Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

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Descrição do Produto

VALDECI REZENDE BORGES

IMAGINÁRIO FAMILIAR: HISTÓRIA DA FAMÍLIA, DO COTIDIANO E DA VIDA PRIVADA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS

Uberlândia-MG ASPPECTUS/FUNAPE 2007

Copyright© by Valdeci Rezende Borges Revisão: Ione Mercedes M. Vieira Arte da capa, diagramação e arte final: Cacildo Ferreira Capa: José Ferraz de Almeida Júnior – (Cena de Família de Adolfo A. Pinto) 1891 Óleo sobre tela 106 x 137 cm Pinacoteca do Estado de São Paulo Impressão: Gráfica São João - Av. 20 de Agosto, 1239 Centro - Catalão/GO - E-mail: [email protected] Conselho Editorial: Dr. Amalio Pinheiro Dra. Kênia Maria de Almeida Pereira Dr. Luiz Humberto Martins Arantes Dra. Regma Maria dos Santos Dra. Vanda Cunha Albieri Nery FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada no Dep. de Catalogação da Biblioteca da UFG/CAC

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Borges, Valdeci Rezende Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis / Valdeci Rezende Borges – Uberlândia: Asppectus, 2007. 218p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-88025-10-3 1. História. 2. Literatura. 3. Imaginário. 4. Família. 5. Cotidiano - Atitudes Sociais. 6. Vida Privada - Moral. 7. Machado de Assis. 8. Rio de Janeiro Século XIX. CDU: 930.2:82 2007 Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão penalizados na forma da lei. ASPPECTUS Av. das Gameleiras 1533 – Uberlândia – MG CEP: 38413-097 – Tel: (34) 3217 4115

“... Mais deixai pingar os anos na cuba de um século. Cheio o século, passa o livro a documento histórico, psicológico, anedótico. Hão de lê-lo a frio; estudar-se-á nele a vida íntima do nosso tempo, a maneira de amar, a de compor os ministérios e deitá-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que se faziam eleições e galanteios, se eram usados xales ou capas, que veículos tínhamos, se os relógios eram trazidos à direita ou à esquerda, e multidão de coisas interessantes para nossa história pública e íntima.” (Machado de Assis, Eterno!)

AGRADECIMENTOS Agradeço a Elias Thomé Saliba pela orientação da dissertação de mestrado realizada na PUC/SP, da qual originou este livro: “Atitudes e Moral Familiar no Imaginário Social Carioca: uma leitura de Machado de Assis”. Aos membros da banca examinadora Estefânia K. Canguçu Fraga e Maria Inez Machado Borges Pinto. Aos amigos Abílio Tavares, Luiz Humberto Garcia Oliveira, Luiz Humberto Zacharias, Helena de Freitas, Lucinete M. Araújo e Ildeu Vieira Moura (+). Aos alunos do curso de graduação em História da Universidade Federal de Goiás, Campus de Catalão, que, nas disciplinas que ministrei, foram leitores de partes deste texto e contribuíram com seus questionamentos para seu adensamento. Aos membros dos conselhos editoriais de revistas como Hiistória & Perspectivas, Caderno Espaço Feminino, Linguagem – estudos e pesquisas e Artcultura, que possibilitaram a publicação de uma primeira versão de alguns capítulos deste trabalho, os quais foram revistos e ampliados e novamente reunidos. Especialmente à Regma Maria dos Santos e Luiz Humberto Martins Arantes, companheiros no empreendimento quixotesco de criar condições para publicar textos acadêmicos fora do esquema das grandes editoras comerciais centradas no eixo Rio-São Paulo. À minha família, Jovêta Rezende Borges, Antônio Lourenço Borges, Almir Rezende Borges (+) e Valdir Rezende Borges. À Ione Mercedes M. Vieira, pela revisão do texto e pelo apoio e incentivo constantes ao longo dos anos. À CAPES, pela bolsa de estudos para realização do mestrado e à FUNAPE/UFG, pela possibilidade de publicação desta pesquisa.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09 INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 CAPÍTULO I: VIDA PRIVADA: PRIVACIDADE, INTIMIDADE E INDIVIDUALIDADE NO ACONCHEGO DO LAR . . 1. No Novo Espaço Doméstico: a Privacidade . . . . . . . . . . . . 2. O Quarto de Dormir: Intimidade e Individualidade. . . . . . 3. No Conforto e no Aconchego do Lar . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. Quando o Espaço Privado Abre-se ao Mundo Exterior . . CAPÍTULO II: NAS TRAMAS COTIDIANAS DOS PODERES FAMILIARES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. Ao Redor da Família: Escravos, Libertos e Senhores . . . . . 2. Outros Círculos Externos de Relações Familiares: Agregados, Amigos e Vizinhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. O Núcleo Central e os Círculos dos Parentes . . . . . . . . . . .

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CAPÍTULO III: O CASAMENTO NO IMAGINÁRIO SOCIAL . . . . . . 105 1.“Na Escolha de um Consorte”: “Casar com Igual” . . . . . . 106 2. Honra e Fama da Escolhida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 3. Rumo às Bodas: dos Pedidos e Contratos Antenupciais às Promessas Quebradas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118 4. Da Celebração e da Lua-de-Mel aos Impedimentos do Matrimônio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 5. Do que é o Casamento à Vida Conjugal . . . . . . . . . . . . . . 125 6 A Honra da Mulher Casada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 7. Os Problemas Conjugais e o Adultério . . . . . . . . . . . . . . . 136 8 A Dissolução da Forma Conjugal: da Separação à Viuvez 142

CAPÍTULO IV: IMAGENS DA INFÂNCIA FLUMINENSE OITOCENTISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. Pais e Filhos: Afeto e Ternura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. A Gravidez: uma “Benção”, um “Sonho”? . . . . . . . . . . . . 3. A Criação: os “Babies” por Entre Mães e Amas . . . . . . . 4. A Educação: das “Primeiras Letras” à Escolarização . . . . 5. Mortalidade Infantil e a Criança Abandonada . . . . . . . . . . 6. Crianças Escravas e Crianças Pobres . . . . . . . . . . . . . . . . .

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CAPÍTULO V: À MARGEM DO CASAMENTO E DA FAMÍLIA NUCLEAR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. Concubinatos: Vivendo Uniões Ilegítimas . . . . . . . . . . . . . 2. Solitários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Solteironas: Humilhações e Lágrimas . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. Celibatários: o Celibato era uma Remora? . . . . . . . . . . . . . 5. Libertinos: Vidas a Rédeas Soltas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6. Mulheres Perdidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206 FONTES E BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210

APRESENTAÇÃO Este trabalho insere-se na encruzilhada de variadas tendências de pesquisa que se têm firmado na historiografia brasileira nas últimas décadas. Foi a partir do decênio de 1980 que muitas investigações sobre a família brasileira surgiram no cenário acadêmico e editorial, renovando e adensando os questionamentos a seu respeito. Foi também nesse mesmo marco temporal, sobretudo, dos fins dos anos 1980 para cá, que a relação entre História e Literatura passou a ser explorada de forma sistemática e mostrar bons frutos, considerando a perspectiva interdisciplinar e de renovação das fontes documentais, tão defendida pelos representantes da nova história e levada a cabo pelos simpatizantes da nova história cultural. Nesse mesmo contexto, os estudos sobre o cotidiano e a vida privada avançaram sobre áreas antes ocupadas pela primazia das histórias econômica e política, que davam atenção às questões relacionadas às grandes estruturas sociais e à dimensão pública de sua existência. Foi ainda nas trilhas abertas pelos Annales que o cotidiano e os problemas ligados à esfera do íntimo ganharam lugar de destaque na produção do conhecimento histórico recente, que aborda a sociedade num viés cultural, investigando as representações para desvelar práticas culturais múltiplas, sentimentos, comportamentos, valores e significados atribuídos pelos homens a suas experiências. Se o mundo mudava, as velhas crenças e ideologias foram para o chão, a História também mudou. É representativa desse movimento e dinâmica a ascensão da chamada nova história cultural, marcada pela perspectiva de deslocamento da atenção e do olhar dos historiadores, e de outros cientistas sociais, de questões e temas considerados centrais para aqueles vistos como periféricos. Nesse processo, o imaginário, isto é, as imagens e a imaginação, o cotidiano e a esfera privada, as subjetividades, os sentimentos e os comportamentos, os valores e as atitudes, as práticas e as experiências culturais, fossem da elite ou do povo, informais ou letradas, dentre outras facetas, conquistaram espaços nas

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preocupações e produções intelectuais. Este texto que aqui apresentamos é produto dessas transformações, que buscavam construir uma história diferente daquela que era hegemônica até então. Portanto, nosso objeto de investigação é a vida privada e familiar, o imaginário sobre a qual é construído, tanto como o conjunto múltiplo de imagens elaboradas quanto como a imaginação sobre tudo, que abarca as experiências cotidianas, objetivas e subjetivas, tendo a obra literária de Machado de Assis e suas representações como suporte documental.1 Nessas fontes, procuramos perceber como constituía o imaginário social ao redor do universo da família e de seus membros, ou seja, que imagens e representações o texto machadiano oferece e estabelecem os contornos da existência dessa instituição na segunda metade do século XIX. Assim, têm lugar, neste estudo, problemas relativos à experiência da privacidade, da intimidade e individualidade, das práticas sociais mediadas pelo favor, de outras facetas do exercício dos poderes, das relações centradas no casamento e na infância, assim como daquelas que se davam na periferia da existência dos grupos familiares.

1 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obras completas. São Paulo: W.M. Jackson inc. editores, 1955-1959. (OC). Recorre-se ainda a textos de Machado de Assis que não figuram nesta obra completa, os quais foram organizados por Raimundo Magalhães Júnior e editados pela Civilização Brasileira nos anos de 1956, que são Contos sem data, Contos esparsos, Contos avulsos, Contos recolhidos, Contos esquecidos e Diálogos e reflexões de um relojoeiro, além dos que vieram a público em 1957, como Poesia e prosa, e em 1958, como Contos e crônicas e Crônicas de Lélio.

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INTRODUÇÃO Como se constitui, funciona e se apresenta o universo cultural da família urbana na sociedade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX? Ao procurarmos responder à questão de como se constitui e se apresenta uma sociedade em um determinado período, ou mesmo uma instituição qualquer, acreditamos que podemos nos ater ao que Le Goff nos diz a respeito do funcionamento e da transformação das sociedades. Para ele, na busca de compreender a história de uma sociedade, suas mudanças, transformações, e mesmo de que forma funciona, é necessário recorrer ao seu imaginário, isto é, os seus hábitos cotidianos, suas crenças, seus comportamentos e suas mentalidades.2 Dentre várias tentativas de delimitar o conceito de imaginário social, podemos depreender que essa dimensão da sociedade refere-se ao campo da imaginação e das imagens diversas elaboradas acerca das experiências humanas, sobre seus hábitos, atitudes, sentimentos, criações e pensamentos, sendo o conjunto das múltiplas representações tecidas sobre tais práticas que a elas reporta, as anuncia, as evoca e às quais dá sentido por meio da instituição simbólica.3 Baczko elucida que, quando falamos de imaginário social, estamos nos referindo às representações e às imagens elaboradas sobre os mais variados aspectos da vida social, da atividade global dos agentes sociais, que se constituem em pontos de referência no amplo sistema simbólico que uma coletividade elaborou e possui. Os imaginários coletivos são produtos sociais por meio dos quais a coletividade se percebe, expressa suas divisões e elabora os seus objetivos. Por meio destas imagens, ela “designa a sua identidade; elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e impõe 2

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1980. p.16. 3 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995. p. 15-7, 21. 11

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crenças comuns; constrói uma espécie de código de ‘bom comportamento’...” O imaginário, elaborado e consolidado por uma sociedade, é uma das respostas que esta encontra para expressar seus conflitos e suas divisões, sendo esse sistema simbólico, logo, construído a partir das experiências, das expectativas e das esperanças desses agentes sociais.4 Porém, como o imaginário social só se torna inteligível e comunicável por meio da produção de discursos, nos quais e pelos quais se efetua a reunião das representações coletivas em uma dada linguagem, podemos buscar percebê-lo recorrendo à literatura, que se apresenta como um tipo de fonte documental privilegiada para tais estudos. 5 Neste caminho, objetivando perceber a constituição do imaginário tecido acerca da vida privada da família carioca urbana da segunda metade do século XIX, fa-lo-emos com base no testemunho literário de Machado de Assis. Frente ao reconhecimento de alguns estudos que enfatizam a historicidade de instituições como a família e, inclusive, dos sentimentos que a cercam, buscamos apreender a configuração da família e como funcionava essa instituição. Se nesse período a sociedade fluminense, de maneira geral, estava passando por grandes transformações, deixando para trás as heranças do passado colonial rumo a um novo tempo, foi em tal contexto que a família também se modificou, mudando suas atitudes, sentimentos e identidade. Se, na atualidade, a família que herdamos do século XIX esfacelou-se e apresenta-se em frangalhos, vivenciando rupturas consideráveis em sua estrutura organizacional e nas suas dimensões moral e afetiva, foi das inquietações, das tensões e dos transtornos produzidos por tais deslocamentos que emergiu a necessidade de buscar conhecer os valores, os princípios reguladores da família tradicional, suas práticas, seus mecanismos

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BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaud v. 5, Antropos/Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. p. 309. 5 Ibidem, p. 311.; LE GOFF, J. As mentalidades. In: LE GOFF, J. & NORA, Pierre. História : novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. p. 76. 12

Introdução

disciplinares e as condições em que ocorreu sua edificação. Desvelar esse universo ilumina nossa ação diante de diversas questões que tocam diretamente nosso cotidiano, no qual ocorre, não raro, a naturalização das regras e normas, que são culturais e históricas, na intenção de sua conservação. Desse modo, propomo-nos investigar no imaginário familiar sua dimensão moral, como um conjunto de normas e regras de conduta, que se impunham aos membros de uma sociedade na forma de obrigações e expectativas, estabelecidas publicamente e que garantiam com que um indivíduo comportasse e agisse, recebendo dos membros de sua comunidade aceitação ou repulsa. Sistema de laços sociais que os vinculava por meio de uma série de pautas e valores comuns, criando e sustentando princípios básicos da sociedade, os quais determinavam as responsabilidades de cada pessoa e dos grupos de convívio frente à coletividade. Princípios que constituíam a vida normativa predominante e produziram uma ordem social, pois mecanismos de controle, principalmente informais, que informavam o sistema de usos e hábitos dos indivíduos, assumindo uma forma prescritiva e coercitiva das relações cotidianas. Por meio dessas imposições, presentes nas convenções sociais, os indivíduos eram compelidos a agir e aceitar tais regras consideradas como obrigatoriedade. Elas determinavam o que se podia ou não fazer, as ações e os castigos para aqueles que rompiam e transgrediam tal código. Nosso objetivo, então, é investigar como se configurava, historicamente, a vida privada da família e seu sistema moral, como produções contínuas e cotidianas da própria sociedade e cultura. Que valores, atitudes, normas, práticas, concepções e noções fizeram parte da vida privada da família fluminense e interferiram na dinâmica social e marcaram a existência desse grupo de convívio em suas relações interiores e exteriores. A intenção é captar as experiências e atitudes, os comportamentos, sentimentos, sonhos e as expectativas, que delimitaram a vida dos indivíduos em família, nas suas relações sociais, amorosas, e conjugais, tendo como ponto de partida as representações machadianas resultadas da sua percepção da sociedade e da sua visão de mundo. 13

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Segundo Chartier, todo documento constitui-se em representações de um real, não existindo texto algum que mantenha uma “relação transparente com a realidade que apreende”. Assim, o texto literário ou o dito “documental”, de qualquer tipo, não pode nunca se desligar de sua realidade de texto, de sistema construído, no qual a percepção e a apreciação são categorias e regras que remetem para as suas próprias condições de produção. Ao considerar suas especificidades como texto, que possui regras de escrita próprias a cada gênero, emana deste “um real”, que não é apenas a realidade visada pelo autor, “mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita”. 6 No sentido de apreender o imaginário social familiar nas representações machadianas, procuramos desenvolver uma abordagem multilateral, que consiste em fazer uma análise histórico-sócio-cultural, na qual se busca trabalhar, em um prisma dialético, tanto o sentido intrínseco das obras quanto captar o contexto social em que essas foram elaboradas. Nesse confronto, procuramos não perder de vista as diferenciações sociais e as relações de força contidas em tais fontes, ou seja, mesmo que Machado tenha se ocupado, principalmente, dos segmentos da elite urbana em seus romances, procuraremos por meio de seus contos e crônicas, uma incursão maior ao mundo dos pobres, não deixando de ressaltar os desníveis existentes nesses universos e seus jogos de poder. A cultura, conforme Geertz, como uma produção pública, um código socialmente estabelecido, com significados tecidos pelos próprios homens, em cujas teias estão amarrados e presos, de modos e com resultados um tanto diversos, é diferenciada e não se limita às práticas sociais de um determinado grupo social. Por isso, não podemos pensar a história do ponto de vista de um dado segmento social apenas, como se a sociedade a este se resumisse. Essa dimensão social é dinâmica e não acabada, vive em constante movimento, havendo circularidade entre as culturas das várias categorias sociais, sendo, portanto, 6 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. p. 62-3.

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Introdução

marcada por influências recíprocas entre esses diferentes níveis de experiência existentes, que, articulados de maneira circular, relacionam-se e formam uma totalidade, múltipla e diversa, como nos indica Bakhtin e Ginzburg.7 Recorremos à literatura como documento, por a considerarmos também como fonte e testemunha exímia para o estudo da cultura e dos imaginários sociais, porquanto é um produto social e cultural e, como tal, revela e exprime as condições da sociedade em que ocorre, expressando tanto a realidade profundamente radicada em que se inspira, à qual se reporta, e que evoca e anuncia, como também transmitindo e instituindo novos valores e noções; que modifica nos indivíduos suas condutas e concepções de mundo, ou ainda reforça os valores sociais existentes, isto é, ao mesmo tempo em que representa a sociedade, contribui também para moldá-la e construí-la, para o seu devir. Nessa perspectiva, que engloba literatura e sociedade em um vasto sistema de influências culturais recíprocas, a posição social do literato pode condicionar e guiar a produção de suas representações. A posição do escritor na estrutura social, de uma forma ou de outra, mais ou menos, influencia sua representação, percepção e apreciação do social. Esta resulta da confluência do individual com as condições sócio-culturais em que foi produzida. Isto quer dizer que, em uma dada sociedade, o literato não é apenas alguém capaz de exprimir sua originalidade e genialidade, mas, sim, quem o faz a partir das condições reais, objetivas e subjetivas, e desempenha um papel social, sendo seu trabalho um intercâmbio entre estas esferas.8 Dentro desse contexto, estudamos as atitudes e a moral familiar no imaginário social urbano do Rio de Janeiro da segunda 7

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. p. 15, 16, 17, 20, 22, 23.; BAKHTIN, Mikail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec/UnB, 1987.; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.13. 8 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1985. p. 24. 15

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metade do século XIX por meio da obra literária de Machado de Assis. Em sua produção literária, este autor capta o social e suas contingências, ao perceber suas implicações, assimilando-as e conferindo a elas base da sua escritura. Fazendo-o do lugar em que se encontra nessa sociedade, Machado, no dizer de Teixeira, “criou entre nós o método universalizante de composição artística”, o qual “consiste em interpretar a condição humana a partir da observação das pessoas e incidentes do próprio tempo”, o que não ocorria no Brasil antes das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881).9 Dessa forma, se Memórias póstumas é considerada “divisor de águas” na literatura nacional, até mesmo a própria produção machadiana está dividida em dois momentos; anterior a esta obra, período normalmente designado de primeira fase, e o segundo, da maturidade. Períodos esses que possuem características próprias e divergentes, sendo o primeiro marcado por influências do Romantismo, a que pertencem os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), além dos livros de contos produzidos no mesmo momento, como os Contos fluminenses (1870), Histórias da meia-noite (1873) e Histórias românticas (1864-1876). Já na segunda, de feição Realista, começada com Memórias Póstumas..., figuram Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904), Memorial de Aires (1908) e os contos de Papéis avulsos (1882), Páginas recolhidas (1889), Histórias sem data (1884) e Várias histórias (1896), dentre outros. Nos escritos da primeira fase, segundo Muricy, Machado não estava muito distante das idéias médicas a respeito do comportamento da família, além de referenciar-se nos valores concernentes à própria tradição colonial católica e patriarcal. A moral familiar circunscreve a ação dos personagens, ao mesmo tempo em que seu discurso narrativo, na perspectiva dos dependentes, das camadas pobres da sociedade, busca conciliar esses valores sociais com a modernização em curso, resultando em um texto marcado pela ambigüidade. A família foi representada como no discurso da medicina, agente que ordena 9 TEIXEIRA, Ivan. Machado, um realista machadiano. Jornal da Tarde, São Paulo, 21 jun. 1989. Artes e Espetáculos, p. 19.

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Introdução

o social e ponto de referência até mesmo aos solitários, como os solteirões.10 De acordo com Schwarz, essa narrativa na “perspectiva dos dependentes” tinha como intenção livrá-los do arbitrário paternalista, criando o que ele denomina de “paternalismo esclarecido”. No entanto, embora seja ponto passível que a ótica é a dos de baixo, pode ser questionada a “estreiteza” delegada a esses escritos que foram caracterizados como ressaltantes da “santidade das famílias” e da “dignidade da pessoa”, rumo a uma “justificação moral” do autoritarismo paternalista, sem nenhuma crítica ou questionamento. Em Helena, por exemplo, está clara a crítica e a denúncia do regime paternalista por meio da figura da heroína e da posição ambivalente que ela ocupa, marcada pela consciência de sua situação e pelo desfrute tenso desta. 11 Machado, em verdade, estava ainda elaborando sua visão dessa sociedade, como afirma Gledson, “criando tudo desde o nada”, ou quase nada, embora passasse a escrever, só a partir de Memórias póstumas, romances “perfeitamente realistas”, que “comentam detalhadamente a sociedade em que vivia”, conjugando a sátira com o realismo, mesmo que este realismo não seja aquele da “doutrina de escola” e, sim, “no sentido mais lato”, isto é, aquele que dá “simplesmente uma visão da sociedade à qual o romancista e seus leitores pertencem”. 12 A ambigüidade da primeira fase, em que a perspectiva narrativa, dada pela ótica dos dependentes, dos de baixo, é privilegiada, possui, segundo Schwarz, um “âmbito biográfico”, pois Machado, até então, ainda não havia completado sua ascensão social.13 O moleque pobre, mulato, gago e epilético, nascido no morro do Livramento, filho de um pintor de paredes

10 MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 18. 11 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 3 ed., São Paulo: Duas cidades, 1988. p. 63, 161. 12 GLEDSON, John. Machado de Assis revisto por um brasilianista. O Estado de São Paulo, São Paulo, 16 set. 1989. Cultura, p. 1-3. 13 SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo/ Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990. p. 213-4.

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e órfão de mãe aos três anos, criado por sua madrasta Maria Inês, lavadeira e doceira; o qual teve dificuldades de freqüentar escolas, pois não tinha meios; que fora aprendiz de tipógrafo, revisor de provas na imprensa local; mesmo já sendo colaborador de vários jornais e revistas; funcionário do Ministério da Agricultura, Viação e Obras Públicas, carreira na qual ascendia e que manteria até morrer, e já houvesse sido agraciado pelo Imperador com o grau de Cavaleiro da Ordem da Rosa, por seus serviços prestados às letras, ainda não se tinha elevado socialmente o bastante. Já por época da escritura e publicação das Memórias póstumas, Machado havia se instalado mais confortavelmente no seio da alta sociedade, inaugurando em seus trabalhos ditos maduros um novo ponto de vista narrativo - “o de cima”-, ou seja, de agora em diante o autor salienta sobremaneira a “irresponsabilidade dos ricos”, dando “latitude a seu movimento”, inaceitável, passando o tipo social do proprietário à posição de narrador. Nessa fase, o narrador “constrangido dos primeiros romances”, marcado pelo decoro das precauções inerentes à posição de subalterno e seus vexames, sai de cena, sem, no entanto, esquecer da “situação anterior”, entrando aquele desenvolto da segunda. O “ponto de vista troca de lugar, deixa a posição de baixo e respeitosa pela de cima e senhorial, mas para instruir o processo contra essa última”. Noutras palavras, Machado se apropriava da figura do proprietário, “para deixá-lo mal”, ao documentar fatos, narrados na primeira pessoa do singular, sobre “as mais graves acusações que os dependentes lhe pudessem fazer”, seja do ângulo tradicional das obrigações paternalistas ou moderno das normas burguesas. Agora, o dependente é visto da perspectiva zombeteira do proprietário, que “se dá em espetáculo”. 14 Inserido em uma condição conflitante, pobre de origem e mulato no mundo dos brancos e ricos, Machado mostra a ambivalência das coisas. Sua visão do mundo não se dá de forma unilateral, mas, sim, dialética. Se nos romances da primeira fase pouco espaço havia “para as manifestações mais espetaculares da nova era, tais como 14

Ibidem., p. 212-4. ; Idem., 1988, p. 161.

