Imaginar: Pensar (a Performance) com imagens em tempos de registros

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Imaginar: Pensar (a Performance) com imagens em tempos de registros1 Santiago Cao2

Palavras-chave: imaginar, performance, saVer, espaço público, registro fotográfico, rostidade, corpo sem rosto, produção de realidade, produção de cidade.

Se nada tivesse começo nem fim, se o tempo todo estivéssemos no meio, no entre de uma contiguidade3 de afetos e de produções de subjetividades, teria sentido falar da realidade como algo contínuo, linear e dado, único e comum a todas as pessoas? Talvez seja mais adequado falar de uma multiplicidade de realidades minúsculas, singulares e descontínuas dos viventes que as imaginamos e as produzimos. Ou, melhor dizendo – se imaginar fosse pensar com imagens – uma multiplicidade de realidades singulares, imaginadas coletivamente. E se fosse assim, ao pensar, estaríamos fazendo-o através de qual imaginário?

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Ensaio publicado originalmente na edición n° IV da revista argentina “De Poéticas Corporales”, agosto de 2014. Disponível em: 2

Santiago Cao (Buenos Aires, Argentina, 1974). Atualmente é Mestrando em Arquitetura e Urbanismo na linha de Pesquisa “Processos Urbanos Contemporâneos”, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG-AU) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Brasil. Possui Graduação em Artes Visuais pelo Instituto Universitário Nacional da Arte (IUNA) de Buenos Aires, Argentina. Cursou também o bacharelado em Psicologia e possui experiência em poesia, teatro de rua e clown. Suas pesquisas se baseiam em torno dos Corpos nos Espaços Públicos, dos micropoderes que neles se ativam, e alguns possíveis modos de gerar (trans)Versões da Realidade através da Performance, as Intervenções Urbanas e de estudos filosóficos. Mais informações, textos escritos e registros de ações: www.facebook.com/cao.santiago http://issuu.com/santiago_cao http://es.scribd.com/santiago_cao 3

Somos construção descontinua, pois transitamos por líneas de produção de subjetividades conformadas por fragmentos contíguos de afetos. Contiguidade, se pensarmos que a línea – segundo o proposto por Kandinsky (2003) – esta conformada pela sucessão de pontos em movimento; e entre ponto e ponto há espaços entre que abrem à possibilidade de realizar saltos para outras líneas. Vai ser na distância onde estes pontos vão poder ser vistos unicamente como línea continua, mas se nos aproximamos um pouco, não só começaremos a ver estes pontos como também os espaços entre eles. E aproximando-nos ainda mais um pouco, iremos ver os espaços d(en)tro dos pontos mesmos. O espaço esta presente como medida da diferenciação do um e do outro, mas também como diferenciação do que se pretende idêntico a sim mesmo.

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Se pensarmos o Imaginário desde a teoria do Estádio do Espelho proposta por Lacan (2005), este se funda no pensar com imagens e é, por sua vez, um dos fatores fundacionais do Eu. Será durante este Estádio, que o sujeito começará a identificar sua imagem se diferenciando do Outro. Mas, paradoxalmente, para poder se diferenciar, tem de primeiro alienar-se já que o designado como “Eu” é formado através do que é o Outro, isto é, mediante a imagem que -como num espelho- lhe dá o outro. Construímos uma imagem de nós mesmos, baseada em como os outros nos veem. Isto é, (nos) vemos através dos outros; nos (entre)vemos. A questão aqui, então, não será apenas “como” os outros nos veem, mas também “de onde” nos (entre)veem. Ou, dito de outro modo, "Se eu sou você, você quem eu sou?". Mas não só somos vistos; também vemos e ao ver, criamos, pois além de captar os estímulos visuais, lhes damos significação. Damos-lhes forma conhecida baseando-nos nos saberes pré-vios que nos (in)formaram. E esta capacidade de Ver, de significar, de querer encontrar os signos que nos remetam ao que achamos que “aquilo é”, será um caráter claramente criativo que vai operar “sobre” a coisa. Não “em” a coisa senão “por sobre”, como uma camada que lhe cobrirá. Uma camada de saberes; ou seria mais adequado nomeá-la como uma camada de saVeres? Mas estes saberes não são moldes fixos e o tempo tudo iremos atualizando-os, pudendo adaptá-los a novas formas mais eficientes segundo as exigências de cada momento. Atualização que será possível graças à capacidade de afetar e ser afetado (SPINOZA) que possuímos ao nos relacionar com o mundo. E este jogo mediado entre o que sei – a capacidade de adaptar o mundo aos conceitos – e o que este mundo em sua capacidade de afecção me exige como modo de adaptação ao mesmo, terá como função dar forma conhecida ao que nos for a(pre)sentado. Uma forma em contigua transformação. E é esta capacidade – a capacidade de (sa)Ver – o que estou chamando de “produção de realidade”. E se fosse assim, como operariam em nossas produções de realidade as imagens que a diário nos chegam e que também a diário nós emitimos? Se a realidade é coisa de todos e por todos produzida, teria sentido pensa-la – imageticamente – como coisa de poucos e sendo construída – midiaticamente – por poucos?

