaz de se portar como uma professora de verdade, isto é, uma professora rígida. Percebo que, assim como nos excertos anteriores, a fala relatada de um(a) aluno(a) funciona como locus de uma construção identitária marginalizada das professoras participantes. Ocorrem também muitas avaliações externas à narrativa tanto no turno da narradora quanto no turno das demais participantes. A interjeição “pô” (linha 44) indica que a narradora avalia a situação no domínio do Afeto negativo, expressando um sentimento de infelicidade ou insatisfação com a resposta da aluna. Outras avaliações de Afeto negativo podem ser encontradas ao longo do excerto através de algumas escolhas lexicais. A presença do verbo “magoar” (e aquilo sabe, pô magoa. estudei tantos anos. to querendo fazer um trabalho legal com [eles], linhas 47-48), do adjetivo “triste” e da expressão verbal “ficar chateada” ([é] é triste, eu ouvi, eu vi que ela não falou pra eu ouvir, fingi que não ouvi, mas fiquei chateada, linhas 53-54) marcam um envolvimento emocional negativo da professora. Encontro ainda uma avaliação de Julgamento negativo na ação de “fingir que não ouviu” tomada pela professora com relação ao comentário de sua aluna. Duas outras participantes tomam o turno brevemente para contribuir com coavaliações. Eu teço avaliações semânticas: uma na dimensão da Apreciação, baseada no impacto negativo que a história me causou ([], linha 46) e outra na dimensão do Afeto, devido à escolha do adjetivo “arrepiado” que indica uma sensação de infelicidade ([fiquei arrepiada com essa história], linha 53). Carla tece um Julgamento que se relaciona ao aspecto da normalidade, ([eu vivo escutando isso], linha 49). Como essa avaliação tem função interacional de reforçar os comentários das colegas, pode também ser considerada uma avaliação negativa. Suelen resolve coavaliar a narrativa através da construção de uma outra ([outro dia eles falaram assim pra mim], linha 52), mas não consegue tomar o turno em um primeiro momento. No excerto 4, a partir da linha 55, a participante toma o turno e constrói uma breve história de docência seguida de um relato de docência. Tanto a história quanto o relato apresentam como ponto uma problematização da relação professor-aluno na rede pública. 17

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Excerto 4 Suelen Thami Tainá Suelen

Thami Suelen

52 53 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64

[outro dia eles falaram assim pra mim] [fiquei arrepiada com essa história] [é] é triste, eu ouvi, eu vi que ela não falou pra eu ouvir, fingi que não ouvi, mas fiquei chateada. ( ) falou assim “não gosto de você”, “engraçado eu também não gosto de você” porque eles falam assim “ah você não é uma boa professora” ai eu viro pra eles e falo “vocês são bons alunos?... a medida que vocês forem melhores alunos comigo eu vou ser melhor professora com vocês”. eu também tenho [muitos alunos que não gostam da aula] [porque eles acham que tudo é você] que eles não têm que participar, que eles não têm que fazer nada, que eles não têm que trazer material. porque e::les ali, a cultura da prefeitura do rio então, é assim... os alunos tem to::dos os direitos do mundo. os pais dos alunos tem to::dos os direitos do mundo. e o professor não tem direito NENHUM.

A história de docência é construída com orações no pretérito perfeito e falas relatadas (falou assim “não gosto de você”, “engraçado eu também não gosto de você”, linhas 55-56). Avaliações de Afeto negativo são encaixadas nas falas das personagens através da escolha lexical do verbo “gostar” na forma negativa. O relato se inicia quando a professora transforma as orações do pretérito perfeito para o presente simples, e passa a contar sobre eventos recorrentes em seu cotidiano escolar (porque eles falam assim “ah você não é uma boa professora” ai eu viro pra eles e falo “vocês são bons alunos?... a medida que vocês forem melhores alunos comigo eu vou ser melhor professora com vocês”, linhas 56-58). Nestas falas são encaixadas avaliações de Julgamento negativo. Na fala do aluno ocorre a negação do adjetivo “bom” para caracterizar a professora e na fala da professora ocorre o inverso. A maneira como os alunos se reportam à professora no excerto 4 reforça as críticas anteriores (excerto 1, 2 e 3) sobre a desconsideração dos alunos da rede municipal com relação à imagem e ao trabalho das professoras participantes da pesquisa. Tal crítica constrói suas identidades como alunos que se posicionam, por vezes, de maneira desrespeitosa. Eu teço um comentário com elementos avaliativos para corroborar a história e o relato de Suelen, me colocando como alguém que enfrenta os mesmos problemas que a colega. Trata-se de uma avaliação de Afeto não-autoral, pois eu abordo a avaliação negativa dos alunos sobre minha aula. Utilizo uma avaliação fonológica, com a ênfase no intensificador “muito”, e semântica, com a negação do verbo “gostar” (eu também tenho [muitos alunos que não gostam da aula], linha 59). Suelen projeta uma faceta da identidade dos seus alunos da rede municipal, com base em mais uma avaliação de Julgamento negativo. Tal avaliação se dá através de uma série de orações cujo sentido descreve um comportamento de irresponsabilidade e desatenção de seus

