IMAGENS DE DUAS CIDADES NAS CRÔNICAS DE RICARDO PARANHOS

July 31, 2017 | Autor: V. Rezende Borges | Categoria: History, Cultural History, Crónica y periodismo literario, Cidades, Crónicas, Ricardo Paranhos
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Imagens de duas cidades nas crônicas de Ricardo Paranhos

IMAGENS DE DUAS CIDADES NAS CRÔNICAS DE RICARDO PARANHOS IMAGES FROM TWO CITIES IN THE CHRONICLES OF RICARDO PARANHOS Valdeci Rezende Borges1 Cleber Jacinto Dias2

Resumo: Neste artigo, a intenção é abordar, por meio das crônicas de Ricardo Paranhos, as representações por ele elaboradas sobre algumas cidades da região, pensada como território e lugar de cultura. Por um lado, atém-se à cidade goiana de Catalão, e, por outro, à mineira de Araguari. O objetivo é perceber as imagens produzidas sobre elas, fruto do olhar do cronista, que focou alguns aspectos de suas práticas sociais, de sua cultura urbana letrada. Palavras-chave: cidades, representações, Ricardo Paranhos.

Abstract: In this article, the intention is to address, by means of Ricardo Paranhos chronicles, the representations elaborated by him about some cities in the region as territory and place of culture. On the one hand, it is referred to Catatão, Goiás, and, on the other hand to Araguari, Minas Gerais. The aim is to realize the images produced about them, as a result of the writer’s point of view that focused at some aspects of social practices, its literate urban culture. Keywords: a city, representations, Ricardo Paranhos.

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Dr. em História pela PUC/SP. Prof. do Departamento de História e Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão. Pesquisador CNPq. E-mail: [email protected] 2 Graduado em História pela Universidade Federal de Goiás, Campus Catalão. Emblemas - Revista do Departamento de História e Ciências Sociais - UFG/CAC

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As cidades têm sido objetos de investigação histórica sob diversos olhares. O espaço urbano, como produto das atividades humanas e objeto de cultura, revela práticas nele realizadas, guardando marcas de comportamentos e de relações estabelecidas no seu interior ao longo do tempo. Pesquisar as práticas, os modos, os lugares e os objetos da ação humana em algumas cidades da região, circunvizinhas de Catalão, por meio das suas representações nas crônicas de Paranhos, possibilita-nos lê-las e captar as especiicidades a elas atribuídas, conhecê-las através de seus habitantes que foram, pelo cronista, eleitos e destacados como emblemáticos na construção de traços de uma identidade, de um modo de ser de tais sociedades. As representações tecidas sobre as cidades propiciam-nos acessar experiências urbanas vivenciadas e apreendidas por seus habitantes, observar práticas e imagens delas construídas no tempo e no espaço, as memórias acerca do vivido e desejado por aqueles que as habitavam e que nelas deixaram suas marcas (PESAVENTO, 2007, p. 11).

PARANHOS, A IMPRENSA E AS LETRAS: POR ENTRE CRÔNICAS E MEMÓRIAS Paranhos nasceu em Catalão (GO), em 1866. Estudou nos Colégio Nosso Senhor do Bonim, de Entre-Rios (Ipameri, GO); no Colégio Genettes, de Paracatu (MG); no Colégio Moretzsonh (SP). Prestou exames no Curso Preparatório à Faculdade de Direito do Largo de S. Francisco, mas abandonou os estudos, voltando a Catalão, por razão de saúde. Foi boêmio, seresteiro, político, bom orador e advogado prático (rábula). No Rio de Janeiro, publicou O Crime de Catalão e Os Canibais, em 1898, tratando da violência em sua terra antes de 1894, do assassinato de seu pai por questões políticas, abordando “um ambiente de terrorismo político, onde prevalecia o coronelismo armado de capangas”. Com a República, as relações de força desenvolvidas em Goiás excluíram sua família da política. Atuou na imprensa como redator do jornal Goyaz e Minas, editado em Araguari e, ao que parece, depois, em Catalão, onde colaborou no jornal Sul de Goiás. Por motivos políticos, mudou-se para Minas Gerais, primeiro, em 1908, para Estrela do Sul e, depois, em 1911, para Araguari, onde colaborou no jornal O Triângulo nos anos de 1920 e 1930. Seus úl-

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timos anos de vida foram em Corumbaíba (GO), falecendo em 1941(VIEIRA, 1972, p. 1-2; VAZ, 1984, p. 37; KLEIN, 1999). Na imprensa, publicou poesias e crônicas sobre vários assuntos. Tratou da oposição entre os tempos antigos e modernos, da cultura letrada e popular, da urbana e rural, de práticas de sociabilidade, como o batuque, a serenata, as cavalhadas, as festas religiosas de santo, as profanas de casamento e aniversário, de clube informal de diversão, da cachaça, de iguras de chefes políticos, de coronéis e de caboclos, como o índio Afonso, de músicos, de capoeiras, de oradores, conferencistas e poetas, de poesia e conferências, de visitas ilustres e honrosas, das cartas e cartões nas sociabilidades intelectuais e pessoais, de vigários esquisitos, de brincadeiras infantis, de pessoas ilustres da e na cidade, de certos lugares, como casas, de coisas naturais e sobrenaturais, de atividades esportivas, como o futebol, do jogo do bicho, de fatos políticos. Por tais escritos, calcados na memória, podem-se conhecer facetas da cultura urbana da região. Na crônica “Nos tempos antigos”, busca, na memória traços característicos de épocas passadas e perdidas, marcadas pela presença de “caráter” e de “hones-

tidade” nos costumes sociais, tratadas com saudades, pois contrapostas aos tempos “atuais”, da “civilização” e do “progresso”. Nos tempos antigos, vistos sob a ótica da moral, “tudo era atrasado”, mas era “tempo do bem e da ordem”. Já no momento no qual escrevia, a civilização dissolvia a tradição e seus valores. [...] Mas aqueles tempos, apesar do atraso, tinham uma grande vantagem sobre os atuais: neles havia caráter em abundância, o que nos falta quase por completo. Essa falta tem sido considerada como uma das nossas crises morais graves. Será, porventura, o caráter incompatível com a civilização? Se assim fosse, seria o caso de se preferir o atraso ao progresso. O homem de hoje se distingue pela inteligência e a cultura; o antigo se impunha pela honestidade e o caráter. A civilização traz a dissolução dos costumes. Quanto mais civilizado o meio, mais corrupto (PARANHOS, 1972, p. 337-8).

