Imagens de nós e dos outros nos filmes de ficção científica

September 23, 2017 | Autor: Gwavira Gwayá | Categoria: Sociology, Cultural Studies, Cultural Sociology, Cinema, Visual and Cultural Studies, Cinema Studies
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Descrição do Produto

ISSN 1679-6748

Visualidades Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual

V. 2, n.2, jul/dez 2004

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS Reitor Edward Madureira Brasil Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Divina das Dores de Paula Cardoso Diretor da Faculdade de Ar tes Visuais Luís Edegar de Oliveira Costa Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual Alice Fátima Martins Editora Rosana Horio Monteiro Conselho Editorial Irene Tourinho José César Clímaco Raimundo Martins Paulo Menezes Conselho Científico Ana Claudia Mei de Oliveira (PUC-SP, Brasil) / Belidson Dias (UnB) / Fernando Hernández (Universidad de Barcelona) / Flavio Gonçalves (UFRGS, Brasil) / Françoise Le Gris (UQAM, Canadá) / Juan Carlos Meana (Universidade de Vigo) / Kerry Freedman (Northern Illinois University, EUA) / Margarita Schultz (Universidade Nacional do Chile, Chile) / Maria Luísa Távora (UFRJ, Brasil) / Mauro Guilherme Pinheiro Koury (UFPB, Brasil).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) V834

(GPT/BC/UFG)

Visualidades: Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual I Faculdade de Artes Visuais I UFG. – V. 2, n.2 (2004). – Goiânia-GO: UFG, FAV, 2004. V. :il.

Semestral Descrição baseada em V. 2, n.2 ISSN: 1679-6748 1. Artes Visuais – Periódicos I. Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Artes Visuais II. Título. CDU: 7(05) Tiragem: 300 exemplares

Data de circulação: abril/2008

Créditos Capa: Temporalis (da série Masseter Suíte), 2002. Fotografia, 120 x 120 cm. Obra de Heleno Bernardi. Foto: Hamdan Programação Visual: Carla de Abreu Projeto Gráfico Marcus H. Freitas Revisão Juscelina Bárbara A. Matos Editoração Carla de Abreu e Lucas Gomes FACULDADE DE ARTES VISUAIS / UFG Secretaria de Pós-Graduação I Revista Visualidades Campus II, Samambaia, Bairro Itatiaia, Caixa Postal 131 – 74001970 – Goiânia-GO. Telefone: (62) 3521-1440 e-mail: [email protected] www.fav.ufg.br/culturavisual/

Sumário

ARTIGOS

Imagens de nós e dos outros nos filmes de ficção científica

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Alice Fátima Martins Fenomenologia da Cibercepção

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Cleomar Rocha Híbridos e monstros: arte e cultura visual nos anos 40 em São Paulo

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Priscila Rossinetti Rufinoni Do Rio, uma rótula

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Roberto Conduru Replanteando las estrategias de pensamiento visual:

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un método controvertido para la educación en museos

Eneritz López e Magali Kivatinetz

RESENHA

A política do corpo na tecnociência fáustica

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Marko Synésio Alves Monteiro

Normas para publicação

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A significant population of foreigners inhabits the cinematographic narratives since the beginning of times. Especially the fictional-scientific ones, which have reserved privileged representation spaces of the other, or the others, to whom monstrous nature is attributed. In the battles against these enemies, the communities self-appointed as us, representatives of the humanity, are in fact restricted to the social groups that hold the highest economical, technological and armed power. In the narratives analyzed in this article, the North-American society appears as the representative of humanity as a whole, in the battle against the threat brought by the others, who might well be the neighbors, immigrants, blacks, any foreigner, from unknown lands or from its own. All of them, aliens, allegedly invasive, against whom the attack is the best defense strategy. Keywords: cinema, scientific fiction, aliens.

abstrac t

Imagens de nós e dos outros nos filmes de ficção científica

Alice Fátima

MARTINS

resumo

Uma população significativa de estrangeiros habita as narrativas cinematográficas desde os primeiros tempos. Sobretudo as científico-ficcionais, que têm reservado lugares privilegiados de representação do outro, ou dos outros, aos quais são atribuídas naturezas monstruosas. Nos embates contra esses inimigos, as comunidades auto-referidas como nós, representantes da humanidade, efetivamente restringem-se aos grupos sociais que detêm maior poder econômico, tecnológico e bélico. Nas narrativas analisadas neste artigo, a sociedade norte-americana aparece como representante da humanidade em sua totalidade, na luta contra a ameaça trazida pelos outros, que podem ser vizinhos, imigrantes, negros, quaisquer estrangeiros, oriundos de territórios desconhecidos, ou de seus próprios territórios. Todos esses, aliens, supostamente ameaçadores, contra os quais o ataque é a melhor estratégia de defesa. Palavras-chave: cinema, ficção científica, aliens.

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Viajantes deixam suas casas para conhecer outras pessoas e lugares. Tal motivação humana faz com que, hoje, a indústria do turismo esteja entre as mais lucrativas: o fluxo de turistas por toda a extensão do globo terrestre ganha dimensões sem precedentes, e toda uma infraestrutura cada vez mais complexa é criada e ampliada em função dessa demanda, o que inclui hospedagens diversas, redes de alimentação, programações de passeios e oferta de serviços os mais diversos. Embora motivados pelo desejo de desbravar o desconhecido, os turistas esperam ter minimizados os efeitos produzidos por esses encontros com os outros, pagando por pacotes de viagem que lhes assegurem a possibilidade de visitar muitos lugares, outras culturas, sem, contudo, se sentirem ameaçados ou se verem obrigados a fazer concessões desde suas próprias identidades referenciais de origem. De resto, voltam para casa, trazendo muitas fotografias, imagens que mostram aos seus amigos, enquanto contam as histórias de suas aventuras por territórios estranhos. Na contrapartida, cidadãos confortavelmente instalados em seus próprios ambientes observam, com diferentes graus de reserva, curiosidade e envolvimento, estranhos que circulam por seus territórios, a passeio ou quaisquer outros propósitos. Nesses casos, são eles, os outros, os que vêm se ocupar de conhecer o que não lhes é familiar, recolher pequenas lembranças e registrar imagens para levar consigo. Que histórias contarão, esses outros, a respeito de nossas paisagens e costumes, de nossas feições? De nós, afinal... Destituídos das intenções de entretenimento e laser que movem turistas, mas buscando soluções às necessidades da sobrevivência, migrantes fogem de guerras, miséria, fome, em busca de melhores condições de vida em terras estrangeiras,

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onde são vistos como estranhos, intrusos. Os fluxos migratórios têm mobilizado a humanidade no decurso de sua existência. “Ninguém emigra sem a promessa de algo melhor”, observa o pensador alemão Enzensberger (1993, p. 94). Se, no passado, lendas e boatos compunham a mídia da esperança, atualmente “o sonho chega através das imagens da mídia global até ao mais remoto povoado do mundo em desenvolvimento” (op. cit, p. 95). É inequívoca a capacidade dessas imagens midiáticas em gerar expectativas, estimulando e impulsionando os movimentos migratórios. Do mesmo modo, ao longo da história da humanidade, conquistadores e colonizadores têm avançado sobre territórios estrangeiros, redesenhando e modificando fronteiras geopolíticas e econômicas. A conquista de novas terras, projeto levado a cabo pelas grandes navegações desde os albores do século XV, foi transformada, na atualidade, na conquista de novos mercados econômicos, em dimensões planetárias. Além disso, neste início do século XXI, as pesquisas espaciais, comandadas por um grupo restrito de países que detêm a hegemonia científicotecnológica, vasculham o cosmo e se dedicam ao desenvolvimento de equipamentos que viabilizem conquistas de novos territórios, novas fontes de matéria prima, e, quem, sabe mercados, em outras órbitas. Nem turistas, nem migrantes, refugiados ou conquistadores, mas viajantes de natureza diversa adquirem bilhetes para participar, em salas de cinema de todos os continentes, de aventuras mais radicais, cujos trajetos podem extrapolar a própria órbita terrestre, ganhando o espaço-tempo intergaláctico, ou atravessando as barreiras do tempo, deslocando-se entre passados e futuros. Em quaisquer das opções, sempre acabam entrando em contato com seres os mais monstruosos e assustadores, bizarros e sedutores. Apesar de todos os riscos, o contrato com os agenciadores de tais aventuras garante que, ao final das projeções, os inimigos, representados pelos outros, sejam vencidos, ainda que provisoriamente (pois sempre aparecerão outros, com novas feições a cada vez, e mais ameaçadores), e cada aventureiro possa retornar em segurança para seu habitat reconhecível no tempo e no espaço, sem que sua identidade,

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tampouco o compartilhamento quotidiano da vida com seus iguais, corram quaisquer riscos. No atual processo de globalização da economia, os Estados nacionais passam a existir como individualidades interdependentes, num quadro em que a intolerância às diferenças identitárias, de diversas ordens, aparece como questão crucial nas dinâmicas sociais. Em contrapartida, também é possível observar indícios da emergência de um sempre possível sentimento global de responsabilidade pelo destino dos indivíduos, independentemente do Estado, segmento ou etnia a que se vinculem, ou seja, de suas identidades de grupo. Embora a força inicial desse sentimento seja atribuída, muitas vezes, a motivações políticas, econômicas e mercadológicas mais localizadas, seu amadurecimento, rumo à organização de instituições internacionais cada vez mais eficientes, pode representar, ainda e assim, o caminho de defesa do destino da própria humanidade. É nessa direção que são levantadas bandeiras em defesa das diferenças, da diversidade, da interculturalidade, da alteridade, do meio ambiente, em contraponto às razões políticas e econômicas que provocam e acirram conflitos, em diferentes graus, entre etnias, Estados e nações. Na abordagem dessas questões, é preciso, inicialmente, lembrar que o indivíduo, configuração típica da modernidade, não constitui sua estrutura psíquica sem o encontro ou confrontamento com o outro, ou os outros, no reconhecimento do não-eu como existência autônoma em relação ao eu. Essa constatação, feita pela psicanálise (FREUD, 1976, 1997; LACAN, 1985), tem sido desenvolvida, no âmbito das ciências sociais, por quantos pensadores, dentre os quais Norbert Elias (1994) e Cornelius Castoriadis (1982, 1999), que analisam as dinâmicas sociais a partir das relações entre os indivíduos, e afirmam que a individualidade só é possível em meio aos outros, em sociedade. Nessa direção, no texto intitulado A sociedade dos indivíduos, escrito em 1939, o sociólogo alemão Norbert Elias afirma: Somente na relação com outros seres humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao mundo se transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que tem o caráter de um indivíduo e merece o nome de ser humano adulto. Isolada dessas

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relações, ela evolui, na melhor das hipóteses, para a condição de um animal humano semi-selvagem (ELIAS, 1994, p. 27).

Em outro ensaio intitulado Mudanças na balança nós-eu, escrito em 1987, Elias apresenta as evidências de que o termo indivíduo, em contraponto ao social, bem como as idéias a ele relacionadas, seja construção relativamente recente, de modo que não havia equivalente nas línguas antigas. Sua adoção, atualmente, está relacionada com a idéia amplamente aceita de que “todo ser humano do mundo é ou deve ser uma entidade autônoma e, ao mesmo tempo, de que cada ser humano é, em certos aspectos, diferente de todos os demais, e talvez deva sê-lo” (op. cit., p. 130). Assim, a palavra indivíduo e seu significado aparecem num contexto histórico e social em que são valorizadas as diferenças entre as pessoas, suas singularidades, com ênfase no que Elias denomina identidade-eu, com o conseqüente enfraquecimento, em certo sentido, da identidade-nós, formada pelas qualidades e características que as pessoas têm em comum. A formação dessa identidade-eu é um processo promovido pela própria sociedade, atuando sobre a psiquê humana. No amplo estudo que desenvolveu sobre a instituição da sociedade, tomando a psicanálise como um dos eixos de discussão, Cornelius Castoriadis (1982) observa que a criança recém-nascida não se percebe como separada do mundo, mas como que num todo difuso, no qual não há demarcações de fronteiras: ela e o todo formam uma unidade, a mônada psíquica, para a qual a força de seu desejo essencial e de sua onipotência forma o eixo em torno do qual o universo realiza seu giro. O confronto com a existência do outro força a mônada psíquica original a se abrir para o mundo social-histórico, num processo dialógico do qual tomam parte, de um lado, seu próprio trabalho psíquico e sua própria criatividade, e de outro, a imposição, pela sociedade, de determinadas maneiras de ser. Emerge, assim, o indivíduo social, como coexistência: A imposição da relação com o outro e com os outros (...) é uma sucessão de rupturas infligidas à mônada psíquica através da qual é construído o indivíduo social, como dividido entre o pólo monádico (...) e a série de construções sucessivas mediante as quais a

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psique de cada vez, mais ou menos, consegue integrar (...) o que lhe foi imposto (CASTORIADIS, op. cit., p. 344).

O indivíduo, em constante formação, participa, com outros indivíduos, de uma teia de relações sociais, cujo amálgama está na produção contínua, sempre em transformação, de uma rede de significações. A introjeção, pelos indivíduos, dessas significações comuns ao grupo faz parte do processo de constituição da identidade de grupo, o grupo-ego. Avançando sobre a questão, Castoriadis, ao propor algumas reflexões sobre o racismo, argumenta ser comum a todas as sociedades humanas uma “aparente incapacidade de se constituir como si mesmo, sem excluir o outro” e, atrelada a esse traço, uma “aparente incapacidade de excluir o outro sem desvalorizá-lo” (1982, p. 32). Em outras palavras, a afirmação da identidade dos grupos sociais estaria diretamente relacionada à negação da identidade e do discurso dos outros grupos. No entanto, a exclusão do outro como parte do processo da afirmação da identidade de grupo não tem, em sua expressão, necessariamente, a forma do racismo. Este ganha os contornos da discriminação, do desprezo, confinamento, chegando a exacerbar-se finalmente em raiva, ódio e, quantas vezes, em loucura assassina: A partir do momento em que há fixação racista, como se sabe, os “outros” não são apenas excluídos e inferiores; tornam-se, como indivíduos e como coletividade, ponto de suporte de uma segunda cristalização imaginária. Cristalização essa que os dota de uma série de atributos e, por trás desses atributos, de uma essência má e perversa, justificando de antemão tudo o que se propõe infligir a eles (CASTORIADIS, op. cit., p. 35).

É possível estabelecer alguma aproximação entre o grupoego, referido por Castoriadis, e a categoria identidade-nós, proposta por Elias (1994), para quem esta identidade, representada nos sujeitos individuais, se constitui em “camadas” sobrepostas, que se ampliam gradativamente, a cada nova camada, indo desde o grupo familiar, passando por outros níveis de produção de convivência social, chegando até à idéia totalizante

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de Humanidade. Essas múltiplas camadas configuradoras das identidades-nós são unidades de sobrevivência do indivíduo. Elias (1994) defende que, na atualidade, a identidade-nós mais forte na configuração do indivíduo, sujeito social, seja a identidade ligada ao Estado-nação, ainda que o atual momento histórico seja marcado pelas relações de interdependência entre as nações e o decorrente enfraquecimento de sua autonomia. Nesses termos, o outro, ou os outros, que devam ser excluídos, ou inferiorizados, no processo de afirmação da identidade-nós, seriam aqueles nascidos em outros Estados-nação, de nacionalidade estrangeira, considerados enquanto indivíduos, ou nacionalidades à quais pertençam esses indivíduos.

Os outros nas narrativas cinematográficas Os conflitos entre identidades, e a afirmação de identidades-nós por meio do confronto e negação de identidades dos outros constitui manancial profícuo para a formulação de narrativas, as mais diversas. As histórias contadas pelo cinema estão repletas desses estrangeiros. A esse respeito, Milton José de Almeida (2003), em artigo intitulado Investigação visual a respeito do outro, relata que, na Exposição Universal de 1889, em Paris, além da curiosidade instigada pelo conjunto de cenários que compunham o Palácio Central das Colônias, onde eram apresentados nativos das colônias francesas simulando suas vidas e costumes, outro evento mobilizou o público, no pavilhão dos Estados Unidos da América do Norte: uma homenagem a Thomas A. Edison, com uma de suas mais recentes criações, o Kinetoscope. Cinco anos mais tarde, a Companhia do famoso inventor viria a realizar, em seus estúdios em Nova Jérsei, provavelmente os primeiros registros cinematográficos de índios norte-americanos, nos filmes intitulados O Conselho de Guerra Indígena (Indian War Council) e Dança dos espíritos sioux (Sioux ghost dance), na linha dos registros de costumes e dos filmes etnográficos produzidos desde o início da história do cinema. O fato do Kinetoscope ter sido mostrado numa Exposição Universal traz à pauta dois aspectos importantes no que se refere às relações entre o cinema e os outros: o primeiro rela-

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ciona-se com o ambiente sócio-histórico no qual as exposições são realizadas, em que as conquistas científicas e tecnológicas misturam-se aos domínios do colonizador sobre os colonizados, e o cinema estabelecendo a ponte entre ambos, como realização técnica que registra a imagem dos outros; o segundo diz respeito ao grande laboratório de experimentações e desenvolvimento de trucagens que significou a realização dos cenários das exposições, que foram incorporados ao universo de produção do cinema. As Exposições Universais cumpriram, principalmente ao longo do século XIX, na Europa, o papel de exaltação dos feitos dos impérios colonizadores, detentores do poder dito civilizatório e do conhecimento precípuo ao desenvolvimento científico e tecnológico. Elas caracterizavam-se pela montagem de grandes cenários cujo objetivo era intensificar a dramaticidade das obras mostradas ao público. Ruas e pavilhões com o contorno artístico de cidades ideais e universais, cujos palácios, pavilhões, torres, lagos eram organizados em ruas, avenidas e caminhos temáticos, molduras grandiosas desse extraordinário espetáculo colonialístico. Os outros, estrangeiros, faziam parte desse cenário gigantesco. Em geral, nativos das colônias eram expostos para que o público pudesse conhecer seus estranhos modos de viver, e, ao mesmo tempo, tivesse a certeza quanto à necessidade de colonização e de educação daqueles povos ainda selvagens, primitivos. Nesses ambientes, então, eram montadas “vilas originais”, nas quais se pretendia que as famílias e comunidades em exposição “se sentissem em casa”, além dos acampamentos indígenas e outras “habitações rústicas” projetadas pelos arquitetos e artistas europeus (ALMEIDA, 2003). De fato, seus colonizadores, predadores de suas teias culturais de origem, em nome da colonização exploradora. Nessas exposições, portanto, a sociedade auto-referida como representante do processo civilizatório mais avançado, senhora da ciência verdadeira e universal, incumbia-se do papel de generosa anfitriã de representantes de formas sociais consideradas primitivas, aprisionadas a visões mitológicas e atrasadas do mundo.

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No decorrer do século XIX, além das exposições universais e outras de caráter eminentemente colonialista, os outros eram mostrados, como objetos de curiosidade, observação e investigação, também em zoos humanos (sic.), inspirados numa prática muito difundida nos Estados Unidos da América do Norte, onde as exposições de populações “exóticas” eram exploradas como filão profícuo de entretenimento e lucros extraordinários. Na verdade, desde as grandes navegações, os viajantes transformaram a Europa num grande palco de exposições de “aldeias típicas”, circos, feiras, zoológicos, dentre outros, uma grande e permanente “Exposição das Exposições”, nas palavras de Almeida (2003), onde “espécimes” vivos, inclusive humanos, coletados nos quatro cantos do mundo pudessem ser mostrados, como troféus de tantas conquistas. O que se constata, então, é uma profusão de imagens de seres humanos diferentes e inquietantes, trazidos de lugares antes desconhecidos, organizadas pela pretendida racionalidade científica, que categoriza uma espécie de “evolução das raças”, a partir de uma tipologia cujo padrão referencial ideal é o europeu. Esse nós, dito civilizado. Assim, as exposições universais, como grandiosos palcos de apresentação da evolução humana e suas conquistas científicas e técnicas, incluem os povos colonizados como objeto de conhecimento e intervenção, com vistas a serem, possivelmente, “integrados” ao processo civilizatório. Incluem, também, as grandes construções e invenções. Foi nesse espírito que, depois de Edison, os irmãos Lumière tiveram lugar de honra na Grande Exposição Universal de Paris, em 1900, onde apresentaram o Cinematógrafo, equipamento largamente utilizado para registrar cenas dos zoos humanos, além de cenas quotidianas protagonizadas por cidadãos comuns europeus, imagens das cidades e eventos festivos em toda a Europa. Porém, mais do que constituir o cenário de exaltação dessas invenções e conquistas, além da grande atração de negócios (e dinheiro) internacionais, a realização dessas exposições possibilitou o desenvolvimento de recursos a serviço da ilusão na criação de cenários. A construção de réplicas de aldeias, vilas e templos, fora de seu lugar de origem, requeria o conhecimento de estratégias que surpreendessem o olhar pela aparência de

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verdade e dramaticidade que pudessem encarnar. Para tanto, toda uma sintaxe visual orientava o estabelecimento das proporções, distâncias, cores, materiais, ordenação de objetos e pessoas, utilização de maquetes e escalas, fundos em duas dimensões, na forma de painéis, além de um grande número de definições de ângulos e planos, tais como perspectiva, ponto de vista, iluminação, e outros recursos, que passaram a ser empregados no cinema, sobretudo na formulação de imagens de ficção científica, apresentadas ao público já no início do século XX. O que esse breve panorama das Exposições Universais possibilita constatar é que o ambiente sócio-histórico no qual aparece o cinema, como técnica e como linguagem, é marcado, também, pelas relações entre o sujeito, civilizado, colonizador, e o outro, selvagem, colonizado, ao menos potencialmente colonizável. De modo que essas relações se fazem representar também nas imagens fílmicas produzidas. Assim, pode-se afirmar que, sob a regência de cineastas oriundos de países detentores do desenvolvimento científico e tecnológico, uma população significativa de estrangeiros habita as narrativas cinematográficas desde os primeiros tempos. E se os filmes etnográficos constituíram uma vertente forte dentro dessa cinematografia inaugural, somando-se ao espírito das exposições colonialistas produzidas pela Europa e América do Norte, as narrativas ficcionais, incluindo as científico-ficcionais, também reservaram lugares privilegiados de representação do outro, ou dos outros, mantido o mesmo caráter de susto e fascínio no olhar sobre o estranho. Já no filme Viagem à Lua (Le voyage dans la Lune), realizado pelo francês Georges Méliès em 1902, os outros são representados pelos selenitas, bizarros habitantes da Lua, cuja organização social é facilmente vencida pelos bravos representantes da ciência moderna européia. Desde o ponto de vista do cineasta, para os selenitas são deixadas poucas possibilidades de escolha a partir daquela inesperada visita: permanecer na Lua e, portanto, em seu estado primevo de ignorância e estranheza; explodir no contato com os homens, em advertência quanto à sua impotência diante da capacidade humana de conheci-

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mento e gana de conquista; ou migrar para a Terra, em busca da oportunidade (única, provavelmente) de se tornarem civilizados. Quem sabe, até, ganhando o posto de artista nalgum circo, ou mesmo nalguma Exposição Universal, em cenários que reproduzissem suas habitações lunares, com chances de serem bem sucedidos junto ao público... Seriam, ainda e assim, aceitos (tolerados?...), como outros...