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alunos ([porque eles acham que tudo é você] que eles não têm que participar, que eles não têm que fazer nada, que eles não têm que trazer material, linhas 60-61). A participante finaliza seu turno com uma avaliação da prefeitura do Rio de Janeiro, a qual atua na construção de uma identidade institucional negativa da rede. Tal avaliação encontra-se no domínio da Apreciação negativa e é tecida devido aos elementos fonológicos – alongamento de vogal, ênfase no som, aumento do tom de voz – e ao sentido de crítica explícito na afirmação (porque e::les ali, a cultura da prefeitura do rio então, é assim... os alunos tem to::dos os direitos do mundo. os pais dos alunos tem to::dos os direitos do mundo. e o professor não tem direito NENHUM, linha 62-64). A afirmação de que aos professores são negados direitos na rede municipal, mobiliza um “senso comum de nós” que, junto às outras histórias e relatos anteriores, remonta uma identidade coletiva (SNOW, 2001) das professoras participantes da pesquisa como profissionais marcadamente subjulgadas e ignoradas pela instituição e pelos seus próprios alunos.

7. Considerações finais Este estudo teve por objetivo investigar a contribuição dos elementos avaliativos no processo de (re)construção de identidades de um grupo de professoras de inglês da rede municipal. Após a discussão apresentada, acredito ser possível estabelecer a relevância do elemento avaliação para as narrativas como locus de construção identitária. As crenças, opiniões e sentimentos das participantes foram veiculados em suas avaliações de julgamento normativo e filtrados analiticamente, principalmente, através da Teoria da Avaliatividade (Martin e White, 2005; Martin, 2000; White, 2013), que fornece um arcabouço teórico para categorizar as avaliações nas instâncias de Afeto, Julgamento e Apreciação. A coavaliação constante ocorrida durante a interação, que costurava as histórias e relatos de docência com tamanha fluidez, formou uma grande colcha de retalhos, delineando identidades coletivas das quatro professoras. A contribuição aqui proposta a partir da análise da (re)construção de identidades é obter um maior entendimento (i) das subjetividades que compõem os traços identitários das participantes ao se posicionarem como professoras de inglês da rede municipal do Rio de Janeiro e (ii) da representação desta rede municipal no discurso deste grupo de professoras. A análise dos quatro excertos selecionados apontou que, através da prática narrativa e da coavaliação dos episódios narrados/relatados, as participantes (re)construíram suas

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identidades como professoras. A interação abordou o campo das crenças pedagógicas sobre a relação professor-aluno, apresentando a (re)construção de identidades profissionais das participantes a partir da afiliação a um grupo de professores e a distinção de um outro grupo, processo

compreendido

por

Duszak

(2002)

como

ingroupness

e

outgroupness,

respectivamente. Assim, as professoras coconstruíram uma identidade positiva para si por formarem o grupo de professores mais legais e queridos pelos alunos, ao mesmo tempo em que construíram uma identidade negativa por também fazerem parte do grupo de professores que não conseguem manter a disciplina em sala de aula e que, por isso, sentem-se desrespeitados. Ao grupo das participantes da pesquisa se opõe o grupo daqueles professores que são temidos, por serem mais rígidos ou grosseiros e que, consequentemente, são respeitados pelos alunos. Ocorre, portanto, uma construção identitária coletiva (SNOW, 2001) das docentes com base na relação professor-aluno. À rede municipal é atribuída uma identidade institucional negativa, sendo acusada de não respaldar seus professores e negar-lhes direitos. A temática da relação professor-aluno revela um embate entre estes protagonistas da educação que se faz presente em algumas escolas da rede municipal do Rio de Janeiro, como demonstram os dados da pesquisa, e, quiçá, presente também em outras redes de educação pública e privada do país. Tal embate traz à baila a discussão entre modelos didáticos mais simétricos (adotados pelos professores mais novos e/ou menos rígidos) e assimétricos (adotado pelos professores mais velhos e/ou mais rígidos), assim como a visão do discente sobre os profissionais que adotam cada modelo. Podemos concluir que o sistema educacional ainda valoriza o papel do professor como autoridade máxima na sala de aula, e que as professoras que tentam se construir identitariamente de forma distinta podem sofrer represálias, podendo até deixar de ser reconhecidas como professoras, conforme exemplifica a fala relatada da aluna que intitula este artigo, a saber, “voltou querendo fingir que é professora” (linha 44).

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