Ilustração e heterogenia gráfica

July 24, 2017 | Autor: D. Silvestre da S... | Categoria: Identidades, Ilustração, Pós Modernismo, Banda Desenhada
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Ilustração e heterogenia gráfica Daniel Silvestre da Silva Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, Campus de Azurém, 4800-058 Guimarães,Portugal [email protected]

Resumo. A partir da segunda metade do século XX alguns ilustradores e autores de banda desenhada têm vindo a manifestar um descomprometimento com a ideia de estilo individual, revelando-o verbalmente e sobretudo através da produção de obras graficamente heterogéneas. Se por um lado este fenómeno evidencia paralelos com questões associadas à pós-modernidade - nomeadamente a crítica da autoria, as práticas da citação e da intertextualidade, o uso da auto-referencialidade, entre outros – por outro, a presença da narratividade na ilustração e na banda desenhada levanta questões sobre o modo como esta heterogenia gráfica se articula com o contexto representado ou com o próprio texto. Para abordar o problema da heterogenia, começamos por desenvolver sobre a ideia de estilo e de que modo está implicado na noção de identidade individual e colectiva, de maneira a poder formular a questão da alteridade estilística. Através da discussão de obras de Art Spiegelman, Saul Steinberg e Tiago Manuel, este artigo propõe quatro campos de acção que conduzem a produção da heterogenia gráfica: a liberdade formal, a evocação da memória cultural das imagens, as paródias com a identidade e a incorporação da alteridade. Keywords: Ilustração; banda desenhada; heterogenia gráfica; estilo; identidade.

1 Introdução A crescente diversidade de propostas que compõem a nossa cultura visual influenciou substancialmente o modo como alguns ilustradores contemporâneos têm pensado a questão do estilo, tendo-se tornado cada vez mais frequente lermos testemunhos de artistas, ou comentadores das suas obras, que revelam descomprometimento com a procura de um estilo individual e uma atitude que abraça a heterogenia gráfica. Se, por um lado, este fenómeno aparenta ser uma manifestação da influência da condição pós-moderna sobre as práticas artísticas na área da ilustração e bandadesenhada – nomeadamente devido à relativização da ideia de modelo de representação único, aos ensaios de dissolução da ideia de autoria, às práticas de citação visual e ao exercício da auto-referencialidade - por outro, a convivência que os ilustradores têm com a narratividade levanta questões sobre o modo como a heterogenia gráfica se relaciona com o contexto representado ou com o próprio texto. As obras dos autores tratados neste artigo, Art Spiegelman, Saul Steinberg e Tiago Manuel, são casos paradigmáticos no uso da variedade estilística e a sua diversidade é tão larga quanto o quadro de referências que pretendem evocar. Frequentemente as suas

obras têm sido tratadas como excepções dentro de um panorama onde a homogeneidade estilística é vista como uma assinatura autoral e por diversas vezes esta estratégia foi comentada no contexto particular das suas obras e dos temas que tratam (ver [1], [2], [3] e [4]). Este artigo, porém, pretende lançar bases para um entendimento alargado sobre o fenómeno da heterogenia gráfica como estratégia criativa, averiguando que factores estão em jogo na produção das imagens. Para abordar o problema da heterogenia começamos por entender a ideia de estilo, e de que modo abarca a noção de identidade individual e colectiva, para poder formular a questão da alteridade estilística. A noção de estilo pessoal nas artes visuais é uma ideia antiga que se manifesta no discurso dos nossos dias. A relação que esta noção tem com a autografia parece justificar a sua resiliência, sobretudo quando as imagens são o resultado de registos gestuais sobre um suporte. Embora o conceito de estilo seja um problema teórico bastante complexo, que alguns historiadores de arte contemporâneos evitem [5], [6] e que na prática artística seja uma noção relativamente obsoleta (talvez por sugerir a cristalização de procedimentos), o termo é ainda muito comum no discurso sobre a ilustração e está vinculado à ideia de identidade artística.