Se, por um lado, a inteligência e a cultura eram aspectos positivos da civilização, do tempo atual, por outro, a insegurança, a falta de ética e de respeito, as incertezas, eram marcas do tempo do progresso. O cronista recorda certos costumes antigos, de grande

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sentido social, que foram suprimidos pelo novo tempo, da falta de escrúpulo para atingir o sucesso em tudo, a qualquer custo. Antigamente um io de barba servia de documento; hoje, nem o próprio documento, por mais rigoroso que seja tem valor. [...] Nos tempos antigos não se encontrava um homem velhaco; hoje é raro ver um que seja sério. Em comércio, em política, em tudo, o não ter escrúpulo é hoje condição indispensável de sucesso. Quanto menos escrupuloso o indivíduo, mais facilmente tem em fazer fortuna ou em galgar posições elevadas (PARANHOS, 1972, p. 338).

Os tempos do “atraso” eram os tempos da “vida mais suave”, mais “inocente”. Em contrapartida, o avanço do novo tempo foi visto como da “falta de lealdade” e do “passar a perna” no próximo: Hoje, a gente precisa ser velhaco, para se livrar dos velhacos. Um homem sério e consciencioso não pode viver tranquilo nos tempos atuais; o ambiente lhe é completamente hostil. Caráter, cousa própria dos bobos da antiguidade.

Velhacaria, - progresso e civilização (PARANHOS, 1972, p. 338).

Para Paranhos, no novo tempo, quase se extinguiram certas posturas, como a humildade, a benevolência e a honra, comuns nos tempos do “atraso”. Opondo aos tempos antigos, de pessoas e laços cordiais, sem hostilidade e velhacaria, da vida simples, do desfrutar de afeto e de herdar caráter, ediicou a imagem de um tempo nada inocente, cujas novas práticas nefastas considerava como “avanço”. Eis porque, apesar do atraso dos tempos antigos, tenho tanta saudade deles. A vida era mais suave, mais inocente. Não era esta falta de lealdade, este formidável avanço em que se vive, cada qual procurando passar a perna no próximo! (PARANHOS, 1972, p. 338).

Os tempos antigos, do atraso, eram de vida ordeira e pacíica. Já na cidade do progresso, o lugar e a existência das pessoas eram marcados pela intranquilidade, hostilidade e práticas condenadas. A violência não era sinal do atraso, mas, sim, dos tempos da civilização, do hoje, no qual o cronista vivia. Assim, Paranhos dista da visão de historiadores catalanos,

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chamados por Ribeiro (2002, p. 22) de amadores, os quais caminharam em sentido contrário, ao associar violência e atraso em oposição ao progresso, à civilização, à ordem dos tempos ditos “atuais”. Contrapondo ao que via a seu redor no presente, o cronista restaurava o passado por meio de suas memórias. Suas crônicas registraram e são repositórios de memórias de fatos da vida cotidiana da cidade de Catalão e das cidades circunvizinhas, por onde ele vivera. Para Nora (1993, p. 19), buscar um sentido para o passado na história-memória, ocorre a partir de uma brecha entre o presente e o passado, expressa num antes e depois. Paranhos, ao recorrer a certas lembranças contidas em sua memória, transpondo-as para o universo da crônica, produz registros da história do que via acontecer ou do que ouviu dizer. REPRESENTAÇÕES DE CATALÃO: UMA CIDADE DAS LETRAS Paranhos produziu uma série de crônicas sobre algumas cidades da região, tais como “Catalão” (5); “Estrela do Sul” (2) e “Araguari” (2). Mas outras, mesmo com títulos diversos, também se referem

a tais cidades. Delas, emergem imagens, dispersas e fragmentadas, de tais lugares, e o foco recai, sobremaneira, nos aspectos intelectuais. As cidades foram apresentadas, sobretudo, como lugar de práticas intelectuais e de agentes socioproissionais, que lidavam com o universo da cultura letrada e a possuíam, ainda que alguns aspectos materiais e tecnológicos também tenham sido apontados. “Nos tempos antigos”, encontra-se referência direta à cidade de Catalão, embora a abordagem possa ser estendida às outras cidades da região. O texto remete a anos próximos de 1891, quando Paranhos fora Deputado na Constituição Goiana. Nele, a imagem da cidade está ligada ao “atraso” ao tratar dos meios de transporte e de deslocamento usados na integração entre Catalão e Goiás para realizar as atividades legislativas: Nos tempos antigos tudo era atrasado, a começar dos meios de transporte, que eram o lombo do burro e o encapotado carro de boi; de eixo rotativo e rodas com cravas grandes em relevo, pesadão, ronceiro e de chiar monótono. Que viagens custosas e demoradas! Quantas vezes não fui eu de Catalão a Goiás, a cavalo, a im de tomar parte nos trabalhos legislativos! 80 léguas escan-

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chado, como uma tesoura aberta, no lombo de um burro trotão, dias e dias exposto à inclemência do sol, que me punha vermelho como tijolo cru e me pilava por completo o apêndice olfativo (PARANHOS, 1972, p. 337).