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Introdução

a política parlamentar, o cultivo da ciência, a empresa capitalista, a filosofia da evolução, o progresso material”, a partir das Memórias, “entretanto, quando a dignidade dos senhores vem à berlinda e deixa de ser tabu, haverá inversão de sinais e também de proporções”, as “novidades da civilização burguesa agora ocupam a cena”, ainda que sempre desfigurada “pela subordinação a certa desfaçatez de classe”. 15 Segundo Muricy, nos trabalhos da segunda fase, Machado livrou-se do discurso progressista liberal do momento, ao mesmo tempo em que se despregou da ótica dos sentimentos familiares da tradição colonial, denunciando “a decomposição moral da família patriarcal”, embora sem se comprometer “com a concepção nova e burguesa da família”, que ditavam alguns segmentos da sociedade brasileira, como os médicos. Seus personagens, por exemplo, localizados à margem do casamento, agora são “pedagogos que ensinam a essência das relações humanas na nova ordem”, sendo veículos de crítica a esta. Sua apreciação é capaz de ironizar as conquistas sociais do discurso liberal da política brasileira em sua inconsistência. E, de forma mais radical, capaz de ser cética em face das noções de progresso, de ciência, de verdade, tecidas pela racionalidade burguesa, principalmente visada no tema [...] da partilha entre a sandice e a razão”. 16

Nesse ceticismo, reside a força demolidora da crítica social da ficção machadiana, pois, dessa atitude cética com relação às “verdades”, Machado adotou, segundo Teixeira, “a ironia e paródia como instrumentos fundamentais de composição”, que “associados à técnica do estilo fragmentário, constituem umas das inúmeras razões da modernidade de seu texto”. 17 Seus narradores da fase madura, volúveis, decompõem a sociedade patriarcal, expondo suas limitações e imposições, pondo em tensão as

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Idem., 1990, p. 215. MURICY, K., 1988, p. 17-9. TEIXEIRA, I., 1989, p. 19 19

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verdades-padrão, suas rasuras, contestando-as. Esses narradores volúveis, como os define Schwarz, desconstroem as convenções sociais.18 Machado tem, na problematização da existência humana, talvez a mais saliente nota de seu realismo. Segundo Gledson, de caso em caso, ele buscava formular “um conceito sobre o homem, uma tipologia da alma e do comportamento”. Por meio do detalhe “vê-se que ele armava seu texto muito mais em cima da realidade do que se pensava”. Daí, no dizer de Teixeira, resultou uma radiografia poderosa da sociedade carioca e uma reflexão densa sobre o destino do humano.19 Com Memórias póstumas, o romancista maduro, já conduz os leitores com muita liberdade narrativa, por meio de uma “prosa borboleteante” e de um “narrador volúvel”, com os quais brinca, faz sugestões e fala nas entrelinhas, representando a sociedade do Rio de Janeiro por meio de personagens impiedosos, aos quais nada é perdoado. A partir desse romance, os indivíduos estão em primeiro plano com suas contradições e ambigüidades, passando os casamentos e casos amorosos a um plano secundário. A grande ênfase passa a ser o ser humano como indivíduo. Já em Helena, Machado construíra, pela primeira vez, personagens como indivíduos, visto que, até então, estava bastante preso em criar personagens-tipo.20 Dessa maneira, temos material farto para tratarmos do urbano, sua consistência e suas transformações, sobretudo nas crônicas hebdomadárias. Desde aquelas do início de sua produção de cronista, com textos assinados com o pseudônimo de Dr. Semana, personagem marcado pela proximidade com o discurso progressista e modernizador do seu tempo, expresso, principalmente, pela medicina social, até em outros da segunda fase, como de A semana, Crônicas de Lélio, Diálogos e reflexões de um relojoeiro e outros, nos quais a distância em relação àqueles

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PIETRANI, Anélia Montechiari. O enigma mulher no universo masculino machadiando. Niterói: EdUFF, 2000. p. 17, 18. 19 TEIXEIRA, I., 1989, p. 19. ; GLEDSON, J., 1989, p. 2. 20 SCHWARZ, R., 1990, p. 216.; STEIN, Ingrid. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 55. 20

Introdução

primeiros é clara. Nos últimos, ele ironiza a cruzada “saneadora” e “medicalizante” em suas várias frentes, como a mudança indiscriminada dos nomes das ruas, a institucionalização da loucura, a perseguição aos curandeiros e feiticeiras, etc. Sua postura de historiador das coisas miúdas, do cotidiano, “historiador da semana” ou da quinzena, está presente também nos romances e contos, nos quais debruçou sobre “a vida íntima” do seu tempo, catando uma “multidão de coisas interessantes para nossa história pública e íntima”. Encontramos, nesse gênero de textos, em maior número, informações ricas para tratar do social e sua constituição, como da instituição familiar. Nestes, a diferenciação de abordagem pode ser igualmente percebida, desde a apologia ou não ao casamento, ponto base na constituição da família burguesa, até em relação ao tratamento dado àqueles que estão à sua margem. Podemos apreender, a partir da testemunha machadiana, uma realidade sócio-cultural em metamorfose, que teve sua feição plasmada em seus textos. Lendo sua obra literária, lemos mais do que literatura; lemos textos da cultura da sociedade carioca, que, de maneira geral, passava por transformações. Assim, a eleição desse escritor e sua obra como fonte documental, para nosso estudo, justifica-se por sua grandeza e sua complexa análise do momento, da sociedade e sua cultura. Seus escritos estão marcados pelas preocupações com as transformações radicais por que passava a cidade do Rio de Janeiro, a capital não só político-administrativa, mas ainda cultural do país, desde a transferência da corte Portuguesa para o Brasil no início do século XIX. Machado de Assis assistiu, de forma cética e crítica, às mudanças da sociedade carioca oitocentista, impostas pela racionalidade burguesa. Nessa documentação, expressa de forma poética, seguindo os rastros dos personagens machadianos e atentos às situações por eles “vivenciadas”, defrontamo-nos com um processo civilizador que transformava a antiga cidade e impunha uma modernização pautada em modelos europeus. Essas mudanças interferiam na modificação do imaginário social, que se constituía com novos valores e normas, sentimentos e comportamentos. Dentre outros, aqueles de privacidade e intimidade em relação ao espaço doméstico, os ligados aos 21

Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

relacionamentos familiares e laços matrimoniais, ao trato com as crianças e com o mundo exterior. Assim, o Rio de Janeiro europeizava-se, e ocorria uma importante redefinição nos comportamentos, nas atitudes e nos sentimentos dos indivíduos em sociedade e em família, na privacidade do lar. Homens, mulheres e crianças passaram por uma transformação nos seus papéis sociais e afetivos, delineando novas figuras. Mesmo considerando os filtros e as clivagens existentes nessa obra, expressos na sua diferenciação em duas fases, a produção machadiana nos oferece uma visão fecunda da sociedade em que viveu, pois fruto da observação atenta dos indivíduos no seu tempo e extraída, em seus detalhes, do “mínimo e do escondido”. Catada em lugares em que ninguém metia o nariz, como ele próprio dizia, com curiosidade estreita e aguda, descobrindo o encoberto, enxergando “cousas miúdas” que escapavam à maioria dos olhares, vendo onde outras vistas não pegavam, clareou áreas obscurecidas e opacas, revelando rachaduras nas estruturas, como aquelas morais.21 Fases, nas quais, o tratamento dado aos personagens e aos temas mostra-nos seu posicionamento e sua visão naquele momento, ao realçar determinados aspectos de um todo em detrimento de outros; e ao fragmentar, privilegiar elementos que desejava pôr em destaque e problematizar. Porém Machado, avesso às crenças absolutas, relia o que escrevia e nos oferecia, em outros textos, outras perspectivas daqueles mesmos objetos, enriquecendo seu testemunho, com sua capacidade reflexiva e problematizadora da existência, a qual caracteriza sua fase madura e produz, desde sua época até hoje, várias leituras e polêmicas. Segundo Ribeiro e Guinsburg, mediante a relativização da existência humana, Machado criava variadas máscaras, inclusive por meio de seus diversos pseudônimos, as quais correspondem a discursos e visões diferentes e figuras controversas, oferecendo-nos sempre outras leituras e novas interpretações da realidade.22 21

MACHADO DE ASSIS, J. M. A semana v. 3, 1957, p. 437. OC. RIBEIRO, Maria H. W. ; GUINSBURG, J. Machado de Assis e sua controversas figuras. In: SILVA, Armando (org). Diálogos sobre teatro. São Paulo: EdUSP, 1991. p. 195, 197 e 199. 22

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Introdução

Realista, de modo próprio, por intencionar representar, em sua ficção, as estruturas da sociedade carioca de sua época, comentando-as em detalhe, tendo, mesmo na sua fase romântica, visão lúcida das relações sociais e estilo sóbrio, Machado e sua produção representam fontes excepcionais para nossa história, seja da vida privada, do cotidiano, das atitudes e da moral familiar ou outras que se queiram escrever. Aí história e literatura se encontram compactamente, misturando uma variabilidade de elementos, que, embora diversos, contribuem para formar um todo, cabendo ao historiador fazer novas ligações, combinações e entrelaçamentos daquilo que foi amalgamado pelo literato ao produzir suas representações do social na sua ficção. Nessa perspectiva, o texto literário machadiano impõese, de forma insubstituível, como testemunho pela riqueza de dados que nos oferece, tanto com relação a sua própria condição de produção e intencionalidade, como por ser um “instrumento eletroscópico”, que “vibra e registra prontamente os frêmitos da sensibilidade coletiva” e os imaginários sociais, como também por agir ativamente sobre estes, pois, como afirma Chartier, as representações são matrizes para as práticas culturais.23 Foi de primordial importância, para conhecer nossa sociedade atual, situar a pesquisa na área da vida privada, do cotidiano e do sistema moral e informal-normativo, das regras que conduziam as atitudes, os sentimentos e os comportamentos familiares na sociedade fluminense da segunda metade do século XIX, da qual somos herdeiros. Se o conhecimento das sociedades, não raro, esbarra em simplificações que as reduzem a um esqueleto sem carne, ou, na melhor das hipóteses, as concebem de carne e osso, mas esquece-se das suas idéias, dos comportamentos e dos sentimentos, buscamos escrever uma “outra história”, na qual houvesse uma junção entre as várias estruturas, partindo do próprio cotidiano dessa sociedade, representado na literatura. A literatura constitui uma saída para a investigação de novos problemas e objetos com instrumentos não tradicionais, 23

VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 64.; CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados, São Paulo, v. 11, n. 5, p. 183-191, 1991. 23

Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

e, logo, ao desenvolvermos nossa pesquisa, a questão do encaminhamento dado a essa categoria especial de documentos foi de grande importância, uma vez que esses textos revelam discursos os quais devemos observar atentos, porque neles encontramos seres pulsantes, vivos e quase que totais. Essa documentação detém a capacidade de abarcar as atividades materiais e espirituais dos homens, como seus sonhos, suas frustrações, angústias e utopias. Deixá-los falar possibilitou-nos reunir informações dispersas e mesmo perdidas por outros tipos de fontes, contudo, nesta abordagem, cuidamos para que elas não perdessem os significados contidos no seu conjunto e procuramos, ainda, preservar a riqueza estética e comunicativa que possui essa especificidade de documentos, como nos indica Sevcenko. Os significados articulados na obra literária em sua ficcionalidade devem ser lidos, de acordo com Barbosa, no seu contexto poético sob pena de perder o que há de intenso nessa representação.24 Para decodificar e extrair do texto literário as respostas às indagações que nos preocupam, recorremos a um cuidadoso diálogo com esses testemunhos pelo qual articulamos as informações daí extraídas com outras, não só oriundas de leituras da produção existente sobre o momento e o tema, mas advindas de tipos diferentes de documentação. Para tal, julgamos ser necessário um sensível e detido relacionamento com esses textos no intuito de assimilar, digerir e atingir o significado contido em suas linhas e entrelinhas. Dessa maneira, exploramos os ricos caminhos que nos oferece a relação história/literatura, uma vez que esta última detém um valor temporal e histórico que podemos captar por meio de um processo de historicização, que evidencia a cumplicidade entre uma e outra, a partir de aproximações internas e externas ao texto. Portanto, isso não denota que a literatura seja o reflexo da história, mas, sim, que ela produz imagens sobre as experiências sociais e

24 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões e criação cultural na primeira república. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 20. ; BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo: ensaios de crítica. São Paulo: Iluminuras, 1980.

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Introdução

as torna parte do imaginário da história. Na perspectiva da história cultural inglesa, Williams mostra-nos que a produção literária possui densidade como agente ativo na vida social, constituindo, por isso, em elemento de grande peso e valor na elaboração da memória de uma sociedade, à medida que ela possui a força de instituir um imaginário e de agir ativamente no social. Ela é uma reflexão sobre o social, suas práticas culturais e não apenas uma repetição destas, logo, possibilita-nos perceber o contexto social mais amplo no qual foi produzida ou à qual refere. Os literatos, como historiadores, vão construindo certa história social da cultura, instituindo uma memória em detrimento de outras, dentro do momento e contexto em que estão.25 Portanto, essa espécie de documento, uma configuração poética, é uma categoria de fonte excepcional para a história de uma sociedade e de sua cultura. História de seus sentimentos, de seus hábitos cotidianos e de suas atitudes inseridos num sistema moral, normativo e coercitivo, história da constituição da família e do imaginário social. A literatura, como um dos principais meios de comunicação, informação, conhecimento e entretenimento social oitocentista, de formação das subjetividades e sensibilidades, interferia na instituição da sociedade carioca, mesmo que, segundo Machado, apenas 30% de sua população soubesse ler. Embora ela fosse consumida por uma parcela pequena de indivíduos, esse público leitor era composto, sobretudo, por senhoras, às quais estava entregue a educação direta dos filhos. Assim, a propagação de seus conteúdos foi, certamente, bem maior, e agia sobre seus receptores, ainda que não leitores, pois cabia à mulher transmitir “a porção intelectual do homem”, segundo o escritor. 26 Essa categoria de documentos permite-nos captar ainda os valores, concepções, sentimentos e relações sociais nas suas formas e instituições mais externas, principalmente no ponto em

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WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 26 MACHADO DE ASSIS, J. M. Crônicas v. 3, 1959, p. 107. OC.; Idem, Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1957, p. 125. 25

Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

que ultrapassavam as instituições estatais administrativas, jurídicas e legislativas. Possibilita também analisar o lugar em que esses valores se encontravam investidos em práticas culturais no interior do corpo social; examinar, partindo de baixo, a maneira histórica como os mecanismos de controle (regras e normas) puderam funcionar; e, finalmente, produzir um conhecimento sobre os costumes cotidianos de pessoas comuns. É por meio de uma análise minuciosa dos termos, metáforas e da própria maneira como as palavras foram associadas que podemos descobrir as regras de condutas válidas para a família nesse momento. No entanto, não temos aqui um conhecimento sobre a história do pensamento manifesto, nem do sistema normativo formal, mas, sim, das representações dos mecanismos de controle informais inscritos no código moral que norteou os comportamentos e as atitudes dos indivíduos naquela sociedade. Partindo dessas representações poéticas da realidade, elaborações sobre os acontecimentos recolhidos e, por vezes, imaginados e idealizados pelo autor, foi possível captarmos uma configuração específica da família urbana e de sua moral inserida no dia-a-dia da sociedade fluminense. Configuração resultada da articulação dialógica de um paradigma teórico-crítico com as aproximações entre o intrínseco das obras e as condições extrínsecas, históricas, sociais e culturais, que essas evocam e nas quais ocorreram. Elaborações que, mesmo reconhecendo, sempre, o seu significado como sendo algo produzido culturalmente e não uma “expressão natural” da realidade, expressão pura, explicita-nos a evocação ou proposição de uma relação ativa, pois são expressões do que já era socialmente partilhado e recíproco, ou do que poderia vir a sê-lo, do devir. Assim sendo, o testemunho das fontes literárias permitiu-nos reconstituir algumas facetas da vida cotidiana da família e perceber quais eram seus hábitos, crenças, sentimentos e o conjunto de regras e valores morais que conduziam os comportamentos dos indivíduos, mesmo estando fortemente marcados pela subjetividade de seu criador, que é também histórica. Portanto, neste trabalho, foi imprescindível interpor, transpor e interpretar esses textos, mas também deixá-los falar, 26

Introdução

mostrar-se e defender-se, sendo interlocutores do diálogo mediado por este pesquisador. Diálogo no qual procuramos unificar elementos que aparecem dissociados e afastados, desvendar contradições e revelar divergências que permeavam as relações sociais e suas representações, pois detalhes de uma totalidade e parte de um mundo unitário e diverso. Por meio das histórias contadas por Machado, buscamos elucidar alguns aspectos relacionados à cultura e à sociedade carioca da segunda metade dos oitocentos ao redor do mundo familiar. Contudo não temos a ilusão do documento transparente, expressão cristalina da realidade que apreende e evoca, mesmo considerando Machado informante preocupado e exigente, atento até às minúcias. Isto ocorre porque todo texto cria e constrói, intencionalmente, uma realidade. A literatura, segundo Machado, é uma “transfiguração” dos acontecimentos da vida, na qual o literato não copia “os fatos tais quais eles se dão”, mas cria-os “em vez de repetir”, fazendo-o pautado na “verossimilhança” como regra de escrita ficcional. Desse modo, ele sentia-se livre para escrever e reescrever a história da sociedade e da cultura brasileiras e de suas transformações. Além de pautar sua produção na “transfiguração” da realidade a partir da “verossimilhança”, recorria ainda à “teoria das edições humanas”, conforme à qual nada era “assaz fixo nesse mundo”. Em tal contexto, constatando também que a história “era uma eterna loureira”, que dava para tudo “com caprichos de dama elegante”, logo, nada objetiva e imparcial, abriu-se para as possibilidades de imaginar a sociedade a que pertencia com liberdade e recriar as histórias que contava na busca de apreender a historicidade de seu tempo, que se revelava, com tantas mudanças, um “insigne alquimista”. 27 Portanto, as histórias que ele nos contou, e vamos aqui recontar algumas, são histórias que podem não ter realmente acontecido com tal e qual personagem, como representação de um indivíduo, mas eram passíveis de ter ocorrido por serem 27

MACHADO DE ASSIS, J. M. Crítica literária, 1955, p. 62, 64. OC.; Idem., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 20, 25, 112, 137-140. OC. ; Idem., Páginas recolhidas, 1955, p.79. OC. 27

Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

produzidas e estarem inseridas num sistema cultural, em um contexto sócio-temporal que lhes dava sentido, e, por isso, revelam o funcionamento interno dessa sociedade e cultura, com seus códigos simbólicos, que aqui buscamos decodificar nessa leitura. Seguindo os rastros de seus personagens e, observando as situações por eles experimentadas, procuramos escrever essa história, realizar uma leitura do texto machadiano sem o intuito ou pretensão de exauri-lo e fechar o debate, mas, sim, fomentálo. A partir da leitura da obra machadiana, apreendemos algo mais do que literatura. Nela história e literatura se fundem numa relação de troca e de cumplicidade. A história das coisas miúdas do cotidiano e da vida privada está contida nas representações literárias do bruxo do Cosme Velho. Ao lermos uma, deparamosnos com a outra, visto que o texto ficcional, como um sismógrafo da sociedade, registra, simultaneamente e com sensibilidade, as mudanças nela ocorridas, as quais passam a compor o imaginário social. Isto mesmo que seja “a verossimilhança [...] muita vez toda a verdade” e regra principal do processo de anotação das ocorrências, matéria-prima da imaginação, que também é parte importante da realidade e histórica.

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CAPÍTULO I VIDA PRIVADA: PRIVACIDADE, INTIMIDADE E INDIVIDUALIDADE NO ACONCHEGO DO LAR É objetivo, neste capítulo, refletir sobre a configuração do cotidiano e da vida privada dos cariocas abastados, da elite, na segunda metade do século XIX, observando alguns aspectos de recentes espaço e ambiente domésticos em constituição favoráveis ao estabelecimento de novos vínculos interativos entre os indivíduos em seu interior. Centrando nosso olhar ao redor das relações familiares, atentamos para os comportamentos e atitudes de seus membros, que indicam práticas pertinentes a um novo sentimento de intimidade e privacidade com relação ao lar, circunscrevendo uma renovada experiência de vida com estilo burguês. Partindo de uma perspectiva da história cultural, preocupada em enfatizar a historicidade da vida cotidiana, recorremos aos artefatos culturais machadianos na cata de sinais indicadores dessa nova realidade cultural em constituição. Da obra, emerge o afã em proteger o interior da casa da violação ocasionada pela presença de estranhos, do olhar e do interesse públicos, percebido por meio de variados indícios, assim como a produção de um espaço confortável atrelado a noções de intimidade, individualidade e aconchego, que permeavam, inclusive, as práticas de leitura.

1. NO NOVO ESPAÇO DOMÉSTICO: A PRIVACIDADE Na segunda metade do século XIX, a sociedade urbana fluminense, na qual viviam os personagens machadianos, presenciou o avanço de um processo de modernização marcado pela europeização do espaço físico geográfico da cidade e da vida de seus habitantes, principalmente, aqueles aburguesados, das classes média e alta. Nesse movimento, intensificado, sobretudo, com o advento da República, transformações importantes ocorreram. Ao mesmo tempo em que a família abastada experimentou procedimentos de exteriorização, abrindo-se para 29

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uma nova sociabilidade, rompendo o confinamento em casa, próprio do período colonial, buscando o mundo exterior em inumeráveis e novos momentos e lugares, ocorreu a marcha rumo ao resguardo de sua vida privada, vendo desenvolver hábitos e sentimentos de privacidade, individualização e intimidade. Conforme Perrot, analisando a vida privada na Europa, a família nuclear, “como célula da ordem viva” da sociedade, triunfou no século XIX em discursos, mas apresentava-se muito caótica e heterogênea, com múltiplas formas, de acordo com os sistemas de parentescos persistentes. Já com relação à realidade brasileira, Corrêa também destacou a multiplicidade dos modos de organização da vida familiar no Brasil colônia e no período subseqüente, ao contestar a produção teórica existente sobre tais formas de estruturação da família, que enfocou o chamado modelo patriarcal como oferecedor das diretrizes do viver cotidiano nos tempos coloniais e que, evolutivamente, sobre a influência da industrialização, criou a moderna família conjugal. A autora apontou que, para além dessa homogeneização histórica, diferenças internas davam mostras de uma variedade de relações, até então, insuspeitadas na sociedade brasileira.28 Em tal contexto, de hibridismo de formas de organização familiar, inseria-se a família carioca oitocentista machadiana, adequada ao modelo de família nuclear moderna, ou, segundo Cândido29 , família conjugal moderna, definida por ser reduzida, marcada pela individualização e coabitação exclusiva, numa mesma residência, apenas dos pais e filhos solteiros, cercados por serviçais. Mas, embora o que distinga a familiar nuclear dos outros modelos familiares na sociedade ocidental seja certo sentido de separação da unidade doméstica da comunidade circundante e a

28 PERROT, Michelle. A família triunfante. In: PERROT, M. (org.) História da vida privada, 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 91.; CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira. In: ARANTES, Antônio A. (et al.) Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil. 3 ed., Campinas, São Paulo: Ed. Unicamp, 1994. 29 CANDIDO, Antonio. The brazilian family. In: SMITH, T. L. Brazil: portrait of half a continent. New York: the dryden Press, 1951.