Eles, os aliens e os macacos... Desde essa primeira Viagem à Lua, protagonizada por Méliès, no universo dos filmes de ficção científica, têm sido atribuídas, aos outros, as mais variadas formas, denominações e características, quase sempre, carregadas de qualidades negativas que sinalizam diferentes tipos e graus de malignidade. Dentre os tantos, um determinado tipo de estrangeiro chama a atenção por seu alto grau de recorrência. Indiscutivelmente, é grande a população de aliens, ou alienígenas, no ambiente científico-ficcional. Suas participações, em geral, ameaçam tripulações de espaçonaves, cidadãos comuns bem intencionados, nações inteiras, ou o planeta Terra. Mas o principal papel que cumprem é o de impressionar espectadores com suas aparências que, apesar de quase sempre asquerosas, repulsivas, são capazes de seduzir e atrair grandes massas de público às salas de cinema, ávidos por testemunhar a ação desses seres que, em geral destituídos de qualquer princípio civilizatório, avançam em direção à dignidade humana com predisposição predatória, sendo sempre vencidos, para alívio e conforto de todos. Embora sempre provisoriamente, pois a própria indústria cinematográfica se encarrega de ressuscitá-los, nas quantas continuações, que ganham os qualificativos de O retorno, O resgate, II, III, e tantas mais, com a condição de que garantam o amplo consumo da mercadoria junto ao numeroso e ávido público. A palavra alienígena, na língua portuguesa, qualifica aquele “que é natural de outro país, estrangeiro” (SARAIVA, 2000). De origem latina, significa aquilo que é “um outro, o outro, segundo, que está depois ou em segundo lugar; adversário; o que resta, restante; diverso, diferente”. E ainda, “d’outro, d’outrem,

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alheio, estranho; que não convém ao tempo, ao lugar, à coisa, impróprio, inoportuno; funesto; adversário, inimigo” (FERREIRA, 1976), aquele que nasceu em outro lugar, que tem outra natureza, aquele que não é como nós. Na língua inglesa, de origens anglo-saxônicas, a palavra alien deriva também da raiz latina alius, e qualifica aquele cuja natureza ou caráter difere essencialmente, sendo, por isso, considerado incompatível. É sinônimo de foreign, no sentido daquilo que é tão diferente que se torna objeto de rejeição, ou é visto como incapaz de ser assimilado. Aquele que é de fora, estranho, estrangeiro. O termo alien tem esse mesmo significado, num grau mais profundo quanto ao sentido de oposição, repugnância e impossibilidade de conciliação. Na filmografia das últimas décadas, certamente, o alien que conquistou maior repercussão junto ao público internacional tenha sido o oitavo e indesejado passageiro da nave comercial de carga Nostromo, em seu retorno à Terra, portando 20.000.000 toneladas de minério e sete tripulantes, no filme Alien, o 8º passageiro (Alien), dirigido por Ridley Scott, em 1979. A obra cinematográfica obteve tanta repercussão junto ao público, que outros diretores deram continuidade à saga do monstro e da tenente Ripley, lieutenant Ripley, interpretada pela atriz Sigourney Weaver, em três outras produções, todas também de nacionalidade norte-americana: Alien, o resgate (Aliens), dirigido por James Cameron em 1986; Alien 3 (Alien³) dirigido por David Fincher em 1992; e Alien, a ressurreição (Alien: resurrection), dirigido por Jean-Pierre Jeunet em 1997. Criado pelo artista plástico suíço H. R. Giger, em sua configuração visual, além de feio, negro, com dentes expostos e permanentemente ameaçadores, esse alienígena é úmido e viscoso, gosmento, o que acentua o horror de sua presença sempre fugidia, nunca plenamente exposta ao campo visual. Essa forma de vida alienígena é incorporada à tripulação da nave após ter-se agarrado ao rosto de Kane, um dos tripulantes, quando participava da inspeção de um planeta desconhecido, na busca da identificação de sinais captados pelo computador central da “nave Mãe”. No interior da nave, os tripulantes, sem saber, ao certo, como salvar o companheiro, tentam cortar o tentáculos

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daquela “coisa” plasmada em seu rosto. Mas vêem, apavorados, se derramar um líquido viscoso e ácido que a tudo corrói, inclusive o casco da nave. Após algum tempo, inexplicavelmente, a “coisa” se solta, morta. No entanto, Kane, que aparentara melhora, sofre uma crise convulsiva e, de dentro de seu abdômen, eclode um ser monstruoso que se oculta na nave, deixando morto seu então hospedeiro. O monstro se desenvolve rapidamente, ganhando tamanho, força, agilidade e capacidade predatória descomunais. Apavorada, a tripulação se prepara para enfrentá-lo. Mas o oitavo passageiro não leva em consideração suas estratégias, tampouco as hierarquias ou intenções de cada membro daquele pequeno grupo: dizima-os, um após outro, implacavelmente. Apenas Ripley e seu gato de estimação conseguem escapar à perseguição do alien e deixar a nave, a bordo do módulo, não sem, antes, programar a nave-mãe para explodir logo após sua saída. No entanto, logo ela descobre que o monstro também a acompanha na pequena cápsula, onde se estabelece um último embate entre a brava tenente e o indesejado passageiro. Ela consegue colocá-lo para fora da pequena nave, e destruí-lo no exaustor. Ripley registra seu relato sobre o ocorrido, antes de entrar na cabine de hibernação onde repousará em sono profundo por “cerca de seis semanas”, tempo estimado para que a nave chegue à “fronteira”, onde, “com sorte”, deverá ser resgatada. Para ser levada à Terra? Informações sempre incompletas alimentam a ansiedade dos espectadores... A partir da narrativa construída por Scott, em 1986 chegou às telas a história dirigida por James Cameron, Alien, o resgate (Aliens), com a seguinte advertência: – “Não se deve ir sozinho a certos lugares do universo”. Nessa seqüência, Ripley, a única sobrevivente da nave Nostromo, é encontrada, em estado de sono profundo, por uma outra nave, de salvamento, cinqüenta e sete anos após sua desventura com o alienígena. Ela descobre, então, que um grupo de famílias habita a colônia LV-426, no planeta onde Kane havia encontrado, no filme anterior, o “ninho” com ovos do alienígena. Como a Companhia perde contato com os moradores da colônia, seus técnicos decidem enviar uma equipe para verificar o ocorrido. Para a missão, é

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destacado um grupo de fuzileiros navais do espaço, space marines, ao qual Ripley se reúne, no papel de consultora. No planeta, encontram uma menina, Newt, a única sobrevivente dentre os habitantes, a quem Ripley passa a proteger. Da grande operação de guerra que se desenvolve, com explosões nucleares fracassadas, grandes fugas frustradas, e o avanço implacável dos aliens sobre os humanos, apenas Ripley e a menina sobrevivem, estabelecendo, entre si, um forte laço afetivo. Nas imagens finais, a menina dorme, já sem o fantasma do monstro a persegui-la. Seis anos após o filme de James Cameron, foi a vez de entrar em cena a narrativa em que David Fincher joga com as personagens do alienígena e da tenente Ripley numa prisão de segurança máxima, com presos de alta periculosidade. Em Alien 3 (Alien³), a nave de Ripley choca-se contra o planeta Fiorina 161, onde está localizada a prisão. Recolhida, ela desperta e é informada que a menina teria morrido “afogada” durante o sono profundo. Sempre dúvidas e perguntas a assaltar o respeitável público. Nessa terceira história, é explorada a estreita ligação entre Ripley, humana, e o outro, quando ela descobre que um feto “dele”, o monstro, se desenvolve em seu ventre. A heroína, ao perceber que, além de lutar contra seu velho inimigo, agora parte de seu corpo, terá de lutar, também, contra a ganância da própria Companhia e seus cientistas, que pretendem apropriar-se do monstro, arremessa-se numa enorme caldeira cheia de chumbo em chamas, matando-se, e ao alienígena que já sente “mexer-se” em suas entranhas. Embora a morte de Ripley pudesse sugerir o ponto final da saga cinematográfica iniciada por Scott, os anos 90 e todas as questões relativas à clonagem humana forneceram o argumento a partir do qual Jean-Pierre Jeunet realizou o, até agora, último filme da série, lançado em 1997, intitulado Alien, a ressurreição (Alien: resurrection). Nele, duzentos anos após o episódio em Fiorina 161, a partir de mostras de sangue coletadas na prisão, um grupo de cientistas militares que ocupa Auriga, Nave de Pesquisa Médica, dos SMU, Sistemas Militares Unidos

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(USM, United Systems Military), desenvolve um clone de Ellen Ripley, e por meio de um procedimento cirúrgico, recupera o alien que ela trazia no ventre quando de sua morte. O filhote, colocado em laboratório, em situação supostamente controlada, desenvolve-se rapidamente, para gáudio dos cientistas. O clone de Ellen Ripley sobrevive e busca reconhecer sua própria identidade. Referida pela equipe médica como “a número oito”, provavelmente por resultar da oitava tentativa de clonagem, e também numa referência à figura do oitavo passageiro, ela é considerada apenas “um subproduto” daquilo que, de fato, interessa: o alien, cuja capacidade reprodutiva é imensa, de modo que, em pouco tempo outros indivíduos da espécie convivem no laboratório. Ripley incorporou à sua natureza humana características do próprio alienígena, de modo que apresenta feições mais duras, uma força física acima da humana, além de ter, em suas veias, uma substância de efeito corrosivo. Os cientistas lhe explicam como a reproduziram e falam de suas intenções quanto à criatura retirada de seu ventre. Ela os adverte: ninguém sobreviverá ao alien, que não é passível de dominação. No entanto, eles não lhe dão crédito. Os aliens brigam entre si no laboratório. Ferindo-se, derramam sua secreção ácida, e abrem uma grande fenda no chão, por onde desaparecem, não sem antes exterminar os técnicos do laboratório. O computador central aciona o alarme e determina a evacuação da nave, instalando pânico geral. Ripley consegue escapar da sala onde está aprisionada, juntando-se a um grupo que tenta alcançar a nave Betty para fugir. Em fuga, ela encontra o laboratório onde estão guardadas as monstruosidades resultantes das tentativas de clonagem para a sua recriação. Monstros, também, são os humanos em seus experimentos laboratoriais, movidos por interesses econômicos, é o que intenta denunciar o argumento do filme. A fuga do grupo, de resto, repete características das fugas dos filmes anteriores: corridas por corredores escuros e sujos, subidas por escadas verticais, longos mergulhos por regiões inundadas, novas informações e obstáculos diversos a cada etapa, como num vídeo game, em que o espectador/jogador se

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identifica com a própria tenente Ripley, personagem que sobrevive sempre, a todas as situações, superando todos os estágios de dificuldade. Os aliens se proliferam rapidamente, e Ripley é atraída para o ninho da “Rainha”, no momento em que ela dá à luz uma nova cria, de cor rosada, cuja aparência incorpora traços humanos. O alien novo reconhece em Ripley a figura materna, e a persegue até à nave Betty, onde os sobreviventes tentam a fuga final. Ripley conduz o monstro para as proximidades de uma janela, sobre a qual joga um pouco de seu sangue, provocando uma fissura. O vácuo abre uma fenda, atraindo o corpo monstro, que é sugado para fora da nave, em urros de desespero. A nave Auriga explode antes de entrar na atmosfera terrestre, enquanto a nave Betty chega à Terra, trazendo, em segurança, quatro sobreviventes, dentre eles o clone de Ripley, e Call, um robô. Observando a paisagem pela janela, Call não contém sua admiração: – “Você salvou a Terra”. Olha para Ripley: – “Parece decepcionada...” Olha pela janela: – “É linda... Não esperava que fosse... E agora?” – “Não sei. Também sou uma estranha aqui”. Diálogo entre as personagens Call e Ripley, em Alien, a ressurreição, de Jean-Pierre Jeunet. Em todos os filmes referidos, a agonística das personagens transcorre, na maior parte do tempo, em ambientes fechados, a bordo de naves ou edificações sombrias, na maioria em planetas ou em órbitas que se encontram muito distantes da Terra. São imagens que mostram um futuro tecnológico, sujo e claustrofóbico, em cujos espaços escondem-se ameaças em formas alienígenas que não oferecem possibilidades de conciliação, assimilação ou dominação. Nesse sentido, é relevante a imagem final de Alien, a ressurreição, em que o céu aberto e luminoso, com nuvens, aparece, de maneira reflexa, na seqüência de chegada da nave Betty à Terra. O público pode ver, então, a expressão dos rostos de Call e Ripley sobrepostos à paisagem refletida no vidro da janela: afinal, personagens estranhas ao ambiente terrestre.

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Nesse conjunto de filmes, os alienígenas habitam pontos recônditos do universo, ameaçando os curiosos incautos que vão até seus habitats. A luta pela sobrevivência daqueles que têm a má-sorte de encontrar-se com os aliens também significa a luta para evitar que eles cheguem à Terra, a casa de origem desses viajantes, onde humanos podem reencontrar seus pares, sentir-se seguros e reconhecer-se membros de uma identidadenós. Mas nenhuma realidade social é homogênea ou linear, e os embates entre diferentes forças e interesses ganham muitas feições de acordo com projetos sociais distintos. De modo que, entre os humanos, há aqueles que desejam os aliens, por suporem que representem a possibilidade de avanços científicos na direção da produção de novas armas, medicamentos, talvez outros produtos com bom potencial de lucros. Para tanto, assumem altos riscos, inclusive o de extermínio da própria raça humana. Nessa lógica prevalece o interesse exploratório, tão predatório quanto a própria ação do alienígena. Nas narrativas em questão, os cientistas e líderes das corporações que investem nessa direção são portadores de uma certa ingenuidade, ao superestimarem suas possibilidades para controlar ou domesticar essas estranhas criaturas, cujas naturezas mostram-se incapazes de serem assimiladas. Ingenuidade semelhante é mostrada por parte da população, pelo governo norte-americano e sua rede de segurança, no dia 2 de julho1, quando da chegada dos gigantescos discos voadores sobre as principais cidades do mundo, no filme Independence day, lançado em 1996, com direção de Roland Emmerich. A primeira reação, por parte das autoridades, ante o desconhecido que se aproxima, é a disposição para estabelecer contato e demonstrar hospitalidade. Contudo, ameaçadoras, as sombras produzidas pela nave alienígena principal e suas “cerca de trinta e seis” unidades menores avançam sobre as construções-símbolo mais importantes da nação norte-americana. Na parte introdutória da narrativa, é tecido o cruzamento entre informações sobre a grandiosidade do espaço, das distâncias planetárias, do poderio tecnológico, com vidas comuns de cidadãos comuns, com suas histórias, vínculos familiares e profissionais, seus conflitos e conquistas quotidianas. O fato

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gerador da tensão e argumento do filme se situa no ponto de convergência entre ambos: imensas naves alienígenas, vindas de pontos desconhecidos do universo, avançam sobre a Terra, sobre os cidadãos, ameaçando sua integridade física. Alguns desses cidadãos comuns são eleitos para ascender do anonimato à categoria de heróis salvadores, já não apenas da nação norte-americana, mas da própria humanidade. Um desses é David, filho do judeu Julius Levinson, o primeiro a compreender que o sinal emitido pelas naves é uma contagem regressiva, para marcar o início dos ataques à Terra. Por isso, há naves sobre “as principais cidades do mundo”: Nova Iorque, Califórnia, Filadélfia, Washington, Los Angeles, Atlanta, Chicago, Moscou, Londres, Nova Deli, Berlin. Além dessas, alguns países são citados, como, por exemplo, o Iraque e o Japão. Não há referências a cidades latino-americanas ou africanas... David é divorciado de Connie, secretária do Presidente Thomas J. Whitmore. Por intermédio dela, ele o convence das reais motivações dos alienígenas. O presidente ordena que as cidades sejam evacuadas e, juntamente com sua equipe, acompanhado por David e Julius, deixa a Casa Branca. Instala-se o caos nas ruas e estradas, entre os que tentam fugir e os que ainda querem observar as naves. Quando o tempo da contagem regressiva se extingue, as naves iniciam seu ataque, explodindo prédios, ruas, tudo e todos quantos neles se encontrem. No dia seguinte, Los Angeles, Washington e Nova Iorque estão destruídas. A Força Aérea organiza um ataque massivo à nave. Dentre os pilotos, está o Capitão Steven Hiller, negro, namorado de Jasmin, stripper e negra. A operação fracassa, pois a nave é protegida por um escudo eletromagnético que barra todos os mísseis. Em contrapartida, milhares de pequenas naves contra-atacam, destruindo as aeronaves norte-americanas e seus pilotos. Só Steven sobrevive, perseguido por uma nave alienígena no deserto. Após derrubá-la, furioso, ele entra na nave inimiga, espanca o piloto, enquanto esbraveja: – “Este não é o seu planeta, e eu não sou seu amigo!”. Depois, arrasta-o pelo deserto, até à Base Aérea Secreta Área 51, de renomada memória, no tocante a histórias sobre seres e naves extraterrestres.

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Jasmin, que se salva e ao filho, salva a esposa do presidente, Marilyn Whitmore, levando-a a bordo de um caminhão, em direção à base onde espera encontrar Steven. Com a base totalmente destruída, eles acampam com os outros sobreviventes, sem diferenças, na adversidade. Integrado ao grupo que acompanha o presidente, Julius lembra que, nos anos 50, teriam ocultado na Área 51 uma nave alienígena capturada em Novo México. A partir dessa informação, o presidente, sua equipe e colaboradores seguem para a Área 51, onde o Dr. Okun apresenta os cadáveres de três alienígenas, preservados “para estudos”. Esses seres não têm cordas vocais, de modo que se comunicam telepaticamente. Suas cabeças são grandes, com grandes orelhas, olhos negros e brilhantes. A pele é de cor escura, tendendo ao negro. As pernas são finas e desajeitadas, com braços, mãos e vários tentáculos. O doutor explica que, embora seus corpos sejam “frágeis como os nossos”, sua tecnologia é muito mais avançada. O alienígena capturado por Steven, levado para a Base Secreta, desperta durante um procedimento cirúrgico, matando o Dr Okun. E embora o presidente tente dialogar com ele em tom de negociação, ele se mostra irredutível, determinado a exterminar a humanidade. A partir de então, o governo norte-americano declara guerra com todo seu potencial bélico contra os invasores, tendo plena justificação para usar, inclusive, armas nucleares. No entanto, logo constatam que o escudo protetor resiste a qualquer tipo de ataque. Novamente, é David que encontra a solução: programa um 2 vírus de computador para contaminar a programação do escudo protetor das naves, que deve ser descarregado na nave-mãe, desativando o escudo de todas as outras naves. Num breve período de tempo, as naves localizadas em todos os países poderão ser combatidas e destruídas. Os norte-americanos organizam o contra-ataque em escala mundial. Ao mesmo tempo, pelas redes de televisão, o governo convoca todos quantos tenham experiência de vôo para integrar o ataque às naves. Um velho aviador bêbado, Russ Case, conhecido e desmoralizado pela história que conta a respeito de já ter sido seqüestrado por alienígenas, integra-se ao grupo.

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Steven Hiller resgata Jasmin, seu filho e a mulher do presidente, nas ruínas da Base El Toro, antes de partir para sua missão mais importante: ele e David, a bordo da nave alienígena capturada nos anos 50, entrarão na nave-mãe para descarregar o vírus. Depois, acionarão explosivos, contando com tempo exíguo para fugirem. Na madrugada do dia 4 de julho, o presidente conclama os soldados. Na condição de ex-piloto de combate, une-se a eles para a batalha aérea.Com os escudos das naves desativados, os aviões descarregam seus mísseis contra elas, sem, contudo, conseguirem destruí-las. Russ Case, num esforço desesperado, entra numa das naves com o míssil armado em seu avião, explodindo-a, numa ação suicida. David e Steven conseguem destruir a nave-mãe e fugir. No mundo todo, as pessoas comemoram a vitória contra os alienígenas, liderada pelos norte-americanos. No deserto, as famílias preservadas apreciam a grande nave destruída, e as bolas de fogo caem do céu. Os casais superam suas crises, reconciliando-se afetuosamente. Na saga dos aliens iniciada por Scott, alienígenas com organismos altamente resistentes e adaptáveis embarcam de carona em naves humanas. Embora o organismo humano se apresente absolutamente vulnerável à sua ação predatória, e toda tecnologia mais avançada seja incapaz de conter os monstros, eles são vencidos: mortos, explodidos, destruídos com raiva, na eliminação das ameaças contra a humanidade. Já na história contada por Emmerich, são os alienígenas que desembarcam na Terra, à revelia das vontades humanas, a bordo de suas imensas naves, numa demonstração de seu poderio tecnológico e bélico. Se seus corpos apresentam o mesmo grau de fragilidade que os corpos humanos, o armamento bélico dos Estados Unidos da América do Norte, o mais poderoso do planeta, se mostra primário ante a capacidade destruidora dos equipamentos alienígenas. Ainda assim, a nação norte-americana salva a humanidade. Nas palavras do historiador Luiz Nazário, a metáfora fílmica sugere que o feito é conseguido graças à “inteligência de um cientista judeu, a coragem de um piloto negro e a liderança mundial do Presidente americano” (NAZÁRIO, 1998, p. 264). Mas, monstros alienígenas, no sentido etimológico mais ra-

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dical da palavra, não são apenas migrantes invasores, vindos de recantos desconhecidos do universo, prontos a invadir territórios humanos. Eles podem fazer parte do próprio convívio humano, como por exemplo, macacos que, tendo conquistado a linguagem falada e desenvolvido inteligência e força na organização grupal, venham a dominar e subjugar homens e mulheres, animalizando-os, roubando-lhes o princípio de dignidade. Esse é o argumento do filme Planeta dos macacos (Planet of the apes), dirigido por Tim Burton, lançado em 2001, refilmagem da história com o mesmo nome, lançada em 1968, por Franklin J. Schaffner, a partir do romance de Pierre Boulle, La planète des singes, escrito em 1963. O sucesso do primeiro filme resultou em outras produções que se seguiram, além do seriado para televisão, igualmente bem sucedido. Na história mostrada ao público em 2001, Leo é um cientista que trabalha na Estação de Pesquisa Espacial Oberon, da Força Aérea dos EUA, USFA Oberon, onde animais vivos, em situação de confinamento, são submetidos a procedimentos de treinamento e condicionamento. Dentre os vários espécimes, Péricles é o macaquinho que Leo treina num simulador de vôo. Quando a nave se aproxima de uma tempestade eletromagnética, o comandante determina que Péricles seja enviado, a bordo de uma cápsula, ao centro da tempestade, para levantar informações. Ao perder contato com seu macaco, Leo parte em sua procura, perdendo, também, o contato com a Oberon, em meio à tempestade. Sua cápsula, desgovernada, cai num pântano, em meio a uma floresta, num lugar desconhecido, onde encontra outros humanos sendo caçados por grandes macacos que usam roupas de guerreiros cujo aspecto lembra soldados do Império Romano. Onde quer que esteja, não é um lugar regido por humanos!... Ao menos, à primeira vista... A caça é levada para a cidade dos macacos que, nas ruas estreitas, atiram coisas contra os humanos e gritam que eles “cheiram mal”. Os humanos são marcados a ferro em brasa, antes de serem vendidos. Ari, filha do respeitado senador Sandar, defensora dos humanos, compra Leo e uma moça, Daena. Em seguida, Leo a convence a ajudá-los a fugir. Contudo, tanto Leo quanto Ari têm que enfrentar a fúria de Thade, que, ambi-

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cioso, não reluta para conseguir mais poder, e tem em Leo seu principal inimigo àquele momento, por ser o primeiro humano que desafia sua autoridade, e também pelo fato de Leo contar com a ajuda de Ari, macaca com quem ele tem intenções de se casar, para se beneficiar com as influências políticas do pretendido sogro, o Senador Sandar. A rede das relações interpessoais, hierárquicas, e seus jogos de interesse, constitui uma metáfora na qual a organização social e política dos macacos repete modelos de instalação humana de caráter extremamente autoritário, e a luta pelo poder conhece todas as armas, inclusive a violência embrutecida. Por isso, Thade mobiliza todas as tropas e deflagra uma verdadeira operação de guerra contra Leo e seus companheiros fugitivos que, orientados por Ari, seguem em direção à “Zona proibida”, onde os equipamentos de Leo indicam estar a nave Oberon, e onde ele espera reencontrar sua equipe, da qual se perdera. No acampamento instalado pelos macacos para interceptar a jornada dos humanos, são montadas tendas vermelhas. Nas narrativas cinematográficas ocidentais, com freqüência, além da cor negra, a cor vermelha também tem sido atribuída ao Mal. Nessa metáfora formulada já no início do século XXI, a ela se juntam elementos relativos à mítica em torno de habitantes do deserto. Os humanos, com sua inteligência e habilidade, conseguem ultrapassar o acampamento dos embrutecidos e arrogantes macacos. Ao chegarem ao local, Leo descobre que as ruínas são, na verdade, os destroços da nave Oberon. Aos poucos, ele compreende o que aconteceu: seus amigos não o encontraram porque ele avançou no tempo. Recuperando gravações deixadas por seus companheiros, descobre que os macacos da nave, inicialmente “prestativos e espertos”, passaram sair do controle, rebelando-se contra os humanos, sob a liderança de um macho chamado Semos. Homens e mulheres se reúnem em torno da nave, curiosos por conhecer o “humano que desafiou os macacos”, sendo liderados por Leo na luta contra Thade. Em plena batalha, o macaquinho Péricles, perdido na tempestade eletromagnética, chega ao local. Thade é feito prisioneiro, e Leo promove a conciliação entre homens e macacos, partindo, em seguida,