2 Sobre estilo O conceito de estilo é bastante abrangente nos seus usos. Gombrich refere que “o estilo é uma maneira distinta, e por isso reconhecível, através da qual um acto é realizado ou um artefacto é feito ou deveria ser realizado e feito” [7]. Nesta definição, a identificação do estilo com o acto em si, em detrimento da observação do seu resultado, torna-se manifesto nos diferentes usos do termo. Este tem vindo a ser aplicado não só à produção de imagens e objectos, como também a formas de escrever, falar, fazer música, gerir, vestir, andar, jogar, etc., e presume uma diferenciação identitária (individual ou colectiva) dentro de uma mesma categoria de actividades. Etimologicamente, o termo é proveniente do latim stilus, um instrumento metálico utilizado pelos romanos para escreverem sobre placas de cera. A relação entre autografia e identidade individual era já uma ideia presente durante os primeiros séculos da nossa era. A assinatura passou a ter valor legal durante o governo de Valentiniano III, no ano de 439. O subscripto, inicialmente utilizado na autenticação de testamentos, era uma pequena frase escrita pela mão do próprio interessado, onde atestava que subscrevia o documento em causa [8]. Na história da arte, a noção de estilo começou por surgir como um procedimento metodológico que visava organizar historicamente a crescente quantidade de artefactos trazidos à luz pela arqueologia do século XVII e XVII. No contexto da produção de imagens, a noção de estilo pictórico é utilizada para identificar imagens pertencentes a culturas inteiras, períodos temporais ou ao trabalho de artistas individuais [9]. George Kubler refere que “a noção de estilo há muito que é o principal modo do historiador de arte classificar obras. Através do estilo ele selecciona e dá forma à história da arte” [10]. A ideia de que um estilo é “um sistema de formas com qualidade e expressão significativas, através do qual se faz visível a personalidade do artista e a forma de pensar e sentir de um grupo” [11] atravessou o discurso da história da arte e encontra-se hoje bem estabelecida no domínio público. Esta ideia prevê que através da análise de um artefacto é possível atribuir a sua proveniência, porque o conjunto de circunstâncias –

sociais, culturais e históricas - que confluem na formação da identidade de um indivíduo estão inevitavelmente presentes no momento da criação. Dentro desta ordem de ideias, o contexto de onde surge o artista é um responsável directo pelo seu discurso visual, e o seu estilo individual equivale a um olhar pessoal, uma voz autoral, um modo de dar a ver o mundo a partir de uma experiência única.

3 Heterogenia gráfica como libertação Numa entrevista com Marshall Arisman, o pintor e ilustrador Thomas Woodruff referiu que ao fazer ilustrações de capa para romances literários sentiu necessidade de alterar o seu estilo pictórico para o acomodar ao estilo literário dos livros. Este refere que a capacidade que os escritores têm para se transformarem em quem eles querem não é geralmente permitida aos artistas visuais, porque estes têm de lidar com uma dimensão profundamente pessoal. No entanto, quando o fez, “apesar de tudo vir de um lugar profundamente pessoal, a ideia de poder viajar no tempo e viajar no estilo é bastante libertadora” [12]. A ideia de que seguir um estilo em particular limita o acto criativo é uma noção que tem sido verbalizada por alguns artistas visuais. David Hockney referiu que “o estilo é algo que se pode usar. Podemos ser como a pega-rabuda, retirando apenas o que queremos. A ideia de um estilo rígido pareceu-me então algo com que não nos devemos preocupar, aprisionar-nos-ia” [13]. Com efeito, no contexto da pós-modernidade, onde a ideia da universalidade das formas legada pela estética moderna é largamente colocada em causa e a história já produziu tantos modelos de representação que tendem a ser apropriados e transformados, cada modelo com as suas possibilidades e conotações, o artista visual tem à sua disposição um grande leque de possibilidades para visualizar as suas ideias. Numa entrevista em 2013, quando Art Spiegelman foi questionado sobre a variedade estilística do seu leque de produções, e sobre qual era verdadeiramente o “estilo Spiegelman”, este respondeu que “O estilo é aquilo que resta quando estás a tentar fazer bem qualquer coisa. (...) Tens de procurar por aquilo que estás a fazer e porque é que o estás a fazer. É então que descobres que aspecto é que deve ter” [14]. Para além da sua resposta nos permitir um vislumbre sobre a sua metodologia projectual, esta indicia uma preocupação com a necessidade de haver uma relação entre o contexto expresso nas imagens e o modo como são executadas.