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Se pensarmos que os sujeitos – segundo o proposto por Agamben (2009) – são frutos do encontro entre os dispositivos4 e os seres viventes, produzindo-se subjetivações como resultados destes encontros, os espaços públicos serão alguns dos lugares onde estas subjetivações vão se evidenciar nos limites conferidos pelas permissões e denegações dos dispositivos aos viventes. Sendo assim, podemos pensar as Performances e Intervenções Urbanas como ferramentas para alterar estas subjetivações, ou seja, como dispositivos de produção de realidade, cujo campo de ação é o entre deles. Se imaginar é pensar com imagens, como poder – utilizando nossos Corpos como suporte – potenciar nos espaços públicos o encontro de outras produções de subjetividade com a intenção de propiciar (trans)versões da realidade diferentes à promulgada pelos meios massivos de comunicação, sem se tornar esta versão em uma nova Realidade a instaurar? Como fazer para que o que se instaure seja a pergunta numa sociedade cada vez mais atravessada pelas respostas? Ou, melhor dizendo, o hábito de perguntar(nos), para que depois seja cada um o próprio produtor de respostas móveis. Como, desde o Corpo em ação, podemos construir(nos) e propiciar um pensamento migrante numa sociedade que procura continuamente estabeleser-se? Nesse sentido poderíamos pensar – conversando com alguns dos conceitos propostos por Deleuze e Guattari – em uma (des)organização rizomática do conhecimento como um método para exercer resistências a um modelo social estruturalmente hierárquico e opressivo com as diferentes formas de vida. Utilizando a Performance e as intervenções urbanas como ferramentas para este fim (e não com a finalidade de produzir obras de arte nos espaços públicos), temos que gerar nestes espaços, situações que causem im-previstos, acontecimentos que desloquem os sujeitos de seu trânsito cotidiano. Situações essas que não podem ser explicadas tão facilmente, que ante a falta de respostas esclarecedoras por parte de quem aciona, gerem um vazio de explicações em quem observam. E, se denominar é fixar as 4

Chamaremos de dispositivo, segundo o proposto por Agamben, a “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, (...) a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos” (AGAMBEN, 2009, pp. 40-41).

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coisas dentro dos limites da Realidade, gerar deslocamento por fora do sabido poderia ser uma tática (CERTEAU) para expandir as coisas por fora destes limites, para o campo do Possível. «Denominar» é uma palavra-verbo, mas «d(en)ominar» além de ser verbo é uma ação. E se d(en)ominar é dominar em, qual é o espaço entre a Palavra e a Ação? Quando denomino uma coisa, por exemplo, uma cadeira, a domino em sua forma de “cadeira”, mas ao d(en)ominá-la também me d(en)omino. Se esta cadeira está ali para me sentar, quem sou eu? Sou quem se senta na cadeira. Domino-a e domino-me numa relação de funções limitadas. Não poderá ser – entre outras possibilidades – alimento e, portanto, não serei eu quem a coma. Pelo menos não dentro dos modos e permissões concordados socialmente pelo conjunto de normas e códigos da sociedade na qual me relaciono. Mas basta que realize um movimento qualitativo para modificar sua potência e expandi-la a outros modos de (entre)vê-la. (CAO, 2013, pp. 21-22)