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Vida Privada: privacidade, intimidade e individualidade no aconchego do lar

família encontrada nas páginas machadianas fosse predominantemente não extensa e nuclear, existiam, em muitas famílias, alguns parentes solitários, temporários ou permanentes, vivendo sob o mesmo teto do casal e seus filhos, geralmente, por necessidade, ao mesmo tempo em que muitas pessoas viviam sozinhas ou com os parentes solteiros igualmente sós no mundo.30 Assim, a família carioca, representada por Machado, era quase sempre pequena, com número reduzido de filhos. Raras eram compostas por mais de quatro pessoas, sendo a grande maioria possuidora apenas um filho ou dois, os quais, na sua maior parte, saíram da casa dos pais ao se casarem. Além disso, muitos casais não tinham filho algum. A observação da existência desse tipo família, hegemônica, com número pequeno de filhos, no universo das representações machadianas, causou espanto à Pereira que, considerando o autor um informante exigente, observador atento, minucioso, acurado, exato e preciso, teria falhado, sido infiel à realidade nesse aspecto da constituição familiar que, na sua visão, atrelada ao modelo de família patriarcal consagrado por Gilberto Freyre, era numerosa, em regra.31

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Sobre parentes coabitando com a família, ver MACHADO DE ASSIS, J. M. Dom Casmurro, 1959, OC; Idem., Esaú e Jacó, 1959, OC e Idem, Quincas Borba, 1957, OC, nos quais existe a presença de ao menos um destes no domicílio. Já no que diz respeito a famílias compostas justamente pelo agrupamento de parentes sozinhos no mundo, ver MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias sem data, 1957, p. 89. OC.; Idem., Helena, 1955, p. 8. OC.; Idem., Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 204, OC e Idem., Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 57. OC.; ANDERSON, Michael. Elementos para a história da família ocidental 15001914. Lisboa: Editorial Querco, 1984, p. 44. 31 Pode-se observar esse aspecto em Ressurreição (1955-OC.), em que Lívia tem um filho e apenas um irmão; em A mão e a luva (1957-OC.), em que Guiomar é filha única e que sua madrinha também só possuía uma filha; em Helena (1955-OC.), que é filha única assim como Estácio; em Iaiá Garcia (1955-OC.), em que a heroína também o é, tal como Estela e Jorge; em Memórias póstumas (1957-OC.), em que Brás Cubas só possui uma irmã, a qual tem filhos, mas ele mesmo não possuindo nenhum e como tinha um, Virgília; em Quincas Borba (1957-OC.), que 31

Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

Porém, estudos mais recentes sobre a família brasileira, no século XIX, têm promovido uma revisão desse paradigma no que refere à sua estrutura, como, dentre outros, os promovidos por Samara. Tratando da cidade de São Paulo, a autora apontou que as famílias extensas, no mesmo período, também não foram preponderantes. O número de filhos era pequeno, sendo que, numa escala decrescente, em primeiro lugar, existia uma quase maioria que não tinham filhos, vindo em seguida os que possuíam apenas um, e, por fim, ou seja, em número menor, os que contavam mais de cinco. Além disso, em outras fontes, como outros romancistas do momento, fotografias e processos crimes, pode-se apreender essa mesma característica. Desse modo, a representação machadiana, nesse aspecto, não fugia também da realidade de seu tempo e daquela sociedade.32 No entanto outros aspectos significativos diferenciavam essas famílias daquela dita tradicional, patriarcal, extensa, que serviu de modelo genérico para caracterizar a família no Brasil. Tais distinções aparecem na organização da dimensão afetiva, econômica e social desse grupo de convívio, apresentando-se reduzido, com segregação crescente da unidade doméstica da presença de estranhos atrelada ao avanço das noções de privacidade, intimidade e individualidade, que contribuíram para

Sofia não possui filho e Maria Benedita tinha só um, assim como também apenas uma irmã; em Dom Casmurro (1957-OC.), que tanto Bentinho quanto Capitu eram filhos únicos, que tiveram, por sua vez, um filho apenas, como também acontecia com Escobar, que, por outro lado, tinha uma irmã; em Esaú e Jacó (1959-OC.), Pedro e Paulo eram filhos únicos e gêmeos, enquanto Flora também era do casal Batista; em Memorial de Aires (1955-OC), tanto Tristão como Fidélia eram filhos únicos. ; PEREIRA, Lúcia Miguel. Relações de família na obra de Machado de Assis. Revista do livro, Rio de Janeiro, n.11, p. 19-30, 1958. p. 19.; FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. 32 SAMARA, Eni Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 8, 26-7.; Idem, As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. São Paulo: Marco Zero, 1989. p. 53-4, 56.; CORRÊA, M., 1994, p. 15-37. 32

Vida Privada: privacidade, intimidade e individualidade no aconchego do lar

delinear uma nova cultura familiar em contato com outros grupos de parentesco, com formações distintas das propostas pelas generalizações.33 As noções de individualidade e de privacidade apreendidas foram associadas a uma diferenciação crescente da família conjugal, como núcleo social separado de outros níveis de parentesco e de convivência privada, na qual se ressaltava a importância dada à intimidade, ao aumento de autonomia dos indivíduos e à garantia e respeito a seus direitos, enfim, ao seu fortalecimento. A segregação de estranhos do seio doméstico avançou e, mesmo que em alguns momentos esse espaço fosse aberto para o mundo exterior, como em recepções, buscou-se limitar os convidados, em muitas destas ocasiões, ao máximo, a pessoas íntimas. Uma postura significativa nesse sentido adveio de Viana em Ressurreição, que, no tempo de seu aniversário, promoveu uma recepção a qual “não devia compreender senão amigos íntimos, por ser festa do coração, alegria doméstica...”, requerendo, por isso, “jeito e sagacidade para discernir os que se prendiam pelo afeto dos que aderiam pelo costume”.34 Nesse contexto, de ampliação das noções de privacidade doméstica e de intimidade dos indivíduos, o sentimento de invasão dessas esferas emerge na história de várias personagens que coabitavam casas de parentes e alargavam um pouco o núcleo familiar. Elas buscavam fugir da sensação de estorvo propiciada por sua posição, e não eram apenas pessoas favorecidas que procuravam negar ou desfazer-se de sua condição de protegidas, logo, da obrigatoriedade do contra dom, mas indivíduos contrariados pela situação de encontrarem-se dentro da casa alheia. Assim, uma mãe de Páginas recolhidas não queria tornar-se uma “agregada incômoda” para a filha e o genro, com os quais iria morar. Já prima Justina, em Dom Casmurro, era considerada “uma senhora íntima”, que vivia ao pé D. Glória, uma proprietária, pois, como companhia, “antes parenta que estranha”, porém jamais se metia nos assuntos “sem ser chamada”. Outra 33

ANDERSON, M., 1984, p. 44-6. MACHADO DE ASSIS, J. M. Ressurreição, 1955, p. 151. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 118. OC. ; ANDERSON, M., 1984, p. 44-6. 34

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Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

era irmã da senhora da casa e “pessoa circunspeta que não se perdia por um dito ou gesto descuidado”, junto àqueles que a acolheram e com quem vivia. Essas mulheres, por não terem seu próprio canto, experimentavam o sentimento de serem alguém demais no espaço do outro, que, a cada dia, se restringia à mulher-esposa, ao pai-marido e aos filhos.35 Como sinal ainda do crescente apreço pela privacidade e individualidade, as pessoas “estranhas”, quando admitidas e existindo no interior da casa de uma família, mesmo que tivessem a intimidade resguardada, eram representadas como criadoras de situações “que perturbavam a paz doméstica”, como o envolvimento sensual ou adúltero entre o “hóspede” e um dos consortes. Isto ocorreu, dentre outros contos, em Uns braços, quando Inácio, mocinho de 15 anos, foi posto pelo pai a serviço do solicitador Borges, que vivia “maritalmente” com D. Severina, como acontecia com a grande maioria das uniões, sendo o casamento recorrente apenas entre as classes mais altas e aburguesadas. O rapazote, morando na casa da família, encantouse com os braços desnudos daquela, passando a só pensar neles, enquanto D. Severina, por sua vez, envolvida por uma “tentação diabólica”, assustada, estremecida e com os lábios abrochados, acabou beijando-lhe a boca quando ele dormia. Em conseqüência, “Confusa, irritada, aborrecida, mal consigo e mal com ele”, tornou-se calada e severa, passando a cobrir os braços com um xale, até que Inácio foi despedido.36 São várias as histórias em que, como esta, a presença de estranhos dentro da casa turbilhonava “o sossego conjugal”, trazendo inquietude aos consortes. Elas expressam as condenações dos velhos manuais dos moralistas, que condenavam os maridos por receber hóspedes atraentes em casa. Machado de Assis contista mostrou que tais presenças criavam certo erotismo e sensualidade entre alguém de casa e os de fora que temporariamente ali habitavam. Numa dessas situações, inclusive,

35 MACHADO DE ASSIS, J. M., Páginas recolhidas, 1955, p. 265-6. OC.; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 73,76. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 35-6. OC. 36 Idem, Várias histórias, 1957, p. 47-63. OC.

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vemos a casada Camila, de Contos esquecidos, a perguntar a Silvestre, que vivia periodicamente com o casal, também por motivos de trabalho: “_ Se Luís morresse, você casava comigo?” O hóspede tornava-se um risco, significava adultério e mesmo possibilidade de homicídio. Era perigo para a instituição familiar e ao matrimônio, pois sua presença conduzia e facilitava a infidelidade dos cônjuges. O apreço ao resguardo do espaço privado, presente nessas historietas, condizia com as estratégias de controle e vigilância sobre a mulher, sendo ainda manifestação inerente ao movimento crescente de separação e afastamento entre as esferas do trabalho e do lar, do público e do íntimo.37 Portanto, eram considerados estranhos e, logo, segregados dentro do espaço doméstico, o próprio pessoal incumbido dos afazeres da casa, como os escravos e criados, os quais deveriam pouco permanecer nas áreas consideradas como esferas públicas no domínio privado, como os salões e salas de jantar. A grande presença de escravos no interior da casa criava obstáculos à expansão da noção de privacidade e ao sentimento de intimidade a ela inerente, que se desenvolviam de forma progressiva.38 Nessa conjuntura, ficava latente a preocupação dos senhores em resguardar os hábitos e os assuntos íntimos da família em relação à criadagem. Em Helena, a família Vale atravessava uma crise doméstica e, por isso, “o jantar foi um simulacro; um meio de iludir a perspicácia dos escravos”, que nada deviam saber. Mas eles “não caiam naquele embuste”, pois “conheceram perfeitamente que algum acontecimento oculto trazia suspensos e concentrados os espíritos”, uma vez que “As iguarias voltavam quase intactas” e as “palavras eram trocadas com esforço entre a sinhá velha e o senhor moço”.39 Ainda nesse aspecto, do desejo de preservar as questões consideradas da intimidade frente aos serviçais, certo comensal 37

Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 91. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 190. ; Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 253. ; VAINFAS, Ronaldo. A condenação do adultério. In: LIMA, Lana Lage da Gama (org.) Mulheres, adúlteros e padres: história e moral na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987. p. 45-6. 38 ANDERSON, M., 1984, p. 45. 39 MACHADO DE ASSIS, J. M., Helena, 1955, p. 234-5. OC. 35

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da casa de Rubião, de Quincas Borba, esperou pela saída do criado da sala de jantar para fazer, ao anfitrião, observação espirituosa a respeito do presente que recebera de uma senhora amiga. Outra passagem interessante é aquela em que a baronesa, de A mão e a luva, madrinha de Guiomar, pretendendo falar-lhe, pediu à governanta, que estava presente, “delicadamente que se fosse”. Segundo o narrador, “a afeição que lhe tinha não impediu que achasse demasiada familiaridade a presença de Mrs. Oswald em semelhante ocasião”. Salvaguardar a intimidade da família da intrusão de “estranhos” foi mais um elemento rumo à instauração da privacidade do espaço doméstico. Se os senhores nos tempos coloniais, como observou Freire Costa, apresentavam-se negligentes frente ao escravo, como forma de desconsiderá-lo e por desprezo à sua opinião, assim como em relação aos outros “criados” ou “agregados”, para forjar certa informalidade e familiaridade, isso já não ocorria nesse momento; eles mudavam e aprimoravam seus hábitos de convivência íntima.40 Os escravos viviam espionando seus senhores, espreitando seus segredos, contrariando-lhes a crescente intimidade. Nesse sentido, em Quincas Borba, quando Teófilo perdera o posto de ministro que ansiava ocupar, recolhendo-se ao quarto acompanhado pela esposa e dando ordens para não receber ninguém, dizendo que a “senhora estava incomodada”, um “criado desconfiou [...] que o doente fosse ele e não ela, porque o vira entrar abatido”. Assim, prestavam atenção naquilo que acontecia “em cima, no quarto deles”, ouvindo os rumores “de vozes, ora alto, ora baixo, com os intervalos de silêncio”. Além disso, “uma criadinha, que subira pé ante pé, desceu dizendo que ouvira lastimar-se o amo”, levando-a a supor que “provavelmente a senhora estava perdida”. Ainda, segundo o narrador, havia “Em baixo, um palavrear surdo, ouvidos compridos, conjeturas...”.41

40 Idem, Quincas Borba, 1957, p. 60. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1955, p. 221-2. OC. ; COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 93. 41 MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 350-1. OC

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Também podemos lembrar do conto Missa do galo, no qual “as escravas riam à socapa”, quando Meneses, casado com Conceição, mas trazendo “amores com uma senhora, separada do marido”, dormia “fora de casa uma vez por semana” e saía, dizendo que ia ao teatro, embora só voltasse na manhã seguinte. Mesmo em Casa velha, podemos observar os escravos domésticos “espionando” tudo o que acontecia na residência, como a presença de um padre que ali se encontrava conforme se pode observar em suas próprias palavras: “Pretas e moleques espiavam-me, curiosos, e creio que sem espanto, porque naturalmente a minha visita era desde alguns dias a preocupação de todos”.42 No interior da casa, onde os senhores projetavam sua noção de privacidade, segurança e intimidade, o pessoal do trabalho doméstico deveria ficar confinado às áreas de serviço _ despensa, cozinha e quintal _ , pois, nos espaços sociais, mais confortáveis e aconchegantes, estava limitada sua circulação de maneira indistinta. Eles apenas faziam rápidas, úteis e formais aparições nos recintos de descanso e sociais da casa, sobretudo, nestes últimos, e, em especial, quando se recebia alguém. Assim, Mariana, embora fosse uma cria protegida da casa de Coutinho, recebendo tratamento e cuidados especiais de seus senhores, tinha alguns vetos estipulados no comportamento, como: “não se sentava à mesa, nem vinha à sala em ocasião de visitas [...] no mais era como se fosse pessoa livre...”. Daí, podem-se inferir as atitudes aceitas para aqueles que experimentavam a “situação verdadeira do cativeiro” ou do trabalho doméstico. Os criados de “porta acima” deveriam estar por perto, embora não presentes, de modo que fossem facilmente chamados e prontamente atendessem aos apelos dos senhores. Mesmo um escrevente, “homem de confiança” do marido de dona Valéria, em Iaiá Garcia, “criado para as funções subalternas”, que foi “admitido a comer algumas vezes em casa” dos senhores, fazia-o sempre, mas sua presença só era admitida “nos dias comuns, quando não havia

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Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 91-2. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 166-7. 37

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visitas de cerimônia.” 43 Nesse sentido, a presença do escravo também podia constituir noutro obstáculo ao avanço da noção de intimidade, devido à forma de comunicação estabelecida com tais trabalhadores, pois muitos senhores possuíam o hábito de dar ordens gritando. No âmbito dos afazeres domésticos, cabia à senhora administrar a casa e os escravos, o que algumas realizavam recorrendo aos castigos físicos e dando ordens aos “berros”. Se sinhá Rita, de O Caso da vara, disciplinava suas criadas, que aprendiam fazer renda, crivo e bordado, examinando a conclusão das tarefas estipuladas para o dia, empregando puxões de orelha e usando de uma vara para dar sova às faltosas, a Sra. D. Ana, de Conversão de um avaro, era “um tigre de ferocidade”, que “acordava às cinco horas da manhã e berrava até as dez da noite”, manifestando sua autoridade “em repelões [...] às escravas”. Em tal contexto, as mucamas, as aias e as amas-de-leite consistiam numa população estranha, infiltrada cotidianamente no seio da casa, localizando-se numa posição extremamente oposta às outras criadas, que serviam dentro e fora da casa, pois diretamente mais próximas da intimidade e também do controle dos senhores, sobretudo, da mulher.44 Por essa época, a segunda vertente do século, já não encontramos mais, na sala de jantar de uma abastada família, “os negrinhos” presentes em aquarela de Debret, recebendo comida diretamente das mãos da senhora à mesa de jantar. Essa hora tornou-se ocasião em que os integrantes da família se relacionavam e não comportava mais que a mulher se distraísse com os “moleques” enquanto o marido ocupava-se “com seus

43 Idem, Contos avulsos, 1956, p. 128. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p.401. OC. ; GRAHAM, Sandra Lauderlale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 63-4.; ARIÈS, Phillippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. p. 266. 44 MACHADO DE ASSIS, J. M., Páginas recolhidas, 1955, p. 13, 22-3. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 282-3. OC.; COSTA, J. F., 1989, p. 94.; GIACOMI, Sonia Maria. Ser escrava no Brasil. Estudos afro-asiáticos, Rio de Janeiro, CEAA, n. 15, p. 145-170, jun. 1988. ; GRAHAM, S. L., 1992, p. 50-1.

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negócios”. Agora, falavam e conversavam, sendo momento em que “a família ouvia e perguntava”, mesmo que, não raro, as palavras fossem “trocadas com esforços” entre os presentes. Os “negócios” foram afastados desse espaço, instante e do contato familiar, possuindo as casas de “feitio moderno” lugar especial para serem resolvidos. Os jantares de negócios aconteciam nos hotéis, como no de la Bourse, no qual se encontraram Camacho e Rubião, em Quincas Borba, quando o primeiro estava à procura de outro sócio para seu jornal, Atalaia, embora a conclusão do ajuste tenha acontecido, por fim, em seu escritório. Tais representações inserem-se também no processo de distanciamento entre as questões domésticas e do trabalho, igualmente apontadas por Perrot, ao tratar das modificações que consolidam esse afastamento na segunda metade do século XIX europeu.45 Se na primeira metade do século ainda víamos o descuido pessoal com os trajes e com a aparência na hora das refeições, de acordo com a mesma aquarela de Debret, estando o senhor, de ceroula, camisa e chinelas à mesa do jantar, na segunda, faziam-no com apuro no vestir. Inclusive os homens eram encontrados a vestir-se para almoçar ou jantar em suas próprias casas, fazendo-o até de preto. Mesmo o criado que servia nessas ocasiões apresentava-se vestido de casaca e ficava a esperar “teso e sério” a um canto.46 Também com relação ao grande número de escravos e serviçais que existiam na casa anteriormente, pode-se dizer que houve certa redução desses à medida que o espaço doméstico foi sendo despojado de suas atribuições produtivas. Foi possível observar tal aspecto ao comparar esses trabalhadores presentes na casa do pai de Brás Cubas no início do século com aqueles 45

MACHADO DE ASSIS, J. M., Helena, 1955, p. 234-5. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 121, 130, 350-1. OC. ; DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Martins/EdUSP, 1972. v. 1, p. 137-8.; COSTA, J. F., 1989, p. 89.; PERROT, M., Figuras e papéis. In: PERROT, M., 1991, p. 141. 46 MACHADO DE ASSIS, J. M., Dom Casmurro, 1957, p. 432-3. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 8-9, 59. OC. ; Idem, Contos fluminenses v.2, 1955, p. 360-1. OC. ; DEBRET, J. B, 1972, p. 137-8. 39

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da mesma residência já por volta de 1840, ou aqueles existentes na casa da mãe de Bentinho, em Dom Casmurro, na década de 1860, tantos que abarcavam “todas as letras do alfabeto”, com aquele único criado na residência dele, em adulto, em 1890, ou se ainda atentarmos para a moradia de Rubião, em torno de 1860, onde só havia dois criados estrangeiros e um crioulo. Tal redução pode estar também ligada a uma lei de 1824, que estipulava “às pessoas de primeira consideração” não conceder “mais que três criados de porta acima, e às de segunda somente um”. Por meio dessa legislação, criavam-se melhores condições ao desenvolvimento do sentimento de intimidade e a quantidade da criadagem dependia da posição social e do nível de vida da família e os simbolizava.47 Tais transformações, que ocorreram rumo à ampliação das idéias de privacidade e intimidade, que se deram mediante a busca de se produzir certa domesticidade, entendida como lar, ambiente íntimo, confortável, aconchegante e afetuoso, estiveram associadas também aos deslocamentos efetuados na cultura material da sociedade. Melhoramentos como a introdução da iluminação a gás nas residências, a localização do edifício no lote e os aspectos arquitetônicos da casa contribuíram para a configuração e ampliação dessas noções. Se, em 1854, os lampiões de azeite foram substituídos, com a inauguração da iluminação pública urbana a gás na área central da cidade, que favorecia a exteriorização da família atraída para fora casa, nos anos de 1860, essa forma de iluminação entrava nas residências mais abastadas, produzindo ambiente interior que favorecia a constituição e a expansão de hábitos e sentimentos de privacidade e intimidade. O gás dava nova vida aos espaços, móveis e pessoas. Os abastados deixaram suas casas no velho centro acochado, sombrio, fétido e pestilento, indo para os arrabaldes espaçosos e ensolarados, onde predominava um novo “alinhamento de ruas para casas novas”, que, desde a década de

47 MACHADO DE ASSIS, J.M. Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 156. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 7, 297. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 127. OC. ; Idem, Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956, p. 72-3.

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1840, tentava impor-se. Porém, construir nesse momento uma residência nova “de feitio moderno”, um palacete desses em que moravam os ricos, requeria já mais do que simplesmente “encomendar o risco” a algum “pedreiro de fama”. Se, por volta de 1840, Viegas, de Memórias póstumas..., assim o fizera, lá para os fins dos anos 1860 e início da década de 1870, Palha, de Quincas Borba, “trazia apalavrado um arquiteto” para construir seu novo palacete. Conforme Costa, em detrimento de uma mão-deobra desqualificada, leiga, introduziram-se técnicos especializados. Se as casas eram mal construídas, sombrias e úmidas, a importação de materiais e a imigração de técnicos mudaram-nas. Rumo à europeização, as gelosias e rótulas de madeira deram lugar a janelas de ferro e vidraças, que permitiam arejar e iluminar os interiores, criando novo ambiente.48 Na casa abastada, iluminada pelo gás e pela claridade do dia, promoveu-se uma separação arquitetônica nítida entre os espaços, com divisões em cômodos especializados para dormir, toucar, comer, estar e resolver negócios, sendo a intimidade da vida doméstica, a privacidade e a domesticidade, salvaguardadas da invasão pública e de pessoas estranhas. Mas, além dessa divisão, as casas novas e abastadas, construídas nos bairros elegantes nos arredores da cidade, que proliferavam na segunda metade do século, eram afastadas do alinhamento das calçadas, possuindo, geralmente, em tal recuo, espaços ajardinados, que as distanciavam e isolavam da rua, assim como, mesmo que, às vezes, só parcialmente, dos prédios contíguos, tendo entradas laterais. Eram sobrados, mansões hospitaleiras, belos solares, palacetes, encontrados, muitas vezes, em grandes chácaras ou espaços menores, usualmente, localizados em Botafogo, Andaraí, Laranjeiras, Santa Teresa, Rio Comprido, São Cristóvão e Catete.49

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Idem, Papéis avulsos, 1957, p. 38. OC. ; Idem, Crônicas v.1, 1955, p. 199. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 267. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 273. OC. ; COSTA, J. F., 1989, p. 112-3. 49 MACHADO DE ASSIS, J. M., Ressurreição, 1955, p. 11. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 7, 14, 270. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 32. OC.; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 33,128. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 7. OC. ; ARIÈS, P., 1981, p. 259, 265. ; ANDERSON, M., 1984, p. 45. 41

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Araújo considerou que esses grandiosos palacetes, “geralmente com dois andares, eram afastados da rua por jardins ingleses ou franceses, decorados por estátuas e repuxos, com parque com árvores frutíferas nos fundos e cercados por uma imponente grade de ferro.” De acordo com tal proposição, podemos lembrar de algumas casas espaçosas nas quais viviam alguns personagens machadianos dos setores médio e alto da sociedade, como aquela em que morava o casal Santos, de Esaú e Jacó, na enseada da praia de Botafogo. Era “uma casa suntuosa”, que “descobria-se à distância, magnífica”, na qual havia uma “estatueta de Narciso no meio do jardim”. Dentre outros, como Palha e Sofia, de Quincas Borba, que, saídos de Santa Teresa moravam na praia do Flamengo e “cuidavam ambos de outra casa, um palacete em Botafogo” como coroação de sua ascensão social; Rubião, por sua vez, vivia numa “grande casa de Botafogo”, com vasto jardim, “belas rosas” e portão de ferro, de onde “ele admirava aquele pedaço de água quieta”. 50 Segundo D’Incao, a “construção de casas isoladas proliferou depois da libertação dos escravos e da proclamação da República” e a “disposição do espaço no interior da residência” permitiu “um processo de privatização da família marcado pela valorização da intimidade.” Assim, encontramos, nas casas abastadas, salas de trabalho e estar, “saleta de conversação entremeada de crochet”, costura e leituras; sala de jogos, de jantar, de visita; gabinetes de serviço dos homens e gabinetes para fumantes, em ocasiões de recepções, que eram espaços domésticos intermediários entre o íntimo e o público. Já em esfera mais restrita, estavam os quartos de vestir e toucar _ camarim; quartos para os filhos e outros para as filhas; e até mesmo, em algumas residências, quarto para o marido e outro para esposa.51

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MACHADO DE ASSIS, J. M., Esaú e Jacó, 1959, p. 34. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 7, 54, 62, 147, 377. OC. ; ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 239. 51 MACHADO DE ASSIS, J. M., Helena, 1955, p. 9, 56, 166. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 10. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 112. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p.421. OC. ; Idem, Quincas Borba, 42

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Desta forma, casas grandes, arejadas; jardins espaçosos, ensolarados, belamente ornados; bairros chiques e elegantes tornaram-se a nova medida do estilo de bem-estar burguês. O sentimento de privacidade e interiorização do núcleo doméstico, do lar, que, aos poucos, foi se construindo, fortificava-se, à medida que se estruturava o novo ambiente residencial. No processo de privatização, os espaços reservados na casa para responder às necessidades das recentes formas de sociabilidades em expansão, que expressavam a abertura desse universo recôndito ao público e ao mundo exterior, não ultrapassavam nunca a área social, como salas de visitas e de jantar, salões e gabinetes de trabalho e estar.

