Imagens técnicas: questão de vida ou morte no vazio sem dimensões

September 23, 2017 | Autor: Gwavira Gwayá | Categoria: Visual Studies, Vilem Flusser, Visual and Cultural Studies, Cibercultura
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Imagens técnicas: questão de vida ou morte no vazio sem dimensões Alice Fátima Martins (FAV/UFG, PACC/UFRJ, FAPERJ) [email protected]

Resumo Neste texto, esboço algumas reflexões sobre a cultura contemporânea, a partir das questões propostas por Vilém Flusser sobre as imagens técnicas, com ênfase nas profundas transformações pelas quais tem passado nossa habilidade para criar e pensar, com repercussões significativas em nossa disposição para mudar a nós mesmos e ao mundo à nossa volta. Palavras-chave: imagens técnicas; cultura contemporânea, Vilém Flusser. Abstract In this text I present some reflections about contemporary culture, considering the questions argued by Vilém Flusser about the technical images. The focus is the deep transformations on our ability to create and to think, with consequences on our desire to change ourselves and the world around us. Key-words: technical images, contemporary culture, Vilém Flusser.

Já se vão quase trinta anos. Num domingo à tarde daquele início dos anos 80, integrando um grupo de primos e amigos, fui ao Maracanã, no Rio de Janeiro, testemunhar mais uma edição do clássico embate entre o Flamengo e o Fluminense. Tudo tinha dimensões extraordinárias: o estádio, a multidão, os ânimos, a vibração coletiva, a sonoridade, os odores, as movimentações. Apenas as nossas estaturas físicas pareciam diminuir ante a grandiosidade do espetáculo, e a acuidade visual mostrava-se limitada para processar tamanha efusão de informações. Assim, sentados num ponto mais elevado das arquibancadas, logo constatei que não seria fácil acompanhar tudo o que se passava no campo, sobretudo quando as torcidas manifestavam reações mais acaloradas. Qualquer distração, e descobria já ter perdido uma jogada emocionante. No momento seguinte me encontrava imersa numa explosão de braços abertos e gritos comemorando o gol, que eu não vira, feito pelo ídolo contra o adversário, sem direito a replay e vista de ângulos diversos, em velocidade normal e câmera lenta. Se a experiência, como um todo, deixou impressões marcadamente intensas, à saída do espetáculo levava comigo uma ponta de frustração, sentindo falta da sensação de proximidade com os jogadores e a bola, propiciada pelas câmeras que transmitiam o jogo

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pelas redes de televisão. Mais tarde, confortavelmente instalada no ambiente doméstico (ancorada no meu porto de imobilidade, conforme será proposto adiante...), pude conferir os principais lances do jogo nos noticiários televisivos, compartilhando animados comentários com os familiares. A essa mesma época, Vilém Flusser indagava-se, dentre outros assuntos, sobre como as imagens técnicas (dentre as quais, as televisivas, como as utilizadas para a transmissão da referida partida entre o Flamengo e o Fluminense) integram as profundas mudanças pelas quais vem passando o homem contemporâneo nos seus modos de estar no mundo, de imaginá-lo, de conhecê-lo. Entre entusiasmado e advertente, o autor observa: “Somos testemunhas, colaboradores e vítimas de revolução cultural cujo âmbito apenas adivinhamos. Um dos sintomas dessa revolução é a emergência das imagens técnicas em nosso torno” (2008, p. 15). Uma revolução cultural de tal envergadura só seria possível num contexto utópico, com faces tão ameaçadoras quanto sedutoras, sempre extraordinárias, que acenam, num futuro próximo, para o domínio das imagens técnicas, capazes de concentrar os interesses existenciais da humanidade. Vilém Flusser pode ser considerado um pensador outsider, avesso não só ao estilo, mas às contingências da academia enquanto instância articuladora da produção intelectual. Alguns estudiosos consideram que sua obra se perfila aos estudos culturais, pela insubordinação à idéia de fronteiras, dentre as quais as disciplinares, pela pluralidade de pontos de vista, pela natureza multilinguística de seus textos e da própria estruturação de seu pensamento (ele escrevia em alemão, português, inglês e francês, e traduzia sistematicamente seus textos de uma língua para a outra para ganhar distanciamento critico e descobrir novas perspectivas), além da condição de migrante, o que fez dele um pensador inter, ou antes, transcultural. Embora seja, frequentemente, referido como filósofo dos novos meios de comunicação na sociedade tecnológica, as motivações de Flusser não estavam exatamente nos media, mas nos seres humanos, sua habilidade para criar e pensar, para mudar a si mesmos e ao mundo à sua volta. Alguns estudiosos o tem considerado um dos pensadores cuja obra se perfilaria precocemente aos estudos culturais. Importava, por exemplo, compreender as mudanças, em curso, nos processos de perceber, abstrair, imaginar, que teriam produzido em mim a impressão de que a partida de futebol deveria ser testemunhada não na relação direta com o evento propriamente dito, mas