Se imaginar fosse pensar com imagens, então se faz necessário pensar – pelo menos um pouco – com imagens não tão conhecidas. E desde a Performance nos espaços públicos podemos potenciar um pensamento deste tipo. Para tanto, temos que gerar propostas que olhadas rapidamente, possuam uma forma suficientemente parecida com aqueles saberes para ativá-los, mas ao mesmo tempo o suficientemente diferente daqueles para – num olhar mais profundo – gerar estranhamento nos sujeitos. Proponho, então, pensar a Performance como um Corpo Sem Rosto (CsR) que tenha como possibilidade o ser depositário de múltiplos rostos em contiguo deslocamento frente aos saVeres das pessoas que a observam. A Performance, sim, mas como uma ferramenta para desorganizar este Corpo social a partir dos seus próprios saberes. (…) “meus olhos não me servem para nada, pois só me remetem à imagem do conhecido. Meu corpo inteiro deve se tornar raio perpétuo de luz, movendo-se a uma velocidade sempre maior, sem descanso, sem volta, sem fraqueza (...) Selo então meus ouvidos, meus olhos, meus lábios". CsO. Sim, o rosto tem um grande porvir, com a 4

condição de ser destruído, desfeito. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 33)

Mas, sendo que a atual tendência a trabalhar com Performance em suporte fotográfico ou vídeo (como também a registrá-la nestes formatos) implica um deslocamento do corporal para o bidimensional, e sendo que nos primórdios a Performance foi apresentada como uma alternativa não-objetual, efémera e mão mercantilista, teria sentido pensar na possibilidade de um CsR quando o que ali esta faltando é precisamente o Corpo? É possível que o que é apresentado como registro da Performance seja aquele Rosto que deslocou ao Corpo? Aquele “muro branco” do qual falaram Deleuze e Guattari? O suporte fotográfico, entendido como suporte, sim, mas das significações que os observadores projetaram sobre ele, se baseando nos seus saVeres. A fotografia como um rosto, ou melhor dizendo, como a rostidade da Performance já ausente de Corpo. Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de freqüência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes. Do mesmo modo, a forma da subjetividade, consciência ou paixão, permaneceria absolutamente vazia se os rostos não formassem lugares de ressonância que selecionam o real mental ou sentido, tornando-o antecipadamente conforme a uma realidade dominante. O rosto é, ele mesmo, redundância. E faz ele mesmo redundância com as redundâncias de significância ou freqüência, e também com as de ressonância ou de subjetividade. O rosto constrói o muro do qual o significante necessita para ricochetear, constitui o muro do significante, o quadro ou a tela. O rosto escava o buraco de que a subjetivação necessita para atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, a câmera, o terceiro olho. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 29)

E sendo que a Performance é apresentada como uma arte corporal, se já não há um Corpo, podemos ainda continuar pretendendo que aquele registro seja “o que esta em lugar de”? Talvez seja necessário deixar de pensa-lo como re-apresentação ou cita do acontecido para começar a entende-lo como um deslocamento que se tornou

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presença em sim mesmo, ocupando – como um rosto – o lugar daquilo já ausente. O registro, então, como aquilo que refere a sim mesmo e não ao acontecido. Séculos e séculos foram necessários para que hoje possamos reconhecer um rosto entre as manchas impressas sobre um suporte bidimensional. A Mona Lisa, por exemplo, antes do que ser uma reapresentação de um rosto é um território fundado que se atualiza em milésimas de segundo no olho de um espetador educado nesse território. É um território fundado em e sobre esse olho. Não há autor, no sentido de fazedor. Autor é quem faze, cria conceitos ou transforma a matéria, mas também autor é todo o dispositivo que segura o que é criado como arte. Mas também o observado é co-criador desta obra. Graças a sua capacidade de afetar e de ser afetado, ele também funda desde os seus saberes-sabidos o seu próprio território sobre aquele objeto. E entre ambos, autor e observador, há um vazio assustador, um espaço em contigua transformação e refundação, como também há um espaço vazio entre dois imãs de um mesmo polo quando se tenta uni-los pela força. Esse espaço entre é a “obra de arte”, o resultado nunca acabado de esse encontro entro o autor e o observador (e não entre o artista e o publico).