2. O QUARTO DE DORMIR: INTIMIDADE E INDIVIDUALIDADE Mesmo em situações incomuns, como em casos de doença, ao quarto de dormir, eram poucos os freqüentadores da casa que adentravam. No quarto de uma donzela, homem raramente penetrava, inclusive, estando ela enferma, sendo aberto apenas a alguns familiares e famílias muito íntimas, assim como ao padre e ao médico, que, no decorrer do tempo, substituiu o primeiro junto ao leito dos doentes. Essa intromissão do médico na intimidade do lar possibilitou a edificação da nova família de acordo com os princípios da medicina higienista. Assim, no conto Encher tempo, de Histórias românticas, Pedro, amigo do padre Sá e de sua sobrinha órfã Lulu, sendo dela também seu pretendente, ao ir visitá-la, durante longa doença, contentou-se apenas em receber “a agradável notícia”, dada por sua mãe de criação, de que a moça estava “sem perigo”. Só depois de cinco dias, Lulu saiu do quarto e foi possível a Pedro vê-la durante os dias de sua convalescença, quando continuou freqüentando a casa.52

1957, p. 217, 236, 238, 296. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 36. OC.; D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, Mary (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 228. 52 MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias românticas, 1955, p. 435-6. OC. ; COSTA, J. F., 1989, p. 109. 43

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Afora as ocasiões de doença, os homens, mesmo que membros da família, não deveriam adentrar ao quarto de dormir das donzelas, principalmente, se namorado, pois sua penetração nesse espaço era motivo de desonra e desacato ao decoro familiar. Era passo rumo a sua perdição, como no caso de Emília, de Contos recolhidos, ou de Margarida, de Contos fluminenses, com quem Mendonça casou-se “para salvar-lhe a reputação”, pois havia entrado em seu quarto, o que tornava “o casamento [...] inevitável” para não deixá-la “ficar debaixo da ação da maledicência...” pública. Da alcova de uma moça, lugar de sua maior intimidade e individualidade, estava excluída a visita masculina, como se pode ver ainda no conto Anjo das donzelas, de Contos avulsos. O melindre que envolvia essas situações levou o narrador, antes de tudo, a prevenir seu público, anunciando: “_ Cuidado, leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela”. No seu dizer, esta notícia “estremece e hesita” o leitor, coisa que era “natural”, se “homem de bons costumes”, que “acata as famílias e preza as leis do decoro público e privado”. Além disso, o narrador buscava tranqüilizar a quem lia, frente à interrogação à sua consciência, se devia ou não continuar a leitura, ressaltando que, em tal episódio, não se delinearia cena ou teoria alguma “contra a qual proteste a moralidade” ou que não pudesse vir “à luz pública”. 53 Nesse contexto, no sonho fantástico de Cecília, quem entrou porta adentro de seu quarto foi um ser com “aspecto masculino e feminino”, colocando-lhe um anel no dedo, com a finalidade de que nunca se apaixonasse e fosse lhe preservada a paz. Esse ser andrógino, fruto de sua fantasia, circunscrita pela imaginação social, funcionava como saída inconsciente, catártica, para explicar-se e transcender a existência de um homem no seu quarto, o qual, possivelmente, lhe teria colocado o anel, sem lhe trazer nenhuma mácula. Porém, na realidade, quem o fizera fora uma escrava aliciada por um primo da moça, mas disso ela não sabia; era imperativo, precisou sonhar.54

53 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos recolhidos, 1956, p. 46-9, 56-60.; Idem, Contos fluminenses v.1, 1955, p. 44-5. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 9. 54 Idem, Contos avulsos, 1956, p. 9-29.

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Vida Privada: privacidade, intimidade e individualidade no aconchego do lar

Em tal processo de estruturação da privacidade familiar e da intimidade dos indivíduos, no qual as formas tradicionais de convivência estavam em dissolvência e, com elas, a indiferenciação niveladora das pessoas perdidas na coletividade, teve lugar uma marcha rumo à individualização dos sujeitos. Conforme Muricy, paralelo ao “duplo movimento de exteriorização e privatização da vida familiar, ocorre também o que se poderia chamar de individualização de seus membros.” 55 Esse deslocamento estava associado a uma crescente ênfase dada à distinção das personalidades, ao desenvolvimento da subjetividade pessoal e dos direitos individuais. Assim, os casamentos passaram a ter seu arranjo alterado de forma gradual, levando um pouco mais em consideração o querer dos indivíduos diretamente envolvidos na questão, o moço e a moça, embora, não raro, a escolha fosse trespassada pela conveniência e pelo intuito de ascender socialmente. A influência familiar, dos pais na escolha continuou existindo, não sendo raros os projetos traçados para os filhos, pelos quais estavam destinados a alguém diferente daquele de sua eleição. Mesmo que vários desses arranjos tivessem sua realização frustrada, a vontade dos pais era ainda imposta, principalmente, às filhas e, portanto, a autonomia destas, relativa, mas crescente. Até mesmo em relação aos procedimentos de leitura, o costume tradicional da prática grupal e coletiva, inserida no contexto de uma sociedade marcada pelo predomínio da oralidade e do analfabetismo, passou a dar lugar aos hábitos individualizados. Se antes se lia na sala “em voz alta uma novela que a mãe interrompia com reflexões substanciais de moral e disciplina”, como o fazia Pedro, de Histórias românticas, ou, às vezes, como José Dias, em Dom Casmurro, de modo “cantado e compassado”, cresceu e avançou o hábito da leitura solitária e individual. Esta postura foi percebida ao deparar-se com o grande número de personagens fazendo suas leituras a sós. Assim, o filho do comendador Aguiar, de Histórias românticas, lia “um romance de Feydeau” no gabinete, com as portas fechadas; o solitário conselheiro Aires, de Esaú e Jacó, era ledor do escritor 55

MURICY, K., 1988, p. 61. 45

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grego Xenofonte, fazendo-o à mesa de refeição; a donzela Cecília, de Contos avulsos, lia no quarto um romance, talvez Paulo e Virgínia ou Fanny; ou como Inácio, de Várias histórias, que lia alguns folhetos muitos populares, como a Princesa Magalona, deitado numa rede em seu quarto, dentre outros.56 O quarto, nesse movimento de individualização, de produção de indivíduos independentes, era o lugar mais privado, mais íntimo dentro da casa, onde a subjetividade individual mais profunda se expressava e se expunha com maior intensidade. D’Incao ressaltou que as alcovas eram espaços do segredo e da individualidade, fornecendo “a privacidade necessária para a explosão dos sentimentos: lágrimas de dor ou ciúmes, saudades, declarações amorosas, cartinhas afetuosas e leitura de romances pouco recomendáveis”. Era onde se lia, chorava, ria-se e, sendo o indivíduo mais verdadeiro, dava vazão a sua expressão psicológica mais íntima e profunda, que, geralmente, entrava em choque como o mundo exterior, insípido e hostil. Era aí que, frente às situações mais difíceis, as pessoas deixavam aflorar sua interioridade com toda a intensidade, deixando vir à tona o que lhes perturbava e encontrava reprimido. Foi no quarto que Emília, de Contos recolhidos, uma moça “enganada e perdida”, pode “chorar mais à vontade”, assim como foi aí que Guiomar, de A mão e a luva, “deu toda a expansão aos sentimentos que até ali pudera conter”.57 De acordo com Leite e Massaini, a alcova era o espaço feminino por excelência, sendo ainda “o espaço das manifestações mais íntimas das personagens. O choro, a explosão de dor, o devaneio e os segredos da paixão expandiam-se aí”. Se, nas salas, “tinha lugar a cortesia e usava-se a máscara, na alcova, desenvolvia-se a imaginação e eram feitas as revelações.” Também, segundo as autoras, “essa oposição nítida do espaço marca no romance a divisão entre o desejo e a possibilidade de sua manifestação”, sendo “sinal de uma divisão mais profunda, [...] 56 MACHADO DE ASSIS, J. M., Várias histórias, 1957, p. 57. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 146,408. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 240-5. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 10, 11. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 79. OC. 57 Idem, Contos recolhidos, 1956, p.46,59. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 192-213. OC. ; D’INCAO, M. A., 1997, p. 229.

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a fragmentação da personalidade” e a imposição da “máscara social”, vista como “índice das contradições profundas da sociedade burguesa e capitalista.” 58 Mas, além de se ver o quarto como o lugar da maior intimidade e espaço relevante no processo de privacidade e individualização dos homens, onde se dava livremente a expansão dos sentimentos, que, fora dele, eram contidos e dissimulados, pode-se perceber aí, ainda, a busca de se fazer valer a vontade e os direitos individuais. Na formação subjetiva do indivíduo, foi também no vasto quarto dos filhos que os gêmeos de Natividade, em Esaú e Jacó, Pedro e Paulo, puseram-se em combate, procurando expressar suas preferências pessoais, ideológicas e políticas. Pregaram eles, às cabeceiras de suas respectivas camas, retratos de Luís XVI e de Robespierre, pois um era monarquista e outro republicano. Além do que, na ânsia de seu espaço autônomo, foi que Pedro mudou, “a pretexto de sentir mais calor que Paulo”, certa feita, de quarto e “foi dormir mal em outro não menos quente que o primeiro”. Esses indivíduos personalizados, os quais só em físico eram “tão parecidos”, ansiavam por firmar sua individualidade e buscavam isolamento e distinção, culminando na separação de um quarto para cada filho. Vendo ainda o quarto como elemento destacado na construção da individualidade e subjetividade moderna, o casal Palha, em Quincas Borba, possuía quartos separados, mesmo se dando bem, o que, por outro lado, era um obstáculo a uma maior intimidade entre o casal.59

3. NO CONFORTO E NO ACONCHEGO DO LAR Relevante na argumentação de que um movimento de individualização emergente constituía-se, o conselheiro Aires, em

58

LEITE, Miriam M.; MASSAINI, Márcia I. Representações do amor e da família. In. D’INCAO, M. A (org.) Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989. p. 75-6. 59 MACHADO DE ASSIS, J.M., Esaú e Jacó, 1959, p. 80, 106, 386. OC.; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 296. OC. ; ANDERSON, M., 1984, p. 47. ; MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. In: PERROT, M., 1991, p. 246. 47

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Esaú e Jacó, ao se aposentar como diplomata, rompeu com a prática, bastante usual, de morar com sua irmã viúva D. Rita, que vivia sozinha. Esta teimou em levá-lo para sua casa, dizendo ser “sua última parenta”, mas ele negou, afirmando querer seu “canto”, ao que ela replicava perguntando por que ele preferia “viver com estranhos”, levando-o a indagar e afirmar em seguida: “_ Que estranhos? Não vou viver com ninguém”. Porém, mesmo essa solitária senhora, em seguida, quando Aires reverteu a proposta, convidando-a para morar na casa dele, respondeu que também gostava de estar consigo mesma. Ajustaram, por fim, a visitar um ao outro semanalmente. Indivíduos solitários, aqueles que viviam sós, não compartilhando com outras pessoas sua casa, aparecem com freqüência na obra machadiana.60 Na família moderna, que, de forma crescente, manifestou apreço pela privacidade doméstica e a buscava valorizando a convivência íntima, a domesticidade, e preservando a autonomia de suas individualidades, a casa passou a ser lugar onde o conforto e o aconchego asseguravam ao homem estabilidade, segurança e descanso das atribuições no trabalho e na vida profissional; o lar torna-se um retiro do mundo do trabalho.61 Com o desenvolvimento urbano, econômico e político e as mudanças das relações sociais do tipo senhorial às de estilo e molde burguês, os homens se depararam com uma nova realidade. Tinham de se adaptar às suas exigências, ingressando no mundo dos negócios, do trabalho administrativo, da rotina burocrática e da política, sendo funcionários públicos de escalões variados, empregados em repartições, deputados, senadores, ministros, diplomatas, desembargadores, presidentes de província ou profissionais liberais, como médicos, advogados, arquitetos, gerentes..., ou “capitalistas”, como banqueiros, industriais, comerciantes, especuladores, dentre outras atividades. Nesse contexto, cresceu a preocupação com a beleza e o estilo da casa, sua fachada e seu interior. A moradia deixou de ser espaço de auto-suficiência econômica, como era, em 1839, a casa de D. Antônia, dos Contos sem data. O nome que tal edifício 60 61

MACHADO DE ASSIS, J. M., Esaú e Jacó, 1959, p. 127-130. OC. ANDERSON, M., 1984, p. 44-6.

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recebeu entre o povo designava seu significado como representação de um tempo, antigo; era chamado de “Casa Velha”, por datar dos fins do outro século, sendo “uma edificação sólida e vasta, gosto severo, nua de adornos”, constituindo-se em “um pequeno mundo”, que até gado e carro de bois possuía. Semelhantes funções, de unidades econômicas, tinham as casas do pai de Brás Cubas, também na primeira metade do século, com grande número de escravos, onde se faziam tachadas de doce, matavam-se capados... como também a de D. Glória, em que, ainda em meados dos oitocentos, com extensa escravaria, socava-se milho, plantava-se horta...62 Na recente cultura familiar que se constituía, a casa, também nova, era o refúgio onde o homem de negócios, encarregado de produzir o sustento material dos seus, sobretudo, esposo e pai, se recolhia para descansar e cultivar a afeição da família. Assim o fazia Aguiar, em Memorial de Aires, e o cunhado de Brás Cubas, em Memórias póstumas..., Cotrim, que “comerciava em gênero de estiva” e que “labutava de manhã até à noite, com ardor, com perseverança”, ficando à noite em sua confortável casa, guarnecida com tapetes, cortinas e sala “ricamente alfaiada, sentado à janela, a encaracolar as suíças”, não pensando em outra coisa senão na família, pois “amava a mulher e um filho”. 63 A decoração interior da casa mostrava a opulência e a respeitabilidade de seu morador, assim como o que estava em moda no momento com relação a móveis e ornamentos trazidos das nações industrializadas, indicando, ainda, a europeização do seu gosto. Nesse sentido, o criado de Brás Cubas alçava as cortinas, barreiras voltadas para preservar a intimidade e garantir privacidade, e escancarava as janelas, buscando mostrar para todos a riqueza e o fausto de seu senhor. Mesmo o major Siqueira, em Quincas Borba, amigo de Rubião, dava essa medida, ao comentar que havia gostado muito da casa daquele, “das alfaias,

62

MACHADO DE ASSIS, J. M. Contos sem data, 1956, p. 164-7, 175. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 46, 54. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 296. OC. 63 Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 37. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 103-4, 408. OC. 49

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do luxo, de todas as minúcias, ouros e bambinelas”, referindo-se aos sofás, pouf, tapetes, canapés, estatuetas, gravuras...64 Não se pode deixar de mencionar, aqui, a casa e as atitudes de Mateus em Itaguaí, que enriqueceu fabricando albardas e “tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara”. A moradia que acabara de construir, segundo o narrador, “bastava para deter e chamar toda a gente”, mas havia também “a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda”, que podia ser vista “do lado de fora, porque as janelas viviam sempre abertas”, além do “jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto”. Ele vivia “na contemplação da casa nova, [...] mais nobre do que a da câmara”, sendo costume seu “estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora...”. 65 Toda essa suntuosidade inseria-se no movimento crescente das importações de produtos estrangeiros, sobretudo, europeus, que ocorreu depois de cessado o tráfico, que, como observou Alencastro, tomaram proporções consideráveis. No seu dizer, “vários fatores demonstram que houve um forte acréscimo na entrada de importados _ bens de consumo semiduráveis, duráveis, supérfluos, jóias etc. _ destinados aos consumidores endinheirados da corte e das zonas rurais vizinhas”. Na pauta de importações, produtos para guarnecer e ornar a casa tiveram lugar de destaque, além de uma imensidão de “quinquilharias francesas”, ligadas, inclusive, à produção do vestuário e da moda, em decorrência dos folhetins, operetas e romances que, vindos da França, difundiam, no Império, imagens de um modo de vida europeu, as quais apareciam como “paradigma de civilidade para a sociedade tropical”. 66 No processo de construção do lar como espaço de comodidade da família, a preocupação com a decoração e com o interior da casa e mesmo com a imagem pública de seus

64

Ibidem, p. 408. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 8-9, 166. OC. Idem, Papéis avulsos, 1957, p.38-9. OC. 66 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, L. F. (org.) História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 37. 65

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moradores tornou-se imprescindível. Móveis, cortinas e ornatos guarneciam a casa bem montada, onde habitava, meio ao conforto, a nova família burguesa. Nesse contexto, um homem aspirante à vida elegante e sabedor dos códigos sociais aos quais se deveria ater para ser aceito nas altas rodas despendia boa parte de seus ganhos em gastos com “reuniões freqüentes, vestidos caros e jóias para a mulher, adornos de casa, mormente se eram de invenção recente...” para mostrar aos outros suas condições. A atitude adequada ao momento aproximava-se à de “um rei Candaules, mais restrito por um lado, e por outro, mais público.” 67 A mobília e os ornatos expostos, aos olhos dos convivas, eram sinais de distinção, de adequação e inserção de seus proprietários em dados círculos da sociedade. Desta forma, os convidados de Rubião, que foram, certa feita, a seu gabinete, fizeram-no precedidos por um criado, que acendeu o gás e, assim, “admiraram os móveis bem feitos e bem dispostos. A secretária captou as admirações gerais; era de ébano, um primor de talha, obra severa e forte”. Mas, além disso, “uma novidade os esperava: dois bustos de mármore, postos sobre ela, os dois Napoleões, o primeiro e o terceiro”, governantes burgueses, símbolos da ascensão e poder dessa classe. Segundo Hobsbawm, com a destruição da Revolução Jacobina, o mito napoleônico irradiou-se de tal forma na sociedade “que nenhuma sala de classe média estava completa sem o seu busto”. Os homens de negócios daí em diante tinham um nome para suas ambições: “ser _ os próprios clichês o denunciam _ um ‘Napoleão das finanças’ ou da indústria”. 68 A moradia passou a possuir certo clima interior, que permitia a emanação de novos sentimentos e afetividade, criados por uma intimidade, até então, inexistente. Nas “pobres moradias do período anterior”, de acordo com Holanda e Costa, o mobiliário e a decoração eram igualmente pobres, sendo escassos os objetos de ornamentação e a mobília, geralmente, fabricada 67

MACHADO DE ASIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 67. OC. Ibidem, p. 282. ; HOBSBAWM, Eric. J. A era das revoluções. Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 93-4. 68

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artesanalmente pelos poucos artífices locais. Já na casa ricamente mobiliada, a família desfrutava de novo conforto de tipo burguês, marcado pela proliferação de mobiliário requintado e funcional, meio que, valorizando o convívio íntimo, emanava novos sentimentos e laços entre seus membros.69 Conforme Alencastro, a mercadoria-fetiche dessa fase econômica e cultural foi o piano. De alto valor agregado e de imediato efeito ostentatório _ as duas características que fazem desde então a felicidade respectiva dos importadores e dos consumidores brasileiros de renda concentrada _ , o piano apresentava-se como o objeto de desejo dos lares patriarcais. Comprando um piano, as famílias introduziam um móvel aristocrático no meio de um imobiliário doméstico incaracterístico e inauguravam _ no sobrado ou nas sedes das fazenda_ o salão: um espaço privado de sociabilidade...70

Assim, em residências confortáveis, ao lado do indispensável piano, encontravam-se móveis como dunquerques, sofás, cadeiras, marquesas, canapés, otomanas, pufes, ou mesmo ainda a rede, que frente a tantas modas estrangeiras, subsistia. No entanto, por outro lado, os tapetes tecidos vieram aos poucos substituir “a palhinha do chão” e, dessa forma, “quando não havia tapete”, em uma casa requintada, “havia palhinha”. Nas paredes de prédios assobradados, em vez de pinturas de flores, pássaros e motivos greco-romanos clássicos, usuais no decênio de 1830, papéis decorativos e “gravuras inglesas”, além das

69

MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias sem data, 1957, p. 106. OC.; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 328. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 13. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 191. OC. ; HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1967. v. 2 , t. 2. , p. 321-6. ; COSTA, J. F., 1989, p. 85-6. 70 ALENCASTRO, L. F., 1997, p. 47. 52

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fotografias encaixilhadas. Elas poderiam ainda estar sobre a mobília ou expostas em álbuns como uma valiosa marca de distinção, sendo objetos para serem admirados pelos visitantes e meios de divulgar a imagem da família. Esses artefatos fotográficos inserem-se, de acordo com Mauad, no processo de fabricação da auto-imagem das classes abastadas, no qual a pose foi “o ponto alto da mise-en-scène fotográfica oitocentista”, expressando “a idéia de performance, ligada ao fato de o cliente assumir uma máscara social...”. 71 Desta forma, os móveis do alabardeiro Mateus, de O alienista, que “ele mandara vir da Hungria e da Holanda”, contrastavam com a solidez, peso, desconforto e mesmo pobreza da mobília colonial. Os de Rubião, de Quincas Borba, não eram menos raros, afinal ele, um novo rico, devido ao recebimento de herança, ficava por “algum tempo, a olhar para os móveis”, talvez, admirando-os e buscando acostumar-se com eles, ou, quem sabe, pensando como o major Siqueira, relembrando alguma mobília antiga. Apesar de amar o ouro e a prata, ornou a sala com duas estatuetas, “um Mefistófeles e um Fausto”, de bronze, que “era matéria de preço”, como lhe indicou Palha, amigo enfronhado nas novidades oriundas do comércio de importados, do qual se tornou sócio, mais tarde, numa casa de importação. Após o exame dos bronzes, quadros e móveis, uma visita que fora ver-lhe o jardim e as rosas, declarou: “_ Sim, senhor! [...] o senhor vive como um fidalgo”. 72 Ainda com relação à decoração, as “gravuras inglesas”, sobretudo, vieram substituir na casa moderna os santos coloniais. Nesse sentido, encontramos José Lemos, em Histórias da meia-noite,

71 MACHADO DE ASSIS, J.M. Contos sem data, 1956, p. 81. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 7-8, 124, 269. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 9, 98, 213. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 212. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 174. ; Idem, Contos esparsos, 1956, p. 127. ; MAUAD, Ana Maria. Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado. In: ALENCASTRO, L. F. (Org.), 1997, p. 191. ; MUAZE, Mariana. Sem perder a pose. Revista de história, Rio de Janeiro, v. 1, n. 7, p. 77-81, jan. 2006. 72 MACHADO DE ASSIS, J.M. Papéis avulsos, 1957, p. 38. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 8, 9, 54-5, 147, 166. OC.

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pregando “à parede duas gravuras compradas [...] em casa de Bernasconi; uma representava a Morte de Sardanapalo; outra a Execução de Maria Stuart”. Já Conceição, de Páginas recolhidas, por sua vez, reclamava das “duas gravuras que pendiam da parede” de sua residência, postas pelo marido, visto que “eram mulheres” representadas nos quadros, “vulgares ambos”, como um de Cleópatra, frente às quais “preferia duas imagens, duas santas”, achando aquelas “mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro” e não “casa de família”. Tal atitude indica ainda a diminuição da inspiração religiosa e o avanço da secularização da sociedade, marcada, também, pela substituição das imagens sacras na decoração do lar.73 Pertencendo a esse espaço do privado e da intimidade, os animais domésticos de estimação tiveram destaque, pois, no decorrer do século, o sentimento dedicado a eles aumentou, segundo Perrot. Eles foram tratados como parte da família e como pessoa. O conto Miss Dollar oferece bem a medida de como os cães ascenderam no imaginário, sendo esse o nome da cadelinha galga “de grande estimação” de Margarida, que ia, inclusive, à rua do Ouvidor de carro com ela e adentrava as lojas. Sendo “um mimo” da casa e estando perdida, sua dona ofertou duzentos mil-réis de recompensa a quem a encontrasse. Em sua coleira, havia a inscrição “De tout nom coeur”, e quando faleceu, a moça chorou, enterrou-lhe o corpo na chácara e cobriu com uma lápide com a inscrição: “A Miss Dollar.” Nesse conto ainda, o médico Dr. Mendonça fazia “coleção de cães” e os tinha “de todas as raças, tamanhos e cores”, cuidando “deles como se fossem seus filhos”. Sua “família compunha-se dos animais citados” e, no seu espírito, “o cão pesava tanto como o amor”, embora, conforme o narrador, não fosse um homem excêntrico.74 Mas foi em Quincas Borba que essa representação do animal doméstico “de muita estimação”, visto como gente, triunfou, causando discussões até na esfera do direito. Rubião,

73 Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 93. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 100. OC. 74 Idem, Contos fluminenses v.1, 1955, p. 10-3, 21, 46. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 178.

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com a morte do filósofo Quincas Borba, fora nomeado herdeiro universal com a condição de guardar consigo o cachorro daquele cujo nome, Quincas Borba, recebera “por motivo da grande afeição que lhe tinha.” O testador exigia que “o tratasse como se fosse a ele próprio”, e que dele cuidasse “como se cão não fosse, mas pessoa humana”. Impunha que, quando morresse o animal, lhe desse uma sepultura decente, em terreno próprio, o cobrisse de flores e plantas cheirosas e depois, quando passasse o tempo certo, desenterrasse-o recolhendo os ossos em uma urna de madeira preciosa a ser depositada no lugar mais honrado da casa. O cão, segundo Rubião, merecia “a estima do dono: parece gente”, não “gente como a outra gente, mas tinha coisas de sentimento, e até de juízo”. Ele percorria o jardim, adentrava a casa, estava no andar de cima e de baixo, na sala e no gabinete... recebia carícias, alimento, banho... sendo vigiado para não fugir, pois o herdeiro temia as longas demandas e ficava em dúvida diante da “variedade das opiniões jurídicas” sobre os assuntos. Sua presença preconiza o lugar que tais animais atingiram em nossos dias, quando, por exemplo, em 1983, o dono de um cão lhe legou sua fortuna causando embaraços na justiça.75 A edificação desse estilo de ambiente privado, modelado pela alta burguesia, repercutiu nas classes média e trabalhadora, como indica a experiência do casal Aguiar e de D. Tonica e seu pai, em Quincas Borba. A casa dos últimos “dizia a pobreza da família”, tinha poucas cadeiras, uma mesa redonda velha, um canapé gasto e nas paredes duas litografias encaixilhadas em pinho pintado de preto, uma com o retrato do major, a outra representava o Veronês em Veneza. Mas, por outro lado, “o trabalho da filha transparecia em tudo; os móveis reluziam de asseio, a mesa tinha um pano de crivo, feito por ela, o canapé uma almofada”. 76 Já para o casal Aguiar, a quem “a pobreza foi o lote dos primeiros tempos de casados”, enquanto o marido “dava-se a trabalhos diversos para acudir com suprimentos à escassez dos vencimentos”, a esposa, “D. Carmo, guiava o serviço doméstico, 75

MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 25, 32, 36, 94. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 178. 76 MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 276-7. OC. 55

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[...] dando aos arranjos da casa o conforto que não poderia vir por dinheiro”. Estes eram trabalhos de mão feitos “com alinho raro, unindo o gracioso ao preciso, tudo trazia a marca da sua fábrica, a nota íntima da sua pessoa”, como “tapetes de mesa e de pés, cortinas de janelas e outros mais trabalhos que vieram com os anos”. Ainda segundo o narrador, essa dedicada senhora “teria inventado, se fosse preciso, a pobreza elegante”, pois “sabia conservar o bastante e o simples; mas tão ordenadas as coisas, tão completadas pelo trabalho” de suas mãos, “que captavam os olhos ao marido e às visitas”. 77 No ambiente doméstico, criado por D. Carmo, guiado por ela, “ajudando o pessoal” do serviço, Aguiar “era feliz”, e todas as peças “traziam uma alma”. Ali, para “sossegar das inquietações e tédios de fora, não achava melhor respiro que a conversação da esposa” e a “doce lição” de seus olhos. “Era dela a arte fina que podia restituí-lo ao equilíbrio e à paz”, uma vez que eles não tinham filhos. O lar passou a ser o lugar da família; distante do trabalho e suas preocupações, no qual as relações entre os membros eram representadas com relevo, cheias de afetividade, restituindo ao homem as forças para voltar ao mundo do trabalho.78 Respirando privacidade, a família nuclear, domesticada no lar, que se opunha ao espaço público, envolta pelas idéias de intimidade e individualidade, caminhou rumo a seu triunfo. A nova demarcação do domínio doméstico estruturou um ambiente permeado pelo sentimento de privacidade, atrelado às noções de aconchego, conforto e convivência entre os membros da família, cada vez mais individualizados e marcados por uma interioridade em confronto com o mundo exterior em constante ebulição e que fragmentava sua personalidade.