Os tempos antigos, do “atraso”, foram caracterizados por se servirem de meios de locomoção de tração animal, pela diiculdade da viagem, pelo desconforto de tais meios e pelo longo tempo gasto nos percursos. O cotidiano urbano era marcado pela presença de burros, cavalos e carros de bois, cada qual com seus traços, atravessando o espaço citadino; de homens lidando com tais animais e objetos expostos à luz do sol e queimados por seus raios. Já em “Irregularidade em tudo”, escrita após 1911, quando Paranhos morou no povoado de Araião (Arião), “distante 30 quilômetros de Corumbaíba”, alguns símbolos do “progresso” foram associados às cidades de Catalão e Goiandira, como a locomotiva, os automóveis e a iluminação elétrica: Que situação esplêndida a deste lugarejo! Das janelas da casa em que me acho hospedado descortino horizontes vastíssimos, serranias longíquas, de peris os mais caprichosos. Avisto o Morro da Saudade, muito

ao longe e muito azul, morro que decantei na minha poesia Despedida de Catalão, escrita na ocasião em que me transferi para a capital de Goiás; avisto, quando bem límpida atmosfera, a locomotiva quando vai subindo ou vem descendo a serra da Bocaina; vejo-lhe os relexos das vidraças dos carros, apesar da distância de 50 quilômetros, ou de mais talvez; vejo a noite, o clarão produzido pela iluminação de Goiandira (PARANHOS, 1972, p. 353).

Ferrovias, carros, urbanização são termos corolários no ideário do progresso e da civilização, símbolos de um tempo e parâmetros de medição do estágio de desenvolvimento de regiões e lugares (ARRUDA, 2000, p. 99, 109). Paranhos remetia a um tempo após a chegada da Estrada de Ferro Goiás na região, que ocorreu por volta de 1913 em Goiandira e, depois, em Catalão. Outro cotidiano urbano começava a ser desenhado, no qual os animais foram dando lugar às máquinas, ao automóvel e à locomotiva, e, para tal, o espaço citadino passava a ser provido com novos edifícios e equipamentos, como a estação ferroviária e a luz elétrica, o que lhe dava nova aparência. Mas, se Catalão e Goiandira foram associadas a tais símbolos do progresso, Araião ainda tinha as

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marcas e sinais do antigo, como o uso de lamparina a querosene, a ausência de luz elétrica e a presença das crenças populares, que valiam como regra. Nesse sentido, dizia-se que, quando os galos cantavam muito antes da hora acostumada, era porque, naquela noite, uma moça fugiria. Para o cronista, era isso costume e “crendice” antiga, “das mais absurdas e grosseiras”, mas que tinha sentido no imaginário popular. Já nos espaços do “progresso e da civilização”, não era preciso que os galos cantassem para que moças fugissem; elas já não andavam “por conta de preconceitos morais, muito menos por conta de cantigas de galos...” e fugiam quer eles cantassem ou não (PARANHOS, 1972, p. 353-4). No entanto, embora, por um lado, esse espaço e ambiente citadino tenha sido representado com marcas de um aparato material considerado, de início, “atrasado”, mas em “avanço” rumo à “civilização” e ao “progresso”, por outro, apontou-se o exercício das faculdades intelectuais, de criação literária, da existência de uma esfera política e da inserção nela de alguns indivíduos, da existência de órgãos e de instituições públicas e daqueles que ocupavam cargos, como se pode perceber nas crônicas “Catalão” (PARANHOS,

1972, p. 380-6). O autor destacou pessoas inseridas na cultura escrita, nas práticas intelectuais, administrativas e proissionais, valorizadas no mundo moderno e reconhecidas pela sociedade estrangeira, nacional, regional e também local. Da primeira crônica, emerge a imagem da cidade de antes da chegada da ferrovia. Mesmo assim, o cronista deu relevo a homens ligados às práticas intelectuais e vistos como “autoridades”, gente de “valor” por terem se tornado, posteriormente, nomes ilustres na literatura, na política e na magistratura. A cidade, apesar de muito afastada dos grandes centros, isto naqueles tempos em que não havia estradas de ferro e outros meios fáceis de comunicação, teve por autoridades homens de valor, homens que se tornaram, mais tarde, vultos notáveis na literatura, na política e na magistratura. [...] grandes intelectuais, que Catalão se orgulha – e com razão, de ter tido em seu seio (PARANHOS, 1972, p. 380-1).

O isolamento e a distância de Catalão das grandes cidades não impuseram a inexistência de atividades intelectuais. Mas, nos primeiros tempos, buscou fora aqueles que deram ao lugar um “bafejo civili-

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zador” (RIBEIRO, 2002, p. 23). Paranhos mencionou Bernardo Guimarães, romancista e poeta nacionalmente conhecido, que fora Juiz Municipal, na cidade, em meados do XIX e ressaltou que esta, ainda que distante dos grandes centros e usando meios de transporte e de comunicação associados ao “atraso”, poderia ser vista como lugar de grande intelectualidade. Procurou elevar a importância da cidade e do estado ao referir que Guimarães, para escrever dois de seus grandes romances, inspirou-se em fatos acontecidos na região, o que a tornara conhecida nacionalmente por meio da literatura. Fôra, como icara dito nas minhas crônicas anteriores, juiz municipal em Catalão Bernardo Guimarães, o grande poeta e romancista, uma das glórias da intelectualidade brasileira. Foi em Catalão que escrevera, salvo engano, dois dos seus muitos e apreciados romances, o Índio Afonso e o Ermitão do Muquém. No primeiro, tornou conhecido em todo o país o obscuro sicário das margens do Paranaíba, dando aos seus crimes bárbaros e impressionantes o caráter de verdadeiros rasgos de heroísmo, o que fez que o índio se tornasse legendário. No segundo, tornou conhecida a origem da romaria do Muquém, outrora mui lorescente e ainda não de todo extinta (PARANHOS, 1972, p. 380-1).