Atualidade da Performance e lugar do Corpo numa Arte do Registro Pensar a Performance, hoje, implica adentrar-nos numa outra complexidade, diferente – talvez maior – do que fosse nos seus inicios. Em geral, a arte de ação ou a Performance surgiram na procura da desmaterialização da obra de arte, onde o Corpo era utilizado como suporte de uma obra não-objetual e cuja temporalidade efémera deslocava à visão como sentido privilegiado, se expandindo aos outros sentidos que durante séculos foram negados na Pintura Ocidental. Hoje em dia, a tendência internacional em Performance ou Arte de Ação (na qual Latino-América não é a exceção) parecera indicar novos caminhos e modos de fazer. Cada vez são mais os Festivais de Performance que trabalham em espaços de Galeria ou Museus com propostas de não mais de minutos de duração e onde o registro tem um lugar não só fundamental como também prioritário. As chamadas Redes Sociais como o Facebook, tem um papel fundamental, não só na divulgação como também na 6

visibilidade e legitimação desses registros. É cada vez maior a quantidade de pessoas que observam as fotos e vídeos ali publicados, em comparação com as que observam as Performances de Corpo presente. Dentro deste contexto atual – deslocado pelos distintos tipos de registros e pelos meios de divulgação dos mesmos – já não é possível pensar ao Corpo obra e ainda menos como suporte da mesma. Na nossa contemporaneidade, é a imagem – resultado de um complexo tecido que inclui tanto ao performer como ao fotografo ou ao videomaker – quem possui o status de obra. Se a intervenção coletiva “El Siluetazo” deixava em evidencia uma dupla ausência5 (da pessoa seqüestrada e desaparecida pela ditadura militar em Argentina – da qual faz referência a silhueta – e a da pessoa que “emprestou” seu corpo para que dita silhueta seja traçada através do seu contorno), a atualidade da maioria das propostas de Performance deixa também em evidência uma outra dupla ausência: a do Corpo em presença – deslocado pelo Corpo em registro –, e a do acontecimento, agora deslocado pelo instante diferido no qual cada espetador observa estes registros. Se imaginar fosse pensar com imagens, qual estaria sendo o papel do registro numa arte que se pensa como corporal, mas se divulga como visual? Quais funções estaria cumprindo o registro em relação à capacidade de imaginar que possuímos, quando nosso campo de visão esta mediado pelo mesmo? E a partir daí, quais funções esta cumprindo o registro sendo formador condicionante de pensamentos num publico que cada vez mais tende a se relacionar com a obra registrada e não com a obra in situ? Ou talvez seja que estamos falando de distintos tipos de obras e não só de distintas temporalidades? E se assim fosse, qual estaria sendo o papel da Performance numa arte que se teoriza como corporal, mas se divulga como visual?

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“Dupla Ausência”, entendendo-a como propõem Longoni e Bruzzone ao definir a silhueta como “o rastro de dois corpos ausentes, do quem emprestou seu corpo para desenhá-la e – por transferência – o corpo de um desaparecido” (Longoni; Bruzzone, 2008, p.32). Tradução nossa do texto original em espanhol: “la huella de dos cuerpos ausentes, el de quien prestó su cuerpo para delinearla y –por transferencia– el cuerpo de un desaparecido”.

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Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Ed. Argos, 2009. CAO, Santiago. D(en)ominar. (Des)cobrir. Esquecer. (2013). In: Peixoto, Zm, Boaretto, R y Felix Carvalho, D (Org), Catálogo Festival MOLA (pp. 21-26). Salvador, 2014. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes do Fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1998. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. ______. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. FERNÁNDEZ ALBORNOZ, Katherine. Metáforas de Carne para saVer. La Performance en Santiago Cao. In: Revista Lindes nº7. Buenos Aires, noviembre 2013. Disponível em: (acesso em 26 de setembro 2014) FOUCAULT, Michel. Las palabras y las cosas: Una arqueología de las ciencias humanas. Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 2008. KANDINSKY, Vasili. Punto y línea sobre el plano. Buenos Aires: Paidós, 2003. LACAN, Jacques. Escritos I. Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 2005. LONGONI, Ana & BRUZZONE, Gustavo (Compiladores). El Siluetazo. Buenos Aires: Ed. Adriana Hidalgo, 2008. SPINOZA, Baruch. Ética. São Paulo: Brasiliense, 2008.

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