4. QUANDO O ESPAÇO PRIVADO ABRE-SE AO MUNDO EXTERIOR Com europeização da sociedade, junto com sua secularização, seus membros experimentaram alterações em suas 77 78

Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 35-7. OC. Ibidem, p. 35, 37.

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práticas de convivialidade e sociabilidade, percebendo a importância das variadas formas de recepção para sua inserção e triunfo social e econômico. A recepção particular tornou-se espaço de sociabilizar, de convivência e de diversão necessários, pois as ocasiões de encontro e convívio, dantes acontecidas ao redor das festas religiosas, diminuíram e já não acompanhavam as exigências dos novos contatos solicitados pela dinâmica relação entre as maneiras de ver o mundo, as práticas socioculturais e as forças econômicas em alteração. Nas reuniões acontecidas nos espaços privados era que a sociedade buscava nivelar-se na aparência à nobreza e à burguesia européias, obtendo lucros simbólicos, políticos e econômicos, que os salões, com seu prestígio, puderam lhes dar, além das inigualáveis oportunidades de confraternização e divertimento. Nas recepções privadas, criavam-se condições de relacionamentos e interações benéficas aos interesses de seus anfitriões, pois aí pessoas eram apresentadas, relações iniciadas ou estreitadas, às vezes, entre indivíduos poderosos e importantes. Eram os salões cenários por excelência da sociabilidade e do lazer, veículos informais na busca da ascensão e da mobilidade social, onde formas diversas de poderes foram arregimentadas.79 Nesse novo espaço social em constituição e no jogo que nele foi praticado, houve uma notável elevação da figura da mulher, agora instrumentalizada pela educação, cabendo a ela um papel fundamental, que foi aprendido também no exercício dos salões para ser bem desempenhado. Totalmente submissa ao marido, teve ampliada sua liberdade e modos de expressão pessoal, sendo impelida a dar conta dos deveres a ela destinados e a se individualizar, visto que da sua habilidade e de seus conhecimentos dependia o sucesso de uma recepção e mesmo da família, que poderia advir do modo como se comportava, às vezes, encaminhando os negócios do marido. A senhora do lar constituía em capital social, fazia funcionar a vida privada e as relações da família com o mundo externo organizando a sociabilidade, visitas e recepções, ocorrendo mesmo uma

79

COSTA, J. F., 1989, p. 104, 106-7. 57

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mercantilização de seu corpo, da qual eram tirados proveitos comuns ao núcleo familial e também particulares.80 Daí a importância das “prendas de sociedade” na educação feminina, como tocar piano, cantar e falar francês. Essa “educação de sala” constituía-se em bens simbólicos indispensáveis para administrar os ritos da vida privada, construir redes sociais e garantir bom êxito e prestígio. Era do pacto do casal que decidia somar as “glórias de plena propriedade”, próprias de cada um, às “glórias de empréstimo”, tomadas do outro, que ocorria o sucesso da empresa de ascender-se econômica e socialmente. As atitudes das mulheres para como seus convidados, como lhes convinha, deveriam ser recheadas de “atenções particulares”, sobretudo, àqueles que, ocasionalmente, lhes podiam favorecer, mesmo que no futuro. A mulher elegante devia receber as visitas do marido, cuidar de suas relações com o mundo exterior e público, estando presente à mesa e às conversações. Era também de seus salões que os namoros e casamentos se davam. Nestes, por entre danças, leques, vinhos... muita corte era realizada.81 Em A mão e a luva, na cena final do romance, ficou estampado o pacto realizado entre Guiomar e Luís Alves rumo ao triunfo social. Os noivos, recém-casados, em conversação, afirmaram que a determinação e a ambição eram virtudes necessárias para vencer, para ascender na sociedade. Luís as possuía, mas, além disso, segundo ele, recebeu “força nova” ao unir-se com Guiomar, na qual fiava e buscava “fazê-la vingar”. Da junção de suas forças, dariam um ao outro, aquilo que ambiciosamente almejavam, ajustando-se ao objetivo comum, “como se aquela luva tivesse sido feita para aquela mão”.82

80 COSTA, J. F., 1989, 107-8. ; SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 119. 81 MACHADO DE ASSIS, J. M., A semana v. 1 apud SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 83.; Idem, Helena, 1955, p. 40. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 103, 142. OC. ; COSTA, J. F., 1989, p. 108, 119. 82 MACHADO DE ASSIS, J. M., A mão e a luva, 1957, p. 241-2. OC.

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Mas essa história não acabou aí, foi continuada por Sofia e Palha, de Quincas Borba. A bela Sofia, filha de um velho funcionário público e de origem pobre, casou-se com um especulador, Cristiano de Almeida e Palha, um “zangão da praça”, que “ganhava dinheiro”, de olho na mobilidade social que este representava. Enriquecia a cada dia, pois “era jeitoso, ativo e tinha faro dos negócios e das situações”, adivinhando, inclusive, “as falências bancárias”, que lhe renderam muito, além de ter alguns “fornecimentos para guerra, de sociedade com um poderoso”. Sofia, adequando-se aos procedimentos arrivistas do marido, passou a ser o chamariz para atrair capitalistas e políticos “poderosos”, com a finalidade de apoiar o esposo em seus negócios. Para servir de atrativo, Palha a exibia em “reuniões freqüentes”, com “vestidos caros e jóias”, indo, muita vez, “a bailes, em que se divertia pouco, mas ia menos por si que para aparecer com os olhos da mulher, os olhos e os seios.” Ele, como bom estrategista que era, “Tinha essa vaidade singular; decotava a mulher sempre que podia, e até onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares”. Tudo o que ganhava despendia ornando a casa e enfeitando a esposa para granjear as admirações, exibindo-se por “procuração”. Foi daí, em grande parte, que ocorreu seu êxito, uma vez que o ingênuo Rubião, por ela seduzido, financiou os negócios de Palha e tornou-se ainda seu sócio. Ela, agindo como relação pública da família, despendeu-lhe muitas “atenções particulares”, adulando-o de tal forma que ele confundiu tais cuidados com afeição, não os vendo apenas como sedução de salão. Esse procedimento pesou na hora em que o capitalista ponderava sobre a proposta de sociedade nos negócios com Cristiano.83 Sofia era exibida pelo marido como forma de mostrar seu sucesso comercial e para cultivar admiradores, afinal, ninguém se associa ao um fracassado. Segundo o narrador, a moça, a “princípio, cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas tais foram as admirações colhidas, e a tal ponto o uso acomoda a gente às circunstâncias, que ela acabou gostando de ser vista, muito vista, para recreio e estímulo dos outros”. Assim, deu 83

Idem, Quincas Borba, 1957, p. 67, 103, 124, 147, 149, 273. OC. 59

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aquele “empurrão para cima” nas relações sociais convenientes para o sucesso do casal, sendo apresentada, conhecendo gente, estabelecendo laços e organizando uma comissão de caridade de senhoras para assistir os necessitados sociais.84 A comissão de senhoras, que pôs “em evidência a pessoa de Sofia”, foi, de modo estratégico, composta por um grupo de “senhoras escolhidas”, que “não eram da roda da nossa dama, e só uma a cumprimentava”. Uma que já foi suficiente, pois por seu “intermédio” é que “conseguira que todas entrassem naquela obra de caridade”. Nessa comissão, que trazia novas relações à família, estava incluída D. Fernanda, esposa de um deputado “prestes a ser ministro de Estado”; daí a importância de “metêla na comissão”. Quando chegara ao fim da comissão, recebeu Sofia “elogios da imprensa; a Atalaia chamou-lhe ‘o anjo da consolação’”. No entanto, “nem todas as relações subsistiram, mas a maior parte delas estavam atadas”, e, segundo o narrador, “não faltava à nossa dona talento de as tornar definitivas.” Se o marido “pecava por turbulento, excessivo, derramado, dando bem a ver que o cumulavam de favores, que recebia finezas inesperadas e quase imerecidas”, era Sofia que vinha “emendálo, vexava-o com censuras e conselhos”, corrigindo suas “imperfeições” e instruindo-o a respeito de como se comportar socialmente. “Sofia é que, em verdade, corrigia tudo. Observava, imitava. Necessidade e vocação fizeram-lhe adquirir, aos poucos, o que não trouxera do nascimento nem da fortuna”. 85 Nessa perspectiva, pautada no seu programa de escalada social, de estabelecer intercâmbios e manter as relações da família, cada vez mais, foi que ela, pouco a pouco, “espanou a atmosfera” de seu círculo de convívio. “Cortou as relações antigas, familiares, algumas tão íntimas que dificilmente se poderiam dissolver; mas a arte de receber sem calor, ouvir sem interesse e despedir-se sem pesar, não era das suas menores prendas”. Desta forma, “uma por uma, se foram indo as pobres criaturas modestas, sem maneiras, nem vestidos, amizades de pequena monta, de pagodes caseiros, de hábitos singelos e sem elevação”. Quanto aos 84 85

Ibidem, p. 68. Ibidem, p. 192-3, 246, 285-6.

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homens, quando eles a viam passar de carruagem, a princípio, fingia que “não via”, mas arranjava os olhos de modo que percebesse se a viam, se a admiravam; por fim, “já nem os espreitava para saber se a viam” e “torcia os olhos duramente para outro lado, conjurando”, num gesto definitivo, “o perigo de alguma hesitação. Punha assim os velhos amigos na obrigação de lhe não tirarem o chapéu”. 86 No seu objetivo de promover a carreira de Palha, logo, a sua própria existência, de forma a alcançar triunfo econômico e social, Sofia, depois de seduzir Rubião, recebendo deste, além de empréstimos ao marido, ricos presentes de jóias e vultosa doação à comissão de caridade, foi mostrada a estabelecer novas ligações, a angariar, em uma recepção, as simpatias de Teófilo, político em ascendência, uma vez que já havia conquistado a esposa deste. Ele “envolvera Sofia em grande olhar de admiração”, pois ela “estava nos seus melhores dias; o vestido sublinhava admiravelmente a gentileza do busto, o estreito da cintura e o relevo delicado das cadeiras; _ era foulard, cor de palha”. Já seu esperto esposo, Cristiano, não conseguia “dissimular o prazer da lisonja”; sorria “cheio de vaidade”, diante a cena e do sucesso de seu empreendimento.87 Consagrando a ascensão social da família, que a princípio morava em Santa Teresa, passando depois ao Flamengo, eles se mudaram para um “palacete em Botafogo”, o qual “queriam inaugurar, no inverno, quando as câmaras trabalhassem e toda a gente houvesse descido de Petrópolis”. Era a temporada dos bailes. “Em outubro, Sofia inaugurou os seus salões de Botafogo, com um baile, que foi o mais célebre do tempo.” Para tanto, “Estava deslumbrante. Ostentava, sem orgulho, todos os seus braços e espáduas. Ricas jóias; o colar era ainda um dos primeiros presentes de Rubião,” pois “nesse gênero de atavios, as modas conservam-se mais.” Desta forma, “Toda a gente admirava a gentileza daquela trintona fresca e robusta...” Eram assim os salões, espaços privilegiados para o jogo ritual do modo de vida burguês, que possibilitava “o espetáculo brilhante das grandezas 86 87

Ibidem, p. 287. Ibidem, p. 324-5. 61

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sociais”. Com “atenções particulares” e muita “gentileza”, os anfitriões, sobretudo a mulher, garantiram o brilho do casal e os meios de mantê-lo ou ainda aumentá-lo.88 Sofia é a imagem da mulher-esposa dessacralizada, pois não era mãe. Ela foi representada como inteligente, ambiciosa e zelosa de levar a frente esse projeto de ascensão social em conivência com seu marido, o qual conduzia e encaminhava como representante da nova elite da sociedade patriarcal. Não foi anulada pela figura materna de uma esposa mãe e santa, representando o perfil de uma mulher fascinante e amedrontadora, que sedutora, narcisista e subordinada, em parte, ao marido, era instrumento em suas transações econômicas, mas que tinha liberdade de manifestar seus desejos, sendo dona de sua vontade e que aceitava ou recusava tal reificação.89 Mas nesses salões, tão importantes nas novas formas de sociabilidade e divertimento, onde aconteciam os bailes, saraus, outras festas e visitas, como se comportavam seus participantes? Como se davam a aproximação, os intercâmbios, a confraternização e a convivência entre os indivíduos, tão importantes agora para seus estilos de vidas e negócios? Se uma nova sociabilidade estava sendo edificada, assim como novos momentos de interação social, novas também se tornaram até as próprias maneiras de cumprimentar. Amaral, de Contos recolhidos, fala-nos da nova forma de saudação em contraste com a anterior. Segundo ele, quando chegou à casa do capitão Mendonça, Augusta recebeu-o com uma graça verdadeiramente adorável, levando-o a beijar-lhe “a mão como se fazia antigamente às senhoras, costume que se trocou pelo aperto de mão, aliás digno de um século grave”, que, aos poucos, se desaristocratizava.90 Nesse “século grave”, segundo a visão de alguns, a dança propiciava grande aproximação entre as pessoas, que se ofereciam às outras à distância, e grandes possibilidades de diversão, ao lado da conversação, da palestra, da entrevista. Tanto que aqueles que não sabiam dançar poderiam aprender em um “curso de danças”, 88 89 90

Ibidem, p. 377, 386. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 168-9. OC. PIETRANI, A. M., 2000, p. 6-9, 86-8. MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos recolhidos, 1956, p. 170.

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que eram vários na cidade. “Aprendia-se a dançar por mestres”, pois a dança “era [...] uma prenda, igual ao piano”. Ser um bom dançarino significava já meio caminho andado para iniciar um romance de salão, do qual poderia sair até um casamento, ou um caso amoroso como aquele da casada Virgília e Brás Cubas, em suas Memórias. Foi em um baile, “em casa de uma senhora que ornara os salões do primeiro reinado e não desornava então os do segundo”, que entre eles deu-se “aproximação [...] maior e mais longa”, porque conversaram e valsaram. Aí, Brás aconchegou seu “corpo àquele flexível, magnífico” da esposa de Lobo Neves. Foi também em uma “reunião íntima”, na casa dos Neves, que valsaram “uma vez e mais outra vez”, visto que ele “tinha fama e era valsista emérito”, não admirando que “ela” o “preferisse”. Segundo este, foi a valsa que os perdeu.91 A valsa, principalmente, permitia que o casal se aproximasse fisicamente, por um lado, e, por outro, se isolasse das pessoas, constituindo momentos de certa privacidade meio ao extremo da publicidade dos salões. Dentre as músicas e suas respectivas danças, a valsa, fosse a “valsa doida”, as “rodas de valsa”, “a valsa arrastada e a valsa pulada”, era a sensação dos salões abastados, iluminados com lustres, que clareavam “os mais belos colos da cidade”. Casacas e leques, que se abriam e fechavam, entre dragonas e diademas, esperavam pelo sinal dado pela orquestra, quando “então os braços negros, em ângulo, iam buscar os braços nus, enluvados até o cotovelo, e os pares saíam girando pela sala, cinco, sete, dez, doze, vinte pares”. 92 Já a quadrilha francesa, muito dançada, era, para Félix, de Ressurreição, “a negação da dança”, devido a sua “rigidez geométrica”, e, talvez por isso mesmo, um rapaz tímido, como Osório, em Memorial de Aires, apenas “pediria uma quadrilha” a

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Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 195. OC. ; Idem, A semana v.2, 1959, p. 84. OC. ; Idem, Crônicas v.3, 1957, p. 221, OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 167-8. OC. 92 LEITE, Dante Moreira. O amor romântico e outros temas. São Paulo: Nacional/ EdUSP, 1979. p. 50-3.; MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias românticas, 1955, p. 58. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 188. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 172. OC. 63

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Fidélia não se atrevendo a convidá-la a valsar. Mas, já por volta de 1895, a França andava a perder sua hegemonia cultural até nas danças, e as quadrilhas de salão já eram americanas. Contudo, independente de serem francesas ou americanas, elevação ou negação da dança, muitos preferiam as quadrilhas. Entre muito “jogo e música, muita conversa e muito riso”, encontravam-se também aqueles “apreciadores da polca”. Esta dança e música tomaram conta da cidade, alastrando-se de forma rápida. Quando num salão se ouviam, ao piano, os primeiros compassos desse ritmo, derramava-se “uma alegria nova”; os cavalheiros corriam às damas e os pares entravam a “saracotear” ao som das polcas da moda. Elas possuíam títulos “destinados à popularidade”, fosse “por alusão a algum sucesso do dia”, fosse “pela graça das palavras”, tais como: Não bula comigo, nhonhô; Candongas não fazem festa; Senhora dona guarde o seu balaio; Se eu pedir, Você me dá? dentre outras. Tais músicas eram decoradas rapidamente e convidavam a dançar, sendo lançadas e logo executadas nas orquestras dos teatros, nos bailes, cantaroladas e assobiadas até pelas ruas, como o fazia o criado de Rubião. Existia também o lundu para piano, que, embora não figurasse dentre as danças próprias de salão, sendo adequado para baile de carnaval, “de máscaras”, acabou arrebatando a simpatia da sociedade e tornando-se moda.93 No entanto, se agora as valsas, quadrilhas e polcas executadas ao piano tomavam conta dos salões iluminados pelo gás e aproximavam as pessoas, lá pela época da infância de Brás Cubas, por volta de 1814, as moças tocavam cravo e cantavam modinhas, minuetos e solo inglês, sob a luz de um lampião de azeite, enquanto as matronas bailavam um oitavado de compasso. Ao redor de 1850, houve uma virada na música e nas danças de salão com a importação crescente de pianos, que se tornaram

93 Idem, Ressurreição, 1955, p. 42. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 75. OC. ; Idem, A semana v.3, 1957, p. 47. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 122, 124. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 74. ; Idem, Várias histórias, 1957, p. 68, 74-6. OC. ; Idem, Crônicas v.4, 1955, p. 281, 323. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 389. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 262. OC.

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objeto de desejo dos lares abastados e símbolo de elevação nessa fase cultural.94 Mas nem só de bailes particulares vivia e se divertia a elegante sociedade carioca. Os bailes públicos e oficiais eram também muito almejados e esperados, como aquele “da ilha Fiscal, que se realizou em novembro para honrar os oficiais chilenos”, pois, nesses, muitas portas poderiam abrir-se para aqueles que ambicionavam, sobretudo, carreira política, pois era forma certa de dar à vida privada “relevo público”. D. Cláudia, de Esaú e Jacó, ficou a pensar sobre o “baile da ilha Fiscal, sem a menor idéia de dançar”, nem tampouco pela “razão estética”, como o fazia Natividade, pois, para “ela, o baile da ilha era um fato político, era o baile do ministério, uma festa liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma presidência”. A ambiciosa senhora, em fantasia, “via-se já com a família imperial. Ouvia a princesa...” Via o marido a conversar com “o imperador, a um canto, diante dos olhos invejosos que tentariam ouvir o diálogo, à força de os fitarem de longe”. 95 Nessa perspectiva, Santos, de Esaú e Jacó, também não dançaria; “os negócios pegaram dele e o meteram” em “outra contradança”. Este tinha ainda a “fantasia de ser deputado”, fazendo da “câmara degrau para o senado”; buscava fundir, desse modo, a posição comercial e bancária com a política, como o fizera o barão de Mauá. Assim, no baile, no qual toda “a fina flor da sociedade” estava presente, se muitos viveram “algumas horas suntuosas”, por um lado, por outro, foram “de futuro para todos...” Natividade, considerava o destino do filho inaugurandose como ministro; Batista, “ao som da música, à vista das galas”, fantasiava em ser um “próximo presidente de província” e depois “ministro um dia!” 96 Já a uma donzela, como Flora, “não lhe faltavam pares, nem conversação, nem alegria alheia e própria. Toda ela compartilha da felicidade dos outros. Via, ouvia, sorria, esquecia-

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Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 56. OC. ; ALENCASTRO, L. F., 1997, p. 45-7. 95 Idem, Helena, 1955, p. 149. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 187-8. OC. 96 Ibidem, p. 192. 65

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se do resto para meter consigo” e “invejava a princesa imperial”. Dessa forma, se os bailes particulares alimentavam muitos sonhos e esperanças de negócios, de namoros e casamentos, os públicos e os oficiais ofereciam oportunidade sem igual para estes e, principalmente, para quem aspirasse ao brilho de uma posição política.97 No entanto, afora os bailes, fossem particulares, públicos ou oficiais, a família carioca sociabilizava-se e divertia-se em festas de batizado, de aniversário e casamento, além dos saraus, “partidas” ou “brincadeiras”, realizadas, freqüentemente, para encher as noites e produzir ligações. Nessas recepções, jogava-se, dançava-se, cantava-se, recitava-se, tocava-se e conversava-se. O convite para uma dessas recepções poderia ser feito por intermédio de carta, como aquele que Viana, de Ressurreição, levara a Félix para o sarau da casa de um coronel conhecido deles, ou mesmo verbalmente, como fizera o Sr. Vieira, de Histórias da meia-noite, a Ernesto, para uma “partida” familiar. Nessas ocasiões, geralmente, o anfitrião “preferia convidar apenas as pessoas mais íntimas e familiares”, ressaltando, sobretudo, o gosto da “intimidade”, principalmente se festas e jantares para comemorar “anos” de alguém. Nesses, podia-se encontrar na mesa tanto um jantar “corretamente nacional” quanto recheado “dos deliciosos galicismos que nos trouxe a civilização”, ou mesmo pelo “anglicismo”, afinal, até o cozinheiro podia ser francês, dependendo da fortuna do anfitrião. Além do que, em situações rotineiras, “a grande maioria” já acudia “às urgências do estomago com o sanduíche, [...] o bife cru, e [...] com o croquete”, “estrangeirices”, que marcavam “a decadência e a morte do doce”, um costume nacional. 98 Nessas recepções, entre dança, conversa e jogo, pois existiam sempre aqueles que não dançavam, como Santos, de Esaú e Jacó, que “preferia o voltarete, como distração”, ou mesmo outros jogos como gamão, pôquer, xadrez..., o círculo familiar

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Ibidem, p. 193. Idem, Ressurreição, 1955, p. 15,151. OC. ; Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 127. OC. ; Idem, Contos fluminenses v.2, 1955, p. 290. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 74. OC. ; Idem, Crônicas v. 4, 1955, p. 12-3. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 9. OC 98

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se abria ao mundo externo, travando novos contatos e mantendo os existentes, considerados importantes. Ainda que fossem, quase sempre, os mesmos convidados que freqüentassem essas pequenas recepções, “um personagem novo” sempre ali aparecia e podia alargar os intercâmbios. Feita a apresentação, dada a aproximação, recebia-se um convite para um jantar, uma visita, e “com estas e outras traças” era que se ia “penetrando na sociedade que convinha ao [...] gosto”. Depois disso, não tardava que começassem chover os convites de bailes e jantares, e, em uma dessas situações, conseguia-se o que se desejava, fosse um bom casamento, fosse um figurão poderoso que favorecesse os negócios ou oferecesse oportunidades sonhadas de convivência e de aceitação social. 99 No palco ritualizado da vida privada, às danças, seguiase a ceia, por volta da meia-noite, depois da qual, continuavam as senhoras a trocar “impressões e comentários”, enquanto “os rapazes fumavam” e “os jogadores decidiam as últimas remissas”. Num sarau, “uma brincadeira”, existia quem levasse um pianista para animar a noite, fato que interferia negativamente no caráter íntimo da ocasião. Porém, em sentido contrário, preservando a intimidade, as moças da casa ou suas amigas, tocavam piano e cantavam. Mas isso nem todas as donzelas faziam, só aquelas que tinham “magnífica voz”; já outras “também cantavam, mas pouco e raro, por não terem voz”, até que chegava um dia e ocorria de “entender que era melhor não cantar nada”. 100 De sarau musical ou simples brincadeira, poderiam esses encontros tomar feições literárias, sem perder sua dimensão lúdica. Desta forma, poder-se-ia discutir literatura e recitar ao piano. Assim o fazia Máximo, de Contos sem data, que, supondose um “grande poeta”, mas em todo caso recitando bem, nunca recusava essas oportunidades, sem descuidar da performance pertinente, declamando “com certas inflexões langorosas, umas

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Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 31. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 368. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 93. OC. 100 Idem, Helena, 1955, p. 40, 102, 124. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 56, 116. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 38. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 332. OC. ; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 215. 67

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quedas da voz e uns olhos cheios de morte e de vida”, abotoando o paletó “com uma intenção chateaubriânica” e deixando os versos “brotar-lhe da boca”, ao que os ouvintes, a cada estrofe, diziam “Bravo! bravo!” Assim, ele recitava sua “especiaria literária” como Suspiro ao luar, Devaneio, Colo de neve e Uma cabana e teu amor , enquanto, ao fundo, uma Helena ou Camila, ou ainda Clarinha, talvez, “tocava ao piano umas variações alemãs”, “umas variações de Thalberg”, umas “variações sobre motivos da Marta”, “um trecho de ópera da moda”, “a cavatina do 1o. ato do Trovador”, “um trecho terno de Donizetti”, “ou os melhores pedaços de Verdi e Rossini”. 101 Entretanto, por outro lado, reuniões apenas para conversar eram igualmente muito apreciadas. Os serões tinham a marca de ser um tempo da conversação, como aqueles da residência do casal Aguiar, em Memorial de Aires, que, seguindo um costume social adotado por muitas famílias, tinha por rito consagrar um dia fixo para receber. Eram “reuniões semanais”, nas quais, embora houvesse “alguma gente e bastante animação”, quase sempre, essa gente era “modesta e resumida”, íntima. Aí “se não dançava, raro se cantava, e apenas se conversava e tomava chá”, prática muito apreciada nesses rituais. Porém o chá era ainda aquele com características coloniais, tomado sempre à noite. Mas, já em 1895, o antigo hábito apresenta-se em mutação, e o narrador de uma crônica diz que ele e “alguns amigos, à volta de uma mesa; eram 5 horas da tarde”, bebiam chá; ressaltando ainda que citava a hora para que se compreendesse bem a elegância dos costumes e das pessoas, que imitavam os franceses, os quais, por sua vez, imitavam os ingleses, que “inventaram esse uso de beber chá às 5 horas”. 102 Dentre as práticas de sociabilidade em família, as reuniões para se jogar também eram freqüentes, e mesmo nos saraus o

101 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos esparsos, 1956, p. 60, 127,189.; Idem, Contos sem data, 1956, p. 54, 138. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 140. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 178. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 114, 261. 102 Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 53, 64, 87-8. OC. ; Idem, A semana v. 3, 1957, p. 22. OC. ; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 205, 207, 210.