4 Evocar a memória cultural das imagens Maus [15], de Art Spiegelman, é uma novela gráfica publicada em dois volumes que relata a experiência do pai do autor como sobrevivente do holocausto durante a Segunda Guerra Mundial. Numa entrevista Spiegelman referiu que quando se encontrava na fase inicial de desenvolvimento do projecto demorou bastante tempo até encontrar um estilo pictórico que tivesse uma leitura fácil e não fosse intrusivo na fluência da narrativa. No quinto capítulo do primeiro volume, foram inseridas quatro páginas que tinham sido

desenhadas em 1972, Prisoner on the Hell Planet1, narrando o seu sentimento de culpa sobre o suicídio da mãe, também ela uma sobrevivente do holocausto e interveniente em Maus. Estas quatro páginas estão desenhadas de uma forma claramente distinta do resto do livro. Na entrevista, Spiegelman referiu que: Prisoner on the Hell Planet foi algo que me aconteceu a mim, algo que me afectou de tal maneira que o estilo, fortemente afectado pelo expressionismo alemão, era apropriado. Os expressionistas não estavam a tentar pôr coisas nas telas, estavam a tentar pôr emoções nas telas, e essas emoções eram bastante podereosas e pessoais, e o estilo apropriado. Se eu me tivesse apropriado das emoções do meu pai e as tivesse retratado nesse estilo, teria sido muito desonesto. [16] Apesar da necessidade de clareza visual ao serviço da narrativa, expressa por Spiegelman, a dificuldade de definir um estilo gráfico em Maus parece ter incidido na conciliação de uma sobriedade do desenho que não exigisse demasiada atenção sobre si próprio, que permitisse uma leitura visual clara das cenas representadas nas vinhetas e, ao mesmo tempo, evocasse um período histórico através da visualidade, evidenciando algumas características das imagens desse tempo narrativo a que se refere. Muito embora Art Spiegelman esclareça que há atitudes distintas na forma como desenhou Prisoner on the Hell Planet e o resto de Maus, parece inegável que todo o livro contém ressonâncias da xilogravura do expressionismo alemão. Esse ímpeto referenciador é visível na citação visual que faz da famosa fotografia que Margaret Bourke-White tirou em 1945 no campo de concentração de Buchenwald; é visível na forma como se apropria de elementos do cinema da época em certas composições, e também é visível na forma como construiu o estilo pictórico. Neste sentido, Spiegelman utiliza o preto e branco, que o ajuda a manter uma analogia formal com a xilogravura do expressionismo alemão [17], como também a manter uma coerência simbólica com a gravidade do tema. Maneja o aparo fazendo uso de linhas paralelas e traço cruzado, que tanto configuram as manchas de claro-escuro como conferem um sentido de modelação tridimensional às formas e dão sentido de orientação aos planos - tão característico da história da gravura e ainda largamente utilizado por Kirchner, Heckel, Kollwitz ou Nolde; utiliza ainda o pincel para complementar áreas de meia-luz com grandes áreas a negro para obter altos contrastes e obter efeitos dramáticos. O sentido de perspectiva de Spiegelman, por outro lado, não está em consonância com as práticas expressionistas, onde o dinamismo na composição é sacrificado em função da leitura do espaço. Os pontos de vista de Spiegelman, na verdade, variam pouco mais do que as representações de frente, perfil e perspectivas pouco acentuadas – quebrar esta estabilidade iria alimentar a narrativa com uma velocidade e movimentos próprios de uma novela gráfica com heróis de acção. A ideia de que Spiegelman evoca a memória cultural das imagens como recurso de significação torna-se inequívoca em In the Shadow of no Towers [18], onde relata a evolução do seu entendimento relativamente aos ataques direccionados ao World Trade Center em 11 de Setembro de 2001 que, como habitante da baixa de Manhattan, testemunhou directamente. A estrutura desta narrativa autobiográfica apresenta uma natureza 1