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com a mediação dos aparelhos produtores de imagem, sugerindo-me maior intimidade com as cenas. Provavelmente até demonstrando maior competência para provocar emoções em mim. O assunto, abordado inicialmente no livro Filosofia da caixa preta (2002), foi retomado, de modo mais aprofundado, em O universo das imagens técnicas (2008), no qual desenvolve algumas questões a partir de um esboço provisório para uma história da cultura, segundo o qual a humanidade encaminha-se para níveis cada vez mais radicais de abstração. De acordo com esse esboço, inicialmente, o homem encontra-se imerso num mundo de volumes em movimento, em que prevalecem as quatro dimensões. Ao apreender os volumes, fixando-os por meio da manipulação, o ser humano abstrai a dimensão temporal. Para tanto, o uso das mãos é condição primordial na constituição da cultura. Mas as mãos agem orientadas pelos olhos: mãos e olhos articulam práxis com teoria, permitindo ao ser humano conquistar a aprendizagem seguinte, de grande significado, qual seja “olhar primeiro e manipular em seguida” (2008, p. 16), para que as imagens produzidas possam servir a ações subseqüentes. Assim, as imagens passam a cumprir o papel de fixar visões, abstraindo a profundidade das cenas, fixando-as em superfícies bidimensionais. O que significa dizer que a visão é o segundo gesto na escalada da abstração, quando o ser humano passa a agir orientado por projetos. O esforço para explicar as imagens, para alinhar os elementos da superfície das imagens e contá-los leva à conceituação, o terceiro nível de abstração, cujo resultado é a escritura de textos, unidimensionais, “séries de conceitos, ábacos, colares. (...) O universo mediado pelos textos, tal universo contável, é ordenado conforme os fios do texto” (2008, p. 17). A consciência histórica e o pensamento científico concebem o mundo segundo essa linearidade lógica, montada com pequenas contas ordenadas em fios, as linhas dos textos. No entanto, a própria radicalidade com que o homem histórico agarrou-se ao projeto de alcançar o núcleo do pensamento conceitual provocou o esgarçamento e o desfazimento desses fios. Rompidos, deixaram de sustentar as pedrinhas dos colares unidimensionais. Elas, então, espalharam-se em minúsculos pontos zerodimensionais, não manipuláveis ou imagináveis, tampouco concebíveis: apenas calculáveis. Somente por meio de cálculos (Flusser brinca com o duplo sentido da palavra cálculo, como pedra e também como operação matemática), em operações abstratas, os pontos podem ser reagrupados, formando curvas projetadas, imagens técnicas, hologramas: simulacros de linhas, planos, volumes... Para Flusser, o cálculo e a computação formam o

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quarto gesto de abstração, que inaugura a consciência pós-histórica, de um universo constituído por pontos, grãos, pixels, sem dimensões. E o homem pós-histórico deixa de ser orientado pela ação, deixa de ser quem faz coisas para tornar-se um jogador: o homo ludens assume o lugar do homo faber. Em texto datado de 1967, publicado no Suplemento Literário OESP, do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, o autor define o jogo como um sistema composto por elementos combináveis de acordo com regras (Flusser, 2009). O conjunto dos elementos forma o repertório do jogo, e o conjunto das regras corresponde à sua estrutura. Todo jogo apresenta uma totalidade de combinações possíveis no âmbito do seu repertório, o que constitui seu universo. Os jogos podem ser fechados ou abertos. Um jogo fechado tem repertório e estrutura imutáveis, como por exemplo, o jogo de xadrez. Os jogos abertos, ao contrário, permitem o aumento ou a diminuição de repertórios, bem como modificações em suas estruturas. A ciência, as artes, as línguas, por exemplo, podem ser pensados como jogos abertos, cuja potencialidade para expansão pode ganhar dimensões indefinidas, embora nunca infinitas. Para ser jogador, é condição de participação estar pronto a aceitar o repertório e a estrutura do jogo, e a brincar com os outros. Também é possível participar em mais de um jogo, o que implica na prontidão para abandonar um conjunto de repertório e estrutura para aceitar outro. Ou seja, é necessária uma flexibilidade para a substituição dos conjuntos de regras em pauta. Ora, o homem pós-histórico é jogador que lida com probabilidades dentro dos conjuntos de regras e repertórios dos equipamentos e programas geradores das imagens técnicas. Experimenta lances, combinações, avanços e recuos estratégicos nesse jogo aberto que, embora amplo e complexo o bastante para simular não conhecer limites, é finito em possibilidades. Nesse jogo, as imagens técnicas constituem questão de vida ou morte, afinal, não se pode viver num universo vazio, dominado pelo vácuo onde os eventos se desintegram, pelo vórtice zerodimensional em que o (in)divíduo é atirado à condição de plena solidão. É preciso reagrupar os pontos para formar superfícies que possam atribuir significado a esse universo: “As imagens técnicas são represas de informação a serviço da nossa imortalidade” (Flusser, 2008, p.26).