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jogo sempre acontecia. Enquanto em uma sala dançava-se, noutra, jogava-se, e noutra, ainda, outros conversavam, talvez falando de “cantigas populares”, como naquele jantar a que fora Veríssimo, de Relíquias de casa velha. Nos encontros para o jogo, jogava-se desde a velha bisca, como se fazia na casa de Camilo, de Contos esparsos, passando ao voltarete, preferência de Santos, em Esaú e Jacó; pelo gamão, preferido por tio Cosme, de Dom Casmurro; pelo solo, que era mania em casa de D. Angélica, também de Contos esparsos; pelo pôquer, jogado na casa do Miranda, em Memorial de Aires; pelo também antigo uíste, que reunia parceiros em casa de Joaquim Fidélis, de Histórias sem data; pelo xadrez, que era o usual de Jorge e Luís Garcia, ou pelo bilhar, jogado por Luís Garcia e o Sr. Antunes, de Iaiá Garcia; e pela dama, jogada por Bento Santiago e Capitu, em Dom Casmurro.103 Aí, nessas rodas de jogo, também se reforçavam as amizades e outras se faziam, especialmente aquelas convenientes para assegurar a circulação dos indivíduos e às relações sociais dos “jogadores”. Assim o era com os amigos de Joaquim Fidélis, que, por seu intermédio, tinham obtido uma série de favores. Ter influências era possuir sempre parceiros ao redor. Mas, afora as rodadas realizadas em casa de amigos e conhecidos, existiam aquelas das “casas de jogo”, as quais passaram a sofrer perseguição da polícia a partir da década de 1860, por estarem ligadas às classes populares. Igualmente populares eram as rinhas, onde se davam as brigas de galos e as apostas, porém estas, junto às casas de jogo, eram práticas pertencentes às sociabilidades públicas e não ao convívio nos espaços privados.104 Aos novos conhecidos, nesses variados momentos de sociabilidade, quando convinha, oferecia-se a casa, para que estes se freqüentassem. Dentro do código dos rituais de convivialidade,

103

MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 362. OC. ; Idem, Contos esparsos, 1956, p. 264, 277. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 31. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 13. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 101. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 88. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 136, OC. 104 Idem, Histórias sem data, 1957, p. 88. OC. ; Idem, Crônicas v. 2, 1955, p. 234. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 342-7. OC. 69

Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

quanto às visitas, era “forçoso” pagá-las, e, caso não encontrasse em casa o visitado, deixava-se um “bilhete de visita”, ou “cartão de visita”. Era mesmo usual apresentá-los até em escritórios quando se buscava por alguém, podendo o cartão ser cobrado até pelo porteiro. Os “cartões de visita”, que pertenciam a um código novo de maneiras, eram enviados também como forma de “cartões de cumprimentos” aos donos de uma casa por um dia ou acontecimento especial, como aniversário ou recebimento de um agraciamento por despacho imperial com um título, por exemplo. As comendas faziam parte da busca pelo enobrecimento, pois, para ter acesso aos favores da Corte, já não bastava apenas ter dinheiro. Obter títulos nobiliárquicos era uma questão de honra e poderio, na busca de nivelar-se, aparentemente, à nobreza ou à burguesia européias. Assim, nossa “graciosa burguesia” buscava-os, inclusive, arrematando em leilões “os títulos da nobreza”, e trazia tais condecorações penduradas ao peito, traduzindo uma vitória na conquista da distinção e requinte social.105 Por meio de tais práticas, efetuavam-se os contatos sociais do grupo familiar e se garantia sua continuidade como dimensões essenciais do modo de vida privada burguês. Esses momentos de encontro asseguravam os intercâmbios necessários à família e possibilitavam a circulação dos indivíduos num tipo de sociabilidade efetuada em locais privados, estando em conformidade com os rituais cotidianos, executados com regras mais ou menos precisas, sobre os quais repousavam o tecido social e tentavam conferir um estilo a suas vidas.106 Entretanto, a família carioca, que tanto gosto apanhava pela “vida externa”, divertia-se, expunha-se, interava-se, conviviase e expandia-se também nas ruas e lojas do comércio elegante, como a Ouvidor, nos cassinos, clubes musicais ou sociedades

105

Idem, Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 253. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 110-1. OC. Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 80,176. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 91,97. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 90. OC. ; Idem, Crônicas de Lélio, 1958, p. 23. ; COSTA, J. F., 1989, p. 106.; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 208. ; ARIÈS, P., 1981, p. 266. 106 MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 189, 191, 208. 70

Vida Privada: privacidade, intimidade e individualidade no aconchego do lar

coreográficas, nos jóqueis, teatros, nas praias e nas temporadas na montanha. Era crescente “o gosto do espetáculo” e dos “prazeres” propiciados pelas várias atividades lúdicas e culturais acontecidas fora dos espaços residenciais, mas das sociabilidades que ocorriam para além do mundo privado não trataremos aqui.107

107 Sobre as formas de sociabilidades públicas: BORGES, Valdeci Rezende. Olhares sobre outros aspectos da cultura urbana. In: ____. Cenas urbanas: imagens do Rio de Janeiro em Machado de Assis. Uberlândia: Asppectus, 2000. p. 61-87.

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CAPÍTULO II NAS TRAMAS COTIDIANAS DOS PODERES FAMILIARES O favor, como uma rede imbricada de obrigações morais, permeada de dívidas e de créditos entre as pessoas, fazia parte, com seus mecanismos diversos de funcionamento, das estruturas simbólicas tradicionais da sociedade fluminense. Ele denota um sistema de significados histórica e coletivamente definidos, transmitidos e incorporados em símbolos e práticas por meio dos quais os indivíduos interagiam e estabeleciam suas relações. É objetivo aqui refletir acerca de alguns aspectos da cultura do favor presentes nos relacionamentos cotidianos de senhores e subalternos, bem como sobre a existência de outros laços e poderes que se davam ao redor da família ou no seu interior, a partir dos quais, nos processos de interação de seus membros, teceram-se tantas tramas. Atendo à experiência social de homens, mulheres e crianças, inseridos em tais circunstâncias, interessa-se perceber como as relações de favor, os laços de parentesco e de solidariedade, constituíam-se e apresentavam-se no cotidiano da sociedade carioca; que valores, normas, comportamentos e sentimentos pressupunham e produziam nas práticas sociais. Busca-se tratar tais práticas e condutas como aspectos constituintes e inerentes a uma concepção de mundo hegemônica, que definia os contornos do processo interativo entre pessoas de grupos sociais diversos como as elites, os agregados, os escravos, os grupos parentais e vicinais. O favor, com seus mecanismos de poder paternalistas, protecionistas e clientelistas, que demarcavam os contornos de uma política cotidiana produtora de dependentes, tem sido visto, às vezes, como incompatível com a essência de uma sociedade capitalista e, por sua vez, com o ideário liberal burguês moderno, como apontou o debate travado em torno das idéias fora do lugar ou no lugar, expresso nas leituras contrastantes de Schwarz e 72

Nas Tramas Cotidianas dos Poderes Familiares

Franco, respectivamente, dentre outros.108 Segundo Franco, as relações estabelecidas pelo favor inseriam-se num processo particular de desenvolvimento capitalista no Brasil, o qual produzia situações internas de diferenciação do sistema mundial. Relações estas marcadas por elementos necessariamente contraditórios que implicavam a um só tempo, o “reconhecimento do outro como pessoa e na sua extrema coisificação”. O conceito de igualdade, que alicerçou as práticas do favor, apenas aparentemente nivelava, sendo todos iguais somente potencialmente, logo, não se opondo “à ideologia burguesa da igualdade abstrata: ao contrário, podia absorvê-la sem dificuldades, substancialmente iguais que eram e cumprindo as mesmas tarefas práticas”, isto é, “encobrir e inverter as coisas”. Assim, “as idéias estão lugar”, pois o favor aparecia no processo de constituição das relações sociais de mercado, que pressupunha apenas uma igualdade formal entre os envolvidos e não efetiva e de direitos.109 Nesse contexto, o exercício do favor se dava abertamente entre desiguais e sua cultura, como prática social, possuía uma lógica normativa que se sustentava pela obrigação da reciprocidade mais do que sob a forma de trocas econômicas. A lógica da dádiva estava atrelada a uma dimensão moral de conduta que implantava a dominação pessoal por meio de obrigações e expectativas, como de lealdade, honra, confiança... A troca de bens e de serviços criava a dívida, que nunca podia ser satisfeita, produzindo vínculos morais de união e conformidade. O favor estabelecia uma obrigação moral entre pessoas que, geralmente, não possuíam entre si laços contratuais formais, impondo uma miríade de obrigações advindas de benefícios recebidos. Eram dívidas que criavam uma rede infindável de débitos e créditos morais, que submetiam os laços pessoais, inclusive os emotivos, os afetivos.

108

SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: ____. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1988. ; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As idéias estão no lugar. Cadernos de debate, São Paulo, n. 1, p. 61-4, 1976. 109 FRANCO, M. S., 1976, p. 62-3. 73

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As trocas e os favores, como aspectos estruturais elementares das relações de parentesco, tinham o princípio da reciprocidade, como motor da vida social, prescrito nessas práticas. Tal princípio assegurava a integração dos grupos sociais, pois dar e emprestar abria um dado círculo de relações que estavam na base de seu funcionamento e integração, em que dar implicava receber, e receber em dar. Desta forma, as trocas de favores estabeleciam um sistema de laços sociais por meio de bens e serviços, que ligavam entre si as pessoas, grupos... a partir da obrigação moral de dar, se recebeu, e devolver, a qual animava as tramas sociais.110 Nas sociedades modernas, o princípio persistente da reciprocidade, estando mesmo presente em relações de desigualdade, frente às quais possui a função de produzir equiparações, acabou até por dissimular as múltiplas formas de exploração sob a cobertura de diferentes equivalências. Dessa forma, o significado prático do favor, segundo Franco, aparecia no processo de constituição das relações sócio-culturais de mercado, sendo o conceito de igualdade emergente no movimento de dominação social vinculado à esfera econômica, à noção e ao direito de propriedade. Nesse contexto, a dominação pessoal, constituída, essencialmente, por associações morais, produziu experiências de submissão e anulação, por meio de uma cadeia de lealdades e fidelidades que prendia os dependentes aos mais poderosos, eliminando o viver com autonomia.111 A partir dos vínculos de dependência, criados pela situação “de privação”, o domínio e a subordinação sobre o outro se concretizavam. Por isso, Brás Cubas dizia que “o prazer do beneficiador” era “sempre maior que o do beneficiado”, pois o beneficiado, além de lembrar-se sempre do favor recebido, conservava também na memória a “privação”. Já para quem beneficiava seus efeitos legitimavam a “convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios”,

110 LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1976. 111 FRANCO, M. S., 1976, p. 63. ; Idem, Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.

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Nas Tramas Cotidianas dos Poderes Familiares

garantindo a submissão ligada à obrigatoriedade da contraprestação de serviços e de obediência.112 Dessa forma, as trocas estabelecidas inseriam-se num vasto sistema de laços sociais, que, por meio, às vezes, de bens econômicos, ligavam os indivíduos e os grupos sociais e familiares entre si. A este estado estavam suscetíveis, principalmente, as camadas pobres da população, que, pelos “obséquios” recebidos, se tornavam subordinadas à autoridade, ao poder e ao desejo do sujeito “paternal” que lhe havia resguardado da miséria e da necessidade; daquele que o protegeu e favoreceu num momento de necessidade. Para se entender essa realidade, devem-se ver tais práticas como uma estrutura fundamental que entrelaçava e englobava, em suas redes, escravos, homens livres pobres e proprietários. A existência da escravidão circunscrevia a relação com os outros dependentes, levando estes, inclusive, a temer e a procurar evitar seu tratamento como escravo, pois a escravidão, como bem expressou Estácio, em Helena, era a situação de dependência absoluta, de submissão completa.113 Assim, o conceito de liberdade e de autonomia emergia também vinculado ao de propriedade, como podemos ver em Helena, quando Estácio, um proprietário, homem de posição social superior, falava: _ “os bens da fortuna [...] dão a maior felicidade da terra, que é a independência absoluta”. Já o seu oposto, a “necessidade”, situação a qual nunca havia experimentado, possuía o seu “pior” não na “privação”, mas, sim, na “escravidão moral que submete o homem aos outros homens”. No seu raciocínio, o cativeiro era a situação de dependência máxima, era “o pior estado do homem”. 114

112 MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 397-9. OC. 113 MACHADO DE ASSIS: um debate – conversa com Roberto Schwarz. Novos estudos, CEBRAP, São Paulo, n. 29, p. 59-84, mar. 1991, p. 83. ; MACHADO DE ASSIS, J. M. Helena, 1955, p. 67-8. OC. 114 Ibidem, p. 67-8.

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1. AO REDOR DA FAMÍLIA: LIBERTOS E SENHORES

ESCRAVOS,

Se viver a experiência social do cativeiro supunha uma submissão total e uma coisificação extremada, e se o favor estabelecia-se entre pessoas que não se reconheciam como essencialmente diferentes, mas apenas formal e circunstancialmente vivendo em situação diversa, havia mesmo relações de poder deste teor presentes nos processos de interação entre escravos e senhores; daqueles senhores que, certamente, não tinham chegado a apagar, por inteiro, o reconhecimento do escravo como pessoa, como ser humano. Assim, o favor não fundamentou apenas as relações sociais entre homens livres. Nas suas teias e na dependência por ele criada, nas obrigações a cumprir e nas expectativas de paga, que regulavam a ação dos indivíduos e resguardavam o domínio dos proprietários e endinheirados, dos senhores, enfim, estavam também os escravos. Como já dito, era a partir da realidade dos cativos, da extrema coisificação, que se configurava a situação dos outros dependentes “livres”, ou mais ou menos livres. Nos relacionamentos do cativo com o senhor, a vontade inviolável do último, claro, deveria ser resguardada, sobretudo porque vivia o escravizado numa luta incessante pela liberdade, chegando mesmo a organizar sua existência com a finalidade de conseguila, como salientou Chalhoub.115 Nesse sentido, a relação de Helena e Vicente, seu pajem, foi marcada pela dedicação deste à senhora. Quando a moça foi recebida na casa da família do conselheiro Vale, seu suposto pai, que falecera, todos os outros escravos mostraram, a princípio, descontentes com a sua presença por “pautarem seus sentimentos pelos de D. Úrsula”, irmã do falecido, logo, sendo leais à velha senhora, mas Vicente não. Ele aceitou a nova sinhazinha de imediato, tornando-se seu “fiel servidor” e “advogado convicto nos julgamentos da senzala”. Embora o narrador fale do 115 SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, L. F. (org.), 1997, p. 278-82. ; CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 57.

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desinteresse da afeição do cativo, por julgar a esperança de liberdade algo “precária” e “remota”, não se negava essa possibilidade por total. A alforria, portanto, era uma perspectiva que permeava seu relacionamento com a moça. Ele era cúmplice nas visitas secretas que ela fazia a um casebre e, numa dessas ocasiões, foram descritos a caminhar por uma estrada, num momento quando o escravo olhava para a sinhá com “adoração visível”, possivelmente devido ao reconhecimento de sua proteção. Mas, ao mesmo tempo, com “a liberdade que dá a confiança e a cumplicidade”, o moleque “fumava um grosso charuto havanês tirado às caixas do senhor”, significando, por sua vez, a expressão de alguma liberdade já alcançada no seu relacionamento com a senhora.116 Uma dada autonomia ou certa independência desse moleque já era algo concreto, assim como poderia vir a ser sua alforria. Nesse sentido, uma vez, Estácio, o filho do Conselheiro, depois de descobrir as visitas da moça a Salvador no casebre, seu pai verdadeiro, ao ver o pajem, cogitou ser ele confidente e cúmplice da moça, sua fictícia irmã, e acabou por lembrar-se “de que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquele escravo”. 117 Na seqüência da trama, o escravo, por “movimento próprio” e parecendo manter-se fiel à moça, procurou o padre Melchior e contou-lhe, mentindo, que o homem visitado era irmão dela. Na sua aparente “dedicação” e lealdade à senhora, buscou o escravo, estrategicamente, envolver o padre, com sua respeitabilidade de religioso, na defesa daquela. Defesa que, se bem sucedida ou aceita por todos, assomada à confirmação de Helena, lhe garantiria a possibilidade de continuar a ser sua senhora e, logo, aliada na luta pela alforria. No entanto ela desmente tudo, embora, nem assim, tenha encerrado sua estadia de protegida na casa, pois todos compreenderam seus motivos. Mas a moça, agora jogada numa situação maior de dependente, de favorecida, abatida, caiu de cama e morreu, pondo fim tanto às expectativas de alforria de Vicente, quanto a seu próprio e ambivalente estado de dependência, marcado pela gratidão e pela percepção do domínio e controle da família Vale sobre ela. Eram 116 117

MACHADO DE ASSIS, J. M. Helena, 1955, p. 41, 157. OC. Ibidem, p. 230. 77

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ambos dependentes e reféns um do outro, dos laços de solidariedades tecidos entre eles, conforme seus projetos de vida. Nesse contexto, da política de dominação do escravo, na qual a esperança da liberdade proporcionava a dedicação, a submissão e a fidelidade, visto que o ato da alforria era exclusivamente um privilégio dos senhores, a alforria era concedida, às vezes, gratuitamente, outras com pagamento, mas, em geral, revogáveis, de acordo com o querer do senhor. Sendo alforrias condicionais, pois existiam nas cartas cláusulas restritivas, como no caso do escravo se tornar “ingrato”, desprezando a prova de estima do antigo dono, mostrando-se pouco merecedor da graça recebida, o cativo continuava preso nas armadilhas do favor, do respeito à autoridade dos senhores. Essa estratégia de poder produzia, também, a conservação da dependência dos libertos, pois mantinha os ex-cativos ainda obedientes e leais aos seus antigos donos.118 No livro Iaiá Garcia, embora Raimundo, um preto velho, escravo de Luiz Garcia, fosse alforriado, continuava a morar com o seu senhor e a servir-lhe, talvez por inocência do ex-cativo e pelo oportunismo de “seu senhor”, que o prendia nos valores internalizados de aproximação a si. Desta forma, passou o primeiro a ser “escravo e livre” ao mesmo tempo, por fazer, por seu senhor e antigo proprietário, tudo à hora, tempo e lugar, com amor e generosidade. Concretamente, embora declarados “livres” e “amigos”, “as diferenças civis e naturais” não eram apagadas. O dependente, além de “submisso e dedicado”, vivendo da “alegria” dos senhores, tinha o afã de proteger seu antigo dono, parecendo “feito expressamente” para servir-lhe.119 Liberto e obedecendo ao antigo proprietário, temos ainda Pancrácio e Prudêncio. Este último, depois de liberto pelo pai de 118

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 100. DEAN, Warreu. Um sistema brasileiro de grande lavoura – 18201920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 82.; MACHADO DE ASSIS, J. M. Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956, p. 75. ; CASTRO, Hebe M. Mattos. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: ALENCASTRO, L. F., 1997, p. 361. 119 MACHADO DE ASSIS, J. M. Iaiá Garcia, 1955, p. 8, 9, 10. OC. 78

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Brás Cubas, fora encontrado, mais tarde, por Brás, no Valongo, a vergalhar um escravo que agora possuía, trazendo-o bêbado e a lhe implorar perdão. Quando seu antigo senhor lhe disse que o perdoasse, assim lhe respondeu: “_ Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede...” e, virando para seu escravo, ordenou-lhe que entrasse para casa. Desta maneira, mesmo afastados dos antigos senhores, morando em outras residências que não nas dependências de seu antigo proprietários, quando libertos, os ex-escravos continuavam submissos ao seu poder e influência, e, na menor e mais inusitada ocasião, os primeiros faziam-no valer.120 Além desses casos de alforriados, duas pretas forras apresentavam atitudes inerentes às relações de proteção e aproximação aos senhores. No conto Singular ocorrência, deparamos com a “criada de Marrocas, uma preta forra, muito amiga da ama”, preocupada com o sumiço da senhora, enquanto que, em Jogo do bicho, Joaninha trazia junto a si a “preta velha que a criou e a acompanhou sem ordenado”, pois um dia dissera “que se sua filha de criação casasse iria servi-la de graça” e assim o fez.121 Mas nem todos os favorecidos, fossem livres ou cativos, comungavam da perspectiva de mundo dos senhores e internalizavam seus princípios, nos quais proteção e obediência eram comportamentos correlatos, embora a eles submetidos. A favorecida Helena possuía uma percepção crítica da visão do mundo senhorial, sendo representativa de sua interpretação da realidade escravista a passagem na qual refletia sobre os dizeres de Estácio referentes à compra do tempo possibilitada pela riqueza e sobre a relação entre escravidão, vigilância e submissão, que eram indissociáveis. Segundo Chalhoub, ela esforçava-se para mostrar ao moço que sua visão de mundo, que era de um proprietário e senhor, não podia ser a medida de todas as coisas e que existiam outras lógicas ao redor advindas de formas diversas de olhar a sociedade conforme também a posição que nela se ocupava. Assim, se Estácio, senhor, imbuído de sua maneira de

120 Idem, Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956, p. 83-6. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 217. OC. 121 Idem, Histórias sem data, 1957, p. 80. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 169-70. OC.

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ver o mundo, de proprietário, chamava-lhe a atenção para um “preto”, que parecia escravo, devido às “roupas rafadas” e ao “chapéu que lhe cobria a cabeça”, o qual “estava sentado no capim, descascando uma laranja” à beira da estrada e deitando com vagar as cascas ao focinho do animal que conduzia, dizendo que ele gastaria muito mais tempo, a pé, para fazer o mesmo trajeto que eles a cavalo, a moça contestou. Retrucou considerando que “para aquele preto o mais aprazível” fosse, “talvez, esse mesmo caminhar a pé”, que lhe alongaria a jornada e lhe faria “esquecer o cativeiro”, se fosse cativo. Era, pois, “uma hora de pura liberdade”, distante do olhar e controle de seu senhor que o submetia. A eles, Helena e Estácio, “o preto não atendia”, “ao passarem por ele”, apenas “tirou respeitosamente o chapéu e continuou na mesma posição e ocupação que dantes”.122 Nos relacionamentos entre senhores e escravos, o respeito e a obediência eram, muitas vezes, imposições advindas e garantidas pela força, pela violência, mas também frutos da proteção, do tratamento mais humano e paternal de muitos senhores e do cultivo do favor. A submissão e mesmo certo apego e afeição perpassavam muitos comportamentos, não sendo raro os cativos serem descritos, particularmente nas produções que remetem a períodos da ação anteriores a 1870, a exemplo de Helena, Iaiá Garcia, Ressurreição e Memórias póstumas... , como “afeiçoados”, “adoradores” dos senhores e possuidores de atitudes de seres “acostumados à obediência”, quase não sabendo “distingui-la do dever”, embora aparecessem também aqueles fujões, que resistiam às imposições do cativeiro.123 A obediência era ainda mais requerida quando um escravo recebia um tratamento diferenciado, afetuoso, cheio de “cuidados”, “proteção” e “cordialidade” de seus senhores,

122 MACHADO DE ASSIS, J. M. Helena, 1955, p. 67-8. OC. ; CHALHOUB, S., 2003, p. 15. 123 MACHADO DE ASSIS, J. M. Helena, 1955, p. 105, 157. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 8, 9, 10. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 211. OC. ; SLENES, R. W., 1997, p. 278-9.; CASTRO, H. M. M. de., 1997 , p. 363-2.