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na pequena cápsula, acreditando poder voltar para o ponto de origem. No entanto, ao entrar na tempestade eletromagnética, avança ainda mais no tempo, vindo a cair no centro de uma grande cidade, em frente a um grande palácio, onde se encontra a estátua de um macaco, com os seguintes dizeres: – “Neste templo, como nos corações dos macacos para os quais salvou o planeta, a memória do General Thade será preservada para sempre”. O cenário que Leo encontra apresenta uma inversão da própria história norte-americana e dos papéis de suas principais personagens. A estátua de Thade ocupa o lugar da estátua de Abrahan Lincoln, o primeiro presidente norte-americano, no Capitol, onde se encontra o Memorial a ele dedicado, e onde pode ser vista a inscrição: – “In this temple as in the hearts of the people for whom he saved the union, the memory of Abraham Lincoln is enshrined forever”. Leo é preso por macacos-soldados fardados e armados, conduzidos por viaturas policiais. Macacos-jornalistas fotografam a operação. Os macacos absorveram toda a tecnologia humana mais avançada, e a sua própria história. Ao inverter os papéis nas relações entre macacos e seres humanos, re-atribuindo condutas morais boas e más, Tim Burton lança mão de um recurso utilizado pelo também escritor Cyrano de Bergerac3, já no século XVII, em Voyage dans na Lune et aux états du Soleil (1657) e Histoire comique des états et empires du Soleil (1662)4, em que narra aventuras imaginárias à Lua, quando entra em contato com uma civilização que, a exemplo dos humanos terráqueos, ignora a existência de outros mundos e não admite a existência de vida inteligente fora dos domínios de sua própria espécie. Invertendo as condições, ressalta preconceitos e discriminações cultivadas pelos hipotéticos habitantes da Lua. Assim, critica alguns contemporâneos seus (a nobreza, a Igreja Católica, em especial a Santa Inquisição), denunciando sua arrogância e pretensão, mergulhada em ignorância. “Sou-venez-vous donc, ô de tous les animaux le plus superbe! (...)” (BERGERAC, s.d., p. 95-96), homem, de todos os animais, o mais soberbo, adverte, nas palavras de uma das personagens lunares com quem estabelece intenso diálogo. Cyrano pretende questionar, assim, a concepção antropocêntri-

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ca sobre o universo e os seres nele viventes. No entanto, os diferentes modos de vida e costumes sociais, bem como valores e condutas morais defendidos encontram, de fato, referência em seu próprio tempo e contexto de existência. Vale ressaltar que a descoberta e a conquista do Novo Mundo, àquele tempo, representou grande desafio às muitas verdades constituídas no velho mundo europeu. Afinal, tratava-se de reconhecer outros modos de organização social, com base em valores e códigos diversos dos conhecidos e ali legitimados, até então. Durante séculos, foi posta em questão a possível natureza humana dos habitantes desse Novo Mundo – este, uma espécie de Lua para a Europa de então. Assim, em última instância, a crítica proposta por Cyrano de Bergerac ao antropocentrismo apóia-se numa visão eurocêntrica – o que dificilmente poderia ocorrer de outra forma, em se tratando do século XVII, quando o Iluminismo, então em plena eclosão, passou a reivindicar a razão humana como unidade maior de medida do universo, desde as representações de mundo da cultura européia, conquistadora, colonizadora. No tocante aos outros, habitantes do Novo Mundo, os indígenas5, foram tratados pelos conquistadores europeus como verdadeiros aliens, seres destituídos de humanidade, com quem a Igreja Católica, em sua todo-poderosa referência modelar e ética, se dispunha a conciliar, por meio da catequização, mas os governantes pretendiam apenas explorá-los, eliminando-os quando necessário, caso representassem obstáculos para seu pleito exploratório. Aqueles que sobreviveram ao sangrento processo dito “civilizatório”, nos séculos seguintes, foram agraciados com o “privilégio” de serem mostrados nas Exposições Universais e zoos humanos, promovidos pelos colonizadores na Europa e América do Norte. Em relação às exposições, cabe a indagação: quando o público europeu observa os nativos das colônias instalados em cenários que imitam toscamente seus habitats de origem, e encontram-se diante do olhar dos nativos, quem olha e quem é olhado? Nas relações dialógicas entre as identidades-nós dos colonizadores e os outros, destituídos de identidade, posto que desprovidos de alma, quem são, efetivamente, os sujeitos, e

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quem são os objetos? Quem são os humanos, nós, quem são os aliens, os outros? A uma certa altura da narrativa de Planeta dos Macacos, Leo diz que “agora nós somos os gorilas”, descobrindo-se no papel de outro, o que não tem alma, tampouco inteligência. Mas ele recusa o papel imposto pelos macacos, senhores da identidade-nós de sua própria narrativa, buscando reafirmar a superioridade humana sobre quaisquer entidades de natureza não-humana. Outra questão impõe-se: na filmografia analisada, quem são os legítimos representantes dessa natureza humana, no confronto com não-humanos, sejam aliens ou macacos? A constatação é a de que, tanto em Planeta dos macacos, quanto na saga de Lt Ellen Ripley e, de modo mais explícito, em Independence day, uma parte da humanidade apresenta-se como toda a humanidade: a sociedade norte-americana e seus modos próprios de interpretação e representação do mundo assumem-se como referência da natureza humana, constituindo o ponto de partida e de chegada para os embates, as agonísticas projetadas. O que não corresponda a seu complexo identitário é atribuído à natureza monstruosa do outro. Ou seja, se difere do modal, nega-o e, sendo seu contrário, constitui ameaça. Muitos autores apontam a indústria cinematográfica como um dos pilares na construção do imaginário norte-americano, de sua identidade. Na “nação do filme”, segundo as palavras do estudioso de cinema Robert Burgoyne (2002), o cinema hollywoodiano “articula de maneira clara um campo imaginário no qual as cifras da identificação nacional são exibidas e projetadas. Os conceitos de realidade social construídos em filmes de Hollywood servem claramente como discursos legitimadores na vida da nação” (op.cit., p. 19), tanto internamente, quanto no processo de afirmação diante dos outros povos. Assim, no processo de instalação e expansão de sua liderança mundial nas relações políticas e econômicas, os Estados Unidos da América do Norte contaram, dentre outros recursos, com toda uma produção cinematográfica largamente consumida em todo o mundo como mercadoria de entretenimento, mas, sobretudo, como possíveis visões de mundo. Nesses termos, aos embates que a nação norte-americana empreendeu

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com outras nações, ao longo do século XX, corresponderam inúmeras metáforas construídas nas narrativas produzidas pela indústria cinematográfica, e, em especial, no âmbito da ficção científica. Nesse sentido, na análise que propõe sobre a natureza dos monstros no universo do cinema, Nazário observa que: A ficção científica comprometida pelo anticomunismo na Guerra Fria baseava-se no “outrismo”, isto é, no horror ao Outro – fonte de toda discriminação. Refletindo a doutrina do equilíbrio do terror entre as duas superpotências, o cinema americano criou a “imagem do inimigo” como alienígena invasor, totalitário, repulsivo e cruel, ameaçando extinguir a humanidade (...). (op. cit., p. 259).

O contraponto a essa tendência pode ser observado, na própria indústria cinematográfica norte-americana, sobretudo nos anos 80, quando cineastas do porte de Steven Spielberg propuseram narrativas nas quais a figura do extraterrestre é dissociada da imagem do mal, e associada, mesmo, à salvação da humanidade, contra a sua irracionalidade, como no filme E.T. – O ExtraTerrestre (E.T. – The Extra-Terrestrial), que configura uma explícita, e quase piegas, declaração em favor da tolerância à diferença. À alteridade, ainda que alienígena... No entanto, a vertente mais forte da ficção científica permaneceu “outrista” em sua essência, embora já não podendo ignorar a força dos apelos humanísticos antidiscriminatórios, cada vez mais eloqüentes. Por essa razão, a aversão ao outro, sob a censura crítica das condutas “politicamente corretas”, é deslocada, para uma “camada profunda da psique coletiva” (NAZÁRIO, 1998, p. 259). Isto é, embora a mensagem explícita defenda o diálogo entre as diferenças, traços do diferente são atribuídos ao outro indesejado. Assim tem sido tratada, por exemplo, a questão racial: características atribuídas à raça negra são projetadas nas fisionomias desses seres ameaçadores contra os quais personagens humanas, brancas, negras e de outras raças, devem lutar, solidariamente, para sobreviver. Desse modo, o conflito racial é redimensionado da realidade para a fantasia: a cor negra prevalece entre os aliens, e os macacos são os elos que associam o primitivo ao negro.

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A mais, os aliens também aparecem como imigrantes indesejados, não autorizados, cuja chegada à Terra deve ser evitada a qualquer custo. A face múltipla da migração nos Estados Unidos da América do Norte foi registrada no livro Crossing the BLVD: strangers, neighbors, aliens in a new América (LEHER & SLOAN, 2003) escrito pelo casal norte-americano Warren Leher e Judith Sloan que, após ter se mudado para o bairro novaiorquino Queens, dedicou-se a registrar as faces e as histórias de migrantes de mais de 100 nacionalidades, que falam mais de 138 línguas, segundo dados do censo norte-americano. Em outras palavras, a região de maior diversidade cultural de Nova Yorque. O trabalho resultou, também, numa exposição de fotografias e numa página eletrônica, onde os rostos desses alienígenas podem ser vistos: pessoas que sentem falta de seus países, de suas gentes e sua língua, mas, fugindo de guerras, perseguições políticas e miséria, submetem-se à dura condição de imigrantes nos Estados Unidos da América do Norte, que se tornou ainda mais difícil depois de 2001. O terrorismo, juntamente com a imigração ilegal, ocupa o centro das preocupações da nação norte-americana, sobretudo após os ataques às torres gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de setembro de 2001, quando aviões supostamente controlados por terroristas suicidas atingiram em cheio o coração do império. A agressão teve, como resposta, por parte do governo, a declaração de guerra contra o Afeganistão e, posteriormente, contra o Iraque, alinhados entre os países que formariam o eixo do mal. Além disso, dentro do território norte-americano, foram promovidas prisões e deportações de milhares de estrangeiros considerados suspeitos e imigrantes ilegais. Os temores que assombram a nação norte-americana atualmente adequam-se à fantasia de alienígenas espalhando terror, ameaçando a integridade humana, ou de macacos que cometem a ousadia de ocupar o lugar de personalidades referenciais da história norte-americana, como por exemplo, o próprio ícone nacional que é Abraham Lincoln. Nas projeções científico-ficcionais fílmicas, a separação entre nós e os outros ganha os claros contornos da divisão entre o

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bem e o mal, este atribuído aos de outra natureza, os que vêm de fora, de algum lugar desconhecido. Por exemplo, do deserto misterioso e inóspito. Em Planeta dos macacos, o acampamento dos perseguidores implacáveis de Leo tem a aparência de um conjunto de tendas em geral utilizadas por povos do deserto, estranhos sobreviventes a condições tão áridas de vida, nessa terra de ninguém, em que bandidos e seqüestradores atuam e ex-guerrilheiros buscam refúgio. Esses argumentos têm sido usados para justificar a expansão da guerra promovida pelos Estados Unidos da América do Norte em direção ao deserto do Saara, no norte da África, pelas condições favoráveis que teriam em oferecer abrigo aos terroristas: “fronteiras e costas pouco patrulhadas, laços comerciais e culturais com o Oriente Médio centenário e populações muçulmanas simpáticas ao líder terrorista Osama bin Laden e ao ex-ditador iraquiano Saddam Hussein” (FOLHA ONLINE, 2004), personalidades consideradas, hoje, os principais inimigos da nação norte-americana. A indústria cinematográfica, além de promover laser e entretenimento, atende a projetos ideológicos específicos. O ensaísta Milton Hatoum (2003) registra a eloqüência com que muitos filmes e seriados norte-americanos desqualificam a cultura árabe e o povo muçulmano. Citando pesquisa desenvolvida pelo crítico de cinema Sérgio Augusto, denuncia que em cerca de vinte filmes norte-americanos produzidos entre 1984 e 1986, os árabes teriam recebido tratamento muito semelhante ao que o cinema nazista dispensou aos judeus. Esse dado aponta para o fato que o tratamento visual dado ao acampamento dos macacos, no filme Planeta dos macacos, sugerindo instalações árabes, não é um fato isolado na filmografia norte-americana.

Nós e os monstros... Em janeiro de 2004, noticiários do mundo inteiro mostram imagens em que soldados norte-americanos atiram contra cidadãos iraquianos não identificados em algum ponto do Iraque ocupado. Nas imagens em preto e branco, geradas pela câmara de raios infravermelhos de um helicóptero nor-

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te-americano, o que se vê são três homens, próximos a carros parados em uma rodovia, ocupados em abandonar, fora da estrada, um objeto cilíndrico. Não é possível saber, com precisão, do que se trata o referido objeto, mas os soldados norte-americanos o consideram suspeito. Por essa razão, solicitam autorização para atirar. Autorizados, descarregam tiros de canhão contra os homens. Seus corpos são pulverizados no espaço, e com eles as ameaças que poderiam representar. Como Ripley teria agido com os monstros que a perseguiram durante quatro produções cinematográficas, ou Steven Hiller com os alienígenas que pairavam sobre as principais cidades norte-americanas, nos filmes citados. Nos embates entre nós e os outros configurados nas várias narrativas fílmicas analisadas, uma constatação é inequívoca: o termo nós, regra geral, refere-se à humanidade como um todo. Supostamente, é a categoria dos humanos que luta por preservar sua integridade e dignidade, contra outros que os ameaçam. No entanto, nessas narrativas, as sociedades eleitas representantes da humanidade, ou seja, as que constituem a identidade-nós da categoria humanos, referida por Elias e Castoriadis, são aquelas detentoras do poder econômico, do conhecimento científico e tecnológico, as colonizadoras. Assim, em Viagem à Lua, a humanidade é representada pela comunidade francesa, mais especificamente a parisiense, do início do século XX. Na medida do desenvolvimento da indústria do cinema nos Estados Unidos da América do Norte e da ascensão desse país ao posto de potência mundial, essa representação passou a ser atribuída, cada vez com maior freqüência, à sociedade norte-americana. De modo que, nas últimas décadas, os representantes da humanidade falam, majoritariamente, a língua inglesa de sotaque norte-americano. E quando retornam para casa, a paisagem é, quase sempre, a América do Norte. O que moveria esses cidadãos a empreender lutas sem tréguas contra esses outros, configurados em aliens invencíveis, macacos que falam, máquinas inteligentes, monstros de quantas naturezas, vindos de lugares desconhecidos, ameaçadores, incapazes de conciliação? O sociólogo norte-americano Barry Glassner dedicou-se, durante cerca de cinco anos, a pesquisar e

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escrever o livro intitulado The culture of fear (1999), uma tentativa de responder à pergunta: why americans are afraid of the wrong things? Baseado nesse estudo, o cineasta Michael Moore realizou o documentário intitulado Tiros em Colombine, Bowling for Colombine, lançado em 2002, aplaudido pela crítica internacional e premiado com o Oscar de Melhor Documentário em 2003. O argumento em torno do qual Moore articula toda a discussão é o massacre ocorrido em Colombine Highschool, em Littleton, em 20 de abril de 2000, quando dois alunos adolescentes, armados com metralhadoras, atiraram contra colegas e professores, matando-se logo em seguida. Classificado como documentário, supostamente, sua narrativa estaria situada no pólo oposto ao ocupado pelos filmes de ficção científica. No entanto, a referência a essa obra, neste artigo, apóia-se em dois pontos: primeiro, o filme abre uma discussão a respeito da cultura do medo, assim denominada por Barry Glassner (1999) ; segundo, na problematização proposta, identifica a fonte desse medo nas relações com os outros, e na instituição de uma “indústria do medo” altamente lucrativa, integrada pelas redes televisivas, jornais diversos, a mass media em geral. A indústria cinematográfica não está isenta desse universo e, nela, os filmes de ficção científica cumprem papel relevante. Moore apresenta imagens e depoimentos de cidadãos comuns norte-americanos, bem como de personalidades com projeção pública, como por exemplo, o ator Charlton Heston, figura emblemática do cinema hollywoodiano e presidente da Nacional Rifle Association (Associação Nacional do Rifle). Todos revelam intimidade no trato com armas, defendendo seu direito ao porte, justificado na responsabilidade que lhes cabe de se protegerem contra quaisquer ameaças, e às suas famílias, propriedades e todo o legado cultural deixado pelos pioneiros que construíram a nação. Apóiam-se no princípio dos direitos individuais assegurados, base sócio-cultural e histórica do ideário democrático norte-americano. Nessa linha, o consultor de segurança da Lockheed, maior empresa fabricante de armas pesadas do mundo, afirma não ver relação entre a atuação da fábrica e o comportamento, exemplo, dos alunos autores do massacre na Colombine Highs-

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chool. Ele esclarece que a fábrica investe milhões em programas que têm em vista orientar alunos e professores a darem um direcionamento desejável ao sentimento de raiva. Argumenta, ainda, que os mísseis são feitos para o país se defender, e não para atacar alguém com quem possam estar irritados. Moore responde a essa afirmação com uma seqüência de imagens que mostram os trágicos resultados de ações bélicas norte-americanas em vários países, acompanhada de informações a respeito das situações sócio-históricas e políticas em que ocorreram, sempre marcadas por ambigüidades e contradições. Irã, Vietnã, Chile, El Salvador, Rússia, Iraque, Panamá, Sudão, Afeganistão, dentre outros, integram essa lista. A ação armada tem sido adotada como uma das respostas possíveis ao sentimento de medo do outro, que mobiliza em homens e mulheres norte-americanos a necessidade de se proteger, quando não atacar como forma justificada de defesa. Seguindo os passos de Glassner (1999), Moore ressalta que a imagem dos negros é associada à criminalidade, ou seja, uma fonte de ameaças permanente com que os cidadãos em geral têm de conviver quotidianamente. Advertindo para o fato de que “você sempre pode contar com o medo que os brancos sentem dos negros”, mostra como as redes televisivas reforçam essa idéia. Mais recentemente, além dos negros, também os imigrantes de origem latina e hispânica passaram a figurar como criminosos em filmes e seriados televisivos. Alienígenas cujas feições “ameaçadoras” ganharam registro, por exemplo, no trabalho do casal norte-americano Warren Leher e Judith Sloan, já referido. Em se tratando de noticiários televisivos, seriados e filmes em geral, o cineasta Moore constata, então, que “raiva e medo são mercadorias” com maior potencial de venda, portanto mais lucrativas do que “solidariedade e justiça social”. Muniz Sodré (1999) afirma que o ato comunicacional é aquele que torna comum o que não é para ficar isolado. Nos veículos de comunicação balizados pela tecnologia, o afeto, e não o conceito, é que estabelece os laços para que a comunicação se efetive. Ou seja, uma mensagem é tão mais eficientemente comunicada quanto evoque dimensões afetivas do

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sujeito, e não sua capacidade de formulação racional, conceitual. Tomando essa afirmação como referência, e retomando a questão da cultura do medo, o medo ao outro aparece como potencial afetivo relevante, e altamente lucrativo, no qual os meios de comunicação e a indústria do entretenimento podem ancorar sua ação de comunicação. Esse intenso medo ao outro, de caráter coletivo, enraizado no imaginário da sociedade norte-americana, com representações imagéticas na produção cinematográfica, particularmente no universo da ficção científica, justifica todas as iniciativas de ataque em nome da autodefesa. A indústria cinematográfica, nesse contexto, cumpre, dentre outros, o papel de fazer demonstrações imaginárias, aos outros, do poder dessa nação que, além de dominar a indústria da guerra, detém a indústria cinematográfica mais divulgada do planeta6. E por meio dos filmes de ficção científica reafirma sua hegemonia nas relações de poder, inclusive no futuro. No futuro da Humanidade, ressalte-se... Os filmes de ficção científica, dentre outras coisas, prestamse a isso... À apologia de suporte ao poder discricionário contra os outros, não importando a amplitude e complexidade de suas dinâmicas culturais e identitárias.

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Notas 1- Ou seja: dois dias antes do 4 de julho, quando os norte-americanos comemoram a independência dos Estados Unidos da América do Norte. 2- No inglês norte-americano, David atua como white hacker, um hacker do bem, uma espécie de hacker de “alma branca” autorizado em suas atividades de criação de vírus digitais, ao contrário dos hackers do mal, implicitamente black hackers, negros, todos igualmente aliens. 3- Cyrano de Bergerac, figura legendária, inspirou Edmond Rostand a escrever a famosa peça teatral que leva seu nome, apresentada ao público, pela primeira vez, em Paris, em 28 de dezembro de 1897 (Rostand, 1976). No entanto, Savinien Cyrano de Bergerac, esse o seu nome, muito antes de habitar os versos de Rostand, viveu na Paris do século XVII, entre os anos de 1619 e 1655. Exímio esgrimista, foi também poeta, filósofo, ensaísta, comediante e boêmio. 4- Essas duas obras foram editadas e publicadas após a sua morte. 5- Vale notar que a palavra indígena é o antônimo de alienígena, referindo-se àquele que está em seu próprio território ou país, onde é nascido; o que é de dentro. 6- A maior indústria cinematográfica, entretanto, em termos de produção, encontrase na Índia: Bollywood! Têm-se notícias de que ali sejam produzidos, anualmente, em torno de setecentos filmes de longa-metragem, para um público semanal de setenta milhões de pessoas, o que gera nada menos que dois milhões de empregos. Atualmente, Hollywood tem uma produção anual de cerca de quinhentos filmes.

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ALICE FÁTIMA MARTINS Doutora em Sociologia e Mestre em Educação pela Universidade de Brasília, Arte-educadora, professora da Faculdade de Artes Visuais da UFG, nos cursos de Licenciatura em Artes Visuais e Mestrado em Cultura Visual. Email: [email protected]

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The article discusses aesthetic premises linked to phenomenology. It’s presented a model of stratification based on the theory of the polish philosopher Roman Ingarden and its application in works of the technology art. Is also presented an analysis from the application of this method in the work Rara Avis, of Eduardo Kac. Keywords: aesthetics, phenomenology, technological art.

abstrac t

Fenomenologia da Cibercepção

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ROCHA

resumo

O artigo discute premissas estéticas vinculadas à fenomenologia, apresentando um modelo de estratificação da obra de arte tecnológica, baseado no trabalho do filósofo polonês Roman Ingarden. Á apresentada também uma análise a partir da aplicação do método, no trabalho Raras Avis, artista brasileiro Eduardo Kac. Palavras-chave: estética, fenomenologia, arte tecnológica.

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Desde Edmund Husserl (2001), com sua teoria fenomenológica, vários são os autores que se debruçam sobre esse referencial, na construção e/ou desenvolvimento da atitude fenomenológica, fundada na relação objeto e sujeito, colocando a noção de intencionalidade no centro das discussões filosóficas. O filósofo Mikel Dufrenne esclarece: A intencionalidade significa, no fundo, a intenção do Ser que se revela – a qual não é outra coisa que sua revelação – e suscita o sujeito e o objeto para se revelar. O objeto e o sujeito, que só existem no seio da mediação que os une, são, destarte, as condições do advento de um sentido, os instrumentos de um Logos” (DUFRENNE, 1998, p. 79).