Prisoner on the Hell Planet foi publicado em 1972 no fanzine Short Order Comix #1, editado pelo próprio autor.

fragmentária, próxima da reconstituição de uma experiência traumática, com quatro a cinco histórias a decorrerem simultaneamente na mesma página, deixando ao leitor a decisão sobre a sua ordem [19]. Além do relato da sua experiência directa, o livro comenta a Guerra ao Terror disseminado na comunicação social pela administração Bush, bem como tenta encontrar ligações a uma certa inocência anterior ao 11 de Setembro. Visualmente, cada uma destas linhas narrativas tende a ser desenhada de modo distinto, funcionando como diferentes vozes que se confrontam na reconstituição do fenómeno – há representações autobiográficas, desenhadas a linha espessa de pincel; referências à história da banda-desenhada americana, desenhadas com uma linha mais fina e coloridas com a textura pontilhada das antigas tramas do offset; há imagens digitais, por vezes exageradamente pixelizadas, que remetem para imagens televisivas; vinhetas desenhadas ao estilo de Winsor McCay em Little Nemo in Slumberland (com a assinatura de McSpiegelman), ou de outros autores da história da banda-desenhada americana. Seja através da simulação dos mesmo procedimentos utilizados nas imagens de referência, seja através da mimetização do seu efeito através de outros materiais, a referenciação é, em parte, estabelecida através do reconhecimento da tecnologia de visualização. As imagens sempre estiveram associadas a algum processo técnico que permite a sua visualização [20]. Em qualquer imagem, a tecnologia utilizada é indispensável para a sua significação, não apenas porque a própria tecnologia veicula a imagem, de uma forma ou de outra limitando as decisões do desenhador, como também porque as tecnologias carregam conotações relacionadas com o contexto do seu uso. Ao mimetizar a trama do offset de início do século para produzir uma alegoria que se apropria dos dois gémeos de Katzenjammer Kids2, ao reduzir a gama cromática às misturas possíveis entre o azul e o laranja para se retratar a si próprio dentro do clássico Bringing Up Father3, ou ao inserir imagens pixelizadas das torres gémeas, Art Spiegelman está a realçar aspectos das condições de produção e disseminação das imagens a que se refere ou se apropria.

5 Parodiar com a identidade Numa linha de produção que visava criticar a noção tradicional de autoria, a partir da segunda metade do século XX alguns artistas elaboraram paródias que punham em causa a noção de identidade artística. Harold Rosenberg refere que durante o período do pósguerra emergiram uma série de artistas que revolucionaram tanto a pintura com a escultura ao introduzirem um novo tema (subject matter), “o do mistério da identidade individual”. Entre estes artistas estava Saul Steinberg. Embora alinhado com permissas do expressionismo abstracto, comprometido com uma arte autobiográfica que pretendia trazer à tona um idioma único no qual revelava um ser subjacente à consciência, a obra de Steinberg desviava-se do “impersonalismo” de Reinhardt, Stella, Judd e outros minimalistas, bem como da procura de contacto com o eu singular e inatingível de Pollock e de Willem de Kooning. Segundo Rosenberg, Steinberg, pelo contrário, inclinado para a comédia “concebeu o teatro do Homem Abstracto, o Sr. Qualquer Um (e a sua mulher)” [21]. 2

Criada por Rudolph Dirks, Katzenjammer Kids foi publicada pela primeira vez a 12 de Dezembro de 1897 no American Humorist, o suplemento de domingo do New York Journal. 3 Criada por George McManus, Bringing Up Father foi distribuída de 1913 a 2000.