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Flusser chama a atenção para o fato de que, ao contrário da imagem tradicional, produzida por gesto que abstrai a profundidade das circunstâncias, indo do concreto em direção ao abstrato, a imagem técnica é produzida por gesto que vai do radicalmente abstrato em busca do concreto, sempre visando a superfície. Retomando, assim, a idéia da história da cultura esboçada inicialmente (modelo provisório cujos limites são apontados pelo próprio autor), é possível sugerir que ela, de fato, não se refira a uma sequência de progressos, como se poderia imaginar tendo como base o pensamento histórico, tampouco as várias etapas em direção à abstração se deem de modo contínuo e seqüencial. Talvez seja mais apropriado imaginar um jogo cujas regras não são explícitas, com lances descontínuos, no decorrer do qual da qual se avança em direção à abstração, tornando-se progressivamente mais difícil retornar ao concreto. Na dança das imagens técnicas, não há lugar para contraposições entre real e imaginário, verificações entre falso e verdadeiro, distinções entre documento e projeto: o homo ludens opera no campo das probabilidades. Suas mãos, também, já não atuam sobre a matéria. As pontas de seus dedos acionam teclas que estão por toda parte. As teclas disparam processos no universo dos pontos, inacessível de modo direto à intervenção humana. São elas, as teclas, os dispositivos que traduzem o universo dos pontos para uma região na qual o homem é a medida de todas as coisas. As imagens técnicas, portanto, são produzidas com as pontas dos dedos, por meio de teclas. Estas, ao serem acionadas, deflagram, nos aparelhos, processos invisíveis aos olhos humanos, que resultam no agrupamento dos elementos pontuais, transformando-os em superfícies imaginadas. As teclas fazem parte dos aparelhos programados para executar o projeto que já não é passível de execução pelas mãos humanas, qual seja transferir fótons, elétrons, bits de informação para a formação de imagens, virtualidades tornadas visíveis. Pois que as imagens técnicas não são superfícies, mas projeção de pontos que, reunidos (mas nunca

ligados

entre

si),

esforçam-se

para

retornar

da

zerodimensionalidade

à

bidimensionalidade, imaginando superfícies. O trajeto do concreto em direção à abstração corresponde, também, à longa marcha que a humanidade tem cumprido em direção à imobilidade. A esse respeito, Carlos Vogt (2009) chama a atenção para o fato de que, se a locomotiva foi um ícone da era moderna, bem como a caravela foi um símbolo para o Renascimento das grandes navegações, a era pósindustrial tem no computador o ícone das tecnologias de informação e comunicação (TIC). As TICs caracterizam-se por acelerar a velocidade do homem no espaço e no tempo, dotando-o