Husserl (2001) discute a intencionalidade a partir das estruturas da ordem do noético (noesis), o ato de cogitar, e o noema (adjetivo: noemático) ao seu conteúdo, “o que deixa bem clara a relação sujeito-objeto, que é o fundamento da consciência” (RAMOS, 1969, p.59). Heidegger (apud DUFRENNE, 1998), por outro lado, identifica o Logos com o Ser, o objeto com o ente e o sujeito com o Dasein (e não mais como consciência), enfatizando o poder do Dasein de se abrir ao Ser, mas (...) determinando essa transcendência ao próprio Ser que convida o sujeito para lhe servir de testemunha, para se fazer o lugar de uma presença, de modo que o seu projeto é um projeto do Ser sobre ele. Assim, objeto e sujeito são destituídos de suas prerrogativas; é o Ser como luz que comanda tanto o olhar, quanto a coisa olhada, que tem a iniciativa da relação entre o sujeito e o objeto (apud DUFRENNE, 1998, p. 79).

Ainda neste sentido, ao estabelecer que a análise do cogito revela que o sujeito é projeto do objeto, a análise intencional revela que o aparecer do objeto é sempre solidário com a intenção que visa a esse objeto. Há, neste sentido, que se mencionar o a priori da experiência estética, que vem a ser o algo de comum entre sujeito e objeto, de modo que “algo do objeto está presente no sujeito antes de toda experiência e que, em troca, algo do sujeito pertence à estrutura do objeto anteriormente a qualquer projeto de sujeito” (DUFRENNE, 1998, p. 87).

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Questões gerais à parte, e embora Edmund Husserl (2001) não tenha escrito uma estética propriamente dita, sua obra possui vários elementos que permitem a elaboração de uma estética fenomenológica. Um de seus primeiros discípulos, – ainda no tempo de Göettingen – o filósofo polonês Roman Ingarden, elaborou, em 1931, uma análise altamente técnica da obra de arte literária, utilizando os métodos da «fenomenologia» de Husserl para atingir distinções como a dos estrados. O método de Ingarden, publicado no livro Das literarische Kunstwerk, é considerado o primeiro texto organicamente articulado, empenhado em responder à exigência de superação do psicologismo que caracterizou a filosofia no final do século XIX1. O método é composto por cinco estratos da obra literária, sendo a primeira o estrato sonoro, a partir do qual surge o segundo estrato: as unidades de sentido. As palavras se organizam para comporem sintagmas e padrões de frase. Dessa estrutura sintática emergirá um terceiro estrato, o dos objetos representados, o mundo do romancista, as personagens, o ambiente. Os dois últimos estratos, o estrato do mundo e o estrato de qualidades metafísicas, argumentam Wellek e Warren (1962), podem ser tidos em um único, o do mundo, no reino dos objetos representados. Para Ingarden, o estrato do mundo é encarado de um particular ângulo de visão, que não carece necessariamente de ser expresso, pois pode ser implícito. Já o estrato de qualidades metafísicas (o sublime, o trágico, o terrível, o sagrado) seria aquele cuja contemplação nos pode ser proporcionada pela arte. Este estrato, ainda em comentário de Wellek e Warren, pode não ser indispensável e estar ausente de algumas obras literárias. Trata-se, em última instância, da mensagem estética, de que fala Abraham Moles. O pensamento de Roman Ingarden veio para o Brasil a partir dos estudos de René Wellek e Austin Warren, no livro Teoria da Literatura, de edição portuguesa. A professora Maria Luiza Ramos publica, em 1969, Fenomenologia da obra literária, em que estuda e aplica o método de Ingarden, esclarecendo-o em grande parte. De fato o método de Ingarden é bastante interessante, na medida em que se constrói de modo articulado, permitindo enxergar o exercício hermenêutico a partir de estratos

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que se somam, em um contínuo analítico, fundado no princípio sonoro, alcançando o metafísico. Desse modo o princípio do método é a obra viva, tornada som, que articula palavras em frases, que organizam as unidades de sentido, que estruturam os objetos representados, que compõem o mundo que abraça a metafísica. Esse contínuo sustenta uma atitude fenomenológica, cuja base encontra-se em Husserl, que diz claramente de ir à obra mesma, no sentido de que a obra suscita no intérprete a chave interpretativa, hermenêutica, base para compreensão da intencionalidade, e que de outro modo é explicado a partir da evidência, “ou seja, em experiências em que as ‘coisas’ e os ‘fatos’ em questão me são apresentados ‘em si’” (HUSSERL, 2001, p. 31). Certamente mantém-se, desse modo, a premissa fenomenológica do primado da percepção, de Maurice Merleau-Ponty (1999). Contudo, no que tange à arte contemporânea, e de modo mais exato a arte tecnológica, é preciso acrescentar a valoração das instâncias conceituais, abstratas, que fogem à orientação de aproximação sensível, por representação, de que fala Merleau-Ponty. De fato, ao estabelecer reconhecimentos puramente conceituais, e não sensíveis, ainda que admitindo-se a primazia da percepção, o conhecimento intelectual afigura-se em uma representação de igual modo conceitual, validandose não por reconhecimento perceptivo, mas por informação em que se deposita confiança, não verificável, ou não dado à verificação. Significa isso dizer que o agente fruidor depende de informações conceituais e perceptivas para aproximar-se da obra tecnológica, podendo ser enganado nas informações, sem maior dificuldade, haja vista não haver possibilidades de conferências imediatas das informações tidas. Determinadas obras ditas não-lineares com navegação randômica poderiam ser, de fato, completamente lineares, na exata medida em que o percurso lineariza a existência, no que uma experiência com uma obra não-linear e uma segunda com outra linear poderiam ser exatamente iguais, no modo da percepção, e diferentes na intencionalidade, no que resultaria experiências fruitivas distintas. Neste ponto, cognição e percepção caminham juntas, na forma elaborada por Ascott (2002), da cibercepção.

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Mas retomando Ingarden, e não obstante seu método ter sido definido em sua obra, há de notar a possibilidade de variações de estratos, como nota Ramos (1969) ao dizer que buscou, com seu livro, fazer enxergar as margens de formulação de novos estratos, conforme a natureza da obra ou o objetivo do crítico. De fato, Ramos faz coro com Wellek e Warren (1962), que defendem a estruturação de novos estratos, segundo a natureza do trabalho. Ela mesma, Ramos, a despeito de Ingarden não ter formulado um estrato óptico, acrescenta-o em sua análise, justificando-o em função da importância que a organização espacial passa a ter na contemporaneidade. Ao estabelecer que os estratos seguem a natureza da obra ou o objetivo do crítico, torna-se lícito proceder a uma análise de obras outras, que não literárias, mantendo-se as diretrizes do método de Ingarden, a saber, partindo da dimensão sensível da obra, chegando à dimensão metafísica. Deste modo, e inspirado na construção de uma estratificação para abordar a obra de arte visual, e a vertente tecnológica desta mais precisamente, alterando os estratos a serem verificados, propõe-se: •Estrato฀ sensível,฀ abordando฀ as฀ relações฀ sonoras,฀ visuais,฀ olfativas, táteis e cinéticas, na abordagem do objeto estético propriamente dito; •Estrato฀ pragmático,฀ que฀ considera฀ os฀ aspectos฀ técnicos฀ relacionados à intelecção ou reconhecimento de padrões tecnológicos do ‘em si’ do objeto, bem como a noção de ‘para si’ tecnologizado, a partir da inteligência artificial e especificidades do meio; •Estrato฀sintático-compositivo,฀que฀consiste฀na฀observação฀das฀ unidades de sentido, compreendendo estas enquanto as relações estruturais da(s) linguagem(ns) utilizada(s); •Estrato฀semântico,฀buscando฀dar฀conta฀dos฀objetos฀representados, no exercício da relação sígnica; •Estrato฀da฀mensagem฀estética,฀ou฀das฀qualidades฀metafísicas,฀ vislumbrando a contemplação, participação ou interação proporcionada pela arte.

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Estes cinco estratos, se não garantem um meticuloso estudo da obra de arte, sistematiza sua abordagem, considerando seus elementos primordiais enquanto tal, mantendo uma orientação de contínuo, partindo da relação fenomenológica sujeito e objeto. Ademais, ultrapassa os modelos estéticos apresentados, ao reestabelecer os valores de subjetivação da qual fala a fenomenologia husserliana. O presente modelo é denominado Fenomenologia da Cibercepção, em referência à base fenomenológica da qual deriva, e da instância da aplicação prioritária, a vertente tecnológica da arte, considerada a partir das abordagens perceptivas e cognitivas, ampliadas pela tecnologia, que originam o termo cunhado por Roy Ascott (2002), um pioneiro da arte tecnológica, como já observado. Outrossim, cabe salientar a possibilidade de aplicação do método em trabalhos artísticos de outras linguagens, tradicionais ou experimentais, haja vista sua origem, sua constituição e amplitude, além da flexibilidade de formação dos estratos, de acordo com a natureza da obra e/ ou objetivo do crítico. Finalmente, o modelo metodológico diz respeito a abordagem de objetos estéticos e sensações estéticas, envolvendo inteiramente o fruidor como condição da significação da obra, sua existência mesma, na relação fenomenológica sujeito e objeto, no desvelamento do Ser pela intencionalidade, na estrutura noético-noemática. Neste sentido, o método, ao reportar à essa relação como totalidade e na totalidade, firmase enquanto estética, no sentido dado por Pareyson (1997), ao tempo em que remonta, também, as relações poéticas – baseadas na produção e participação da obra dita aberta – e de catarsis, quando há uma empatia entre o público e a obra. Ainda, e do mesmo modo que em Ingarden, não há homogeneidade entre os diversos estratos, podendo determinados trabalhos terem um estrato mais rico que outros, ou mesmo terem estratos nulos, de modo a permitir que os estratos se compensem e se complementem na tensão dinâmica geradora da coerência interna da estrutura.

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Aplicação do método A título de exemplificação da aplicação do método, é apresentada a seguir a análise da obra Rara Avis , produzida em 1996 pelo brasileiro Eduardo Kac. O trabalho de Eduardo Kac é amplamente discutido, sendo referido por vários textos críticos e teóricos, a exemplo do que fazem Simone Osthoff (professora de Crítica de Arte da Penn State University, EUA), David Hunt (Crítico de Arte, EUA), Gerfried Stocker (Diretor Artístico do Ars Electronica Festival e Diretor Geral do Ars Electronica Center, Áustria), Steve Tomasula (professor da Notre Dame University, Indiana, EUA), Arlindo Machado (professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Cláudia Giannetti (Diretora do Media Center of Arts and Design, MECAD, Espanha), dentre outros. Giannetti (2002) aborda o trabalho Rara Avis a partir de uma descrição genérica da instalação, situando os mecanismos de interatividade e telepresença. O efeito de ubiqüidade proporcionada pela obra é o interesse da pesquisadora, bem como a possibilidade de compatilhamento das imagens captadas pelos “olhos” da arara-robô, via Internet. La instalación está permanentemente conectada a Internet y permite que participantes remotos también observen el espacio de la galería desde el punto de vista del telerrobot. Así, el cuerpo del pájaro artificial es compartido, en tiempo real, por participantes locales y participantes a distancia, de cualquier parte del mundo, a través de Internet (GIANNETTI, 2002, p. 93)2 .

A pesquisadora brasileira ilustra o texto com documentos técnicos sobre a instalação e também com uma fotografia da galeria, a partir dos olhos da ave robô. Não há aqui uma análise do trabalho, mas sim sua utilização enquanto exemplo na construção de seu argumento de tese. Arlindo Machado (2000), em capítulo destinado a examinar o trabalho de Kac, consegue ser mais sintético ao comentar Rara Avis. Sua abordagem descreve a obra genericamente, buscando indicar a utilização de robôs em trabalhos artísticos. Novamente não se constitui uma análise, mas de situar esta obra enquanto a primeira em que o artista utiliza de tecnologia para

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compartilhar a visão de um pássaro com seres humanos, sendo o pássaro também uma máquina. (...) esta foi a primeira vez, em sua obra, que humanos puderam compartilhar o corpo de um pássaro que ao mesmo tempo era uma máquina, e viver, ao menos em um sentido psicológico ou metafórico, a experiência de ‘serem’ tanto pássaro quanto máquina (MACHADO, 2000, p. 81).

Gerfried Stocker (2003) de modo similar comenta o trabalho, em texto do catálogo “Genesis”, da mostra do Centro de Arte Contemporâneo O. K., em Linz, na Áustria. Trata-se de uma descrição rápida da instalação, no que ela tem de tecnologia e efeitos. Não há outro interesse se não pontuar o trabalho, como medida de apresentação do artista para uma exposição. (...) “Rara Avis” (1996), an interactive telepresence installation, in which a telerobotic bird-machine is put together with real birds and artificial plants in an enclosure. Using data glasses or via Internet, visitors are not only able to control the head of the cybernetic bird, but also to assume its perspective, observe themselves with its camera eyes (“Genesis”, 2000. Catálogo)3.

Já o artista descreve Rara Avis a partir, principalmente, da relação estabelecida entre o espectador e a obra, em uma descrição do processo interativo possibilitado. Novamente, o interesse em explorar os efeitos produzidos pela tecnologia e possíveis, explicitando seus mecanismos de produção, posiciona-se de modo privilegiado, ainda que não haja uma descrição técnica minuciosa do aparato usado, exposto, contudo, na forma de gráficos técnicos. Diz Kac que a obra (...) remete o espectador ao espaço interior e exterior do aviário simultaneamente e propõe uma troca de papéis. A partir do momento que o espectador coloca o capacete virtual ele vê o espaço como se fosse o papagaio robótico. Os pássaros reais e o papagaio robótico (que possui duas câmeras nos olhos) estão num viveiro de frente aos visitantes. Com o visor de realidade virtual, os espectadores passam a ver e ouvir como se fossem o papagaio. O papagaio também toma o lugar do espectador, cuja visão é apreciada pelos monitores dos computadores remotos. Diretamente

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ligado à Internet, o participante transmite seu ponto de vista à rede, e dela recebe os sons vocais do telerrobô, que afetam o ambiente local.4

Há de se considerar o caráter inovador dos trabalhos do artista brasileiro, no que se refere à utilização de tecnologias diversas, no que o estrato pragmático se firma enquanto o elemento melhor explorado em suas obras, ainda que não se perca, em nenhum momento, preocupações plásticas, semânticas e estéticas, não apenas em Rara Avis, como no conjunto da obra do artista brasileiro. Rara Avis é uma instalação que consiste em uma grande gaiola de pássaros com uma arara robô entre eles. A arara Detalhes da obra Rara Avis robô é dotada de Fonte: Eduardo Kac, câmeras nos olhos, podendo mover a cabeça para os lados. As imagens captadas pelas câmeras são disponibilizadas em óculos estereoscópicos, disponíveis fora da gaiola, para os visitantes da exposição, com imagens disponíveis pela Internet. Os movimentos da cabeça da ave, e que direcionam sua visada, são controlados pelo visitante, que enxerga pelos olhos da ave, em tempo real. Pela Internet se pode acompanhar as imagens captadas pelo robô, em uma experiência de telepresença5. Deste modo o visitante tem a visão interna da gaiola, podendo enxergar a si mesmo fora da gaiola. O som também é captado pela arara, em tempo real. Seu ponto de vista difere de seu ponto de existência, dandolhe um estar fora de si. O efeito da estereoscopia proporciona uma experiência vívida da imagem, resultando em movimentos voluntários de tentar tocar os outros pássaros. É preciso esclarecer que os visitantes se posicionam de frente a gaiola, enxergando, sem os óculos, os pássaros e a arara robô. A experiência remete à ubiqüidade, possibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Analisando o estrato sensível, verifica-se que os dados imagéticos são os mais importantes, sendo as informações sonoras

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e as cinestésicas mantidas em segundo plano. Claro está que a movimentação dos óculos, que resultam na movimentação da cabeça da arara e por conseguinte no direcionamento das câmeras, importam, mas o fazem na medida exata em que direcionam a visada, prevalecendo a intenção de ver, antes da intenção de mover o robô.

Detalhe da obra Rara Avis Fonte: Eduardo Kac,

A gaiola é ampla e toda branca, inclusive as barras de proteção que sustentam uma tela. Recipientes com água e comida de pássaros podem ser vistos no interior do viveiro. Em um canto, um arbusto artificial sustenta a arara robô, multicor e de tamanho ampliado em relação à escala natural. A arara permanece pousada. Diversos pequenos pássaros reais vivem na gaiola, convivendo com o robô. Um praticável também branco está situado de frente a gaiola, e que serve de anteparo para os óculos estereoscópicos e os fios que se conectam a eles. O visitante deve se posicionar ali para usar os óculos, tendo a sua frente, do lado oposto da gaiola, o robô, que visualmente prende o olhar, pela coloração e tamanho. A arara tem predominância da cor vermelha, com detalhes em azul e amarelo. Sua fronte é branca, com olhos pretos e bico amarelo e preto.

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Apesar das formas realistas, dificilmente seria confundida com uma arara real. Colocando os óculos o ponto de vista se inverte: vê-se a gaiola branca, em um ponto de vista interno, tendo, do outro lado da gaiola, a imagem do visitante, com os óculos. Também é possível enxergar os pássaros, próximos, voando ou pousados ao lado. A construção é engenhosa do ponto de vista sensível. É possível sentir-se em um lado da sala e enxergar a partir de outro ponto, vendo o próprio corpo, a distância. Essa telepresença é o mote principal do trabalho, tendo todo o referencial dado à percepção. Observando o estrato pragmático, a utilização de tecnologia avançada, tanto de vídeo, estereoscopia e Internet, torna o trabalho deveras interessante, tanto que vários outros trabalhos buscam situações tecnológicas similares, com base na telepresença e telerobótica6. O esforço cognitivo é mínimo, haja vista todo o equipamento ser apresentado para proporcionar sensações visuais específicas, de modo que o equipamento ou o sistema não necessita ser pensado, mas experienciado. A tecnologia não necessita, portanto, ser decodificada, para que a obra seja compreendida em sua extensão, mas ela é base para experienciar sensivelmente o trabalho. Já no estrato sintático-compositivo, nota-se o espaço branco em diálogo com os pássaros, em uma associação com a liberdade. O arbusto e a arara robô, em um canto da gaiola, concentram o foco de atenção do visitante, destacando-se pelas cores e posição. Os pássaros, por serem pequenos, requerem pouco a atenção quando pousados, apesar de provocar curiosidade ou estranhamento por serem expostos enquanto obra de arte, ou componentes de uma. Certamente a limpeza visual dá conta de um posicionamento distinto da gaiola, não se assemelhando a um zoológico, mas sim a um espaço expositivo: os pássaros, a gaiola, a arara robô, o arbusto, todos os elementos estão instalados meticulosamente, harmonizando-se no conjunto que adquire uma determinada organização simétrica, adquirindo equilíbrio visual. No estrato semântico as referências são de liberdade, trazida pelos pássaros e pelo movimento de “sair de seu corpo” pro-

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porcionado pela telepresença – e pela telerobótica -, e a prisão, referida pela clausura da gaiola e pelos corpos que enclausuram o ser, este último em menor intensidade, quase nulo, pelo branco da gaiola. Por fim, no estrato da mensagem estética, verifica-se que Rara Avis se constrói na ambigüidade de poder ver com outros olhos, livrar-se do corpo próprio e, simultaneamente, verificar a prisão que o corpo representa ao ser, ou seja, ele, o corpo, ao sustentar o ser, o prende. Ao notar a possibilidade de livrar-se do corpo próprio nota-se, também, a clausura que ele encerra. O estar fora de si, possibilitado pela tecnologia da telepresença e telerobótica, ganha uma dimensão poética de liberdade, ao mesmo tempo em que constrói uma experiência de ubiqüidade tecnológica. De modo geral, com os olhos próprios vê-se os pássaros presos; com os olhos da ave robótica, quem está preso é seu corpo, ou o dono dele, nele mesmo. Há de se notar que a análise realizada a partir da fenomenologia da cibercepção busca efetivar um movimento que tem início na própria obra, portanto de caráter mais analítico-descritivo, alcançando uma posição interpretativa, articulando sentidos a partir da obra. Crê-se que tal movimento, da obra para seu sentido, assenta nas estruturas fenomenológicas, sistematizando o processo de análise da obras de arte tecnológica.

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Notas 1.FIGURELLI, Roberto, em texto de introdução à edição Brasileira de DUFRENNE, 1998. 2.A instalação está permanentemente conectada à Internet e permite que participantes remotos também observem o espaço da galeria a partir do ponto de vista do telerobô. Assim, o corpo do pássaro artificial é partilhado, em tempo real, por participantes locais e participantes a distância, de qualquer parte do mundo, através da Internet (T.A.). 3.“Rara Avis” (1996), uma instalação de telepresença interativa em que um pássaro robô é colocado com pássaros reais e plantas artificiais em um aviário. Usando óculos de dados ou pela Internet, visitantes não apenas controlam a cabeça cibernética do pássaro, mas também assumem sua perspectiva visual, enxergando a si próprios com as câmeras localizadas nos olhos da ave (T.A.). 4.Disponível em: . 5.O termo telepresença foi empregado por Marvin Minsky no artigo Telepresença, escrito em 1980 e publicado em 1983 no livro OmniBook of Computers & Roboters. 6.Entendido enquanto robôs não autônomos controlados a distância.

Referências Bibliográficas ASCOTT, Roy. A arquitetura da cibercepção. In: LEÃO, Lucia (org.). Interlab: labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 31-37. DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. 3ª ed. Trad. Roberto Figurelli. São Paulo: Perspectiva, 1998. (Coleção Debates) GIANNETTI, Claudia. Estética Digital – sintopía del arte, la ciencia y la tecnología. Barcelona: Associació de Cultura Contemporània L´Angelot, 2002. HUNT, David. Eduardo Kac: Da Metáfora ao Motivo. Concinnitas, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 77-81, março de 2003. (Dossiê Eduardo Kac) HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas – Introdução à fenomenologia. Trad. Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001. KAC, Eduardo. Coordenação de Eduardo Kac. Apresenta vida e obra de Eduardo Kac. Disponível em: . Acesso em: 12 mai 2002. KAC, Eduardo. Genesis: a transgenic artwork. In: ASCOTT, Roy (ed.). Art, Technology, Consciousness. Portland: Intellect Books, 2000, p. 17-19. KAC, Eduardo. Novos rumos na arte interativa. In: LEÃO, Lucia (org.). Interlab: labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo: Iluminuras, 2002, p.107-113.

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KAC, Eduardo. Telepresence, Biotelematics, Transgenic Art. Maribor: Kulturno izobrazevalno drustvo Kilbla = Association for Culture and Education Kibla, 2000. KAC, Eduardo. Entrevista por Simone Osthof. In: VIS. Revista do Curso de Mestrado em Artes do Instituto de Artes da Universidade de Brasília. V.1, n.1,p. 9-17, 1º semestre, 1999. MACHADO, Arlindo. El paisaje mediático: sobre el desafío de las poéticas tecnológicas. Buenos Aires: Libros del Rojas, 2000. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2ª ed. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MERLEAU-PONTY, Maurice. O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas. Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1990. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. Rio de Janeiro: Forense, 1969. STOCKER, Gerfried. Insurreição. Concinnitas, Rio de Janeiro, ano 4, n. 4, p. 92-94, março de 2003. (Dossiê Eduardo Kac) WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da Literatura. Lisboa: EuropaAmérica, 1962.

CLEOMAR ROCHA Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC-SP), Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA), Mestre em Arte e Tecnologia da Imagem (UnB), Especialista em Gestão Universitária (UNIFACS) e Licenciado em Letras (FECLIp/UEG). Membro da diretoria da ANPAP. Gerente de Projeto de Produto da Power.com. Consultor Ad Hoc da Enciclopédia de Arte e Tecnologia do Instituto Cultural Itaú. Email: [email protected]

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This article investigates the visual schemes such as the ornament fin-de-siècle and the illustrated magazines in the artworks of Marcelo Grassmann and Luis Sacilotto. Keywords: history of art, Sacilotto, Grassmann.