No trabalho de Steinberg a farsa é activa tanto nas figuras representadas como nos procedimentos da representação. Parte da sua produção que parodiava com a identidade artística foi feita através do questionamento da ideia de estilo individual. Como imigrante romeno e judeu fugido de Itália, Steinberg chegou aos EUA em 1942 consciente de como a distância da terra natal pode dar lugar a novas identidades. A forte presença de imigrantes de diversas proveniências, a crescente influência que as imagens do cinema e da publicidade exerciam sobre a sociedade e o desejo de ascenção social faziam dos EUA “o lugar para ele (...), uma terra onde todos estão muito ocupados em se tornar outra pessoa” [22]. Segundo Rosenberg, precisamente, o que mais atraía a atenção de Steinberg era a infinita capacidade dos seus concidadãos reinventarem as suas identidades. Num desenho de 1953, Techniques at a Party, há dezoito indivíduos interagindo e cada um deles está representado com técnicas distintas. A heterogenia visual identifica-se aqui facilmente com a heterogenia humana presente numa multidão, onde cada pessoa é um ecossistema particular que projecta para o exterior diferentes imagens de si mesmo. Aqui a paródia de Steinberg estabelece-se numa simetria - na mesma medida em que o desenhador simula os diferentes estilos, os indivíduos representados actuam com as suas máscaras. A farsa na representação identifica-se com a farsa dos representados. Mesmo que os estilos a que se refere escape ao nosso reconhecimento, imediatamente estabelecemos algum tipo de analogia entre o processo utilizado para a representação de cada figura e a sua identidade. O compromisso de Steinberg com “o mistério da identidade individual” manifestou-se muitas vezes através de desenhos com uma forte componente auto-referencial – “a minha linha quer constantemente recordar que é uma linha” [23]. Num ensaio que tenta averiguar se as imagens dispõem de uma meta-linguagem, um discurso de segunda ordem auto-reflexivo, que nos diga algo sobre a sua natureza, W.J.T. Mitchell estabelece o conceito de meta-imagem (metapicture). As meta-imagens são imagens que têm a capacidade de se referir a si próprias, a outras imagens ou a uma classe de imagens; são “imagens que se pensam a si próprias, que se mostram de forma a dar um melhor conhecimento de si” [24]. Techniques at a Party não encena nenhuma outra imagem em particular que possamos identificar, todavia cita diversas classes de imagens – não são pessoas coisas ou lugares que vemos aí citados, mas antes modos de os representar. Na esmagadora maioria das vezes um cartonista investe na criação de personagens-tipo, todavia, em vez de criar situações com o homem de negócios, o político, o médico, o advogado ou o zé-povinho, Steinberg lida com estilos-tipo.

6 Incorporar a alteridade Em 1942, Steinberg trabalhou para a Agência de Serviços Estratégicos norte-americana (Office of Strategic Services) numa operação de guerra psicológica (Operation Cornflakes), onde desenhou cartoons para o falso jornal Das Neue Deutschland, produzido, impresso e distribuído à socapa pelos aliados como um jornal de resistência interna - a propaganda estrangeira não teria um poder de persuasão tão forte. Como desenhador, Steinberg adoptou a personagem de um cartonista editorial amador alemão com instinto expressionista, que reflectia a passagem pelo ensino artístico de uma escola dos anos 20 na Alemanha. Nas palavras de Charles Simic, estas imagens deveriam obrigatoriamente ter uma “contenção estilística; a menor incursão que fosse demasiado original, ou por