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da simultaneidade das imagens e dos simulacros que preenchem os vazios de suas distâncias e o peso de suas aproximações. Encaminham a humanidade rumo à ubiquidade. Diferentemente do aventureiro renascentista, o viajante pós-histórico navega o vazio zerodimensional sem sair do lugar, ancorado no movimentado porto de sua vertiginosa imobilidade. Trata-se de um viajante solitário: também ele é um ponto desgarrado dos fios históricos que articulavam memórias e sentidos para os grupos sociais e os eventos. Mas esse viajante solitário é cosmopolita. Instalado na solidão e imobilidade de seu porto, ele comunica-se com viajantes igualmente imóveis e solitários, instalados em portos outros, localizados nas mais diversas coordenadas de uma geografia intangível. A sociedade póshistórica é formada por uma massa de (in)divíduos solitários interligados, no mundo inteiro, por meio das redes não lineares geradas pelos aparelhos e seus programas. Flusser (2008) chama a atenção para o fato de que a atual revolução cultural iniciouse em meados do século XIX, a partir de duas tendências distintas. A primeira tinha em vista a computação de elementos pontuais sobre superfícies; era o embrião daquilo que recebeu a denominação de informática. A segunda tendência visava irradiar os elementos pontuais, o que veio a constituir a telecomunicação. Nas bases de ambas encontram-se a fotografia e o telégrafo, que surgiram simultaneamente, na tentativa de programar e irradiar elementos pontuais. A telemática é a articulação das duas tendências: a de computar e irradiar elementos pontuais radialmente. É desse modo que se tecem fios para religar, dialogicamente, todos os (in)divíduos isolados, os novos navegantes que singram o vácuo. No entanto, esses fios são controlados por feixes irradiadores. Se é fato que, na pós-história, todos podem livremente dialogar com todos, também se deve ter em conta que as informações irradiadas para alimentar os diálogos são armazenadas em memórias comuns universais. De modo que as informações circulantes tem a mesma origem, tornando-se redundantes. A redundância esvazia os diálogos da possibilidade efetiva de criação. Nesses termos, o autor reclama a necessidade de se abrir brechas no interior das redes telemáticas, nas quais se possam constituir comunidades efetivamente dialogais, capazes de fazer com que equipamentos e programas funcionem em função dos projetos humanos, e não o contrário. Essa seria a condição para que os jogadores pós-históricos, usuários das redes telemáticas, pudessem deflagrar processos capazes de ampliar as possibilidades de se conceber e imaginar o mundo.

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Se a sociedade contemporânea é dispersa, se os (in)divíduos encontram-se dispersos, e a possibilidade de ligação entre eles é viabilizada pelas imagens técnicas, ocorre que, em sua maioria, os usuários são funcionários dos aparelhos e dos programas, na medida em que suas ações são programadas pelos aparelhos e programas, e não o contrário. Por exemplo: aparentemente a máquina fotográfica faz o que o fotógrafo quer que faça, mas “o fotógrafo pode apenas querer o que o aparelho pode fazer” (2008, p. 27). Dessa maneira, não apenas o gesto, mas a própria intenção do fotógrafo é programada. De alguma forma, todas as imagens produzidas pelo fotógrafo integram as probabilidades antevistas por quem tenha calculado o programa do seu equipamento. Ou seja, são imagens previsíveis, prováveis dentro do universo do jogo. O mesmo vale, além das máquinas fotográficas, analógicas ou digitais, para toda a parafernália de equipamentos disponíveis nas prateleiras das lojas para uma população cada vez mais deslumbrada com as possibilidades tecnológicas oferecidas. Com eles, podem registrar eventos festivos, momentos especiais, bem como trivialidades de seus quotidianos, para em seguida compartilhar com amigos e familiares por meio de redes sociais da rede mundial de computadores, onde também podem acessar arquivos os mais diversos disponíveis para os usuários, participar de jogos em rede, transitar por ambientes virtuais, personalizar ambiências, criar personagens, projetar identidades, forjar visões de mundo... Para tanto, fotógrafos e demais produtores de imagens dispõem de teclas que, acionadas, provocam processos no interior dos aparelhos, e as imagens que imaginaram são realizadas automaticamente. No entanto, embora em fluxos cada vez mais intensos numérica e qualitativamente, tais imagens estão restritas àquelas que os aparelhos lhes permitem imaginar, de acordo com o repertório do jogo, que embora se amplie de modo impressionante, não é infinito. Em geral, os produtores de imagens não tem uma compreensão profunda daquilo que fazem, ou dos processos envolvidos naquilo que fazem. Ora, a preocupação com uma compreensão mais profunda do que se faça denuncia resquícios do pensamento histórico, quando era necessário ter-se conhecimento e domínio de todas as etapas e processos na produção da cultura. Na pós-história, os jogadores não precisam de tal visão profunda. Ao contrário. Eles podem desprezar os processos que ordenam pontos em imagens, delegando essa função aos aparelhos, que fazem tudo automaticamente. Aos jogadores cabe imaginar as imagens e acionar os aparelhos,