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Híbridos e monstros: arte e cultura visual nos anos 40 em São Paulo1

Priscila Rossinet ti

RUFINONI

resumo

Este artigo procura investigar, nas obras de Marcelo Grassmann e Luis Sacilotto, sobreprosições e reinterpretações de regimes visuais tais como o dos ornatos finde-siècle e o das revistas ilustradas. Palavras-chave: história da arte, Sacilotto, Grassmann

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Em um texto sobre o uso das imagens pelos especialistas de várias disciplinas, Ivan Gaskell (1992) caracteriza como “história” não o passado, mas o discurso sobre ele; discurso que, invariavelmente, mesmo que busque a isenção se refugiando no documento e na tentativa de refazer uma “visão de época”, é crítico, pois construído de um determinado ponto de vista (próprio ao presente do historiador) e eivado de recortes e escolhas que já são, por mais discretos que se queiram, juízos. Vale lembrar a etimologia da palavra “crítica”: dividir, discernir, e, por extensão, escolher, recortar. Para essa conclusão, Gaskell recorre ao belo comentário de Baxandall sobre a liberdade crítica de Vasari, impossível para o historiador contemporâneo, por causa de nossa necessidade documental que, entretanto, não é mais que um outro regime discursivo, também ele historicamente delimitado, nem mais, nem menos verdadeiro que o do século XVI. Deste ponto de vista, História da arte é a construção discursiva sobre fatos visuais múltiplos, dispersos. Para nosso caso, o regime discursivo da “história da arte” que nos interessa é o que descreve as manifestações culturais paulistas nos anos 40. Uma tópica parece mapear os vários registros históricos sobre o período, desde o texto de Antonio Candido (1987) em A Educação pela noite, “A Revolução de 30 e a cultura”. A tônica geral desse artigo de Candido é a idéia weberiana de “rotinização”. Os anos 40 seriam, então, os da rotinização de uma poética antes marginal, nascida nos anos 20. Outros livros posteriores reafirmam a mesma ênfase, tais como o de Maria Cecília Franco Lourenço (1995), Operários da Modernidade: depois de uma fase na qual a poética moderna vive como marginal ao sistema, movida por um impulso heróico e individual, nos anos seguintes, a massificação desse regime visual pediria um contingente maior e mais profissional de agentes, pediria”operários”, ou “pintores proletários”, para usar termo corrente nos anos 30-40, posto em circulação por críticos com Sérgio Milliet e Mário de Andrade. Fervor operário que culminaria na criação – todavia como construção importada – dos museus de arte moderna. Para Antonio Candido (1987), a circulação material dessa visualidade chamada modernista se dá pelos meios de comunicação e pela indústria do livro. Segundo Candido (1987, p. 183):

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“a mancha colorida com o desenho central em preto e branco se tornou nos anos 30, por todo o País, o símbolo da renovação incorporada ao gosto público.” A proliferação também se dá pelos jornais, nos quais se publicam artistas como Oswaldo Goeldi e Alberto da Veiga Guignard. Se o texto de Antonio Candido – quer pelo tom vivencial que o autor lhe concede, ao colocar-se como expectador dessa virada, quer por seu caráter original – pertence ao gênero da crítica, marcado pela opinião, outros historiadores que seguem a mesma linha já produzem um discurso historiográfico, pautado na pesquisa de campo e na leitura de documentos. Produzem discurso de gênero alto, o gênero da História da Arte. Ambos, crítica e história, como vimos, não são em si adjetivos capazes de conceder a este ou àquele texto mais veracidade. Ambos são gêneros discursivos. A História da arte tradicional, como gênero alto, preocupase com linhagens plásticas ou históricas que encadeiam os artistas em movimentos cíclicos ou evolutivos. No caso do modernismo, interessa, para o historiador da arte, a linhagem maior da poética moderna e como ela se dissemina e se transforma, disseminando e transformando mecanismos legitimadores como museus, escolas, revistas. Olhando de forma mais transversal, sem se preocupar com uma linha evolutiva ou cíclica, regimes visuais e discursivos de origens diversas convivem, por baixo da camada superficial do discurso maior da história. A essa pluralidade sem forma, sem amarração discursiva que lhe conceda limites claros, damos nomes vários: cultura visual, visualidade, sobrevivências, imagens tardias etc, etc. Para estudar alguns artistas classificados, no discurso geral das artes, como “tardios”, essa outra instância, essa outra espessura, pode ser muito importante. Sem imaginá-la apenas como entulho marginal e sem elevá-la ao canônico, refazendo pelo avesso o mesmo discurso, essa outra cultura levanta problemas metodológicos e críticos novos. Refaz possíveis cânones e multiplica as questões em torno das mesmas obras. Neste texto, propomos estudar dois mecanismos legitimadores e difusores de imagens que proliferam visualidades diferentes daquela tratada pelos críticos e historiadores que se

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dedicaram aos anos 40: as escolas técnicas e as revistas ilustradas. As duas mantinham em circulação um universo visual muito própria a um outro regime estético, também chamado “moderno”, atrelado às transformações urbanas e sociais do século XIX. Essa duas “ilhas de passado”, para citar Maurice Halbwachs (1990), ajudam a entender obras como a de Marcelo Grassmann e Luís Sacilotto.

Instituto Masculino do Brás Quando se escreve sobre a educação dos anos 30-40, a ênfase, como não poderia deixar de ser, recai nos movimentos renovadores como a Escola Nova, ou em sua contrapartida que são as reformas da era de Getulio Vargas. Mesmo os portavozes das escolas do período, professam um discurso eivado de afã modernizador, industrializador. As fotografias publicadas nos relatórios da Superintendência do Ensino Profissional e Doméstico, nos anos 30-40, enaltecem as feiras e exposições de maquinário, as máquina, ícones da industrialização. Mas, este órgão, a Superintendência, que controla o chamado “ensino profissional e doméstico” no Estado de São Paulo, cuida, também, de reproduzir um ensino largamente baseado nas políticas “liberais” de Rui Barbosa, para quem o “desenho” era uma forma de ordenação das massas. O desenho de ornato, tal qual em fins do século XIX e início do século XX, é uma ordenação geométrica que permite tanto o controle das faculdades intelectuais, quanto a floração de temáticas nacionalistas pela estilização da fauna e da flora. A contigüidade, nos materiais publicados pela Superintendência, de cortes de peças para maquinaria e desenhos para ornato, permite perceber como dois discursos heterogêneo em suas origens, se mesclam e se completam. E o ornato ainda vem marcado pela estilização, pela linha serpenteante, pelo historicismo eclético, próprio ao que se convencionou chamar de art noveau ou arte decorativa no Brasil. “Historicismo” em um sentido bem amplo vale dizer alargado para uso popular, como aquelas doutrinas dos Oitocentos que pensam a história como progresso, como acúmulo de “civilizações” encadeadas linearmente no tempo e redutíveis a “esti-

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los de época”. Uma visualidade eclética que a Superintendência não deixa de pensar como ideal de ornamentação “moderna” para a nova cidade também ela moderna. Por essa confluência insuspeitada, poéticas aparentemente díspares, a partir das quais o historiador poderia desenhar duas linhagens opostas, também se encontram. Vale lembrar que Luís Sacilotto, artista que será concretista, foi aluno do Instituto Masculino do Brás e que desenhou, pacientemente, ornatos. Se se quiser fazer o discurso da ruptura vanguardista, nos anos 50, sua obra sofre uma inflexão nova depois do contato com a visualidade do concretismo. Inflexão para o modular, o geométrico, porém, que não estava tão distante assim do regime visual professado pelo ensino técnico no qual se acomoda bem o novo imaginário concretista. Seu companheiro de escola, Marcelo Grassmann, por outro lado, sempre é lido como um artista ligado ao expressionismo ou ao surrealismo, mas seu gosto por seres híbridos, por monstros, pode remeter ao universo ornamental ainda em voga nos anos 40. O que não quer dizer, evidentemente, que ambas as obras não sejam essencialmente diversas em suas concepções de modernidade: Sacilotto procura-a no industrial, no geométrico, na

Trabalhos escolares de Marcelo Grassmann (acima) e Luiz Sacilotto, década de 40. Fontes: AMARAL (1996) e SACRAMENTO (2000)

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ruptura com a figuração; Grassmann, por sua vez, refaz a circulação do moderno como presente absoluto de onde se pode avaliar e reaproveitar todas as culturas, base não só do historicismo do século XIX, mas também das várias vertentes da “volta à ordem” dos anos 30-40.

Eu sei tudo: história e atualidade Das salas da escola profissional saiam os artesão para a elite da nova cidade de São Paulo. Uma cultura visual, portanto, que não era lida como antiquada ou ultrapassada, antes, era a modernidade que convinha à nova vida urbana, convivendo com a arquitetura do cimento armado, das linhas limpas. O mesmo se pode dizer da visualidade divulgada pelas revistas ilustradas do período, como a revista citada por Marcelo Grassmann como uma de suas referências, Eu sei tudo. Não é difícil perceber que o imaginário, apesar das várias acomodações iconográficas, pertence ao universo art noveau e ao realismo pitoresco do fim do século. Mulheres de longos e serpenteantes cabelos para anunciar tônico capilar, ou belas odaliscas nuas para ornar contos pseudo-históricos; elmos e armaduras, representados, todavia, pelo realismo detalhista, pitoresco, próprio ao final do século XIX. Esse regime imagético, entretanto, não é apenas sobrevivência morta, pois nele se condensam outras significações dos anos 40: o elmo, por exemplo, pode ser tanto elemento historicista decorativo, quanto referência ao soldado da II Guerra. O comercial de cigarros Elmo no qual o símbolo à antiga da logomarca convive com cenas do front de guerra conjuga essas duas instâncias semânticas, tal qual as divas do cinema sonham como odaliscas decadentistas do final do século. Partindo da idéia seqüencial do cinema, outras revivescências são acomodadas às narrativas gráficas como as histórias em quadrinho: Flash Gordon ou O Príncipe Valente, uma ambientada no futuro, outra no passado, ambas as figurações estão impregnadas do descritivismo arqueológico próprio àquele realismo que já citamos. Ambas, também, recendem ao mesmo potencial fetichista, cheio de erotismo latente, das páginas das revistas.

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Fica ainda mais fácil perceber o quando a obra de Marcelo Grassmann deve a essas figurações. Mas, é claro que fica evidente, também, o quanto sua obra se distancia dessa imagética estereotipada. Se as figuras sombrias que Grassmann grava a partir da década de 50 são próximas às visões fim-de-século, àquela fábula medieval dos pré-rafaelitas, elas dialogam também com o claro-escuro seco e reticulado das narrativas gráficas do Flash Gordon (publicada inicialmente em 1937), com as alusões quase caricaturais ao medievo de Príncipe Valente (1934), revistas de grande circulação já na década de 40. Essa porosidade entre a obra de Grassmann e os quadrinhos pode ser reconhecida não só na figuração e no claro-escuro às vezes esquemático, mas também nos enquadramentos, como o plano americano. No entanto, despojadas daquelas arquiteturas detalhistas, ou dos fundos paisagísticos que ajudam a narrar graficamente uma história em quadrinho, as gravuras da década de 50 criam apenas laços enigmáticos a unir suas personagens em secretos “diálogos”, em insuspeitadas narrativas abertas à imaginação do espectador. Característica de enigma familiar que podemos aproximar das colagens com figuras de revistas antigas de Max Ernst, sem precisar filiar Grassmann a grandes correntes como o surrealismo.

Marcelo Grassmann, Sem Título, gravura em metal, extraído de MANUEL (1984)

O Príncipe Valente, publicado originalmente entre 2 out 1938 e 28 jul 1940, extraído de FOSTER (1984).

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Essa “contaminação” não deixa de reafirmar a situação da obra de Grassmann, fazendo do gravador não um mero opositor das tendências gráficas que viriam na esteira do construtivismo, ou um artista apenas “tardio” por utilizar um imaginário ultrapassado. O trabalho de Marcelo Grassmann, muito embora diverso daquele empreendido pelos seus contemporâneos, também traz em seu bojo inovações gráficas: ao prospecto racionalista, o gravador soma as variegadas possibilidades das sobrevivências fin-de-siècle, da sinuosidade, da narração por signos visuais própria dos quadrinhos. Suas gravuras são, mesmo que de maneira diversa da dos ideogramas do concretismo, imagens-sígnicas. Essa outra circulação de imagens e repertórios aponta para as segmentações e delimitações sociais a que estão sujeitos os universos visuais, cujos limites criam outros espaços – chamado, no calor da hora por Mário de Andrade e outros críticos de “proletário” no nosso caso. Aponta, também, para oscilações na “linha” histórica; se nosso discurso não é mais que um entre outros, ele quer dar uma outra espessura à análise crítica do passado, mudando as escolhas, as ênfases.

Notas 1. Um a primeira versão deste artigo foi apresentada no Seminário Crítica da Crítica, ABCA/USP, 1 set 2005; uma segunda, como palestra na FAAP - SP, em 2007. Esta é uma terceira versão. Nenhuma das versões, entretanto, chegou a ser publicada.

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Bibliografia AMARAL, Aracy. Marcelo Grassmann, gravador 1944/1954. São Paulo: Pinacoteca, 1996. CANDIDO, Antonio. “A Revolução de 30 e a Cultura”. In: CANDIDO, Antonio. A Educação pela noite. São Paulo: Ática,1987. FOSTER, Harold. O Príncipe Valente. Rio de Janeiro: Editora Brasil-América (EBAL), 1984. GASKELL, Ivan. “A História das Imagens”. In: BURKE, Peter. A escrita da História. São Paulo: Unesp, 1992. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. LOURENÇO, Maria Cecília França. Operários da modernidade. São Paulo: Hucitec/EDUSP, 1995. MANUEL, Pedro. Marcelo Grassmann. São Paulo: Art Editora, 1984. RUFINONI, Priscila R. Quimeras da Modernidade: uma interpretação da obra de Marcelo Grassmann. 2. v. Tese de Doutorado em Filosofia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. SACRAMENTO, Enock. Sacilotto. São Paulo: Orbital/Unicid, 2000.

PRISCILA ROSSINETTI RUFINONI Mestre em Artes pela ECA USP. Doutora em Filosofia pela FFLCH USP. Email: [email protected]

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The text connects five critic presentations of new art works made by brazilian artists (some of them new): Otto Saxinger, Pedro Paulo Domingues, Lia do Rio, Michael Lauss, Monica Mansur, Reinhold Rebhandl, Mônica Mansur, Beatriz Pimenta, Gisele Ribeiro, Cezar Bartholomeu, Amador Perez, Heleno Bernardi e Rômulo Martinz. Keywords: contemporary art, Brazilian art, art criticism.

abstrac t

Do Rio, uma rótula

Rober to

CONDURU

resumo

O texto é constituído por cinco apresentações críticas de novas obras e, em alguns casos, também de novos artistas do Brasil: Otto Saxinger, Pedro Paulo Domingues, Lia do Rio, Michael Lauss, Monica Mansur, Reinhold Rebhandl, Mônica Mansur, Beatriz Pimenta, Gisele Ribeiro, Cezar Bartholomeu, Amador Perez, Heleno Bernardi e Rômulo Martinz. Palavras-chave: arte contemporânea, arte no Brasil, crítica de arte.

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Entre os desafios da crítica de arte está o de acompanhar a emergência da obra artística. Tenham os artistas uma trajetória maior ou menor, menos ou mais consolidada, reconhecida e respaldada, é sempre estimulante e um tanto arriscado dialogar com um trabalho quando de seu primeiro aparecimento, rompendo juntos o silêncio. Os textos que seguem nasceram com esse desafio – são apresentações primeiras de novas obras e, em alguns casos, também de novos artistas ao público. Foram produzidos independentemente, a partir do Rio de Janeiro, para folhetos de exposições individuais e coletivas no Rio e em outras cidades. Agora, se encontram em Visualidades, revista da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. A articulação desses textos nesse outro contexto pretende, assim como as inúmeras rótulas viárias de Goiânia (uma primeira concretização no Brasil central do ideal modernista de cidade, que foi projetada a partir do Rio de Janeiro por Attilio Corrêa Lima), constituir um ponto de encontros e redirecionamentos de obras, textos e leituras, almejando intensificar e manter abertos os fluxos contemporâneos da arte. Do Rio, mais uma rótula para Goiânia. 1

Zona Desconhecida

Zona Desconhecida

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Acesso Remoto não pretende, de modo ingênuo, constituir um circuito alternativo – sintomaticamente, começou em Paris, onde Otto Saxinger e Pedro Paulo Domingues se conheceram e constataram a desconexão entre os artistas da Áustria e do Brasil. O projeto visa mais à ampliação das rotas existentes. A iniciativa destaca-se por partir de um grupo de artistas numa época em que o meio de arte depende mais e mais das demandas de curadores

Do Rio, uma rótula

e instituições. Sobressai ainda a distância que mantêm dos ideais nacionalistas e da afirmação da cultura das respectivas cidades. O intercâmbio tem as obras de arte como objetos e meios de reflexão; exposições, textos, palestras e debates como modos de conexão. Criado a partir de um encontro fortuito, o projeto conjuga razão e acaso. Um circuito fechado e circular foi composto com mais 4 artistas: Lia do Rio, Michael Lauss, Monica Mansur e Reinhold Rebhandl. Tendo Otto e Pedro Paulo como pólos iniciais, as demais posições do círculo foram escolhidas por sorteio, de modo que todos se relacionam com artistas estrangeiros que não conheciam previamente. Cada artista ofereceu um trabalho seu à leitura de outro e elaborou um trabalho a partir da obra de um terceiro. No Rio de Janeiro, os brasileiros expõem suas “matrizes” e os austríacos, suas “impressões”; em Linz, acontece o oposto. A princípio, poucos verão o projeto por inteiro. Apesar das aproximações, muita estranheza permanecerá. A abertura a outrem revela-se auto-afirmação e processo de transformação: as obras postas inicialmente nesse circuito tornam-se emblemas dos artistas, que, com os novos trabalhos, interpretam o desconhecido e se revêem à luz do outro. Partindo de um imaginário de virtualidades, os artistas instituem presenças que abrem o diálogo ao público e a desdobramentos futuros, criam uma zona desconhecida.

O que faço é música?

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De abrigo temporário de obras, a exposição é, há algum tempo, momento e lugar também de criação da arte. Museus, centros culturais e galerias deixaram de ser simples hospeZona Desconhecida, Linz

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deiros, meros suportes, para tornarem-se, mais do que ateliês ocasionais, elementos ativos da produção artística. Não se trata apenas de fazer uma obra especial para um espaço específico. O desafio para o artista é desdobrar sua pesquisa no lugar, efetivando o encontro entre o trabalho, a instituição e o público. Este, partícipe fundamental do encontro, é chamado a por seu corpo em experiência. É o que acontece na instalação de Gisele Ribeiro, que se vale do passado residencial e do presente institucional do Castelinho do Flamengo para desenvolver sua pesquisa – Projeto URUBU –, em desdobramento também na Galeria Cândido Portinari – UERJ e, brevemente, na Galeria do Galpão da Pós – EBA/UFRJ. Projeto URUBU: quadro vivo / natureza morta ocupa dois cômodos do edifício e os transforma em ambientes de funções específicas – salas de estar e jantar –, mas sem temporalidade precisa, pois justapõe aos traços ecléticos da casa, móveis e objetos de outras e diferentes épocas. O caráter desses espaços também é ambíguo: superpondo um clima doméstico ao ascetismo da galeria, quer apontar as contaminações entre privado e público no meio de arte e na cultura local. Cenários evidentes, com esses ambientes a artista tanto critica a banalização da instalação como meio artístico quanto instaura um jogo de representação, fazendo-nos cônscios de sermos atores nesse tableau vivant: a cena contemporânea da arte. Ligados, três aparelhos de televisão exibem imagens de urubus: voando na sala de estar, comendo na sala de jantar. Assim, somos obrigados não só a ver e observar, mas a nos colocar sem grande conforto no lugar dos urubus: voar sobre a carniça, ciscar, bicar e arrastar o bicho morto, engolir a carne em putrefação. Contudo, de pouco adianta recorrer a Goeldi e seus urubus como signos de marginalidade. Gisele segue sim essa trilha romântica, mas seus urubus se querem ao mesmo tempo mais crus e mais distanciados, românticos em sua crítica ao romantismo. Se os móveis no Castelinho, como o saco suspenso com penas na UERJ e o chão de terra na UFRJ, são dados de literalidade, estão longe de pomover, como fazia o artesanato humanista de Goeldi, a comunhão entre os seres nos cantos

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esconsos da cidade periférica. Não há propriamente repulsa ou empatia, nosso confronto com os urubus é mediado pela imagem impávida da tela já domesticada e domesticadora da TV. Para Beatriz Pimenta a situação não poderia ser mais propícia: ocupar um cômodo de uma casa – tema primeiro e constante de seu trabalho –, caixa onde o corpo se guarda, protege e abastece. Espaço centrado e de simetria quase perfeita com sua planta octogonal e distribuição regular de vãos, espécie de microcosmo, laboratório onde dá continuidade à sua pesquisa sobre as mutações do corpo e suas enganadoras aparências. Investigando uma questão fundamental do classicismo – o corpo, seu equilíbrio e perfeição – e a levando ao paroxismo com suas imagens totalmente simétricas, rígidas e artificiais, a artista filia-se à crítica ao ideal clássico, o trabalho revela-se eminentemente anticlássico. Como os quartos de seus primeiros desenhos, essa Sala Invertida também causa uma certa claustrofobia: antes eram perspectivas esconsas a trincar a tranqüilidade doméstica, depois foram cortes, rebatimentos e conseqüentes simetrias absolutas que passaram a deflagrar o sentimento de descompasso dos seres no mundo. Recinto fechado sobre si mesmo, com horizontes restritos: a paisagem já circunscrita dos quartos anteriores contrai-se ainda mais, resume-se à imagem de uma árvore em meio a algumas nesgas altas de arquitetura e céu. Árvore como as que a artista via da sala de aula na infância, outro ser a sofrer na cultura contemporânea. Corpo de luz morna, mas só, amputado e espelhado a ressoar no recinto. Se em outras situações de sua pesquisa era a água (enchente de lágrimas?) a especular continuamente os corpos dobrados sobre si mesmos, agora são folhas em processo de desidratação, como fios de cabelos a cair diariamente, a evidenciar a degradação incessante dos corpos no tempo. Folhas reunidas, fotografadas, digitalizadas, secionadas, rebatidas, como outras tantas imagens que a artista coleciona e manipula: cômodos, corpos, membros – todo e partes em tensão. Cezar Bartholomeu dá continuidade ao seu propósito de habitar o fotográfico. Apropriando-se da estrutura física da casa, articula fotografia e arquitetura: veda algumas entradas de luz

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e transforma uma seteira em obturador para revelar o edifício como aparelho fotográfico, o quarto como câmara obscura. Assim, nos propicia o exercício prazeroso de vivenciar a câmera, espaço geralmente negligenciado tanto no ato cotidiano de fotografar como nas abordagens teóricas e históricas da fotografia. Como em outras situações, articula muitos e díspares elementos: duas cadeiras – uma vazia, outra não –, um travesseiro sobre uma delas, muitos formando uma coluna ereta a partir do chão, uma radiografia de abdômen suspensa, um par de mesinhas com carimbos, almofadas e papéis. Seria fácil ler Brancusi, Donald Judd ou Waltércio Caldas nos travesseiros; o embate cerrado com a história – seja da fotografia, da arte ou da filosofia – é fundamento e constante de seu trabalho. Mais pertinente e potente, a meu ver, é entregarse à penumbra difusa que envolve esses volumes alvos macios; o último Leonilson e o Flávio de Carvalho da Série Trágica poderiam ser chamados à cena. Ativando memórias entranhadas no morar e investindo no fotográfico como lugar da ausência, o artista explora a casa e a fotografia como continentes de espectros. Além de obscura, a câmara é mortuária: confronta os presentes com os corpos que guarda. O sentimento que exala desses móveis familiares, gastos pelo tempo como a coluna curva na chapa, é de tristeza e dor, diferentemente do tom irônico característico de sua pesquisa. Mas o humor não deixa de marcar presença na frase de um dos carimbos: “seu umbigo como ponto de fuga”, que tanto indica os vínculos umbilicais entre a fotografia e a perspectiva, quanto crítica a predominância de poéticas auto-centradas no meio de arte hoje. Ironia que reincide com um travo de morbidez na outra frase a ser impressa: “o umbigo de uma pessoa morta”. Faltou dizer do vídeo posto por Cezar no sopé da escada: alguém tocando um acordeom, a se encher e esvaziar de ar como um pulmão, que, entretanto, permanece em silêncio, a não ser quando sua imagem ultrapassa os limites da tela, instante de corte que produz som: fragmentos do Hymne a l’Amour. Som entrecortado, como o ranger da escada (fole arquitetônico?) sob o peso dos corpos, que se mistura aos rumores vários da casa – sejam os imagináveis do passado doméstico ou os con-

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temporâneos da instituição cultural –, agrega-se às interferências dissonantes dos vídeos de Gisele, ao leve estalar seco das folhas de Beatriz, ao barulho do tráfego que invade todo o edifício. Soma de retalhos sonoros cujo desafio é nos acompanhar, mesmo quando formos embora, deixando para trás o portão do Castelinho (simétrico como a árvore de uma), e reverberar ainda que estejamos longe, sós sob o céu da cidade (negro como os urubus da outra), sendo capaz de impregnar-se na pesquisa de cada artista e em nossos corpos, transpondo os ruídos da desolação atual à condição de música. 3

Calma tensão

Como a superfície do mar calmo, onde se tocam as riquezas submarinas e tudo que o ar envolve, a pele das obras de Amador Perez é membrana fina e suave, constituída por múltiplos gestos e traços, mais todas as gamas Gisele Ribeiro de cinza existentes entre a luz e a escuridão. Essa mansidão não deve, entretanto, levar alguém a supor um fazer tranqüilo. O espelho d’água guarda tensões. O observador atento logo percebe como essa relva aquático-etérea é eriçada, apesar da meticulosa obsessão por uma precisão elegante, contida, que pouco se permite arroubos e desvairios. Atuando no registro da música de câmara, em que a redução dos meios não significa perda de amplitude, Amador Perez força os limites do campo que traçou para si. Além do desenho, a exploração das capacidades expressivas dos meios gráficos estendeu-se recentemente à gravura e aos meios digitais, retomando suas experiências com reprodutibilidade desenvolvidas a partir de fotocópias nos anos 1970. Ao digitalizar, esquartejar e por na cruz a Femme nue débout de dos, de Prud’hon, ensaia possibilidades outras não só quanto à técnica e à autoria, mas também de formato e escala.