outro lado, demasiado paródica, poderia soar a falso e deitar tudo a perder” [25]. É possível que estes desenhos fingidos de Steinberg lhe tenham indicado caminhos sobre as possibilidades criativas da apropriação estilística, mas acima de tudo eles apontam para os diversos factores a ter em conta quando um desenhador se coloca na pele de outro desenhador. A discursividade visual, os conhecimentos formais na configuração das imagens, a tecnologia utilizada para as fazer e a atitude gestual convergem durante a execução destes desenhos. Entre os produtores de imagens que mais esforços fazem por simular processos alheios e esconder a sua identidade gráfica estão os falsários. Em 2004, numa entrevista ao jornal Die Welt, quando o falsário Edgar Mrugalla foi questionado acerca do sucesso das suas falsificações referiu que “Lia tudo sobre o artista. E, por exemplo, antes de pintar um Liebermann, tomava um café com conhaque pela manhã, tal como o fazia também Liebermann” [26]. Embora esta passagem seja algo anedótica, Mrugalla enfatiza de um modo claro a dimensão performativa inerente ao acto do desenho. Após recolher toda a informação que consegue sobre o trabalho de Liebermann, Mrugalla alega que através da imitação dos seus hábitos cria as condições necessárias para produzir a pintura que teria feito Liebermann. O método de Mrugalla tem afinidades com o método de construção de personagem na representação dramática. Em An Actor Prepares, Constantin Stanislavski resume o trabalho de preparação do actor da seguinte maneira: Primeiro que tudo deves assimilar o modelo. Isto é complicado. Estuda-o desde o ponto de vista da época, do tempo, do país, condições da vida, antecedentes, literatura, psicologia, a sua alma, o seu modo de vida, a posição social e a sua aparência externa. Para além disso estudas o seu carácter, tal como é costume, a sua maneira, movimentos, voz, discurso, entoações. [27] Muito embora um falsário como Mrugalla, ou Steinberg com os desenhos que fez para o Das Neue Deutschland, não procure convencer através da representação dramática, ambos procuraram fazê-lo através das imagens que o seu personagem teria feito. Quando Steinberg faz cartoons através do personagem do cartonista amador alemão há efectivamente uma noção de época e geografia, que é visível através das influências do desenho expressionista; a sua psicologia é a de um resistente que ajuda com os meios que tem para propagar a denúncia de Hitler; atribui-lhe os antecendentes de alguém que não teria estudado artes muito aprofundadamente, e faz notá-lo através do desenho tosco, da composição e relação palavra/imagem pouco imaginativa – Steinberg dificilmente teria assinado uma redundância tão clara entre o título (Der Schuldige, O Culpado) e todas as mãos que apontam para Hitler, cuja sombra é a imagem da morte. O estudo prévio do personagem, proposto por Stanislavski, procura a mesma coerência contextual que a história da arte alega anteceder a produção dos estilos pictóricos. Este movimento interior de apropriação das características de um outro, real ou imaginado, para através dele dizer algo é um fenómeno criativo frequente em literatura, mas relativamente raro nas artes visuais. A afirmação de Thomas Woodruff, sobre a libertação que resulta da adopção de personalidades e perspectivas diferentes que se manifestam numa heterogenia estilística parece ser levada à letra pelo ilustrador/autor Tiago Manuel. Autor de uma vasta obra heteronímica, Tiago Manuel tem explorado diversos imaginários ao longo de uma série de publicações sob os nomes de Terry