Além de Guimarães, que, na busca das particulares regionais, tomou o índio e as práticas religiosas goianas como objeto de representação literária, outros homens foram citados. André A. de Pádua Fleury, goiano de posições intelectuais elevadas, fora Juiz Municipal, “representante diplomático em Paris”, “presidente das províncias do Paraná, Espírito Santo e Ceará”, Diretor da Faculdade de Direito de São Paulo e tinha uma ilha muito “inteligente e culta”, de “educação aprimoradíssima”. Coelho Bastos, também juiz em Catalão, substituiu Virgínio H. da Costa, “juiz politiqueiro e perseguidor”, mas de grande intelectualidade, “muitíssimo talentoso e culto”. No Rio de Janeiro, Bastos fora chefe de polícia, provando ser um dos “ornamentos da magistratura nacional”. Fagundes Varella foi listado como grande nome da literatura brasileira que morou em Catalão, vindo do Rio com seu pai nomeado juiz de direito em Pirenópolis (antiga Meia-Ponte); era “mocinho de 15 anos e já escrevia versos” (PARANHOS, 1972, p. 381). Esses nomes e pessoas foram intelectuais e proissionais de certo destaque no cenário cultural e político nacional e estavam, mesmo não sendo ilhas “legítimas” da cidade, de alguma forma, associadas

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a ela. Paranhos estabeleceu tais laços visando enaltecer a cidade com a presença de tais iguras num dado momento de sua história. Nomes associados a cargos, atividades, cidades, estados e países considerados modernos, importantes e de destaque no cenário cultural e político nacional e até estrangeiro. Mesmo sendo localidade “afastada dos grandes centros”, Catalão mantinha laços com o mundo moderno e civilizado, era lugar de “grandes intelectuais”. Mas os referidos, de início, vieram de fora. Para o cronista, conforme Klein (1999), esses homens, reconhecidos por sua cultura letrada, possibilitavam construir certa identidade para a cidade, projetavam-na e a tornavam conhecida no estado e no país. Se Paranhos teceu a imagem de uma cidade de “grandes” por dependência daqueles que vieram de fora, na crônica seguinte, abordou uma “antiga geração de intelectuais catalanos”, os quais lhe davam um traço identitário. O foco voltou-se, então, para dentro, o que denota que já era possível, ao menos, tentar fazê-lo. Segundo ele, “Sob o ponto de vista intelectual não tem sido essa terra das mais obscuras”. Meio aos intelectuais dessa antiga geração, mencionou Roque Alves de Azevedo, que estudou no “Caraça”, famo-

so internato mineiro formador das elites do Império. Azevedo lá estivera “nos tempos em que esse estabelecimento de ensino era o que havia de mais perfeito no gênero, pelo que se tornou notável pela variedade e profundeza dos conhecimentos”. Tinha “produções poéticas de valor”, muitas publicadas no Goiáz e Minas na seção literária “Arcadia Catalana”, mas “não publicou todas, porque eram pornográicas a maior parte delas.” (PARANHOS, 1972, p. 381). O cronista referiu-se também a outros nomes, como: José Netto de Campos Carneiro, médico que “exercia a medicina gratuitamente e atendia aos pobres” e fora Intendente Municipal. Afonso B. da Silva Paranhos, que estudara no “seminário de Goiás” e cursava medicina no Rio de Janeiro quando morreu; fora visto pelo Arcebispo da Bahia como das “maiores glórias intelectuais” de Goiás. Alceu V. Rodrigues, farmacêutico, izera curso brilhante e era “poeta de verdade”, deixando “belas produções, as quais foram publicadas na seção “Arcadia Catalana”. Eliseu de Lima, professor, cursou humanidades no “Caraça”; Cristiano Victor Rodrigues estudou no Rio, não completou seus estudos, mas foi farmacêutico prático, “aplicava medicina com acerto e segurança, quando

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não havia médicos em Catalão”, e possuía “produções literárias inéditas, de valor”, não conhecidas e publicadas (PARANHOS, 1972, p. 381-2). Nesse universo de nomes mencionados, de atividades intelectuais e proissionais listadas, a formação escolar da maioria ocorrera em grandes cidades, como Rio e São Paulo, além daqueles que a tiveram no Caraça, de Minas. Este Colégio, fundado pela Congregação Lazarista, em 1820, e fechado em 1912, formava os adolescentes abastados, a elite mineira e brasileira, num espírito cristão, para atuarem nos destinos da nação. Sua educação humanística, junto a outros colégios, como o Pedro II no Rio, dava distinção a seus frequentadores (ANDRADE, 2000). Inserido no mundo moderno que possuía um olhar que valorizava a cultura letrada, suas formas de expressão e seus modos de transmissão, como as instituições e as atividades a ela ligadas, que dava importância à participação e à inserção na administração pública e nos quadros dos governos, Paranhos, como homem ilustrado, ainado com tais expectativas e imbuído de tal visão de mundo, deu destaque às pessoas e às práticas que o representavam, que estavam com ele ainadas e o faziam avançar.

Na terceira crônica sobre “Catalão”, Paranhos ateve-se, também, a pessoas inseridas no universo da cultura escrita e das práticas intelectuais. Fez menção a uma nova geração de intelectuais do período, como Gastão de Deus, formado em direito e colaborador do Goiáz e Minas na “Arcádia Catalana”; Álvaro Paranhos de Mendonça, que estudou pouco tempo em São Paulo e foi encarregado do recenseamento da zona de Catalão no governo de Epitácio Pessoa; Galeno Paranhos, advogado e jornalista; Anchises e Achylles Brêtas, professores no ensino secundário em Mendes (RJ); José C. Paranhos, farmacêutico em Imparei onde era chefe político; Francisco Victor Rodrigues, médico no Rio; Wagner Estellita Campos, advogado e jornalista, Diretor da Secretaria de Segurança Pública de Goiás; Thareis e Jairo Campos, advogados, sendo o segundo promotor púbico numa comarca do Paraná; Antonio J. Azzi, que não frequentou colégios, mas possuía cultura adquirida por esforço próprio, tendo se “tornado conhecido como literato e um dos melhores jornalistas do Estado” e só depois estudando direito e sendo considerado como “uma das maiores glórias intelectuais de Catalão”; Rivadávia Mendonça, formado em direito no Rio, residente em São Paulo, onde atu-