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Tão cantada pelos admiradores e na fortuna crítica, a técnica é o fio-da-navalha do artista, que precisa domar a perícia, contendo o exibicionismo e revertendo a neutralidade, para fazer as imagens fluirem. Imagens que também correm riscos ao deambularem à beira do precipício da ilustração. Jogando discretamente com o sistema de arte, calculando retiros e intervenções, o artista volta ao circuito das galerias comerciais após longa ausência. Usando a reprodutibilidade técnica também como modo de tornar seu trabalho mais acessível, inicia com as tonergrafias uma difusão do trabalho efetivamente ao alcance de seu público na qual tem o desafio de equacionar qualidade e quantidade. Amador Perez enfrenta as dificuldades da imaginação formal na conjuntura histórica contemporânea apropriando-se de imagens, sobretudo do mundo da arte. O precedente de suas apropriações não é, contudo, a Gioconda com bigode de Duchamp, nem Warhol atualizando as cores de Matisse, muito menos Rauschenberg apagando De Kooning ou as citações díspares de Schnabel. Seu enfrentamento da história da arte é próximo da reelaboração de telas de Courbet e Velázquez feita por Picasso. Aumentando a provocação auto-imposta, Amador Perez concentra-se ainda mais em obras-primas da história da arte, em retratos, modelos e auto-retratos de ninguém menos que Corot, Courbet, Dix, Dürer, Goya, Hogarth, Ingres, Michelangelo, Munch, Prud’hon, Rembrandt, Ticiano, Velázquez e Vermeer. Se as telas de Picasso são embates pictóricos nos quais está em jogo a vitalidade da Pintura, Amador Perez vive os dilemas da criação na arena gráfica. Transpostas para esse universo, as formas reverberam como imagens. O artista as manipula sem pudor: rebate, duplica, apaga, soma, corta, dobra e esquadrinha, destacando e revelando componentes de sua estrutura por meio da geometria euclidiana. Abandonando a tradução ótica das qualidades táteis, explora as propriedades visuais dos meios gráficos. Mesmo quando aparecem outros timbres, a cor é gráfica, revelando a proeminência concedida à luz. Com suportes e matérias declaradamente coadjuvantes, o trabalho roça os limites mínimos da substancialidade.

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Na epiderme quase imaterial das obras encontram-se elementos que emergem da profundeza das imagens e projeções do artista, fundindo seus fantasmas com os da arte. Nos autoretratos, retoma distanciadamente a procura da auto-imagem. Focando na cabeça e na mão, mais detidamente no olhar e no instrumental artístico, sublinha a dicotomia entre pensamento e ação. Nos retratos e modelos, é flagrante o erotismo, latente nas delicadas linhas e manchas que bolinam a corporeidade imagética. Carícias que clamam atenção para as imagens e, sobretudo, o fazer artístico. A onipresença de Narciso permite que sua imagem esteja ausente. À beira d`água, a mirar esses espectros, chegará a hora de mergulhar.

Contrários consoantes

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Estranho ao mundo da arte (se é que ainda existe algo estranho à arte hoje, seja objeto, tema, prática ou lugar), o chiclete articula as profundezas misteriosas da Terra, o tempo imemorial das sedimentações geológicas, com a voracidade moderna de expropriação e manipulação da natureza, mais a trivialidade dos hábitos culturais na era de massas. Matéria privilegiada por Heleno Bernardi em sua “Masseter Suite”, a goma de mascar permite observar um elemento chave de seu trabalho como artista: o jogo de opostos. Beatriz Pimenta

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São pares, trios e múltiplos em contrariedade na série. Disciplina quase obsessiva versus variedade descompromissada. Uma certa intimidade inerente à prática corriqueira de mascar chiclete em oposição à frieza fotográfica, pretensamente natural, entre as lógicas do arquivo e da propaganda. Corpo representado, moldado, em ação, avariado, residual. Cientificismo e cultura pop. Seriedade + cliché. Tensões materiais tênues contra enquadramentos rígidos. Reflexos gerando opacidade. Borracha sobre plástico, pele ou osso. Associações visuais diretas intrigadas por títulos cifrados. Manobras de sedução x efeitos repulsivos. Retiro autoral em construção de persona artística. Asco colorido; dramaticidade cor-de-rosa. E o problema da jovem decrepitude, tão pertinente nesse inicio de milênio ainda com jeito de fin de siècle. Nas oposições, sobressai o contraste entre pessoalidade e distanciamento. Par quase onipresente no meio artístico atual, subjetivismo e cálculo insinuam-se desde o primeiro instante do trabalho. Mas a subjetividade manifesta-se menos na lembrança ou na figuração corporal do que na estratégia profissional. O projeto aparece mais nas escolhas subjetivas, na matéria e nos procedimentos eleitos, do que na conceituação. Quando se constata quão impessoal é o modo de engajamento do corpo no trabalho e com que naturalidade são acionadas as táticas de inserção e trânsito no circuito de arte, conclui-se que, em vez de se anularem, os confrontos são reiterativos e autoestimulantes. Contrários consoantes abrindo-se em múltiplas direções. Nesse sentido, é um tanto corajosa a decisão de oferecer ao público um trabalho tão desarmado, de inserir-se no meio de arte com uma exposição assumidamente aberta e até divergente. Exibindo com franqueza e sem maiores elocubrações seus insights espertos, Heleno Bernardi deixa entrever algumas possibilidades de encaminhamento do trabalho, para além da variedade dos suportes. Pode investir em um dos pólos da pesquisa: exacerbando a pessoalidade com a exploração do corpo nos limites das práticas mundanas ou concentrando-se criticamente nas manobras artísticas. E pode radicalizar o confronto: mergulhando na sofrida ironia pop e na reflexividade conceitu-

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al, de modo a internalizá-los na vivência do projeto. Mas não deve fechar os caminhos, nem abandonar a produtividade dos conflitos. 5

De primeira

O trabalho de Rômulo Martinz é mais um indício da relatividade contemporânea dos meios técnicos na experimentação em arte. O artista pode valer-se tanto das técnicas mais recentes de produção da imagem (fotografia, cinema e meios digitais) quanto das técnicas mais tradicionais de formalização (desenho, pintura, escultura e gravura). O diferencial artístico está além. De imediato, salta aos olhos o seu domínio dos meios gráficos, o uso Amador Perez rigoroso e intenso de papel, tinta e grafite para deflagrar a luz em suas gradações rumo à escuridão. Logo, contudo, perbemos como as obras exploram mais do que o tonalismo luminoso. Aproximando-se da pintura, papel, tinta e grafite aparecem também como cores, como timbres específicos da luz: branco, preto e cinza. E mais – papel, tinta e grafite também conseguem ser vistos apenas enquanto tais: papel, tinta e grafite. Plurívocos e anti-ilusionistas, os desenhos falam das propriedades dos materiais, evidenciando ressonâncias de suas texturas – o brilho algo aquoso do grafite, a opacidade seca da tinta acrílica, o aveludado úmido do papel. Atrai, também à primeira vista, o seu domínio da planaridade, o vigor com que faz pulsar a reversibilidade entre fundo e

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figura. Formas geométricas sutilmente impuras e linhas de força esgarçadas e rompidas fazem o campo latejar, contraindose e dilatando. Grades ao mesmo tempo corroídas e primevas conquistam vitalidade contemporânea para uma ordem plástica historicamente desgastada. Poderiam ser estabelecidas conexões com movimentos artísticos anteriores e experiências atuais semelhantes. Invocar precedentes ou correlatos históricos seria, entretanto, um exercício de pedantismo sufocante na abordagem de um trabalho tão impulsivo e, em certa medida, inculto. O trabalho livre e despretensioso de Rômulo Martinz não estimula nem recomenda usar argumentos de autoridade. Mais produtivo, me parece, é sublinhar como suas obras indicam um processo de questionamento da percepção do e no mundo. Pesquisa constante e inquieta que o levou a ampliar seu campo de ação, experimentando a pintura e o campo tridimensional. Inserindo-nos em suas explorações de reflexos, opacidades e transparências com espelhos no espaço, explicita e redimensiona o chamado para que participemos de seu interrogar, mergulhando nos mistérios e abismos do ver e dos demais sentidos humanos.

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Notas 1- Texto publicado no folheto do projeto “Acesso remoto - Entfernter Zugang”, que se desdobrou nas exposições realizadas entre 21 de fevereiro e 10 de março de 2002 na Galeria Mira Schendel da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro/RJ, Brasil, e entre 09 de abril e 04 de maio de 2002, na Galerie Maerz, em Linz, Áustria. 2- Texto publicado no folheto da exposição realizadas entre 27 de setembro e 24 de outubro de 2002 no Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho – Castelinho do Flamengo, no Rio de Janeiro/RJ. 3- Texto publicado no folheto da exposição “A Arte da Impressão”, de Amador Perez, realizada entre 02 de outubro e 01 de novembro de 2003, na galeria Lana Botelho Artes Visuais, no Rio de Janeiro/RJ. 4- Texto publicado no folheto da série “Maseeter Suíte” de Heleno Bernardi, exposta entre 10 e 28 de novembro de 2003 na Pinacoteca de Viçosa, em Viçosa/MG. 5- Texto publicado no folheto-convite da exposição “Ambiguidade/ Casualidade”, de Rômulo Martinz, realizada no Solar Grandjean de Montigny – Centro Cultural da PUC-Rio, em 18 e 19 de novembro de 2003, no Rio de Janeiro/RJ.

ROBERTO CONDURU Historiador da arte, professor no Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de Vital Brazil (Cosac & Naify, 2000), coautor de A Missão Francesa (Sextante, 2003), co-organizador de Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio de Janeiro (Rede Sirius, 2003) e Um Modo de Ser Moderno – Lucio Costa e a Crítica Contemporânea (Cosac & Naify, 2004), além de ensaios sobre arte e arquitetura publicados em livros, revistas e catálogos, no Brasil e no exterior. Email: rconduru@uol. com.br

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This paper focuses on the analysis of the educational method known as “Visual Thinking Strategies” which, after being implemented and evaluated in the United States and countries of East Europe, it is being adopted by many art institutions in Spain and South America. The article goes over the history of this educational method and explores from a critical point of view its advantages and limitations. Furthermore, it critically questions its current implementation and analyzes its theorethical roots, in order to invite the readers to reflect on this educational methodology. Keywords: museum art education, constructivism, educational methodology.

abstrac t

Replanteando las estrategias de pensamiento visual: un método controvertido para la educación en museos

Eneritz

LÓPEZ Magali

KIVATINETZ

resumo

Este artigo constitui uma análise do método educativo conhecido como “Estratégias de Pensamento Visual” que, após haver sido implementado e avaliado em Estados Unidos e países de Europa do Este, está sendo adotado em numerosos centros de arte de Espanha e Sudamérica. O texto apresenta a história deste método educativo analisando críticamente suas vantagens e limitações. Além disso, problematiza sua implementação e revisa suas raízes teóricas, com o objetivo de convidar os leitores a refletirem sobre esta metodologia educativa. Palavras-chave: museu, ensino de Arte, constructivistmo, metodologia educativa.

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Introducción En el contexto en el que vivimos, caracterizado por la inmediatez de las comunicaciones, la complejidad y la incertidumbre, los museos necesitan estar alerta ante la tentación de actuar como instituciones estáticas y cerradas. Ahora al espacio museístico se le pide ser un campo para la problematización y el cuestionamiento, la ruptura y el cambio (ROBERTS, 1997). En la actualidad los museos necesitan implicarse con la sociedad y por ello, han de enfocarse hacia diferentes públicos y trabajar de manera que todos los visitantes puedan encontrar en ellos no sólo un lugar para el disfrute estético, sino también un hueco donde aprender sobre sí mismos, sobre los demás y donde se les autorice a generar e intercambiar visiones críticas y contrahegemónicas (PADRÓ, 2005). Los nuevos planteamientos para la educación artística en museos que se están introduciendo en los últimos años se deben en parte a un creciente interés por encontrar alternativas a la educación tradicional –basada en la simple transmisión de información–, y por ir más allá de la idea de educación como comunicación tan vinculada a la noción de museo instructor. En este contexto de tránsito y replanteamiento, aparecen métodos como el Visual Thinking Strategies (V.T.S.) que, debido a que su principal propuesta educativa es el diálogo, se presenta para los museos como una buena alternativa a los programas educativos tradicionales. En este artículo exploraremos específicamente el caso de este método educativo, también conocido en su origen como Visual Thinking Currículum (V.T.C.), que ha ido mutando sus acepciones para adaptarse a progresivos cuestionamientos y replanteamientos1. Este método se considera actualmente innovador en España y países de latinoamérica, aunque tiene larga tradición de implementación y evaluación en Estados Unidos y países del este de Europa. Uno de los atractivos principales que tiene V.T.S. para los museos es que solventa, en cierta medida, su preocupación por la educación. Esto se debe a que se presenta como una propuesta dinámica y como una “filosofía” educativa lista para ser implementada en la institución, ya que viene acompañada

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–no sólo del prestigio de la institución en la que inicialmente se originó (el Museum of Modern Art de Nueva York)–, sino también de unas instrucciones que, de seguirlas con fidelidad, garantizan su eficacia. Por ello, V.T.S. encaja muy bien con las expectativas del museo, a pesar de no ser más que el empaquetamiento de unas ideas teóricas que hoy se encuentran en revisión, junto con las indicaciones pertinentes para llevarlo a la práctica en las salas del museo. En este sentido, no debemos pasar por alto la disociación general de tradición teórica sobre educación museística en Latinoamérica, aspecto que permite que los museos se vean sacudidos y cegados por este tipo de ideas que provienen del extranjero, especialmente de Estados Unidos. Estas ideas –basadas en investigaciones desde otros contextos y vinculadas con valores culturales e históricos específicos– son muchas veces adoptadas sin ser cuestionadas y sin ser adaptadas a cada contexto y necesidades.2 Este texto está inspirado precisamente en la observación de cómo ha sido implementado V.T.S. en España y en el diálogo con educadores de museos que lo utilizan en su práctica diaria. Además, lo que nos mueve a escribir este artículo es el hecho de haber percibido que se está realizando en distintos países una intensa propaganda sobre este método. Esta publicidad se ha visto acompañada de un creciente interés por adoptarlo en numerosos museos (explícitamente o dándole otro nombre) sin reflexionar sobre cómo podría integrarse en el entorno, y sin tener en cuenta que la educación museística no consiste en la adopción de modelos como si de aplicación de fórmulas se tratara. Para contribuir a la necesaria problematización de las propuestas educativas para los museos, a lo largo de este artículo analizaremos desde varios ángulos este método educativo. Partiendo de que los museos no son espacios neutrales de representación objetiva de hechos indiscutibles, ya que los valores culturales, sociales y políticos siempre están implicados en las exposiciones (MACDONALD, 1998), apostamos por una educación museística basada en la pregunta, la indagación y preocupada por difundir una nueva noción de museo como zona de controversia y contestación (PADRÓ, 2005). En esta

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línea, el planteamiento crítico desde el que abordamos V.T.S. nos conduce a desvelar sus bases y fundamentaciones, que consideramos alejadas de la educación transmisora en su forma pero no en el fondo. Con ello, queremos introducir una perspectiva alternativa a la que ofrece como predominante este método, para invitar tanto a responsables de departamentos de educación, como a educadores de sala, maestros y profesores a reflexionar sobre esta propuesta.

Buceando en los orígenes del método Para contextualizar la corriente en la que se enmarca V.T.S. y ver sus contribuciones en la educación artística en los años 80, haremos un breve recorrido por su historia. En un principio, este método fue propuesto por el MoMA de Nueva York, gracias a las ideas de la psicóloga cognitiva Abigail Housen –dedicada a estudiar en desarrollo del pensamiento estético– y al entonces responsable de educación de este museo, Philip Yenawine. En 1988 se asociaron firmando un contrato dirigido a la creación de programas para estudiantes y profesores visitantes del MoMA. A partir de 1991 comenzaron a ensayar maneras de organizar sus hallazgos en base a un método secuencial que posibilitara a los profesores llevar a cabo discusiones sobre obras de arte con sus estudiantes3. En este momento se unieron con el Bard College, el Institute of Contemporary Art en Boston, y el Boston Museum of Fine Arts para producir el primer boceto de lo que sería después el “Visual Thinking Strategies”. Mientras tanto, Housen dejó su puesto en el Mass College of Art y Yenawine cesó de su cargo en el MoMA. Posteriormente, en 1995, formaron una consultora educativa llamada Development Through Art, Inc. (D’Art) para continuar su trabajo de diseminación del programa que habían ensayado en el MoMA. Paralelamente constituyen la “Visual Understanding in Education” (V.U.E.), una organización sin fines de lucro, cuya finalidad es extender la investigación en educación basada en el desarrollo desde un sentido cognitivo y evolucionista. Desde 1994 V.T.S. se empieza a implementar en escuelas de Europa del Este y Rusia y, a partir de 1998, inician la publicación de libros de es-

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trategias educativas que ponen en práctica en diversos centros de Estados Unidos (VUE, 2001a). Después de años de estudio, Housen demostró que la práctica de V.T.S. produce un crecimiento en el pensamiento puramente estético y contemplativo, así como la mejora de otras habilidades cognitivas en un periodo corto de tiempo. Concretamente, esto se logra observando, especulando y razonando en base a evidencias. Esta concepción parte de que el aprendizaje secuencial puede ser fácil, rápido y llevar a resultados espectaculares, sirviendo de base a una noción de educación artística que pretende un resultado inmediato y unívoco, más que una aproximación dialógica, reflexiva y divergente. En resumen, a pesar de que las originarias ideas de Housen hayan estado siempre presentes, este método, como ya hemos mencionado, ha pasado por diversas metamorfosis, adoptando en cada una de ellas un nombre distinto: V.T.C., V.T.S., Pensamiento Visual, entre otras denominaciones. Esto nos hace ver que a pesar de que se cambie el formato de presentación, las pautas del método están presentes en todas la reinterpretaciones. 4

Poniendo el zoom en el contexto El “Visual Thinking Curriculum”, tal y como fue concebido y desarrollado por Housen y Yenawine, se podría asociar con el constructivismo piagetiano, ya que es un método que no presta atención a los contenidos (lo que se aprende), sino sobre todo a los procesos del funcionamiento cognitivo (COLL y GÓMEZ, 1995). En este sentido, es importante recordar que las aportaciones de Jean Piaget fueron fundamentales para la elaboración de una concepción constructivista en el ámbito educativo, ya que contestó al empirismo y al asociacionismo –teorías imperantes en la primera mitad del siglo XX– con el constructivismo, argumentando que el sujeto es activo e interpreta la información del entorno5. Esto significa que el conocimiento nuevo se genera a partir del previo porque construir conocimiento incluye un proceso de acomodación de lo nuevo a lo existente, que puede terminar o no por asimilarse. “Una de

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las características de esta perspectiva cognitivista (…) es que la progresión de la inteligencia se vincula al concepto de estadio o etapa”; en otras palabras, para Piaget, la inteligencia atraviesa fases cualitativamente distintas6. Sin embargo, “en los años setenta esta forma de concebir el desarrollo intelectual entra en crisis y la caracterización de los estadios pierde su carácter estable, progresivo e intelectual” (AGIRRE, 2000, p. 55). En suma, según Piaget y sus seguidores, el proceso de construcción del conocimiento es sobre todo de orden interno e individual. Entonces, a la hora de acercarnos a métodos educativos elaborados desde esta postura teórica, como V.T.S., podemos encontrarnos con varios inconvenientes: en primer lugar, la enseñanza que se plantea prioriza que los educandos construyan estructuras de pensamiento que, supuestamente, les permitirán comprender todo tipo de contenidos. En segundo lugar, el conocimiento se construye a través de un proceso de descubrimiento autónomo, derivado de la relación de cada sujeto epistemológico con el entorno inmediato, sin prestar atención a la interacción social. Así, se da a entender que los individuos generan conocimientos desde sí mismos, olvidándose de los factores externos que influyen esta construcción. De este modo, uno de los principales problemas que presenta V.T.S. es que no considera el componente sociocultural y contextual de la construcción del conocimiento, obviando también que éste es mediado por otros factores, como las relaciones de poder constituidas históricamente. No debemos olvidar que los hechos, los conocimientos, los saberes nunca son neutrales ni objetivos, sino que están producidos e incluidos en contextos de relaciones sociales (ROGERS, 2005, citado en HERNÁNDEZ, 2006). Por ello, una crítica fundamental a este método es que pasa por alto que cualquier conocimiento está inevitablemente ligado a contextos y a las circunstancias biográficas de cada uno, ejes del constructivismo crítico7. Esto quiere decir que se ignora que nuestros conocimientos se producen en interrelación con los ambientes en los que se usan, y que los aspectos cognitivos, emocionales y sociales forman parte de cómo somos producidos como sujetos. En relación a esta idea, ya desde principios del siglo XX, la voz de Lev S.

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Vygotsky puso de relieve que “las posibilidades de aprendizaje guardan estrecha relación con el nivel de desarrollo alcanzado y subrayan, en consecuencia, el decisivo papel que el entorno tiene en este proceso de construcción del conocimiento” (AGIRRE, 2000, p. 67). Por ello, una de sus contribuciones esenciales –que métodos como V.T.S. no tienen en cuenta– es la de concebir al sujeto como un ser eminentemente social y al conocimiento mismo como un producto social. Por otra parte, V.T.S. da más importancia al hecho de establecer un diálogo que a los propios contenidos del mismo. El énfasis del método reside en la forma de llegar al mensaje preestablecido –vinculado a la meta de progresar de un estadio a otro–, y no de prestar atención al aprendizaje que los participantes puedan obtener. Es decir, no se repara en los contenidos (alternativos, paralelos, divergentes) sino en la forma en la que son transmitidos aquellos que se adaptan a la concepción del educador que sigue el V.T.S. Habrá momentos en que [el profesor] piense que un comentario está equivocado, pero los conceptos de correcto/incorrecto aquí no son válidos. Lo que importa es que los alumnos piensen. Es mejor [no] corregir ni apostillar (VUE, 2001c). (...) aceptar cada comentario de un modo imparcial. Recuerda que este proceso no está dirigido a conseguir respuestas correctas sino a establecer unas pautas útiles para pensar (VUE, 2001d).