Morgan, Murai Toyonobu, Tom McCay, Tim Morris, Max Tilmann, Marriette Tosel e Tamayo Marín. À semelhança de Fernando Pessoa, Tiago Manuel confere uma breve biografia a cada um dos heterónimos, e ao atribuir-lhes diferentes nacionalidades permite-lhe deslocar-se para diferentes esferas de influência cultural. No entanto, apesar da comparação com Pessoa por via do uso da heteronímia, o autor faz uma distinção. Numa entrevista à Rádio Universitária do Minho, a 20 de Junho de 2013, o autor referiu: “eu não comecei com a heteronímia no sentido pessoano. Isto é, enquanto Pessoa inventava um perfil, uma geografia e uma profissão para os seus personagens e tentava viver uma outra vida num exercício quase de ilusão...” [28] A heteronímia de Tiago Manuel não pretende fazer crer que os diferentes autores são efectivamente pessoas distintas. Utiliza invariavelmente a assinatura T.M. que coloca dentro de um círculo, como elemento identificador em todos os desenhos. “Se eu quisesse enganar as pessoas não punha lá o elemento identificador”, refere. As biografias ficcionadas que constrói para os seus autores nunca pretendem ser tão elaboradas como as de Pessoa. A sua abordagem à heteronímia parece ser um modo de jogar com a ideia de outro sem nunca deixar a farsa impor-se totalmente. Por outras palavras, Terry Morgan, Max Tillmann, Marriete Tosel, etc., nunca pretendem deixar de ser Tiago Manuel. Um pouco mais à frente na entrevista não deixa de explicar que há uma distinção muito clara no modo como gere os heterónimos. Com os heterónimos femininos desenvolve temáticas relacionadas com o “universo dos afectos, tudo o que é pessoal”, os “aspectos confessionais ou autobiográficos”; com os heterónimos masculinos elabora reflexões sobre o colectivo - “sempre que é uma reflexão profunda e alargada, sobre os problemas do mundo, apareço como homem”. Esta compartimentação sugere desde logo que a heteronímia de Tiago Manuel é talvez uma forma de explorar a diversidade dos seus interesses sem ter que fazer sacrifícios pela harmonia da obra. Ao atribuir proveniências culturais distintas a cada um dos heterónimos, Tiago Manuel parece ainda servir-se deles para explorar as várias dimensões do seu imaginário visual. Embora a personagem/autor que constrói se baseie por vezes em dados autobiográficos - como é o caso de Terry Morgan, baseando-se na sua própria infância, adolescência e viuvez para construir situações que descreve através do desenho – a proveniência cultural que lhes atribui é decisiva no modo como planeia os atributos estilísticos: “a Terry Morgan, que eu assumo como mulher, é uma irlandesa. E os desenhos que eu desenho como uma irlandesa pertencem à tradição da ilustração e não da pintura.” Tal como com o cartonista alemão de Steinberg, Tiago Manuel tem em conta os factores que influenciaram o desenho de Terry Morgan. As situações caseiras, o facto de todas as ilustrações serem trabalhadas até ao limite do rectângulo, a construção do espaço como um cenário onde as figuras agem, o uso da caneta que recorda a importância que a gravura teve na ilustração, são características que podemos peneirar das obras que fazem essa tradição da ilustração - John Tenniel, George Cruikshank, na entrevista Tiago Manuel refere William Hogarth – sobretudo inglesa. Do mesmo modo acontece com já não há maçãs no paraíso, de Max Tilmann. Este é um livro atormentado com os problemas do mundo, onde encontramos duas séries de desenhos intercaladas uma com a outra. Na primeira há sempre um título em página oposta à ilustração (“guerras”, “pena de morte”, “fome”, “refugiados”, entre outros), e na segunda vemos diversas possibilidades do acto sexual. Tanto a gravidade dos temas como o próprio desenho, segundo o autor “obviamente se inspira na arte do pós-guerra do Joseph Beuys, escola de Düsseldorf”.

Ao contrário de Mrugalla ou Steinberg em Das Neue Deutschland, Tiago Manuel não procura iludir o leitor relativamente à autoria das suas obras. Apesar da versatilidade que reveste a sua obra, existem ainda assim hábitos do seu desenho que tanto ocorrem em Terry Morgan como em Max Tilmann e restantes heterónimos. Muito embora a heteronímia se constitua como uma paródia com a noção de identidade artística, a incorporação da alteridade em Tiago Manuel é sobretudo uma estratégia criativa que o leva a projectar-se no outro, na sua experiência e na sua herança cultural, e construir um discurso sobre as suas preocupações a partir daí.

7 Conclusão O objectivo deste artigo foi o de tentar perceber a heterogenia gráfica enquanto estratégia criativa, procurando entender as decisões dos artistas que a ela recorrem. A formulação de Rosalind Krauss sobre o pastiche, a propósito do Picasso dos anos 10, talvez não seja totalmente despropositada neste contexto: “O pastiche como prática artística expressa assim a experiência subjectiva do estreitamento intolerável da inventividade, devido às limitações inerentes à estrutura organizadora de uma arte” [29]. A apropriação clara de estilos alheios revela não só um interesse na invenção formal como também no desejo de dialogar com a história das imagens e usar o desenho como linguagem que se habita. Não deixa de ser curioso que todos os exemplos aqui discutidos têm em comum uma forte componente autobiográfica, como se recordassem Montaigne quando este diz que todo o homem é uma manta de retalhos de diversas proveniências, que age de modo distinto em circunstâncias distintas. Spiegelman, Steinberg e Manuel tiveram em conta o estilo como um factor visual para comunicar como um indivíduo pode ser diverso e produzir olhares que não são necessariamente coerentes entre si. (referir 4 factores)

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