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ava na “estação radiográica Educadora”, fazendo “a exposição e a crítica dos mais notáveis acontecimentos mundiais, ocorridos na semana”. Segundo Paranhos, havia muitos outros rapazes em cursos preparatórios para ingresso em faculdades e outros, já acadêmicos, que viriam, em breve, “aumentar o número dos que se constituem verdadeiros ornamentos intelectuais de Catalão” (PARANHOS, 1972, p. 383-4). Nas crônicas sobre Catalão, até aqui tratadas, Paranhos mencionou pessoas que ele valorizou por suas atividades intelectuais, políticas e proissionais. Nomes que, de uma forma ou de outra, estiveram associados a instituições de ensino, cargos públicos, empresas de comunicação, atividades literárias, cidades e estados. Indivíduos que foram vistos como gente de relevo e importantes na vida nacional, não raro sendo adjetivados como “glórias” e “ornamentos”, como os “melhores” ou “maiores”. Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, foram cidades e estados destacados nesse exercício de levantamento e elevação de Catalão, de sua inserção num circuito de homens notáveis que circulavam por tais lugares. Rio, São Paulo e Minas, eram lugares por onde transitavam as elites brasileiras provinciais e, depois, estaduais, em seu

processo de formação educacional e de exercício proissional. Conforme o cronista, na intenção de inserir Catalão num universo cultural mais amplo, a cidade não estava fora de tais circuitos, ela era uma malha dessa rede. Homens de fora nela circulavam, e alguns da terra atuavam noutras paragens, havendo trocas de honrarias e empréstimo de prestígios. Portanto, vislumbramos uma cidade na qual viviam homens de letras, administradores, funcionários públicos e proissionais liberais, onde os ilhos das famílias de posse deixavam seus lares e de circularem pelo espaço citadino restrito, familiar e atrasado, quando chegava a hora de irem para a escola secundária e para faculdade ou para trabalharem e exercerem as funções que sua formação permitia em outras localidades. Eram os tempos “antigos” da educação e instrução da prole das famílias abastadas realizada fora, nos quais predominava a escolarização dos ilhos do sexo masculino em detrimento das ilhas. Os novos tempos vivenciados na cidade, chamados de “hoje” pelo cronista, com a presença de educandários, abriram condições para que as mulheres também recebessem instrução. Entretanto, o autor não deixou de mencionar também “‘a intelectualidade feminina”, referindo-se

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às várias professoras, elegendo-as como importantes iguras da educação em Catalão. Isso ocorreu na quarta crônica da série “Catalão”. É interessante notar, aqui, as exposições sobre a leitura das condições em que se dava a educação dos jovens nesse período, observando, também, a menção de dois tempos distintos, o antigo e aquele considerado atual, que indicavam as mudanças ocorridas nesse campo: Era antigamente mui difícil a educação da mocidade, devido à falta de educandários no interior. Só os pais abastados podiam educar os ilhos, pois para fazê-lo, era preciso mandá-los para S. Paulo ou Rio, com despesas formidáveis. A formatura de um rapaz icava em dezenas e dezenas de contos de réis, uma fortuna. Hoje, está facílima a instrução, porque existem estabelecimentos de ensino secundário equiparados em diversas cidades do interior. E é por se ter tornado fácil a instrução, que Catalão vai, dia a dia, se apurando sob o ponto de vista intelectual. É já crescido o número de moças que, à semelhança da nova geração de rapazes, aí se distinguem pela inteligência e a cultura (PARANHOS, 1972, p. 384).

Dentre as iguras da intelectualidade feminina, estavam Victorita Victor Rodrigues, uma das jovens “mais inteligentes e cultas do Estado”, que estudou no Rio e fez “curso completo de humanidades”. Estudou fora e, ao voltar, colaborou para a formação da juventude em Catalão; fora professora do colégio N. S. Mãe de Deus, contribuindo para a “prosperidade desse conceituado estabelecimento de ensino”. Já Theresila e Dorzinha Netto eram normalistas talentosas; a primeira, “professora de português” no colégio citado, e a segunda “escrevia admiravelmente”. Astréa Brêtas recebeu destaque pela escrita de um artigo sobre a morte de uma parenta, o qual saiu na Gazeta de Catalão. Por im, tornou-se freira e lecionou “num convento” de São Paulo. Nesse universo de mulheres inseridas no mundo da escrita e da educação, apareceram ainda Mariazinha Netto Campos e Elvira Righeto, normalistas. A primeira fora “Diretora do Grupo Escolar” e “professora de diversas matérias no Colégio Mãe de Deus”, tendo “grande competência para o magistério”. A segunda era uma “inteligência de escol”, um dos “expoentes da intelectualidade feminina de Catalão”. Paranhos avaliou que ainda havia na cidade

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“outras muitas jovens catalanas inteligentes e cultas”, que não foram mencionadas nesta “alinhavada croniquita, escrita currente calamo, à hora de se fechar o correio” (PARANHOS, 1972, p. 384-5). Desse modo, podemos imaginar Catalão como uma cidade, em cujo cotidiano, percorriam por suas ruas diretoras, professoras, alunas normalistas e alunos indo para a escola, inseridos num universo da cultura letrada e possuindo o conhecimento dela oriundos, exercitando a prática da escrita em diversos contextos que o requeriam, fazendo avançar no lugar sua presença e forma de ver e lidar com o mundo. Ao analisarmos as crônicas “Catalão”, percebemos que Paranhos, ao mencionar os nomes de tais pessoas que viveram na cidade por algum tempo, ou que eram ilhas da terra, procurou construir uma identidade cultural e intelectual para a cidade. A invenção de uma cidade de intelectuais, de letrados e familiarizados com a cultura escrita, opõe-se à imagem difusa no imaginário social de lugar violento e agressivo, conforme indicado na crônica que remete ao médico Martinho Palmerston. Por meio das atividades e práticas de tais indivíduos, as quais se constituem em me-