A pesar de que siempre se establece un diálogo entre el educador y su grupo de visitantes, este diálogo utiliza normalmente la “vía socrática”, que consiste en poner a los participantes en una situación argumentativa no para aprender cómo pensar por ellos mismos, sino para llegar al lugar en el que el educador estaba inicialmente, es decir, para que consigan aprender lo que el educador tenía previsto desde el principio. Por ello, podemos decir que se trata de un proceso de enseñanza tradicional que concibe que los estudiantes o visitantes aprenderán pensando o actuando del modo en el que el educador les guía. Esto no permite a los participantes abrir posibilidades de divergencia ni hacer conexiones alternativas,

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convirtiendo el proceso de razonamiento en un simulacro de lo que el pensamiento independiente y personal podría llegar a ser (HERNÁNDEZ, 2006). De este modo, la diferencia esencial entre un método de estas características y la educación museística transmisora es su forma pero no el fondo, ya que se sigue partiendo de unos contenidos fijos que los participantes deben aprender.

Releyendo la receta de V.T.S. Retomando los orígenes de este método, vemos que el proyecto inicial llamado “Visual Thinking Curriculum” es fruto de una revisión constructivista de la perspectiva del ar te para la comprensión (art for understanding) impulsado por el grupo Zero de Harvard. Partiendo de una misma base teórica y de problemáticas parecidas vinculadas a la apreciación estética, y casi en paralelo con Housen, Michael Parsons desarrolla, a partir de las ideas de Kohlberg, una metodología similar a la de su colega aunque poniendo el acento en el juicio estético del arte, en vez de en las formas de comprensión. De cualquier modo, la propuesta de Parsons tiene mucho en común con la teoría del desarrollo cognitivo de Piaget, aunque sostiene que aprender arte es sólo una cuestión estética, estableciendo que su significado es distinto del correspondiente a las ciencias o a la moral (PARSONS, 2002). Un problema que tiene este modelo de interpretación, es que utiliza un marco de referencia estética de base formalista (HERNÁNDEZ, 2000); es decir, que únicamente tiene en cuenta el análisis formal de la obra de arte, sin atender a la incidencia del contexto cultural en los significados estéticos y en los procesos psicológicos. Además, la noción de “estadio de desarrollo” de Piaget difiere de la de Parsons en que la entiende en etapas evolutivo/cognitivas y ve los estadios como agrupaciones de ideas y no como logros de las personas, evitando además cualquier identificación de los estadios con el desarrollo cronológico (MORALES, 2001). De este modo, Parsons establece cinco estadios del desarrollo del juicio estético que se suceden secuencialmente, de for-

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ma que cada estadio implica una elaboración más compleja que el anterior en los aspectos que considera que están presentes en la respuesta estética (PARSONS, 2002). “La estructuración de estos estadios refleja una evolución que va desde la dependencia en relación con lo que se aprecia en cada obra, hasta la autonomía interpretativa con respecto a ella” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 121). Se parte de una visión de progresión donde se considera que el final es la autonomía en vez de pensar que en las artes la ambigüedad, las múltiples versiones e interpretaciones no sólo dependen de la autonomía a la que el espectador llegue, sino que hay que tener en cuenta las cuestiones que la misma obra pueda generar en el observador. Autores como Hargreaves (1991) argumentan que la teoría de Parsons tiene puntos flojos tales como que se limita al arte visual; que todas las obras que se utilizan en su experimento son propias de las “bellas artes”; y que su método de entrevistas semiestructuradas ofrece desventajas de rigor experimental. A pesar de ello, el estudio de Parsons tiene el mérito de haber acercado el tema del conocimiento estético y artístico a las investigaciones que desde la psicología del desarrollo de tendencia cognitiva comienzan a realizarse en Estados Unidos en los años 70. “Además, ha permitido elaboraciones posteriores que han introducido nuevos criterios de ordenación de las apreciaciones sobre las obras de arte. Una de estas revisiones ha sido el estudio dirigido por Housen et al.” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 122). En este caso, los estadios hacen referencia al “tipo” de construcción de sentido, o de dotación de significado de cada sujeto, en un recorrido que va desde la narración, basada en preferencias individuales, hasta la actividad reconstructiva. 8 En síntesis, la propuesta “Visual Thinking Curriculum” permitió “ordenar las apreciaciones de los individuos en torno a las obras de arte, ejemplo de cómo la psicología del desarrollo de orientación cognitiva –a la que se adscribe Housen–, ha abordado su relación con el conocimiento artístico y estético” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 123). Este método educativo está vinculado teóricamente a la noción de desarrollo estético progresivo y se enmarca dentro de la psicología evolutiva, manteniendo

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una concepción del aprendizaje como un camino de progreso, haciendo pervivir así una noción moderna del conocimiento. Siguiendo esta tendencia, se cree que las “Estrategias de Pensamiento Visual” incrementan en gran medida la capacidad de los estudiantes de apreciar el arte, extendiéndose a sus habilidades para hacer arte, respondiendo así al principal interés de los profesores en las escuelas9. De este modo V.T.S. ayuda a los especialistas en la tarea de desarrollar la alfabetización visual entre los estudiantes y llegar así a los estándares de la educación artística. Este método educativo constructivista partía de la idea de usar el arte para enseñar a pensar, a desarrollar habilidades comunicativas y para alfabetizar visualmente a niños y jóvenes. Esta noción de “alfabetización visual” está relacionada con la idea del “arte como lenguaje”, concepción que lleva a pensar que una imagen se puede leer como si de un texto se tratase.10 En este sentido, al V.T.S. le corresponde enseñar a leer la obra de arte. Si no aprendemos a leer, si no damos este primer paso, que es fundamental, nunca podremos desarrollar nuestras capacidades como espectador y como interesados en arte (YENAWINE, 2001).

Sin embargo, consideramos que aunque una imagen contenga códigos, no es un código en sí misma; por lo tanto, al no ser solamente un sistema de signos, no se puede articular como un lenguaje y, consecuentemente, no se puede leer de la misma forma que un texto. Por otro lado, según los defensores de V.T.S., el crecimiento y desarrollo mental es estimulado de tres modos: mirando detenidamente las obras de arte incrementando progresivamente su complejidad, respondiendo a preguntas basadas en la percepción visual y el desarrollo, y participando en discusiones grupales cuidadosamente coordinadas por educadores. Así, durante cada sesión, utilizando las “Estrategias de Pensamiento Visual” se pretende que cada estudiante pueda señalar lo que ve en la obra de arte que está observando y expresar su opinión sobre ella, argumentando sus interpretaciones. De este modo, los participantes son conscientes de que sus ideas se escuchan y se valoran, comprobando que cada comentario contribuye al pro90

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ceso del grupo en su búsqueda de los diversos significados de la obra de arte (VUE, 2001c).

Superando una educación transmisora Una vez presentado el método y problematizados sus fundamentos, destacaremos a continuación sus ventajas, y más adelante, plantearemos algunos de sus inconvenientes. La adopción de V.T.S. por parte de numerosos museos se puede explicar por sus marcados beneficios y avances respecto a la educación transmisora imperante, ya que no toma como punto de partida la idea de un educador transmisor que comunica el discurso del museo al público, sino que propone al educador como un mediador, un facilitador que, a través del diálogo, estimula en los participantes la capacidad de observación y de reflexión, noción vinculada a la nueva museología. Según datos una evaluación de un programa que utiliza esta metodología, su punto de partida es “ser un instrumento para facilitar procesos de aprendizaje a distintos niveles y una herramienta para el desarrollo de las habilidades cognitivas de los alumnos”11. Sumado a esta finalidad, la propuesta (...) facilita la mejora de capacidades deductivas, especulativas y argumentativas de los alumnos. Favorece la generación de interpretaciones basadas en las imágenes de menor a mayor complejidad. Permite la mejora de la expresión oral. Fomenta una nueva relación profesor-alumno, reafirmando el desarrollo personal del alumno ya que, al redefinir sus roles, se resituan en un plano de igualdad. Su objetivo principal es completar los objetivos del currículo y potenciar el aprendizaje activo frente a la recepción pasiva tradicional. Para su correcto funcionamiento se requiere que el profesor haga bien su papel de mediador y que tenga buena relación con los alumnos, también es necesario que haya una actitud receptiva por parte de los participantes y que las normas del método se apliquen correctamente (POU, 2002).

Como hemos mencionado anteriormente, los educadores son considerados los facilitadores del proceso, nunca la fuente principal de información u opinión. Por ello su tarea consiste en posibilitar que los estudiantes debatan distintas alternativas y dejan que el proceso conducido con las “Estrategias de Pen-

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samiento Visual” fortalezca su habilidad de examinar, articular y reflexionar. El profesor desempeña el papel de moderador, sin aportar información u opinión algunas [sic]. El profesor permite que los alumnos discutan las diversas posibilidades y que el proceso de percepción mismo incremente su capacidad de analizar, relacionar, escuchar y reflexionar. La participación de los alumnos por turno fomenta la curiosidad y la búsqueda de información (VUE, 2001c).

De esta forma, el profesor o el educador del museo se convierte en el protagonista del hecho educativo. Si el profesor sabe las normas del método, es decir, sabe estructurar el diálogo, parafrasear a los alumnos para mejorar su expresión oral y conducir debates de interés común, ya están conseguidos los objetivos propuestos. El currículo se aplicará de modo plenamente satisfactorio si el profesor sigue una serie de pautas básicas, lógicas y comprobadas científicamente, aunque al principio le parezcan algo restrictivas. Estas sencillas reglas abren todo un mundo de posibilidades (VUE, 2001c).

Sin embargo, queremos destacar que, a pesar de mostrar a los educadores como líderes del proceso de aprendizaje, su formación se relega a un segundo plano, ya que es entendida como meramente práctica12. Esto significa, en palabras de Padró, que la profesión del educador en los museos es comprendida según una concepción tradicional y artesana. Con ello nos referimos a que muchos departamentos de educación se consideran meramente prácticos, sin atender a una formación museológica y/o educativa específica. En esta tendencia se considera que la educación es más una vocación que una profesión y por tanto, el educador es visto como un didacta (PADRÓ, 2005). A pesar de esto, es destacable que durante la práctica de V.T.S. se permita que los visitantes observen detenidamente las obras, se facilite la discusión y se estimule el pensamiento crítico y creativo. El profesor considera las aportaciones de todos los alumnos para que se sientan respaldados e indica al grupo el valor de las ideas de cada persona. (…) Como parte del proceso de adquirir un pen-

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samiento crítico, se necesita subrayar la importancia de considerar todas las posibilidades. Hay que mantenerse abierto mientras los alumnos aportan ideas y considerar todos los comentarios igualmente válidos (VUE, 2001c).

Sin embargo, la noción de pensamiento crítico a la que se refieren no incluye una reflexión por parte de los estudiantes o visitantes del proceso seguido, y tampoco se les ofrece el contexto social, cultural, religioso ni político de las obras. Por ello, desde nuestro punto de vista el tipo de pensamiento que se estimula, se trataría más de un pensamiento tolerante que de una postura crítica. Esto es debido a que fomenta que todos se expresen y valoren por igual las opiniones de los demás participantes, pero no se anima a que se pongan en tela de juicio las diferentes opiniones, incluyendo tanto las propias como las de compañeros, educadores o expertos que hablan sobre las obras. Por estas razones, consideramos que V.T.S. puede ser adecuado como un método para utilizarse en un primer contacto con el arte, ya que sin duda, permite que todos los visitantes hablen, rompiendo con algunos mitos que encierra la idea tradicional de museo de centrarse en la contemplación de la obra en la búsqueda de una experiencia estética. Sin embargo, tras haber comentado formalmente la obra y haber satisfecho las necesidades de todos los participantes de hablar, consideramos que se deberían tratar temas candentes, polémicos y críticos. Pero, contrario a esta postura, Yenawine aboga por que no se indague en temas no convencionales a la hora de establecer un diálogo frente a las imágenes, perdiéndose la oportunidad de abordar temas de actualidad. Existen temas que, en general, deberán evitarse pues, a pesar de ser importantes o se presenten satisfactoriamente a un debate bajo ciertas circunstancias, las situaciones que presentan conllevan demasiadas variables para asegurar una experiencia positiva. Las imágenes que ilustran escenas de violencia, posturas políticas específicas, imaginería religiosa determinada, desnudez, sexualidad y sensualidad manifiestas, así como temas grotescos o macabros pueden perjudicar a los observadores inexpertos si los valores expresados en ellas entran en conflicto con los suyos propios (YENAWINE, 2001).

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De esta manera, al evitar cuestiones tales como la raza, el género o la clase social se pone en evidencia que V.T.S. no considera cómo las condiciones socioeconómicas afectan las vidas y expectativas de las personas.

V.T.S. al descubierto: un repaso a sus limitaciones Teniendo en cuenta todo lo anteriormente citado, queremos evidenciar nuestra preocupación de que actualmente en España y otros países se trabaje la educación en los museos desde una visión esencialista principalmente. Nos preguntamos porqué se implementan métodos que –aunque camuflados tras un aparente diálogo abierto– son unidireccionales. Esto se materializa, por ejemplo, en el punto de partida tradicional que utiliza V.T.S., ya que la pregunta con la que se abre el diálogo es siempre: “¿qué ves?”, cuestión que no favorece un pensamiento relacional ni crítico. Esta pregunta hace suponer que en la obra hay un contenido que los visitantes deben encontrar, una respuesta correcta que han de identificar. Además, se concibe que el visitante llega al museo sin ningún conocimiento previo y se parte de que aprender significa asimilar información y hechos que son independientes del sujeto. Esta perspectiva tiende hacia una posición conductista, concluyendo que el aprendizaje consiste en la suma de varias asociaciones simples y que todo lo que se conoce se ha adquirido a través de la experiencia (HEIN, 1998). Por otro lado, V.T.S. tampoco explora formas de pensamiento que no estén sujetas a la noción moderna de racionalidad. Estas alternativas de pensamiento serían las que prestan atención a la intuición y al pensamiento no lineal y multilógico, donde el pensar es biográfico, contextual y no es sólo una actividad mental (HERNÁNDEZ, 2006). Asimismo, es importante destacar que, a pesar de que se utilice una metodología basada en la realización de múltiples preguntas, V.T.S. parte de que hay un conocimiento clave que se tiene que aprender. Por ello, a pesar de que se promueve la discusión en el grupo, siempre se incita a llegar a un consenso y a dejar claro cuál es el mensaje predeterminado que se debe asimilar.

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V.T.S. es un proceso de descubrimiento. El debate se inicia mediante unas preguntas concretas, formuladas para provocar diversas respuestas con sentido, en función de lo que se ve en las imágenes. (…) Así los alumnos conocen la ambigüedad del arte y sus diversos y ocultos posibles significados. (…) La pregunta recomendada (y sus variaciones) les obliga a indagar en busca de un significado. (…) Con el tiempo, la interacción del grupo pondrá en su lugar a la ‘verdad’ (VUE, 2001c).

Además, a menudo, este mensaje tiene más que ver con las visiones que los museos fomentan del artista y con las expectativas que crean en los visitantes, que con las posibilidades de pensar en otras versiones que estos pueden aportar. La mayor parte de sus interpretaciones coincidirán con el propósito del artista si se buscan las razones indagando en la imagen. (...) El hecho de que las imágenes sean accesibles ofrece a los observadores la oportunidad de descubrir por sí mismos los significados pretendidos por el artista. (...) Cuanto más abierta sea la interpretación de una obra, más acertadas podrán ser las opiniones intuitivas del observador, siempre y cuando se enmarquen dentro del propósito del artista o de la cultura en cuestión (VUE, 2001c).

Entonces, V.T.S. hace pensar que hay una verdad única en la obra que debe ser descifrada y, por tanto, no permite ningún descentramiento ni problematización, ni mucho menos establece conexión alguna con el sujeto y su mundo (HERNÁNDEZ, 2006). Debido al tipo de preguntas que se realizan durante las sesiones con V.T.S., la importancia se da exclusivamente a la obra con la que se está trabajando y, consecuentemente, al artista que la produjo. Los participantes –sus expectativas, sus circunstancias– quedan excluidos a la hora de llevar a cabo la interpretación de la obra, ya que se entiende que esta interpretación es única y se encuentra en la propia obra y nunca en los espectadores. Como afirma el teórico cultural Stuart Hall (1997), debemos enfatizar que no existe una simple o correcta respuesta a preguntas como ‘¿qué quiere decir esta imagen?’, ya que los significados cambian en el tiempo y no hay leyes que garanticen el ‘significado verdadero’ de las cosas; por ello, no se debería establecer un debate entre quien tiene razón y

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quien está equivocado, sino entre significados e interpretaciones igualmente plausibles, aunque en ocasiones compitan y se contesten. También es cierto que no sólo la pregunta inicial “¿qué ves?”, sino también el resto de las cuestiones que facilitan el diálogo, priorizan el sentido de la vista, dejando de lado la posibilidad de experimentar o conocer el arte desde los otros sentidos. Por ello, los programas educativos basados en las “Estrategias de Pensamiento Visual”, marginan a las personas que aprenden de forma no visual o verbal, ya que no suelen estar acompañados por una actividad que requiera la utilización de sentidos y habilidades distintas13. En este sentido sería un programa “monoalfabetizador” y se distancia de las propuestas multialfabetizadoras actualmente vigentes (LANKSHEAR y KNOBEL, 2003). Otra de las ideas fundamentales de V.T.S. es que el educando aprende mientras se expresa oralmente aunque todo ha sido previamente diseñado y decidido por los adultos14. Se da por sentado que los participantes aprenden desarrollando sus capacidades de pensamiento y razonamiento mediante programas bien estructurados (diseñados por expertos) de habilidades para aprender (HERNÁNDEZ, 2006). Si nuestro deseo es que los participantes establezcan una relación sólida con el arte, deberíamos pensar en el tipo de arte más adecuado para iniciarlos en la materia. Si pretendemos, además, que aprendan a ‘leerlo’ por si mismos –que se conviertan en observadores autosuficientes– deberíamos pensar la mejor manera de estimular esta habilidad. (...) La contemplación del arte se enseña mejor alentando a los alumnos, ayudándoles a mirar con detenimiento, a pensar sobre lo que ven, y a articular sus reacciones (YENAWINE, 2001).

También consideramos cuestionable de este método educativo su peculiar manera de seleccionar las obras de arte “adecuadas” para los observadores. Existe una firme resistencia a incluir en las sesiones de V.T.S. la cultura audiovisual, obviando de este modo manifestaciones artísticas distintas a la pintura o escultura, –tales como videos, performances, instalaciones, publicidad, entre otros–. Al centrar las sesiones en observar obras artísticas realizadas con procesos tradicionales –es decir, pintu-

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ra, escultura, dibujo y grabado–, se parte de una noción de arte elitista, ya que se potencia exclusivamente un acercamiento al arte que se considera culto, elevado y legitimado. El proceso de selección de obras con el fin de iniciar a los observadores principiantes a las maravillas del arte es una tarea que debe hacerse a conciencia. (…) La pintura resulta muy útil, pues ha existido siempre en todas partes y a menudo ha sido considerada la más alta expresión artística de una cultura. (…) Las ilustraciones, la mayor parte del fotoperiodismo, los dibujos animados y los anuncios rara vez suponen una elección útil porque permiten pocas interpretaciones. Los temas con una gran carga, las técnicas experimentales, y los estilos provocadores pueden desviar a los observadores de este objetivo [animar a contemplar, a pensar y a desarrollar unas interpretaciones bien infundadas] (YENAWINE, 2001).

Así, para elegir las imágenes adecuadas para que los “principiantes, mediante la práctica, elaboren su propio entendimiento del arte incrementando su potencial como observadores”, se recomienda a los educadores seguir unas rigurosas pautas ideadas por Philip Yenawine (2001). Según estas normas, las imágenes seleccionadas tienen que ser reconocibles, reales y deben siempre contar una historia. En este sentido, se sugiere que sean paisajes, retratos o escenas “de género” (juegos, familia, actividades laborales) y cuya lectura sea fácil de desentrañar para que cautiven a todo tipo de público. Respecto a las técnicas, las que más se recomiendan son la pintura, la escultura figurativa, las reproducciones de dibujos y estampas, y la fotografía. Así, se excluye no sólo toda la pintura abstracta sino también casi todas las manifestaciones artísticas posteriores a las primeras vanguardias, ya que a partir de este momento histórico la pintura rompe con la imitación a la realidad. Por otro lado, se considera importante que se conozca la intención del artista o la cultura que ha elaborado la pieza para no caer en malas interpretaciones. Si desconocemos el propósito del artista o la cultura en la que se enmarca, este tipo de arte nos resultará ajeno, y nuestra comprensión del mismo será limitada, susceptible de ser malinterpretada (YENAWINE, 2001).

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Sin embargo, partiendo de que no hay una verdad única en la obra, sino que el espectador la interpreta según su bagaje y circunstancias, una obra nunca podrá ser malinterpretada. Finalmente, también se hace hincapié en el tipo de obras que se deben evitar, como las que requieran una información especializada o aquellas cuyo significado esté determinado por un artista o cultura concretos (dentro de esta categoría se incluyen temas históricos, religiosos, mitológicos, y especialmente étnicos). Tampoco son adecuadas las escenas de violencia, política, religión, desnudez, sensualidad o sexualidad, los temas grotescos o macabros y las naturalezas muertas (porque presentan una serie de cualidades que, al igual que la pintura abstracta, no invitan a investigar) (YENAWINE, 2001). Siguiendo estas pautas de selección, siempre se elegirán imágenes cuyo análisis difícilmente trascenderá los aspectos estéticos y formales. En este sentido, notamos que no permiten el tratamiento de ningún tema controvertido ni conectado con la realidad sociocultural que los participantes puedan estar viviendo. Desde nuestro punto de vista, para conocer las obras de arte y analizarlas en contexto, tendríamos que aprender sobre sus sistemas de producción, mecenazgo, canales de distribución, ideas expresadas por artistas, coleccionistas y críticos, y todos aquellos elementos que crean el sistema del arte (EFLAND, FREEDMAN y STUHR, 2003).

Reflexiones inacabadas Partiendo de que la situación actual de la educación en los museos es de tránsito, y muchos de ellos se encuentran en un proceso de cambio y replanteamiento de su ideología educativa, es lógico que traten de buscar orientación y referencias en tendencias de otros países. Sin embargo, hemos observado que más que ideas o referentes, lo que se prefiere es la adopción de un determinado método educativo, con criterios teóricos bien definidos y pautas para su implementación claras; en fin, un método que pueda utilizarse con facilidad y aprenderse rápidamente. Sin embargo, no se considera que cualquier metodología educativa es creada en un momento y lugar determinados y,

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consecuentemente, permanece siempre ligada a circunstancias socioculturales concretas. Por ello, a la hora de implementar V.T.S. en cualquier institución no se debería olvidar su contextualización y adaptación a los intereses locales. En contraste con esta idea, Yenawine (2001) afirma que no hace falta ninguna adaptación de este método previa a su implementación en cualquier contexto. – Ha sido necesario algún proceso de adaptación del programa VTS para poder ser aplicado a un medio como éste, tan distinto de Estados Unidos? – De acuerdo con nuestra experiencia, no. No ha habido necesidad de introducir nuevas variables a la hora de aplicar en este contexto nuestro proceso de facilitar la discusión que es la clave del método de enseñanza del VTS (GONZÁLEZ, 2006).