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determinando que as produzam... certos de que os dominam, e que suas intenções tem autonomia em relação a eles. Portanto, uma das características das transformações culturais em curso está no fato de que os jogadores ignoram o interior dos aparelhos, das “caixas pretas” que manejam. É nesse sentido que se tornam funcionários dos aparelhos, agindo em função deles. Nesse contexto, as aprendizagens possíveis são substituídas por programações dos usuários. Programações em lugar de aprendizagens. Para Flusser, é preciso utilizar os aparelhos contra os seus programas, para se superar a condição de funcionários dos aparelhos, colocando-os a serviço do projeto humano. E, provavelmente, a única forma de fazê-lo seja revelando o seu funcionamento, explicitando os seus programas. O deciframento das imagens técnicas é condição para que se possa alçar à posição efetiva criadores de imagens, e produtores de sentidos. Essa é uma tarefa desafiadora, pois as imagens técnicas sugerem ser superfícies que significam cenas, como as imagens tradicionais. “Elas ocultam os cálculos e a codificação que se processaram no interior dos aparelhos que as produziram” (2008, p. 29). O primeiro passo para o exercício de uma crítica das imagens técnicas é desocultar os seus programas. Inicialmente, a observação aligeirada de uma imagem técnica mostra planos, superfícies bidimensionais, que significam cenas. Por exemplo, um dos argumentos recorrentemente utilizados em defesa da televisão digital evoca o grau de nitidez obtido na imagem, que permite ao espectador observar até mesmo detalhes da pele de artistas, jornalistas, e demais personagens que possam transitar diante das câmeras. Superando, em muito, a baixa qualidade das transmissões analógicas. No entanto, a observação cuidadosa dessas imagens transmitidas, bem como das fotografias digitais, permite constatar os pequeninos pontos de que são formadas, aos quais são reduzidas. Do mesmo modo que uma fotografia analógica tem suas imagens formadas por pequenos grãos. São os grãos, pixels, pontos que se organizam em planos a formar imagens no écran dos aparelhos de televisão, dos monitores de computadores, e de outras mídias. Ou seja: à visada aligeirada, as imagens técnicas parecem planos, mas se dissolvem em grãos e pontos quando observadas em profundidade. A questão está na distância entre a imagem e o espectador. Superficialmente, mostram-se como cenas; para o olhar mais próximo, revelam-se partículas atomizadas, “rastros de processos eletromagnéticos ou químicos em ambientes sensíveis” (2008, p. 39).

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Na capacidade de olhar o universo pontual desde distâncias superficiais, para tornálo concreto e atribuir-lhe sentido (esta, uma questão de vida ou morte), configura-se a consciência pós-histórica, que precisa de aparelhos para imaginar, e para a qual a visão profunda revela banalidade, fragmentação e, portanto, ausência de sentido. A ventura só pode ser encontrada na visão superficial, onde pulsam a beleza e a sedução. Configura-se equivocada, assim, a análise das imagens técnicas que dirige sua atenção para as cenas que supõem mostrar. Não é descrevendo ou dissecando os elementos visuais compositivos de uma paisagem ou evento fotografados, ou ainda da construção projetada virtualmente, que torna possível compreender o significado dessas imagens. O seu sentido não está naquilo que elas pretendam mostrar ao espectador, mas na direção para a qual apontam. Nesses termos, as metodologias usualmente adotadas por historiadores da arte e outros críticos e estudiosos, fundadas no modus operandi do pensamento histórico, para analisar e catalogar pinturas, painéis, esculturas, desenhos, e outras produções imagéticas tradicionais, mostram-se incapazes de decifrar fotografias, filmes, hologramas, e demais miríades de imagens codificadas por programas que circulam pelas vias das sociedades contemporâneas. Não são competentes para compreendê-las em sua especificidade e natureza, tampouco nas visões de mundo que forjam e articulam. Acabam por enredar-se naquilo que as imagens técnicas pretendem, imaginam ser, deixando de considerar o fato de que elas não são espelhos, mas projeções de pequenas partículas que apontam sentidos, de dentro para fora, desde os programas que as codificam. Afinal, as imagens técnicas significam programas: suas projeções partem de programas e visam seus receptores. Assim, de alguma forma, o seu significado é uma espécie de imperativo que aponta caminhos a serem seguidos: As imagens técnicas significam programas inscritos nos aparelhos produtores e manejados por imaginadores, eles também “programados” para manejá-los. Por detrás de todos estes programas co-implicados e conflitivos reside a intenção de conferir significado a um universo absurdo, de dar sentido a uma vida em universo absurdo. (Flusser, 2008, p. 54).