mórias, o autor quis mostrar que a cidade merecia ser lembrada pelas qualidades de seus habitantes letrados e como um lugar marcado pelo progresso. Para Klein (1999, p. 57), almejava torná-la “conhecida em todo Estado de Goiás e, se possível, nacionalmente”. Se aos homens foi comum associar seus nomes aos de cidades de outros estados, ao mencionar sua formação educacional e exercício proissional, o mesmo não ocorreu, em proporção igual, em relação às mulheres, as quais, quase sempre, tanto se formaram quanto atuaram na própria cidade. O cronista registrava e resgatava certos elementos, fatos e facetas da vida cotidiana da cidade para construir uma memória da sociedade, “memória escrita, algo do real vivenciado, que icava impresso e arquivado”. Por isso, era um historiador, intérprete, que apresentava e recriava aspectos do acontecido, intelectual que narrava e que vivia sob o primado da narrativa, que observava e colecionava vestígios do cotidiano e os contava de modo circunstancial a seus leitores nas folhas dos jornais (BORELLI, 1996, p. 68).

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IMAGENS DE ARAGUARI: DO “FORMIDÁVEL ATRASO” AO “PROGRESSO VERTIGINOSO” Já nas crônicas “Araguari”, Paranhos descreveu a cidade em dois momentos, em 1911 e depois em 1937. Não raro, representou-a recorrendo igualmente às noções de modernidade, de atraso e de progresso ao referir-se a essa sociedade, mostrando que seu discurso estava ainado com aquele realizado nos grandes centros urbanos brasileiros, como Rio e São Paulo, dentre outros, que enalteciam e perseguiam seus ícones. Chamou a atenção, principalmente, para os aspectos materiais e intelectuais da sociedade. A constituição de tais crônicas sobre a cidade mineira dista daquelas de Catalão. Se a respeito da última nada se falou acerca de seu espaço físico e aspectos de urbanidade, dando destaque apenas às iguras de intelectuais e de proissionais considerados importantes, no que se refere à primeira, o foco direcionara-se às condições materiais e de infraestrutura urbana, pouco aludindo aos traços intelectuais. A cidade de Catalão do momento já possuía melhores condições, logo, diversas da cidade vizinha? Paranhos, possivelmente, tendo Catalão como parâmetro de cidade progressista,

manifestou estranhamento ante o precário e nada moderno quadro urbano com o qual se deparou. Mas, que imagens produziu e fez circular sobre a cidade ediicando sua memória? Arruda (2000, p. 41) pondera que a memória não se resume a um conjunto de lembranças a respeito de um fato ou espaço, mas constitui-se num processo de luta ao redor do que foi escolhido para ser guardado e daquilo que deveria ser preservado, das imagens que foram postas em circulação sobre determinado lugar e pessoas. Inserido, por certo, num campo de disputas entre cidades, que deine as representações que elabora, o cronista delineou um quadro desolador acerca de Araguari, talvez por esta já possuir transporte férreo, símbolo do progresso de uma era numa dada visão de mundo, desde 1896 e, por, só em 1909, ter iniciado sua expansão para chegar até Goiás. Para ele, a cidade, antigamente, era a imagem do atraso, possuindo parcas e restritas condições de saúde pública e péssimas ediicações, sendo desprovida de serviços de infraestrutura: Quando me transferi para essa cidade, isto em 1911, era ela atrasadíssima sob todos os pontos de vista. Casario péssimo, ruas horrivelmente sujas e esburacadas, intransitáveis, quase, na estação chuvosa. Asseio não

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havia, absolutamente. Raro os quintais em que se não engordavam porcos em chiqueiros. Os animais mortos jaziam podres nas ruas, até serem consumidos pelos corvos. Quando alguém protestava contra o formidável absurdo, passavam a ser removidos para o pequeno córrego que divide em duas partes a cidade; mas a remoção da carniça pouca ou nenhuma vantagem trazia à saúde pública, porque continuava a mesma infecção dentro no perímetro urbano, em pontos de muito trânsito, como são os aterros (PARANHOS, 1972, p. 409).

Outros inconvenientes do precário espaço urbano araguarino foram expostos. Condições negativas e perigosas para o bem-estar da população, como uma “grande quantidade de animais soltos na cidade”, que pastavam nas ruas e eram “um perigo, mormente para as crianças”. Por outro lado, “se aqueles tempos era assim Araguari sob o ponto de vista material”, diferente não era culturalmente, “sob o intelectual era uma miséria”: “O povo tinha mais medo de livro aberto que de garrucha engatilhada. Ninguém se animava a proferir um discurso ou a recitar um soneto numa reunião.” Além disso, “O grupo escolar compunha-se de um corpo docente ignorante, incompetente para o magistério, a começar do diretor”, sem falar de uma

professora que escrevia “çodade” e não saudade (PARANHOS, 1972, p. 409-10). Se de Catalão fora representada como cidade letrada ou de elite, de que permitia se construir a imagem de lugar de vida intelectual e de cultura escrita, Araguari era a negação da letra. Paranhos escrevera 120 sonetos, em gênero humorístico, sobre a cidade, que foram publicados na folha local e muitos transcritos por diversos jornais de Minas e uma revista de Belo Horizonte. Segundo o cronista, tais escritos não tinham a intenção de ridicularizar a cidade, mas “lhe corrigir os maus costumes”. Sua escrita, de intencionalidade pedagógica, possuía proposta educativa, tendo a missão de despertar a população e seus dirigentes políticos para essas más condições de vida urbana, por vezes, tão comum e costumeira que nem era percebida (PARANHOS, 1972, p. 411). Portanto, baseando-se na crônica acima exposta, podemos tecer um quadro da cidade de Araguari, em cujo cotidiano, os habitantes transitavam por entre casas e ruas sujas, esburacadas, cheias de lama ou poeira, animais mortos e capinzal, repletas de vacas, cavalos e porcos, além dos cheiros que lhes eram peculiares. Tais imagens adensavam aquela de um lugar onde os habitan-