Creemos que para justificar la adopción de V.T.S. en los museos, se valora que a partir de él pueden desarrollarse programas educativos atractivos, que posibiliten la llegada de más público a la institución, cometido normalmente asumido por los departamentos de educación. Por estos motivos, se accede a la implementación de este método sin cuestionar sus contenidos y sin reflexionar sobre el tipo de visitante que se está creando. A este respecto, Yenawine comenta en una reciente entrevista: Los educadores de museos de todos los países en los que hemos trabajado están interesados en el VTS por los mismos motivos: El VTS dinamiza y da vida a los programas pedagógicos de los museos. El trabajo de investigación que hay detrás del VTS – que corrobora el crecimiento tanto en términos de observación como de habilidades interpretativas por parte de los distintos públicos – ha producido un considerable eco entre todos los profesionales de museos interesados en provocar un impacto sobre los visitantes (GONZÁLEZ, 2006).

Sin embargo, en la actualidad, la educación museística ya no se entiende sólo como un proceso lineal en el que el museo le enseña un contenido al visitante, sino que trata más bien de cómo los visitantes usan el museo de maneras significativas para ellos (ROBERTS, 1997); por eso, la esencia de la educación

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hoy en día es crear conocimiento y posibilitar la construcción de significados. La educación en el museo es concebida como un conjunto de procesos, educación como forma de vida, como algo deseable para asimilar los acontecimientos diarios y como actitud positiva frente al mundo. Además los museos son las únicas instituciones de la sociedad que pueden satisfacer las necesidades de aprender de todo tipo de personas. Son también forma de ocio pero siempre en relación con aprendizaje. Los visitantes esperan cada vez más que una visita a un museo tenga una importancia personal inmediata, interactiva y que dé lugar a la adquisición clara e identificada de conocimientos. La educación en el museo se entiende cada vez más como la fuerza que da forma y que se encuentra detrás de la política y de los objetivos generales del museo (HOOPERGREENHILL, 1998).

De este modo, la educación en el museo no es concebida ya sólo ocio o diversión, sino que es entendida como un acto de reflexión y de creación de nuevas narrativas igualmente válidas y significativas que la propuesta por la propia institución. Estas narrativas alternativas parten de los propios visitantes que, motivados por el educador, construyen sus propias historias teniendo en cuenta su conocimiento previo, sus experiencias y sus condiciones sociales y biográficas (ROBERTS, 1997). Debemos tener en cuenta, por tanto, que un visitante en un museo percibe de manera inteligente, y que cada uno tiene sus experiencias, expectativas, opiniones, suposiciones. De este modo, se puede decir que el proceso de percepción no es algo ligado exclusivamente a los sentidos, sino que implica un proceso activo por parte del sujeto que lo puede conectar con su “sentido de ser”. Siempre percibimos desde lo que sabemos; no extraemos del medio toda la información, sino aquellos indicios coherentes con nuestras hipótesis, con lo construido a partir de experiencias previas y de acuerdo a un proyecto o interés cognitivo (DÍAZ y UNZU, 2003). Consecuentemente, “el museo tiene que proporcionar al visitante herramientas para interactuar considerando que cada uno posee sus propios conocimientos, valores y sentimientos intransferibles” (PADRÒ, 1995, p. 19). Por todo ello, no es aceptable la concepción de aprendizaje conductista fomentada desde V.T.S., que considera que la mente del visi100

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tante es una “tabula rasa” y que aprender significa simplemente sumar asociaciones simples (HEIN, 1998). Por el contrario, consideramos que la educación museística debe construirse de un modo indagador y crítico; desde esta posición, métodos educativos como V.T.S. deberían ser reformulados, ya que en vez de promover la reflexión y el aprendizaje significativo en el visitante, siguen reproduciendo formas tradicionales de educación. Para romper con ello, entre otros factores, sería necesario repensar la formación y función de los educadores que llevan a cabo el proceso educativo. En este sentido, es importante promover en ellos la indagación sobre su trabajo y estimular su capacidad crítica a través de una formación continua. Éste sería el primer paso para que se convirtieran en profesionales reflexivos concebidos, no como consumidores de los conocimientos producidos por otros, sino como creadores de conocimiento en relación con la enseñanza y el aprendizaje (SCHÖN, 1998). Desde nuestra postura como investigadoras en el campo de la educación en los museos, consideramos necesario promover estrategias de resistencia y acción que permitan reposicionar las formas hegemónicas de educación y posibilitar espacios para el cuestionamiento. Nuestro objetivo es fomentar que se lleven a cabo prácticas educativas en los museos que inciten a los visitantes a interrogarse, y desde las que se asuma que el conocimiento que se construya ayudará a las personas a ser mejores y a vivir más plenamente más allá del mundo académico (HOOKS, 1994).

Gracias a la Dra. Carla Padró, al Dr. Fernando Hernández y a todas las personas que nos ayudaron a construir, deconstruir y reconstruir este texto.

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Notas 1- A pesar de que en su origen este método se dio a conocer como V.T.C. (Visual Thinking Curriculum), en la actualidad se difunde con las siglas V.T.S. (Visual Thinking Strategies) y, por ello, a lo largo del artículo nos referiremos al método de este modo. 2- Según Carla Padró, “La mayoría de departamentos educativos [de museos] sin tener muy claras sus teorías implícitas fruto de un trabajo que, durante mucho tiempo, ha sido considerado de traducción del discurso oficial o, en los últimos años, de reproducción del currículum escolar” en Padró, C. 2005: Museos y educación artística: redes de paso, encrucijadas difusas, zonas de viraje (Texto sin publicar). 3- Paralelamente a este estudio, Michael Parsons en la Universidad de Ohio, siguiendo también el modelo de desarrollo propuesto por Piaget, llegaba a las mismas conclusiones: para comprender la realidad del museo se necesitaba una formación en educación artística que tuviera en cuenta los estadios del desarrollo del juicio estético. 4- Véanse los programas “Mira!” del Caixafòrum de Barcelona (España) o “D.A.P., Didáctica del Arte y del Patrimonio” -que usa las estrategias de Pensamiento Visual-, comercializado por la Fundación Arte Viva en España, Argentina, Brasil y otros países. 5- El constructivismo sostiene que el conocimiento es resultado de un proceso dinámico e interactivo durante el cual la información es interpretada y reinterpretada por la mente, que va construyendo progresivamente modelos explicativos cada vez más complejos y potentes. Esto significa que conocemos la realidad a través de los modelos que construimos para explicarla, y que estos modelos siempre son susceptibles de ser mejorados o cambiados (Coll y Gómez, 1995). 6- Según Piaget, “los niños atraviesan unas etapas o estadios cualitativamente distintos que denomina: sensoriomotriz, preoperacional, operacional concreto y operacional formal” (Agirre, 2000: 54). 7- Para profundizar en el constructivismo crítico, ver: Hernández, F. (2000) Educación y cultura visual. Barcelona: Octaedro, pgs. 108-109 8- Para profundizar en los estadios de Parsons y en los de Housen, consultar: Hernández, F. 2000: La investigación sobre la comprensión: la interpretación como clave de la educación escolar. En: Educación y Cultura Visual (págs. 105-132) Barcelona, Octaedro. 9- “Estrategias de Pensamiento Visual” es la traducción literal al castellano de “Visual Thinking Strategies” o V.T.S. Utilizamos el término V.T.S. cuando nos referimos al método en general, y “Estrategias de Pensamiento Visual” al hablar de las metodologías que se utilizan. 10- Esta idea de que es posible leer una imagen del mismo modo que un texto es actualmente de uso corriente para los defensores de V.T.S. Por ejemplo, en la página web del Museo Picasso de Málaga (España) podemos leer: “Primavera 2006.Curso para profesores de Primaria basado en las Estrategias de Pensamiento Visual (V.T.S.): Se plantea trabajar con los alumnos para aprender a mirar (al igual que aprendemos a leer) como parte de un proceso de desarrollo del conocimiento basado en el hecho mismo de mirar y tratar de comunicarlo por medio de la palabra y dentro de una discusión abierta del grupo.” 11- La evaluación citada se refiere a: Pou, C. 2002: El programa educativo “Mira!” del Laboratori de les Arts: un instrumento para la escuela primaria. (Texto sin publicar. Investigación financiada por la Fundació “la Caixa”) 12- “El educador de V.T.S. hará mejor su trabajo cuantas más veces lo haga. Es un método que se va aprendiendo con la práctica” (Linda Duke, durante su conferencia en las XIII Jornadas de los D.E.A.C., Murcia, octubre de 2005) 13- En 1983 Howard Gardner publicó su libro “Frames of Mind: The theory of multiple

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intelligences”, en el que plantea una visión pluralista de la inteligencia, reconociendo en ella muchas facetas diferentes, entendiéndose así que cada persona posee distintos potenciales cognitivos. De esto se deriva que no todas las personas aprenden del mismo modo ya que todos desarrollamos nuestras inteligencias de formas dispares. Esta idea debería tenerse en cuenta a la hora de plantear cualquier actividad educativa. 14- Análogamente al método educativo conocido como “learning by doing”, podríamos considerar al V.T.S. como un método que propone el “learning by telling”, ya que considera que el niño aprende cuando se expresa y, por lo tanto, fomenta exclusivamente su expresión oral.

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do y utilizado por VUE en el curso “VTS Estrategias de Pensamiento Visual” en el Centro Atlántico de Arte Moderno de Las Palmas de Gran Canaria, 15-18 de Noviembre de 2005). VUE. Un vistazo al VTS, 2001d. (Texto divulgado y utilizado por VUE en el curso “VTS Estrategias de Pensamiento Visual” en el Centro Atlántico de Arte Moderno de Las Palmas de Gran Canaria, 15-18 de Noviembre de 2005). VYGOTSKY, L. Mind in society: the development of higher psychological processes. Cambridge: Harvard University Press, 1978. YENAWINE, P. Iniciación al arte: ideas para la selección de imágenes, 2001 (Texto divulgado y utilizado por VUE en el curso “VTS Estrategias de Pensamiento Visual” en el Centro Atlántico de Arte Moderno de Las Palmas de Gran Canaria, 15-18 de Noviembre de 2005). Páginas web Artium, Centro-Museo Vasco de Arte Contemporáneo de Vitoria: Caixafòrum de Barcelona: Centro Atlántico de Arte Moderno de Las Palmas de Gran Canaria: Museum of Modern Art de Nueva York: Museo Picasso de Málaga: Visual Understanding in Education:

ENERITZ LÓPEZ Investigadora en formación, Universidad de Barcelona. Financiación: Gobierno Vasco. Email: [email protected] MAGALI KIVATINETZ Becaria de investigación, Universidad de Barcelona. Coordinadora de motivART serveis educatius. Email: [email protected]

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A política do corpo na tecnociência fáustica

Marko Synésio

ALVES MONTEIRO

Paula Sibilia O Homem Pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. ISBN: 85-7316-292-9

O debate em torno das conseqüências e potencialidades surgidas com o advento de tecnologias como a engenharia genética, o seqüenciamento de genomas e a crescente penetração do digital no cotidiano tem se fortalecido cada vez mais no Brasil, já sendo bastante vigoroso no mundo acadêmico em geral. Com o anúncio recente do seqüenciamento completo do genoma humano, e com as polêmicas geradas em torno daquele fato, esse debate tomou proporções ainda maiores, e ocorreu uma pequena explosão de pesquisas e de interesse a respeito desse tema, tanto em meios intelectuais quando na mídia mais ampla. Tal debate, longe de ser algo deslocado na nossa realidade (como podem talvez sugerir termos pouco familiares como póshumano ou pós-orgânico), torna-se cada vez mais uma parte central do processo de definição dos rumos culturais e políticos pelos quais desejamos trilhar nesse século XXI. As polêmicas recentes em torno de pesquisas com células tronco e em torno da política brasileira a respeito de organismos transgênicos e sua utilização na agricultura, para citar algumas questões recentemente debatidas na imprensa, mostram o quanto é cada vez mais urgente que a opinião pública e os debates especializados

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tomem consciência da responsabilidade que temos, enquanto cidadãos vivendo num período de transição e de indefinição, nas escolhas que direcionarão nosso futuro. O livro recente de Paula Sibilia, tema dessa resenha, é uma excelente introdução a esses debates, e coloca de forma didática e prazerosa muitas das questões centrais sendo debatidas. Seu livro pretende analisar como as novas tecnologias têm um impacto profundo no corpo e na subjetividade, e para tal ela mobiliza uma ampla gama de argumentos de uma variedade de disciplinas, desde a filosofia, a história, a arte e a política. Seu texto é um debate panorâmico, a meu ver, dos pontos mais polêmicos envolvidos nesse processo de conflito em torno dos rumos e definições a serem tomados no que diz respeito à interação entre seres humanos e as novas tecnologias. No cerne de seu argumento está a derrocada do corpo tal qual definido no Humanismo renascentista, que ela chama de corpo-máquina analógico, em oposição a um corpo dominado por uma digitalização universal que estaria se configurando na contemporaneidade. Desde Pico della Mirandola, que buscou no século XV reiterar a centralidade do Homem num mundo ainda dominado pela cosmologia da astrologia e pela autoridade da igreja, existiu na chamada Modernidade um projeto de reforçar o humano como medida e como centro do universo. A matemática e a ciência, e não os astros ou a religião seriam as formas verdadeiras de se perceber e interpretar o real, e o homem seria, por sua racionalidade e perfeição, o protagonista desse mundo, inserido num movimento de progresso inevitável cujo combustível seria a tecnologia. Na era atual, como mostra a autora, o progresso científico ameaça solapar a centralidade do humano e tomar, ela mesma, o papel central nessa “evolução”. O corpo humano, cada vez mais invadido e modificado pela tecnologia, e cada vez mais em interação com aparatos técnicos, estaria segundo alguns pensadores tornando-se cada vez mais obsoleto em relação ao progresso técnico: É nesse contexto que surge uma possibilidade inusitada: o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando “obsoleto”. Intimidados pelas pressões de um meio ambiente

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amalgamado com o artifício, os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e das delícias) do upgrade. Um novo imperativo é internalizado, num jogo espiralado que mistura prazeres, saberes e poderes: o desejo de atingir a compatibilidade total com o tecnocosmos digitalizado. Para efetivar tal sonho é necessário recorrer à atualização tecnológica permanente: impõemse, assim, os rituais do auto-upgrade cotidiano (SIBILIA, 2002, p. 13).

Para a autora, recorrendo ao pensador português Hermínio Martins1, passamos de uma tradição prometéica, arraigada nas cosmologias ocidentais, para uma tradição fáustica. O prometéico aqui se refere aos ideais da tecnologia como expansão das capacidades do corpo, enquanto que o fáustico, que seria uma vertente cada vez mais dominante, pensa a possível superação do corpo, a transcendência da condição humana, o póshumano. Esse pensamento fáustico se expressa, por exemplo, nessa tirania atual do upgrade do corpo, seja por meio de intervenções cirúrgicas ou pelo acoplamento cada vez maior com aparatos tecnológicos. A busca pela verdade do corpo, iniciada na era moderna com a anatomia e com as representações realistas de artistas como Leonardo da Vinci, hoje se radicaliza na busca de uma essência molecular, a partir do seqüenciamento do genoma por exemplo. Assim, o saber científico [da modernidade] redefinia o corpo: arrancando-o do homem vivo e escolhendo o cadáver como seu modelo e objeto. Nos alvores renascentistas da ciência, a anatomia estática se sobrepôs à fisiologia, congelando a vida do organismo para poder explicar suas engrenagens. Daí em diante, a intimidade do corpo iria ser fatalmente colonizada; seu interior iria ser desvelado, iniciando-se um processo que hoje parece estar alcançando seu ponto culminante com o deciframento do genoma e a conquista do nível molecular com a ajuda das ferramentas digitais (SIBILIA, 2002, p. 68).

A questão política é também fundamental ao texto, e a autora busca interpretar o impulso fáustico da ciência atual como uma continuidade, até certo ponto, dos projetos de higiene e de controle de populações que ganharam força no início do século XX. A partir do conceito de bio poder tal qual elabora-

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do por Michel Foucault, a autora compara as tecnologias de controle da vida analógicas desse tempo com as tecnologias de controle digitais, cujo desenvolvimento assistimos ultimamente. Esse bio poder, segundo Sibilia, tinha no sexo seu eixo fundamental, e buscava interferir na vida nos níveis individual e populacional. Ou seja, através da medição, hierarquização, avaliação, etc., buscava-se eliminar elementos degenerados da população, a fim de potencializar as forças vitais em prol da sua produtividade industrial. Essa configuração do bio poder buscava portanto inserir a vida e o corpo do indivíduo e da massa cada vez mais no processo produtivo associado com a era industrial. O manejo do corpo visava não mais o poder do antigo soberano, de matar ou deixar viver, mas sim engajar o corpo no processo produtivo com maior eficiência, reduzindo doenças e melhorando eugenicamente a espécie. Na passagem para o atual momento pós-industrial, como analisa Sibilia, essas formas de controle se tornam obsoletas frente às possibilidades abertas pelo acesso cada vez maior ao corpo na sua essência molecular. O corpo passa a ser encarado digitalmente, como feixe de informações, como banco de dados acessível e manipulável. Portanto cada vez mais era imperativo controlar as virtualidades presentes nesse nível pré-individual, e não mais corrigir o corpo material já configurado. As possibilidades de controle irrestritas vislumbradas a partir da engenharia genética levam a um remanejamento das forças que buscam controlar e manipular o DNA enquanto essência da vida. Dessa forma Sibilia argumenta que o DNA é agora o novo foco do bio poder, em lugar do sexo. Da mesma forma, o complexo produtivo industrial perde o foco para a esfera do consumo. Ou seja, a figura do trabalhador, parte desse complexo, perde a centralidade nos processos sociais frente ao consumidor, preocupado ele mesmo com o manejo dos riscos aos quais seu corpo está constantemente sujeito (doenças, peso, aparência, estatura), e aos quais a figura da empresa serve muito mais que um Estado forte e centralizado. Ocorre uma privatização dos meios de controle do corpo: ao invés

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dos grandes programas estatais de higiene que vimos no passado (cuja culminação foi a solução final de Hitler), hoje vemos cada vez mais o consumidor interessado em manejar seu peso, controlar sua alimentação, consumir as novidades no mundo dos cosméticos, etc. A boa saúde se confunde com a boa aparência, e o corpo se torna central como definidor de identidades individuais e de grupos. Para a autora, as conseqüências desse deslocamento já são sentidas em casos como a indústria farmacêutica. Essas, em aliança com laboratórios, buscam crescentemente tomar posse do patrimônio genético existente através de patentes. Tais patentes visam garantir exclusividade de uso para o desenvolvimento de drogas cada vez mais sofisticadas, que atendem aos desejos de uma população preocupada em efeitos instantâneos ao invés de processos. Drogas como o Viagra e o Prozac, segundo a autora, fariam parte desse processo de digitalização universal por oferecerem soluções instantâneas a problemas de saúde, tratando o corpo como entidade manipulável. Tais dados evidenciam a forte dependência da nova tecnociência de cunho fáustico com relação ao mercado, e o afrouxamento dos laços com as instituições públicas e governamentais que constituíam os principais veículos das estratégias biopolíticas na sociedade industrial. Uma implicação importante desses processos é que as novas tecnologias de modelagem de corpos e almas surgidas nesses contextos já não apontam de forma exclusiva ou prioritária para os cidadãos dos Estados-nação liberais. Pelo contrário, o foco dessas estratégias é um target composto por consumidores, não distribuídos em populações nacionais ou censos demográficos, mas segmentados em termos estritamente mercadológicos (SIBILIA, 2002, p. 178).

As implicações políticas desses processos, como vimos, é profunda, e a autora toca nessas questões no final do livro. As opções, como ela discute, não estão claras, mas ao mesmo tempo há uma certa urgência em se discutir alternativas. Para alguns autores, existem novas e empolgantes possibilidades contidas nesses desenvolvimentos, que devem ser exploradas como alternativas à dominação. Para outros, o controle é tama-

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nho que não temos muito espaço de manobra. A saída, a meu ver, é uma maior compreensão desses fenômenos, que leva a tomada de consciência crítica e ao debate de alternativas, e não somente à aceitação tácita dos fenômenos tal qual se apresentam.

Notas 1- MARTINS, Hermínio. Hegel, Texas: temas de filosofia e sociologia da técnica e Tecnologia, modernidade e política. In Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social. Lisboa: Edições Século XXI, 1996.

MARKO SYNÉSIO ALVES MONTEIRO Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP, mestre em Antropologia pela mesma universidade. Publicou o livro Tenham Piedade dos Homens e diversos artigos sobre identidade, gênero e masculinidade. Estuda atualmente os impactos da biotecnologia no corpo e mantém uma página na Internet sobre o tema (http://sites.uol.com.br/markosy), tendo publicado e apresentado também textos sobre corpo, arte e tecnologia. Email: [email protected]

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Normas para publicação de trabalhos

A Revista Visualidades é uma publicação semestral do Mestrado em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. Seu objetivo é a publicação de trabalhos originais e inéditos – em português, espanhol, inglês e francês – dedicados à diversidade de manifestações que articulam o sentido visualmente, tratando-as em relação à cultura e como cultura. Os originais, sob a forma de artigos, ensaios visuais, relatos de pesquisa, entrevistas, resenhas e resumos de dissertações e teses, serão avaliados preliminarmente pelo Conselho Editorial quanto à pertinência à linha editorial da revista. Numa segunda etapa, as contribuições enviadas serão submetidas a pareceristas ad hoc. O Conselho Editorial reserva-se o direito de propor modificações no texto, conforme a necessidade de adequá-lo ao padrão editorial e gráfico da publicação. Artigos e entrevistas deverão ter entre 4.000 e 9.000 palavras. Resenhas: até 2.000 palavras. Resumos de teses e dissertações: até 400 palavras. Relatos de pesquisa: até 3.000 palavras. Serão aceitas resenhas de livros publicados no Brasil há 2 anos, no máximo, e, no exterior, há cinco anos. Serão aceitas também resenhas de filmes e exposições. As imagens para os ensaios visuais devem ser em P&B, com resolução mínima de 300 dpi. O texto deve ser acompanhado de uma biografia acadêmica do(s) autor(es) em, no máximo, 5 linhas, e das seguintes informações complementares: endereço completo do autor principal, instituição à qual está ligado, telefone, fax e e-mail. Essas informações devem ser enviadas separadamente. Os trabalhos devem ser precedidos de um resumo de 5 a 8 linhas e 3 palavras-chave, ambos em inglês e português. As resenhas devem ter título próprio e diferente do título do trabalho resenhado e devem apresentar referências completas do trabalho resenhado. Os textos deverão ser digitados no editor Microsoft Word (Word for Windows 6.0 ou posterior), salvos no formato Rich 117

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Text Format (rtf), com página no formato A4, fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinhamento 1,5 e parágrafos justificados. As notas devem ser sucintas, empregadas apenas para informações complementares e não devem conter referências bibliográficas. Devem ser inseridas no final do texto, antes das referências bibliográficas, e numeradas seqüencialmente. Referências bibliográficas: Quando o autor citado integrar o texto, usar o formato: Autor (ano, p.). Em caso de citação ao final dos parágrafos, usar o formato: (SOBRENOME DO AUTOR, ano, p.). Diferentes títulos do mesmo autor publicados no mesmo ano serão identificados por uma letra após a data (SILVA, 1980a), (SILVA, 1980b). As referências bibliográficas completas devem ser informadas apenas no final do texto, em ordem alfabética, de acordo com as normas da ABNT (NBR-6023/2000): SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição, Cidade: Editora, ano, p. ou pp. SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro. In: SOBRENOME, Nome do organizador (Org.). Título do livro em itálico. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. X-Y. SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. X-Y, mês, ano. Documentos eletrônicos: Para a referência de qualquer tipo de documento obtido em meio eletrônico, deve-se proceder da mesma forma como foi indicado para as obras convencionais, acrescentando o URL completo do documento na Internet, entre os sinais < >, antecedido da expressão Disponível em: e seguido da informação Acesso em: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p. X-Y, mês, ano. Disponível em: Acesso em: dia mês ano. Os originais devem ser enviados por e-mail e acompanhados de cópia impressa e uma versão em CD-ROM. O CD-ROM deve conter o artigo, o currículo resumido do(s) autor(es) e as imagens separadamente. As imagens devem ser gravadas no

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