Para não vivermos cegamente em função das imagens técnicas, é preciso que decifremos o que tais imperativos significam, que descubramos os seus programas. Oscilando do entusiasmo ao gesto que adverte frente às transformações em curso, Flusser contrapõe dialeticamente duas faces dos cenários prováveis que se anunciam em horizontes cada vez mais abstratos. Numa, a cultura desabaria no abismo entrópico do tédio,

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do totalitarismo massificante, tão logo se esgotem os repertórios do jogo em pauta. Na outra, a sociedade pós-histórica propiciaria, por meio das redes telemáticas e dos diálogos criativos estabelecidos, o processo de recriação de si mesma. Nesse contexto, todos seriam artistas, não conforme a concepção da consciência histórica, mas no sentido de que o homo ludens poderia efetivamente criar informação num universo inebriante de imagens. Porquanto o percurso da cultura seja marcadamente não-linear, diversos são os olhares que se encontram e se cruzam, e muitos são os espaços ainda não tomados pela consciência pós-histórica emergente, nem pelas redes telemáticas que se pretendem onipresentes. E, recorrentemente, sobrepõem-se urgências distintas de projetos divergentes, gerando surpresas e tensões, sinalizando possibilidades efetivamente criativas e instigantes num ambiente plural de expressões. Recentemente, num atelier, pude testemunhar um desses momentos. Estudantes do curso de Artes Visuais organizaram uma exposição com seus trabalhos, que incluíam objetos, painéis, desenhos, móbiles, instalações, além de vídeos e fotografias. Ou seja, traziam ao público imagens que envolviam diferentes níveis de formulação e abstração: tri, bi e zerodimensionais. Na abertura, foram surpreendidos por um grupo numeroso de estudantes do ensino fundamental, em excursão ao campus universitário, onde se localizava o atelier. Os adolescentes percorreram rapidamente o espaço, fotografando os trabalhos com câmeras digitais e aparelhos celulares, retirando-se em seguida, para dar sequência ao seu passeio. O que tenham apreendido da exposição, o fizeram não na relação direta com o ambiente, mas por meio dos visores de suas câmeras. A pergunta que deve ser feita a esse respeito é: em que medida seria o seu propósito ver a exposição? Em caso afirmativo, ver como? Ou aquele ambiente contingencial não passaria de mero acidente a partir do qual poderiam usar seus aparelhos para imaginar imagens, essa, sim, sua efetiva motivação?... Provavelmente, mais tarde, atracados na imobilidade de seus portos de navegação, esses jogadores tenham retomado as fotografias, “descarregando-as” em seus equipamentos de informática. Talvez, acionando suas ferramentas computacionais por meio de teclas, as tenham modificado, imprimindo suas preferências, conforme permitido pelos programas disponíveis. Para, então, inseri-las em ambientes virtuais, páginas pessoais das redes telemáticas, podendo compartilhá-las com outros jogadores-navegantes pós-históricos, igualmente imaginadores de imagens programadas...

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Devo confessar que, por ocasião da abertura da exposição, eu também portava minha câmera digital de fotografia. Ante a visita inesperada dos adolescentes, assumi a atitude de caçador atribuída por Flusser (2002) a quem fotografa, colocando-me na espreita, na busca de capturá-los enquanto realizavam suas fotos. Depois, também “descarreguei” minhas fotografias no computador pessoal, para refletir, a partir delas, sobre o ocorrido. Supondo retornar ao universo dos conceitos unidimensionais da escrita, recorri a algumas leituras, e comecei a produzir este texto. Para tanto, transitei entre rascunhos manuscritos e o programa que edita textos no computador, cujo funcionamento eu viabilizo acionando teclas com as pontas dos meus dedos. O produto final, que apresento aqui, lido como se texto fora, é, de fato, imagem técnica que se imagina texto, e cujo projeto é nos fazer acreditar nisso... Essa é a ventura do testemunho de um devir, ou um vir-a-ser-sendo, que ainda não sabemos ao certo... Um tempo em que o mundo carece de sentido, e por isso precisa ser (re)configurado a partir dos mosaicos sempre impermanentes de pontos sem dimensão que se movem como cardumes, revoadas, enxames, para constituir aparências de imagenssuperfícies, no árduo esforço de retorno ao concreto.

Bibliografia FLUSSER, Vilém. Jogos. Suplemento Literário OESP, 1967. Acesso em 21 jan. 2009.

Disp.

em

____. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. ____. O universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2008. VOGT, Carlos. A longa marcha para a imobilidade. ComCiência: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico. nº 107. Disp. em Acesso em 14 abr. 2009.

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