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tes eram um povo avesso às letras e até o corpo docente do grupo escolar era ignorante e incompetente para exercer as atividades de instrução e, assim, poder agir sobre esse quadro. Conforme Arruda (2000, p. 184), a rejeição e condenação aos modos de vida e hábitos, como a sujeira e suas consequências para a saúde, a preocupação com a higiene, com a organização espacial da cidade e as condições de moradia, reletem um conlito entre formas de ver o mundo. Ocorria a negação de uma paisagem a partir de outro modelo, de uma projeção de modo de vida urbana, moderno, e suas concepções. Já em 1937, o autor descreveu a mesma cidade, outrora vista como atrasada, dando destaque a seu progredir. Segundo ele, houve uma transformação completa; a cidade cresceu admiravelmente e tornou-se “moderna”, sua paisagem foi modiicada adequando-se a uma visão de mundo progressista e desenvolvimentista. Que diferença de Araguari daqueles tempos do de hoje! O de outrora impressionava pelo formidável atraso; o de hoje impressiona pelo progresso vertiginoso. Uma transformação completa. A cidade vai num crescendo admirável. As boas construções multiplicam-se, dando-lhe aspecto de cidade moderna. As ruas vão sendo, dia

a dia, melhoradas pelo calçamento. Uma das maiores provas de seu desenvolvimento progressivo é a Companhia Melhoramentos de Araguari, a qual se formou com o im de construir a ponte sobre o Paranaíba, no porto do Veloso, obra gigantesca prestes a ser concluída e na qual é despendido o vultoso capital de 700 contos de réis! Em que outro lugar do interior já se fez por iniciativa particular, tamanho esforço em benefício publico? (PARANHOS, 1972, p. 411).

Bons edifícios, melhoras na infraestrutura e investimentos em vias de acesso à cidade, benefícios públicos e a presença da Companhia de Melhoramentos foram ressaltados. Davam à cidade novo aspecto, moderno, e eram símbolos de um “progresso vertiginoso”. Fazendo parte do “empolgante [...] progresso de Araguari”, o cronista mencionou alguns “melhoramentos” como a construção de “inúmeros prédios de feição moderna, um grande e belo edifício na praça do jardim”, o começo da ediicação do Cinema, “importante obra de arte [...] uma das melhores de Minas”, fruto da ação empreendedora de “um dos homens mais dinâmicos e úteis do lugar”, Santos Laureano, que merecia tornar-se nome de rua ou praça da cidade (PARANHOS, 1972, p. 411).

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As construções com traços modernos, praças, jardins, a ediicação do cinema e a presença de homens empreendedores foram vistos como elementos e obras relevantes para alavancarem o progresso e as condições de vida e culturais da cidade. É importante notar a menção à uma Companhia de Melhoramentos, pois, por meio de tais tipos de empresas, muitos serviços públicos foram realizados no Brasil, a partir de meados do século XIX, quando esse tipo de empreendimento passou a ser possível. Segundo Borges (2005, p. 131), José de Alencar já apontava que vários melhoramentos urbanos, voltados para o aformoseamento e a higiene pública da cidade do Rio de Janeiro, eram realizados por essas companhias. Para o cronista, esse tipo de empresa desenvolvia-se poderosamente na cidade e a iluminação a gás, as estradas, os açougues, o asseio público, a construção de ruas, tudo estava sendo promovido por esse poderoso espírito de associação que agitava a cidade. Assim, Araguari e Catalão não fugiram desse contexto, ainda que, num tempo bem posterior àquele que Alencar descreveu. Do Rio oitocentista, esse “espírito” espalhou-se Brasil afora e, até meados do século XX, produziu empreendimentos inusitados e pito-

rescos por seu interior, a exemplo de casas de diversão para homens que os costumes e a moral tanto condenavam (VIEIRA, 2005). Se o cinema de Araguari foi construído por uma Companhia dessas, o Cine Teatro Real de Catalão, nos seus áureos tempos, foi administrado pela Sociedade Melhoramentos de Catalão Ltda, constituída para administrar esse espaço de cultura, conforme Lorenzi (http://nossocatalao.blogspot.com). Já no que se refere ao campo intelectual araguarino, Paranhos apontou também uma grande mudança, indicando a presença de órgãos da imprensa e atividades jornalísticas, além daquelas associadas à educação escolar. Sob o ponto de vista intelectual, não é menos impressionante o progresso de Araguari. Atestam-no seus três jornais bem feitos e bem escritos; seus dois estabelecimentos de ensino equipados; seu grupo escolar bem organizado; sua mocidade de ambos os sexos, inteligente e culta e os bons elementos intelectuais que para aí se transferiram e aí exercem a sua benéica atividade (PARANHOS, 1972, p. 411).

Sendo assim, podemos imaginar o cotidiano da cidade de Araguari transformado em todos os termos. Onde antes se percebia um povo marcado, por vezes,

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pelo marasmo e indolência, agora, observamos uma sociedade próspera tanto material quanto intelectualmente, buscando transformações e melhorias contínuas, as quais, almejadas não somente em Araguari, mas no país todo nesse período. Eram as primeiras décadas da república, marcadas por mudanças econômicas, sociais e culturais, tendo como ponto de partida os ideais de “ordem e progresso”. Sevcenko (1989, p. 237), remetendo-se à cidade do Rio de Janeiro, nas décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX, assinalou que as mudanças implementadas nesse período e experimentadas na cidade transformaram-se em literatura, como izera Lima Barreto. De forma similar, Paranhos, ao escrever, investiga seu tempo e sua sociedade, registrando os anseios e as frustrações de uma época e de um povo ou de um grupo, como o ideário do atraso, do progresso e da civilização. Ao analisar a cidade de Araguari, em 1911, e depois em 1937, Paranhos mostra instantes particulares da história vivida armazenados em sua memória, a qual o obrigava a se reencontrar em tais lugares e espaços aos quais pertenceu, ainda que com um olhar de estranhamento dessa sociedade. Já nas crônicas sobre “Estrela do