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afastando daquele dado a outros que partilhavam da mesma condição. Isso ocorria quando havia “alguém de casa que servia de padrinho”. Nessas circunstâncias, os escravos privilegiados por meio de apadrinhamento estavam dominados pelos confortos e cuidados recebidos e pelas expectativas neles depositadas, que exigiam o cuidado de não cometerem deslizes e caírem em desgraça. Se “alguém da casa [...] servia de padrinho”, os senhores esperavam maior obediência ainda do protegido. Aprisionada nessa teia, encontramos Mariana, de Contos avulsos, uma cria da casa de Coutinho, que era protegida. Segundo este, a moça recebeu da mãe dele a educação e os afagos que dispensava às suas filhas, com poucas diferenças. Na sua situação, não fugia das responsabilidades e nem “abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem que, [...] só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora” e sua “proteção”. 124 No entanto, de presa do favor, da trama tecida pela aproximação com seus senhores, que requeria pagar com dedicação os privilégios recebidos, Mariana, ao apaixonar-se pelo sinhozinho, encetou várias fugas, rompendo com o esperado e caindo em desgraça por amor a Coutinho, que ia casar-se. Nesse contexto, de uma política de dominação baseada em premiações, quando recapturada, num processo de reterritorialização, foi lembrada de que era uma escrava, “mas quase senhora”; perguntada se esquecera dos “benefícios” recebidos, da forma como era tratada em casa, “donde não tinhas direito de sair”, porque cativa. Em decorrência dessa falha, do abuso da “afeição” que todos lhe tinham, o rapaz enfatizou que sofreria “as conseqüências da [...] ingratidão”, a qual “doía”, sobretudo na “senhora velha”, devendo Mariana, agora, ser colocada “na situação verdadeira do cativeiro”. Por fim, ao ser levada para casa e fugindo novamente, a escrava suicidou-se com veneno. Essa história explicita as estratégias de poder inerentes às práticas do favor, mostrando o quanto a liberdade a ela dispensada era

124 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos avulsos, 1956, p. 128. ; Grifos meus.

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cobrada e o quanto o aparente afeto que recebia advinha de sua obediência e servilidade.125 Mas a figura de Mariana apontou ainda a prática, existente no universo da esfera privada e familiar, de muitos senhores que assediavam e exploravam sexualmente suas escravas. Ela, de criança que passava para adolescência, de tratada com estimação, quase caiu nas armadilhas de um senhor que almejava dela abusar. Quando Coutinho soube que era ele “o querido de Mariana”, que ela fugiu porque o amava e não podia ser amada, julgou-a, inicialmente, “atrevida” e, posteriormente, independente de sua “condição”, ficou lisonjeado com aquela “afeição”, chegando mesmo a surgir no seu “espírito uma idéia”, de que a “razão condenava”, no seu dizer, mas que os “costumes aceitam perfeitamente”, pois, durante gerações, os senhores assediavam suas escravas, constituindo prática corrente. Ele se referia à prática de um tipo de senhores que se aproveitavam dos sentimentos das escravas, inclusive, para com eles, ou mesmo sem afetividade, e usavam sexualmente delas, com promessas ou a força, como já desejara fazê-lo o tio do rapaz, mesmo que ainda não o tivesse feito. Esse senhor chamou o sobrinho de “um asno e um ingrato”, pois, primeiramente, não tinha usado da mulatinha e, segundo, porque não consentia que ela ficasse sobre a “proteção” dele, o tio, situação que abriria caminho para que atingisse o sonhado desejo de possuí-la, de ter com ela encontros íntimos. Pode-se ainda lembrar de Memórias póstumas..., de certa atmosfera de sedução em torno das negras. No fundo da chácara da residência da família, onde se encontrava o lavadouro e muitas escravas na lida, as quais tinham “uma tanga no ventre, a arregaçar-lhe um palmo dos vestidos”, logo expondo partes de seus corpos, existia um senhor “de língua solta, vida elegante, conversa picaresca”, que desfiava seduções, ditos e perguntas, provocando risadas e interjeições que indicavam as propostas sexuais que ali eram veiculadas a essas subalternas.126 125

Idem, Contos avulsos, 1956, p. 128, 131-3, 135-6, 141-2. ; SLENES, R. W., 1997, p. 280. 126 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos avulsos, 1956, p. 132-5, 137. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 49-50. OC. ; SLENES, R. W., 1997, p. 253-7, 287-8. 82

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Inseridos também no universo das práticas do favor e, ao mesmo tempo, burlando o sistema de regras do mundo dos senhores, temos vários escravos que serviam a interesses que não aos de seus donos. Nas residências, às vezes, eram corretores amorosos entre as moças da casa e algum pretendente, com o fim de obter algumas vantagens, como ganhar em troca uma jaqueta nova. Em outras circunstâncias, serviam ainda de intermediários em assuntos sigilosos, por meio do recebimento de alguma “intervenção pecuniária”. Geralmente, quando a ação se enquadrava no mundo estabelecido ou de pequenos desvios, era permeada pela troca de favores, mas quando se deslocava para a esfera do proibido, do ilícito ou de delitos maiores, provocando duplas rupturas, outros laços se constituíam, instaurando trocas mercantilizadas. Contudo, apesar do grande número de namoros encetados pelas correspondências chegadas às sinhás por mãos de “moleques” e outros serviçais, às vezes, quando se tornavam indesejáveis, a fidelidade desses mensageiros às amas prevalecia, e estes não mais as recebiam dos cortejadores.127 No entanto, nem todas as relações entre senhores e escravos eram amenizadas pelas práticas do favor, da aproximação e do apadrinhamento. O escravo era tratado, antes de tudo, como objeto inerente ao sistema de propriedade dos senhores, estando submetido a diversas transações econômicas. Sendo “peça” do seu patrimônio material, um bem valioso, pois era comercializado, negociado, comprado, vendido, alugado, rateado, fazia parte de dotes, heranças, espólios, testamentos e leilões, por entre outros bens materiais.128

127 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 206. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 282. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 137. ; Idem, Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 79. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 365, 373. OC. 128 Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 56-7, 156, 158, 34950. OC. ; Idem, Crônicas v.2, 1955, p. 62-3. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 31-2, 42. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 24. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 8-9. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 259. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 169-70. OC. ; Idem, Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956, p. 112.

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Uma vez realizadas as transações de compra, eles poderiam servir em casa de seu proprietário e “não raro, apenas os ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse um aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando”, dentre outras atividades, o que garantia que experimentassem uma autonomia maior em relação aos senhores do que aqueles do serviço doméstico, mais perto do controle e da autoridade senhoriais. Mas, no geral, ocupavamse tanto com o “serviço da casa”, denominados de “portas acima”, como com aqueles “serviços da rua”, realizados “fora de casa”. 129 Assim, como eram um “bem”, que, após o fim do tráfico, atingiu um preço “fabuloso”, quando ocorria de algum fugir, seu senhor agia como quem perdeu algo valioso. “Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse”. Punha anúncios nos jornais com “a quantia da gratificação. Quando não vinha já quantia, vinha a promessa: ‘gratificar-se-á generosamente’, _ ou ‘receberá uma boa gratificação’”. 130 No entanto, como objetos de transações comerciais e serviçais das atividades pesadas, os escravos eram, em sua maioria, igualados aos animais, ao gado e às “bestas”, como expressavam Brás Cubas, ao tratar o moleque Prudêncio, e um narrador, que indagava a um preto, um “bruto”, posto pelo dono a quitandar pelas ruas e que saia fazendo pregão com um tabuleiro de couves e alfaces, se seria “considerado inda escravo ou gente”. O quitandeiro destacou a situação de vida da maioria dos cativos permeada por muito trabalho, ausência de “senhor humano”, muita “pancada”, falta de dias de descanso e “comida pouca”. 131 Portanto, o universo da escravidão era diverso. Se, por um lado, existiam relações mais brandas e humanizadas, por outro,

129

Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 10. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 297. OC. ; Idem, Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956, p. 72-4. 130 Idem, Crônicas v.2, 1955, p. 63. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 10. OC. 131 Idem, Contos sem data, 1956, p. 164. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 46-7. OC. ; Idem. Helena, 1955, p. 107. OC. ; Idem, Crônicas v. 4, 1955, p. 391-3. OC. 84

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a violência esteve presente, pois sucedia de “apanharem pancadas” e, mesmo quando o dono “apenas repreendia”, poderia tal ação advir não de ser ele bom, mas, sim, de seu “sentimento da propriedade”, da consciência do valor monetário que o escravo representava, o qual “moderava a ação, porque dinheiro também dói”, segundo o narrador do conto Pai contra mãe. 132 Na apropriação do trabalho do escravo, muitas atitudes deste expressavam resistência ao estabelecido e ao domínio do senhor. O “mau serviço”, as “pirraças”, as desobediências e as fugas, indicavam formas de resistência à autoridade e à imposição dos senhores. As essas transgressões reagiam a classe senhorial com severidade, empregando “os castigos competentes”, geralmente, calculados antes de serem aplicados, como o uso de “um bacalhau” ou de uma “vara” para surrar os faltosos, as práticas de agarrá-los pela orelha, dar-lhes uns “petelecos”, cascudos e “alguns pontapés”, pôr uma máscara de folha de flandres no rosto dos que roubavam para beber, mandar ao “calabouço” os “perversos e fujões” ou trazê-los com “ferro ao pescoço” ou “ferro ao pé”. 133 Nesse contexto, “pegar escravos fugidos era um ofício do tempo”, existindo homens que com “força, olho vivo, paciência, coragem e um pequeno pedaço de corda” ganhavam a vida com as gratificações prometidas nos anúncios de jornais, que traziam “os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia da gratificação”. Mas poderia mesmo o próprio senhor sair a sua procura ou recorrer à polícia, que também desempenhou na cidade, a função que, nas fazendas, cabia ao feitor e ao capitão

132

Idem, Crônicas v. 4, 1955, p. 392-3. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 10. OC. 133 Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 109. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 85, 139, 204. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 15, 22-3. OC.; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 9, 10-1. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 46-7, 69, 349-50. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 157. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 78-9. OC. ; Idem, Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956, p. 85-6. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 219. OC. 85

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do mato. Uma vez encontrados, poderiam ser levados para casa frente ao emprego de “meios brandos”, como os convencer de que havia “de ir para casa”, ou recorrendo “aos meios violentos”, sendo levados “à força”, amarrados os pulsos e arrastados pela rua em “luta crescente”, mas “em vão”, pois terminavam reconduzidos a sua condição de cativos, ao território de seus senhores, à casa e, como tal, a seu domínio.134 No espaço doméstico, os negros poderiam ser criados. Porém, por volta da década de 1860, estavam sendo substituídos, nas casas mais abastadas, por criados brancos. São muitos os criados na obra machadiana, mas nem sempre ficando clara a sua condição, se de homem livre ou escravo, e mesmo sua cor. Ainda assim, o mundo da criadagem apresentava-se hierarquizado e em via de proletarização. No topo, estavam os de pele clara, marca de superioridade e de ascensão. Rubião, “que estava acostumado aos seus crioulos de Minas” como criados, na sua vida de milionário na Corte, acabou por ceder, “com pena”, à imposição social da “necessidade de ter criados brancos”. Desta forma, curvando-se ao movimento de branqueamento social e suas estratégias, seu bom crioulo, “que ele queria pôr na sala, como um pedaço da província, nem pode deixar na cozinha, onde reinava um francês, Jean; foi degradado a outros serviços”. Logo, esse tipo de trabalho se proletarizava e a situação dos criados subalternos, na qual se inseriam os negros, era mais difícil, uma vez que socialmente mais desqualificados e excluídos dos confortos da casa, embora aí, por outro lado, o controle e a vigilância dos senhores exercidos sobre eles fosse maior.135

134 Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 9, 10-1, 16, 24-5. OC.; Idem, Contos avulsos , 1956, p.136, 139-42.; Ver mais sobre a presença do negro na obra de Machado de Assis: BORGES, Valdeci Rezende. Imagens do negro em Machado de Assis. In: PEREIRA, K. M. de A.; BORGES, V. R.; GONZALIS, F. V. Machado de Assis: outras faces. Uberlândia: Asppectus, 2001. p. 25-78. 135 Idem, Quincas Borba, 1957, p. 9. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 179-80.

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2. OUTROS CÍRCULOS EXTERNOS DE RELAÇÕES FAMILIARES: AGREGADOS, AMIGOS E VIZINHOS Neste momento, a presença de estranhos no seio da família carioca foi bastante reduzida, sendo poucos os agregados que ainda persistiam habitando o espaço do domicílio familiar urbano e que dariam certo alargamento ao núcleo doméstico. Nessas circunstâncias, encontrava-se a figura símbolo de José Dias, de Dom Casmurro, que, na primeira metade do século, era agregado na fazenda do pai de Bentinho e acompanhou a família quando esta se transferiu para a Corte. Após a morte do patriarca, essa “alma subalterna”, por “cálculo”, continuou junto a eles a prestarlhes serviços com “atenções de servo”, pois, para ele, a “vontade de servir” advinha do “poder de mandar” do outro.136 Por meio da figura dos raros agregados que apareceram morando ainda na casa do “patriarca” ou matriarca, em caso de viúvas, pode-se apreender também a existência de mecanismos de controle e dominação que se estabeleciam no cumprimento da vontade do senhor e na cultura do favor. Produtora de dependentes, essa concepção de mundo, garantia a perpetuação das relações sociais, ou seja, o agregado como indivíduo pobre e necessitado, submisso à vontade dos endinheirados que o controlavam mediante concessões e favores. Na dádiva oriunda da atitude dos abastados para com os necessitados, aqueles que experimentavam a existência parca e de privações, de modo geral, estavam aos primeiros entrelaçados por vínculos morais da cobrada eterna gratidão, sendo a dependência enraizada nesse sentimento que desempenhava papel importante no conjunto das relações de interação dos indivíduos e na sua manutenção. Por esse prisma, não é difícil entender por que um homem dos segmentos médios da sociedade prezava sua independência e dignidade. Poderia estar ligado, ainda que a contragosto, a alguma família rica, por determinados obséquios recebidos, logo, outros devidos e outros prestados. Outros 136 MACHADO DE ASSIS, J. M., Dom Casmurro, 1957, p. 17-8, 81, 91. OC.

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poderiam ser vistos como “orgulhosos”, pois a “a taça de gratidão” estando “cheia”, transbordando, negavam-se a estabelecer laços mais profundos com indivíduos de classes abastadas, preferindo gente de sua igualha, pois não queriam sofrer a situação de submissão e as humilhações sociais que lhes eram próprias. Pessoas inseridas na camada dos dependentes, dos necessitados, dos obsequiados, com esses comportamentos, buscavam escapar e livrar-se da dependência, da sua indignidade. Faziam-no por meio do resgate de sua estima individual, que consistia na separação ou tentativa de desidentificar sua vontade de “protegido” com a do “protetor”. Assim o fez Estela, de Iaiá Garcia. Com a morte de seu esposo, mudou-se para São Paulo, onde foi dirigir um estabelecimento de educação, cessando “a vida de dependência e servilidade em que vivera até ali”. Segundo o texto, “era um modo de a respeitar e respeitar-se”. 137 No entanto, se nesses casos se encontravam indivíduos que possuíam valores e sentimentos que rompiam as relações estabelecidas, pois não sentiam “o orgulho da servilidade”, em contrapartida existiam aqueles que a perpetuavam, por sentirem orgulho dos seus protetores. Dentre tantos outros dependentes, o criado de Brás Cubas, em Memórias póstumas..., vivia “a maior felicidade da terra” ao mostrar que não era “criado de qualquer”, escancarando as janelas, alçando as cortinas e devassando “o mais possível a sala, ricamente alfaiada, para que a vissem de fora”. Mesmo os criados e escravos da casa da família Santos, de Esaú e Jacó, quando seu senhor fora agraciado pelo imperador com o título de Barão, ficaram felizes e comemoraram, saltando, exclamando e interrogando, como João que puxava Maria “batendo castanholas com os dedos: - ‘Gente, quem é esta crioula? Sou escrava de Nhá Baronesa!’”, respondia ela.138 A manutenção da reciprocidade inserida no universo dos obséquios e do vínculo moral a ela inerente possibilitava uma interação social estável e duradoura, sendo mesmo uma solda entre

137

Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 20, 50, 300. OC. ; SCHWARZ, R., 1988, p. 113-61. 138 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 408, 410. OC. 88

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os indivíduos. Na perspectiva do protetor, o bem feito ao protegido era um ato que raramente deveria ser esquecido, pois animava a trama social dessa coletividade, pela obrigação de devolver. Nesse contexto, Luís Garcia, de Iaiá Garcia, era um desvio da regra, “obsequiava sem zelo” aqueles que recorriam a ele, tendo a particularidade de esquecer o benefício, antes que o fizesse o beneficiado. Era exceção. Os medíocres de nascimento deveriam reconhecer e agradecer a “proteção” dos remediados ou dos ricos, os favores a eles despendidos, pois, ao contrário, seus atos seriam vistos, com indignação, como de “pura ingratidão”. 139 Logo, na dependência das famílias ricas ou em condições econômicas melhores, estavam os pobres, em geral. Dentre esses dependentes, estavam as figuras de Maria das Dores, de Iaiá Garcia, a ama-de-leite de Iaiá, ou mesmo D. Plácida, de Memórias póstumas de Brás Cubas. A última, “depois de uma larga vida de trabalho e privações”, tornou-se “medianeira”, a contragosto, do amor adúltero de Brás e Virgília, “à custa de obséquios e dinheiros”, além ainda de uma já existente “gratidão desta” para com Virgília, e “enfim da necessidade”. Segundo ela, a “proteção” de “Iaiá ”, ou seja, Virgília, e do “senhor doutor”, Brás, vinha ampará-la de um fim miserável.140 Assim, os relacionamentos, nessa sociedade, entre ricos e pobres, eram sempre mediados pela dependência criada pelo favor, advindo de uma circunstância de privação, de vida escassa e precária marcada por necessidades dos mais pobres. Estes, para sobreviverem, convertiam em sombras da vontade dos senhores, que desprezava seus sentimentos e suas concepções morais, impondo-lhes atitudes e situações violentas e agressivas. O respeito ao outro era, quase sempre, unilateral, valendo do “protegido” para o “protetor”, mas este último pouco considerava a individualidade do primeiro. Entre as camadas livres da população, o favor era um ato de solidariedade inverso, que, dado entre seres independentes, criava dependência pela obrigatoriedade da reciprocidade. 139

Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 179. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 392-7. OC. 140 Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 18, 238. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 221, 229, 230-3. OC. 89

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Mesmo as relações de amizade, por sua vez, não estavam também isentas de serem permeadas pela política dos obséquios e de, conseqüentemente, sofrer seus efeitos advindos da lógica moral baseada na obrigação de devolver. O amigo favorecido deveria ser eternamente agradecido a seu obsequiador. Em tal contexto, Seixas, do conto Um almoço, que se encontrava em situação difícil, sem, inclusive, ter o que comer, recebendo uma dádiva de um amigo que lhe prestou o benefício de pagar-lhe um almoço e arranjar-lhe um emprego com um conhecido seu, tornou-se para sempre dependente daquele, a ponto do beneficiador não pedir-lhe favores, mas exigi-los, “porque o salvara da morte” e achá-los “justos”, tanto que o primeiro passou a vê-lo como “seu eterno perseguidor”. Tudo isso se pautando no princípio da reciprocidade.141 Mesmo Rubião, herdeiro do filósofo Quincas Borba, de quem fora o último e “único amigo” humano, o qual, por sua vez, herdara de um tio uma fortuna, não escapou das tramas do favor do legado. Se o professor fechou uma escola de meninos “para tratar do enfermo”, o que fez com desvelo, paciente e risonho, Quincas o tornou herdeiro universal de seus bens, sem que aquele o soubesse, embora “tivesse a esperança de um legado, pequeno que fosse... [...] uma lembrança.” Apesar de lembrar, às vezes, “do possível legado”, essa idéia o afligia “por lhe mostrar que bom amigo ia perder”, mas, ao mesmo tempo, ainda que sem saber o conteúdo do testamento, sentia vertigem em pensar que ele poderia ser anulado. Sentia “remorsos fáceis, de pouca dura”, porém “calculou o algarismo” do quanto poderia receber e planejou o que compraria. No entanto, quando Quincas morreu, e o testamento foi aberto, sendo beneficiado como “herdeiro de tudo”, uma condição foi lhe imposta em troca: a de guardar consigo o “cachorro Quincas Borba” e de tratá-lo “como se fosse a ele próprio testador, nada poupando em seu benefício”. Assim, enriqueceu sem o trabalho necessário, mais se valendo da ajuda de Deus do que cedo madrugando, e, por isso, mandou dizer 141

Idem, Relíquias de casa velha, v.2, 1955, p. 121-149. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 92. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 107. OC. 90

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missa ao seu “protetor”. Posteriormente, ele viveu fazendo favores aos falsos amigos que o exploravam, julgando estar retribuindo o recebido. Sua vida, que mudou radicalmente com o benefício do legado, transformou-se mais ainda quando passou a obsequiar. A fortuna deixada foi consumida nos favores prestados aos parasitas circundantes que o conduziram à loucura e à solidão, convertendo-se, no final de sua vida, em pobre, miserável e abandonado, terminando em condição animalesca, como seu próprio cão, a dizer: “Ao vencedor, as batatas!” 142 As amizades descritas por Machado poderiam ser “estreitas e antigas”, oriundas da “simpatia”, do “costume” e “do infortúnio”, como fruto do puro “interesse”, não oferecendo no jogo das trocas, neste último caso, senão atos e sentimentos vistos como “o troco miúdo da polidez” e nunca “a contraprova de um sacrifício” ou “a moeda de ouro dos grandes afetos”, que sabem e podem “afrontar as intempéries da vida.” Bento e Escobar tornaram-se “bons amigos”, vivendo intensivamente as situações que permeavam o cotidiano familiar, não saindo da casa um do outro, passando noites a conversar, jogar e mirar o mar, sendo “amigos de perto e do peito”, mas, no início, foram o interesse e o cálculo de Escobar pelo dinheiro e propriedades de Bentinho, que consolidaram aqueles laços frouxos travados na solidão do seminário. A partir do momento em que realizou seus cálculos, “a amizade de Escobar fez-se grande e fecunda”, conta o narrador. Além disso, o interesseiro chegou a “afagar a idéia de convidar a segundas núpcias” a viúva D. Glória, mãe do amigo.143 O interesse, atrelado à prática do favor, como criador de relações, aparece na obra machadiana com grande força e amplitude, não sendo menor nos relacionamentos ditos de amizade. A ambição as gerava e as mantinha pela possibilidade de receber benefícios, como se pode observar, dentre outros tantos casos, por meio dos relacionamentos do ingênuo e rico Rubião,

142

Idem, Quincas Borba, 1957, p. 12, 14, 25, 27-8, 32, 34, 40, 393. OC.; XAVIER, Therezinha Mucci. Verso e reverso do favor no romance de Machado de Assis. Viçosa: UFV, 1994. p. 31-2, 109. 143 MACHADO DE ASSIS, J. M., Helena, 1955, p. 12-3, 147. OC. ; Idem, Dom Casmurro, p. 301-3, 314. OC. 91

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de Quincas Borba, com tantos espertalhões que o cercavam e o assediavam. Camacho, Freitas, Pio, Carneiro, dentre outros, eram comensais que o lisonjeavam com servidão, sendo filadores de jantares, charutos e dinheiro, adonando de sua residência, tornando-se invasivos e perdendo os limites da privacidade. Como Camacho pusera esse “ricaço de Minas” em contato com muitos homens políticos, senhoras, gente de bancos, do comércio, dos teatros e “toda a gente” da rua do Ouvidor, “as relações de Rubião tinham crescido em número”. Eles “Iam à casa dele, todos os dias, _ alguns duas vezes, de manhã e de tarde; [...] Roíam fome, à espera, e ouviam calados os discursos do anfitrião”, havendo mesmo rivalidade entre os antigos e os novos. Competição “que os primeiros acentuaram bem, mostrando maior intimidade, dando ordens aos criados, pedindo charutos, indo ao interior, assobiando, etc.” Mas, “Ao cabo de algum tempo, também os novos lhe deviam dinheiro ou em espécie, _ ou em fiança no alfaiate, ou endosso de letras, que ele pagava às escondidas, para não vexar os devedores”. Esses “amigos da casa”, pois tudo na “habitação fazia parte deles”, trazendo “tudo de cor”, chegaram a um ponto em que “tinham perdido a noção da casa alheia e do obséquio recebido” e até à vizinha passaram a cumprimentar “como seus próprios vizinhos”. 144 O casal Palha, para usufruir das injeções de recursos financeiros de Rubião em seus empreendimentos, usava da sedução da bela Sofia, para conquistá-lo, deixá-lo apaixonado e disponíveis seus capitais. Se ela um dia, a principio, da situação reclamou, o marido considerou: “Crê que o Rubião é nosso amigo, devo-lhe obrigações [...], eu devo-lhe muito dinheiro”, e recebeu como resposta: “Nesse caso, tu é que não deves mudar....”. Posteriormente, por época de tornar-se sócio de uma casa de importações de Palha, “Sofia (dona astuta!)” deixou o ricaço “resolver por si mesmo que entraria de sócio com o marido” e “assim é que Rubião legalizou a assiduidade das suas visitas.” Igualmente ambiciosos eram os amigos de Joaquim Fidélis, do conto Galeria póstuma, no qual, após seu falecimento, foi encontrado 144 Idem, Quincas Borba, 1957, p. 279-80, 282, 333-4. OC. ; XAVIER, T. M, 1994, p. 30.