Sul”, destacou também as pessoas inseridas no campo da cultura escrita e das práticas proissionais associadas ao universo intelectual, numa abordagem próxima à de Catalão. Mas não foram apenas políticos, administradores públicos e literatos ou os que circulavam em outras cidades, estados e países estrangeiros, como estudantes ou proissionais, que Paranhos mencionou. Destacou homens ligados às atividades comerciais e inanceiras, remeteu à extração mineral e sua história na cidade. Mencionou a época em que se transferiu para o lugar (1908-11), exaltando também as boas pessoas e bons costumes, que lhes garantia melhores condições de vida (PARANHOS, 1972, p. 394). Dos intelectuais da antiga Bagagem citados por Paranhos, focamos a igura do Dr. Martinho Palmerston, grande amigo do cronista e considerado “um dos mais notáveis bagagenses”. Possuía fama como médico, por causa das “importantes curas que amiúde efetuava”. Residia em Araguari, onde tinha consultório e circulava pelas “cidades circunvizinhas”, às quais era “constantemente chamado”. O próprio cronista o invocou, certa vez, em Catalão, “num caso de doença grave na família”, num tempo em que tais proissionais não eram muitos e nem eicientes (PARANHOS, 1972, p. 396).

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Sua pessoa lembra, ainda, outra igura valorizada culturalmente no tempo, o orador, presente em vários momentos de sociabilidade. Era “orador de largos recursos”, muito “luente, imaginoso, de eloquência arrebatadora”, sendo, muitas vezes, forçado, pelas suas qualidades, a produzir discursos em reuniões e festas, fosse qual fosse o assunto, “por mais árido que fosse”. O orador aproximava o mundo das letras e da oralidade através de discursos, brindes e vivas. Numa época e lugar em que os livros eram escassos, os oradores e discursos orais tiveram papel importante na constituição da sociedade, conduzindo e difundindo ideias ao público formado de auditores que era receptor das mensagens (PARANHOS, 1972, p. 397; CANDIDO, 1986, p. 223-6). Mas Martinho representa ainda outra personagem comum naqueles tempos e em lugares do interior, o rábula. Devido a sua intelectualidade, certa vez, participou de uma audiência jurídica em Araguari, na condição de advogado, mesmo sem formação, como era usual, nada entendendo de Direito Criminal. Fez longa defesa do acusado, assegurando sua inocência, e o réu foi absolvido (PARANHOS, 1972, p. 397). Paranhos, ao falar das andanças do médico em Catalão, alude aos tempos em que a cidade não pos-

suía luz elétrica e tinha grande fama de violenta, mostrando como esse agia ao transitar à noite por suas ruas e como lidava com a reputação que ela possuía: Quando fora a Catalão, toda vez que se via forçado a sair à rua, tarde da noite, a im de visitar algum doente, levava (a cidade ainda não era iluminada) uma lanterna e a cada passo a erguia altura do rosto, para que bem visto fosse, e dizia em alta voz, pausadamente, para que fosse bem ouvido: - Eu sou o dr. Martinho Palmerston, médico. Não vim aqui para matar; vim para dar saúde e vida. Isto como acima icou dito, ele repetia a cada instante, não sei se por escárnio, ou se pelo receio de ser, por engano, vítima de uma agressão (PARANHOS, 1972, p. 397).

Ao recordar-se de Martinho, o fez “com profunda saudade” dos tempos em que andavam juntos nas “troças e farras inocentes”, em práticas culturais como as serenatas ao luar, o cantar de modinhas ao som do violão, que eram experiências vivenciadas por esses “boêmios incorrigíveis”. Desses Paranhos dizia restar somente as “lembranças do passado”, as

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quais eram matéria de seu exercício literário (PARANHOS, 1972, p. 397). Ao citar nomes de pessoas ligadas às práticas intelectuais, o cronista não se restringia a elas e nem apenas as enalteceu em si; produziu representações das cidades em que estavam inseridas. As noções de “atraso” e “progresso” remetem às mudanças que ocorreriam no Brasil, ao imaginário tecido sobre elas, observadas em tantas cidades e discursos, como o jornalístico e literário. Esses espaços e tempos experimentaram a oposição entre o atrasado e o avançado, a “tensão” entre o costume, o herdado, e o que era modiicado, o novo. O progresso é relativo às condições de cada lugar. A cidade é sempre um lugar no tempo, um espaço com reconhecimento e signiicação, com tempos materializados em uma superfície, objeto de produção de imagens e discursos que a representam, de emoções, sentimentos, utopias, esperanças, desejos e medos, individuais e coletivos, que a tornam portadora de sentido e constituem suas memórias (PESAVENTO, 2007, p. 14-5). Portanto, Paranhos, como nosso informante e guia, nos leva a encontrar ainda, por meio de outras crônicas, outras cidades e culturas que não apenas as práticas relacionadas à cultura letrada e escrita. Suas

crônicas, que tornam aspectos e traços de tempos passados e do presente em textos, mostram outras práticas da vida cotidiana e da cultura urbana, como as festas religiosas de Nossa Senhora do Rosário e do Divino, os batuques, as cavalhadas, o jogo do bicho, o futebol, dentre outros aspectos da sociabilidade dos habitantes da região, as quais são matéria de outro texto. REFERÊNCIAS FONTES PARANHOS, Ricardo. Obras completas. Goiânia: Ed. Cerne, 1972. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Mariza Guerra de. A educação exilada: Colégio do Caraça. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. ARRUDA, G. Cidades e sertões: entre a história e a memória. Bauru:EDUSC, 2000. BORELLI, Silvia H. S. Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo, EDUC/ Estação Liberdade, 1996.

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