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um diário em que este avaliava suas relações íntimas. Todas elas eram baseadas no interesse de suas influências e marcadas por favores obtidos: a um, um emprego; a outro, uma comenda; a outro, um bom casamento arranjado... Segundo Franco, as relações de família e de amizade eram mediadas por técnicas competitivas e recursos para garantir o equilíbrio das transações comerciais, sendo as lealdades, as trocas de serviço, a honorabilidade e a confiança, garantidoras do controle e do movimento dos capitais no comércio, na produção, nas finanças e no plano das instituições, com a burocracia e a mediação do clientelismo, vinculando autoridade oficial e influência pessoal.145 As amizades provindas do “costume”, pautadas, sobretudo, no interesse, eram aquelas advindas de gente “parasita da consideração” alheia, indivíduos recebidos e acatados no domicílio pelo hábito da convivência, da bajulação e adulação. Elas eram cavadas por aquele tipo de homem “intruso”, mas que, simpático, “polido e alegre, à força de arte e obstinação, conseguia tornar-se aceitável e querido, onde a princípio era recebido com tédio e frieza.” De “parasita da mesa”, vocação exercida pelos filões de jantares, como um indivíduo que “foi admitido a comer algumas vezes em casa” alheia, tornava-se figura presente pela “conveniência” ao ter “consolidado a situação”, sendo “familiar com todas as formas de adulação”, elogios hiperbólicos e até silêncios oportunos. As relações de amizade entre os homens, não raro, provinham do “costume” e da “simpatia” advindos de encontros travados na escola ou na academia, das confidências trocadas entre um e outro, das diversões e da ação de acudir-se “com as pastilhas da consolação” e adoçar-lhes as penas. Já oriundas da simpatia e reforçadas por comportamentos ternos em momentos de infortúnios existiam aquelas marcadas pela experiência de doenças em família, quando a colaboração e a preocupação com a cura e o restabelecimento do doente eram expressas.146

145 Idem, Quincas Borba, 1957, p. 97-107, 149. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 90. OC. ; FRANCO, M. S. C., 1976, p. 63. 146 MACHADO DE ASSIS, J.M., Ressurreição, 1955, p. 17-8, 105-113, 207. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 14, 18-9. OC. ; Idem, Esaú e

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A reunião dos amigos íntimos, no entanto, geralmente, acontecia em torno da conversação, da palestra e do jogo, como tratado anteriormente. Provindas da simpatia, do costume, da estima, da afeição ou do interesse, era em uma sala que se formava a roda para simples conversa ou partidas de voltarete, damas, uíste, bilhar, gamão, xadrez e pôquer. No entanto, não raro, íntimos dos donos da casa, uma vez que, como visto, os estranhos estavam sendo excluídos do espaço doméstico e privado, existiam aqueles dissimulados que de amigos tornavamse traidores e infiéis. De hora para outra, acabavam, perfidamente, desrespeitando aquele que os recebeu e acolheu, permitindo compartilhar a privacidade de seu lar, ao tentar ou passar a manter um relacionamento amoroso com a esposa do dono da casa. Segundo o narrador do conto Antônia, falando desses convivas, “a amizade é o melhor pretexto, até hoje inventado, para que um indivíduo pretenda tomar parte na felicidade de outro” e assim, um dos companheiros de Oliveira buscou “tomar lugar à mesa da ventura doméstica do amigo”, como talvez, também o tenha realmente feito Escobar com Bentinho.147 Muitas relações entre amigos eram estabelecidas desde cedo, nos tempos dos estudos escolares, como ocorreu com Sancha e Capitu, que “continuavam depois de casadas a amizade da escola”, e mesmo Escobar e Bento, que tiveram a sua iniciada no seminário. Nas amizades, a confidência possuía grande valor, sobretudo nas femininas. Em geral, uma ex-colega de escola tornava-se amiga íntima e confidente de outra, trocando cartas e bilhetes, falando de intenções casamenteiras e assuntos que lhe eram próprios. Meio aos rapazes, a confidência também se fazia entre os mais íntimos, por meio das conversas, nas quais

Jacó, 1959, p. 319, 379, 399. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 190. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 100. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 49. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 325. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 46. OC. 147 Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 264. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 361. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 75. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 368 e cap. CXXXVIII. OC. 94

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comentavam suas paixões, conquistas amorosas e dissabores provindos porventura de alguma delas.148 De uma maneira geral, os laços de amizade descritos por Machado de Assis advinham de sentimentos superficiais, ou mesmo hipócritas, uma vez que encobriam e disfarçavam o caráter verdadeiro da aproximação e da união dos indivíduos e suas mesquinharias, na busca da aceitação social, ascensão e circulação nos espaços que permitiam assegurar a continuidade das ligações e intercâmbios essenciais da vida. Já nos relacionamentos entre vizinhos, embora se pudesse perceber a existência de vínculos de solidariedade, via-se, igualmente, um dado distanciamento ou formalidade, o que lhes garantia o resguardo da vida íntima e privada. Marcadas e aproximadas pelos laços de solidariedade e do favor, encontravam-se as vizinhas famílias de D. Glória e a de Pádua, em Dom Casmurro, visto que a última, que perdera muita coisa em uma grande enchente, fora pela primeira auxiliada, vindo daí suas relações. Porém, mesmo havendo uma porta de comunicação entre os quintais mandada rasgar quando seus filhos eram pequenos, apenas eles, os pequenos, faziam visitas cotidianas uns ao outros. Os adultos, a não ser quando em situações especiais, não as realizavam. Assim, só figuravam em casa do outro quando existia algum motivo real e necessário, como dar um conselho que fora pedido ou para despedir-se de alguém que iria se ausentar. Fora disso, cada qual se encontrava e se mantinha em sua própria residência, ao não ser em ocasiões de recepções, das partidas e dos saraus, quando os salões eram abertos ao mundo exterior. Porém, aos vizinhos era dado saudálos, como faziam os amigos da casa de Rubião, que ao “ver as pessoas do lugar, [...] alguns chegaram a cumprimentá-las, como aos seus próprios vizinhos.” Além disso, não se pode esquecer de que a alcunha Dom Casmurro derivou-se dos “hábitos reclusos e calados” de Bento Santiago em relação a seus vizinhos, com

148

Ibidem, p. 328. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 114-5. ; Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 227. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 67, 82. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 81. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 17-8. OC. 95

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os quais tinha conhecimento de vista e de cumprimentos, às vezes, de chapéu.149 Na rede da solidariedade e da benevolência, davam-se muitas relações entre vizinhos, embora, geralmente, marcadas por normas formais e individualizantes, possivelmente, pelo caráter hostil e perigoso, que poderiam tomar. Estes laços de amizade vicinais serviam para “amaciar as agruras deste mundo” e, quando a existência exigia, buscava-se ajuda, mesmo tendo um limite, ao parecer um “atrevimento”, pelo qual se devia pedir perdão pelo “incômodo” que trazia; usava-se recorrer aos moradores próximos “a implorar socorro”, a pedir-lhes auxílio. Mas a própria vizinhança também se mostrava zelosa em prestar assistência ao morador limítrofe necessitado, oferecendo ajuda. Luísa, moça só no mundo, que vivia com uma tia, quando esta morreu “aceitou a proteção de uma vizinha e foi para casa dela, onde trabalhava dia e noite”; Tito, por sua vez, doente e de cama, “foi curado [...] por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas” e adquiriu “reputação de feiticeira”; Miloca, órfã de mãe, ao perder o pai, sabendo “que seu futuro era negro”, não suportando esse último golpe, teve uma família vizinha que “afetuosamente” lhe abriu as portas e “ofereceu-lhe asilo logo na noite do dia em que se enterrou o pai”. 150 Na indicação da construção da intimidade doméstica, da qual os vizinhos, como estranhos, estavam sendo excluídos, mesmo que mantendo relações cordiais, pode-se recorrer a alguns exemplos significativos. Nesse sentido, se, no início do século, quando Brás Cubas nasceu, “a vizinhança veio ou mandou cumprimentar o recém-nascido”, já na segunda metade, em ocasião igualmente relevante, como a de uma doença, nem quando a mãe de Isidoro, de Páginas recolhidas, caiu de cama, embora “as duas vizinhas fronteiras mandavam saber dela todas

149

MACHADO DE ASSIS, J.M. Dom Casmurro, 1957, p. 5, 12, 53,172. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 334. 150 Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 196-8, 252, 257. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 215, 422. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 389-90. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 175. 96

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as manhãs e oferecer seus serviços”, estas lá foram. Só em tal contexto, também aquela, ao restabelecer, foi à casa das outras, pois “quis ir pessoalmente agradecer-lhes as atenções”. Brás Cubas, por sua vez, já adulto, após a morte de sua mãe, quando se recolheu na Tijuca, visitou sua vizinha do lado, mais foi porque ela era uma pessoa de seu “conhecimento” e se mudara naqueles dias, sendo “uma amiga tão familiar” a ponto de ter sido quem vestiu o corpo da defunta senhora.151 No entanto, para não dizer que não existiam aqueles vizinhos que iam às casas alheias, e mais ainda, por lá ficavam por longo período, Sinhá Rita tinha constantemente, em sua casa, cinco moças, vizinhas, que lá “iam todas as tardes tomar café [...] e ali ficavam até o cair da noite.” Mas estas não eram de famílias abastadas, nas quais os sentimentos de intimidade e a noção de privacidade apareciam primeiro.152 Porém os vizinhos apenas não serviam e ajudavam uma família quando esta necessitava, eles também eram perigosos, visto que observavam tudo, constrangendo e ameaçando a intimidade. A vizinhança, com seu olhar agudo, restringia a liberdade, sendo difícil escapar do peso de sua vigilância, de suas censuras e funcionava como um tribunal das reputações, tendo um poder nem sempre oculto sobre os outros, causando receios. Se, segundo Brás Cubas, “os homens valem por diferentes modos, e o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens”, ressaltando o papel desse tribunal da honra que tinha uma ação coercitiva sobre os indivíduos, visto existir gente como seu tio João, “guloso de escândalos”, só a morte traria a liberdade, porque nesse momento, “já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O Olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte...” Mas antes, e fora dessa circunstância, seu poder, ainda que anônimo, era forte, coercitivo e limitava as ações, indo “contra a [...] intimidade”, chamando a

151

MACHADO DE ASSIS, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 44, 105-6. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 250. OC. 152 Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 19. OC. 97

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atenção para a “suspeita [...] pública”, era “o famoso olho da opinião” que tanto aterrorizava.153

3. O NÚCLEO CENTRAL E OS CÍRCULOS DOS PARENTES Nos relacionamentos entre parentes, a dependência expressa por meio do favor, estava presente também, sobretudo no que refere àqueles que se encontravam habitando o mesmo espaço doméstico de seus protetores. Eram, geralmente, pessoas solitárias no mundo, desamparadas: viúvos ou viúvas, órfãos. Sobre eles, estendia-se a vasta rede da dependência, na qual “a verdadeira paga do benefício é a gratidão do beneficiado”. Nesta situação, estavam a viúva prima Justina, de Dom Casmurro, que vivia na casa de Bentinho, “por favor de minha mãe”, como dizia ele, ou mesmo seu tio Cosme, que ali morava desde que enviuvou. Já Perpétua, de Esaú e Jacó, irmã de Natividade, também viúva, morava na casa do cunhado, sendo, por sua situação lá, “pessoa circunspeta, que não se perdia por um dito ou gesto descuidado”, tendo a preocupação de não dizer coisas que pudessem ofendê-lo, ao menos em sua frente, assim como prima Justina, que não opinava em assuntos para os quais não era convidada.154 Dentre os órfãos recebidos no seio de uma família e constrangidos pela “necessidade de pagar os benefícios que recebera”, encontrava-se Guiomar, de A mão e a luva. Porém esta se sentia pressionada não pela madrinha que a adotara, quando ficara órfã de pai e mãe. Era Mrs. Oswald, também uma dependente, uma inglesa dotada de índole serviçal, “viúva e sem família”, aceita pela baronesa como governanta, que devendo a esta, por isso, “tantos e tamanhos benefícios”, por “seus carinhos, [...] proteção, [...] confiança”, quem promovia por si mesma “uma campanha” para casar Guiomar, a contragosto desta, com pessoa de agrado de sua senhora, como paga, por sua “gratidão”. O 153

Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 114, 106, 101, 286-7. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 175-77. 154 MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v. 2, p. 130. OC. ; Idem, Dom Casmurro, p. 21, 73. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 35. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 265. OC. 98

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desejo de Mrs. Oswald em “servir a baronesa”, que apenas cogitava casar a afilhada com um sobrinho seu, levou esta a implementar aquela campanha, deixando a moça de “alma melindrosa” sentir-se “humilhada”, pois mesmo não esquecendo “os benefícios recebidos”, quisera “que lhos não lembrassem por meio de uma violência”, impondo-lhe um casamento: “fazê-lo, era o mesmo que lançar-lhos em rosto”. Não o fazia a madrinha que amparara a moça da pobreza. Guiomar recebia os favores da madrinha, mas não se deixava ser reduzida à serva. Ela era forte, ambiciosa e calculista, contraindo casamento com noivo de sua preferência, que escolhera por condizer com seus desejos de riqueza e de ascensão social, e trocava favores até com o marido. No entanto sua história revela a existência da situação, na qual, pela “gratidão”, a vontade da senhora seria respeitada, como estava delineado para acontecer com a heroína, caso a madrinha insistisse no seu querer.155 O caso de Guiomar é bastante significativo com relação à competência dos padrinhos de proteger os afilhados de batismo, mostrando uma prática bastante adotada em decorrência da qual se esperava deles, em contrapartida, um comportamento de obediência e respeito. Observados, portanto, esses fatores foram importantes no funcionamento da família e estabelecimento das relações sociais, ao criarem vínculos de união pautados na obrigatoriedade da reciprocidade, que eram os laços de solidariedade, parentesco e trabalho, os quais traziam o domínio pela dependência, propiciada pelo favor em decorrência da privação e da necessidade. Ao redor e mais próximo do núcleo familiar, não se pode deixar de falar, também, das relações entre tios e sobrinhos, que não eram apenas marcadas pelos laços afetivos advindos da consangüinidade, mas também pelos de solidariedade e proteção. Os tios eram, de costume, dedicados e solidários, abrindo as portas de casa e do coração para acolher sobrinhos pequenos órfãos, servindo de substituto do pai e da mãe, dando educação e afeto, ou mais tarde, viúvos, quase sempre, os beneficiavam nos seus 155

Idem, A mão e a luva, 1957, p. 52, 54, 55, 191, 211-2, 242. OC. ; XAVIER, T. M., 1994, p. 27-8. 99

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testamentos com legados. Falcão, de Anedota pecuniária, quando o irmão e a cunhada morreram, deixando uma filha de onze anos, da qual “gostava muito”, dava-lhe beijos e a visitava, hesitou um pouco, mas, por fim, recolheu a órfã, “era a filha cobiçada”, “amava a sobrinha com um amor de cão” e ficou não cabendo “em si de contente” com essa “paternidade [...] de empréstimo”. Após o casamento desta, ele recolheu outra sobrinha em casa, filha de uma irmã viúva, que também morrera, fazendo-o “com um alvoroço de namorado”, pois “era outra vez a filha perdida”. Nesses relacionamentos, sentimentos como amor, ternura, amizade e adoração predominavam por parte dos tios com relação aos sobrinhos, e existiam aqueles que eram os “prediletos”. Mas estes últimos também estavam afetivamente ligados aos tios, retribuindo, quase sempre, com amor, dedicação, confiança e obediência, a ternura e a distinção por eles dispensadas e expressas.156 Mas nem todos os tios possuíam suas condutas pautadas no esperado e na moral, na dedicação e afeição comuns. Uns não eram “bonzinhos”, mas “impertinentes”; outros poderiam ser vistos como desrespeitadores da fase de desenvolvimento dos sobrinhos, tendo mesmo papel de precursores na sua iniciação sexual e educação sentimental, trazendo os ares de fora da casa e da família, de outras esferas sociais. Num momento em que, em decorrência do avanço do sentimento de infância, os adultos deveriam abster-se de fazer alusões a assuntos sexuais diante dos jovens, atendo-se a uma linguagem decente, sem grosseria, e no qual a figura do adolescente, antes ignorada, delineava-se e correspondia à fase de identificação, transformação sexual e tomada de consciência desse fato, ocorrendo ainda uma individualização deste, que buscava formas para conquistar sua privacidade, o tio de Brás Cubas, conduzia os ritos iniciatórios. Segundo Brás, que clamava por sua individualidade e reclamava

156 MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias românticas, 1955, p. 203. OC.; Idem, Helena, 1955, p. 101. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 66, 255. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 319, 321. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 90, 186-9, 225. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 187, 189, 192, 204. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 11.

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do despudor do tio, aquele não lhe “respeitava a adolescência”, pois possuía “conversa picaresca” e contava-lhe desde os doze anos anedotas “eivadas todas de obscenidades ou imundice”. Mais tarde, quando já tinha dezessete anos, levou-o a “uma ceia de moças”, na qual se iniciou sexual e afetivamente, tendo sua primeira “comoção [...] da juventude”, a “paixão ou ligação” com a “linda Marcela”, prostituta que, no seu dizer, o amou “durante quinze meses e onze contos de réis...” 157 Por outro lado, nem todos os sobrinhos possuíam condutas exemplares. Não raro, estavam de olho nas fortunas das quais seriam herdeiros. O interesse era base de muitas de suas atitudes para com os tios. A ilusão de tornar-se um “herdeiro universal” os aproximava, sendo a cobiça o elo forte que os ligavam e designavam suas atitudes. Ter uma fortuna, fosse ela em “bons prédios” ou não, era motivo para bajulações, dedicações e atenções, afinal, herdar algum pecúlio poderia ser uma “das esperanças que tinha na afeição” de um desses parentes. Dedicados, por interesse ou não, os sobrinhos recebiam atenção especial dos tios. Estes não os deixavam de beneficiar e proteger até mesmo nos testamento, inclusive deixando bens que deveriam ser desfrutados conjuntamente com outros parentes designados no documento, o que, em alguns casos, tornava o favor em desfavor, numa arapuca armada aos receptores. Herdar trezentos contos, por exemplo, poderia estar vinculado ao casamento de um jovem sobrinho com uma tia velha que este possuía. 158 Já nos relacionamentos fraternais entre irmãos adultos, a amizade foi o sentimento que predominava, embora outros existissem advindos de diferenças, tensões e dissidência. Adoração,

157

Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 13. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 313. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 49, 65, 67-8, 74. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 1623, 173-5. ; AIRÈS, P., p. 125, 127-8. 158 MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 124. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 192. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 56. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 147-173. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 88, 110, 230-1. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 11. OC. ; XAVIER, T. M., 1994, p. 119. 101

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dedicação, afeto, ternura e zelo, perpassavam essas relações constituídas não só dos laços consangüíneos, mas da convivência mútua enquanto crianças e depois como adultos, embora desigualdades e rivalidades também marcassem essas relações. Nesse sentido, Brás Cubas, quando brigou com sua irmã Sabina, por época da divisão do espólio de seu pai, aferiu a amizade deles vinda dos “jogos pueris, fúrias de criança, risos e tristezas da idade adulta”. Assim, quando reconciliaram, viu sua infância ressurgir “fresca, travessa e loura”. Mesmo Aires e D. Rita, ao almoçarem juntos no dia de seu aniversário, embora morassem separados por gosto, comiam alegremente entre risos e flores, “recordando anedotas da infância e da família”. 159 As relações fraternais tinham ainda outras qualidades oriundas das desigualdades de idade, de sexo e civis. Se solteira, a irmã devia ao irmão obediência, sobretudo se órfã de pai, sendo ele seu guia e protetor, como indica o caso de Helena com Estácio, em que a autoridade deste sobre ela foi, em vários momentos, expressa, levando-a a criar formas para viver bem com a situação. Mesmo entre irmãs de idades diferentes, o poder de umas sobre as outras existia, como no caso de caber àquela mais velha o papel de educar e criar a mais nova, devendo logo primar por atitudes “de respeito e descrição”. Se entre irmãs solteiras e irmãos, irmãs mais jovens e mais velhas, formas de domínio existiam, livres estavam as viúvas em relação aos irmãos e mesmo aos pais. Eram elas senhoras de suas ações e vontade.160 Porém as relações de irmandade nem sempre ocorriam assinaladas por formas amigáveis. Pedro e Paulo marcaram o mundo familiar com discórdias, conflitos e hostilidade. Suas relações, como as de Caim e Abel, Esaú e Jacó, eram de “lutas”, “contrastes”, “aversão recíproca, apenas disfarçada, apenas interrompida por algum motivo mais forte, mas persistente no

159

MACHADO DE ASSIS, J. M., Ressurreição, 1955, p. 20, 188. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 158, 246-8. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 21, 180. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 129. OC. 160 Idem, Helena, 1955, p. 59, 107. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 368. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 207. OC. 102

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sangue, como necessidade virtual.” Seus comportamentos expressavam uma busca de autonomia, diferenciação e libertação um do outro, sobretudo por serem gêmeos e marcados por grande semelhança física, num momento de avanço da necessidade de formas de individualização dos jovens. Nenhum deles pretendia a indiferenciação, e lutavam para demarcar suas particularidades.161 Mas as lutas, nesse contexto das relações sociais em transformação, não eram apenas entre Pedro e Paulo. O favor, como aspecto básico e constituinte de uma visão de mundo, que englobava um conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias, que eram expressas por um grupo social e que se opunham a outras, de segmentos diferentes, o que foi, às vezes, visto como incompatível com o ideário burguês e a sociedade capitalista ou como prática inserida num momento particular de desenvolvimento dessa mesma sociedade, tinha o seu outro, que lhe opunha, emergente e em avanço, mas ainda não hegemônico, marcado por perspectivas de relações diferentes. Opondo-se a essa lógica do obséquio e das formas de interação social por ela produzida despontavam outras orientações, sensibilidades, imagens e idéias, que, progressivamente, vieram substituir essas primeiras, delimitando novos contornos sociais, pois pautadas nas trocas mercantilizadas ou monetárias, adequadas a uma nova ordem capitalista e sua moral de conveniências e fragmentária. Possuindo caráter pedagógico, por instruir sobre as novas práticas liberais dadas a partir de diretrizes sociais mais recentes, tais orientações foram expressas em passagens ilustrativas do Conto de escola, de Várias histórias, publicado pela primeira vez em 1896. No universo escolar, no ano de 1840, Pilar e Raimundo fizeram uma “troca de serviços”, pela qual cabia a um explicar a lição de sintaxe ao outro e não mais devido a “um pedido [...] por favor”, mas tendo por paga uma “pratinha”. Foi essa “novidade [...] nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva”, talvez na busca de “assegurar-lhe a eficácia”, recorrendo à moeda, que levou o velho mestre da escola, ao descobri-la, 161

Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 448. 103

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bradar um sermão moralizante, condenando-os. Conservador, defensor da velha ordem social e moral, o professor considerava essa prática dos jovens uma decadência e, em “voz de trovão”, falou “uma porção de cousas duras” por terem praticado os aprendizes “uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania”. Atitude que os expôs a ser designados de “sem-vergonhas, desaforados”, por entre exclamações como “Porcalhões! Tratantes! Faltos de brio!”. Além do sermão, foram castigados com palmatória, 12 bolos, por “não haver perdão” para a mencionada falta, que emancipava os envolvidos das obrigações do costume.162 Assim, uma nova moral se formava, moderna, liberal e contratual, e Pilar representava-a. Mesmo depois de ser ameaçado pelo juramento de um “tal castigo” que ele “havia de lembrar para todo o sempre”, caso repetissem “o negócio”, de ser estigmatizado, recolhendo-se sob “todos os olhos” da classe e mais os “impropérios do mestre”, que buscavam assegurar que “naquele dia ninguém faria igual negócio”, pela noite, Pilar dormiu e sonhou “com a moeda”. Buscava apanhá-la “sem medo nem escrúpulos...” No dia seguinte, o menino, que o pai ansiava por ter “grande posição comercial”, querendo vê-lo metido com “os elementos mercantis”, acordou cedo, e a idéia de ir procurar a moeda o fez vestir depressa, afinal “não era um menino de virtudes”. Isto é, caso fosse considerado a partir dos valores e práticas tradicionais que desagregavam num mundo de liberalidades em que tudo tornava mercadoria.163 Logo, o favor, como forma de troca de serviços e bens mantidos pelo princípio da obrigação e da reciprocidade, criava vínculos morais de conduta, que permeavam o mundo das relações entre agregados e proprietários, senhores, escravos e libertos, das gentes pobres, em geral, e os ricos, além daquelas de amizade, de vizinhança e de parentesco. Mas era prática de uma visão de mundo fadada a ceder lugar, com os deslocamentos socioculturais em andamento, para aquelas monetarizadas e liberais.

162 163

Idem, Várias histórias, 1957, p. 215-7, 219-221. OC. Ibidem, p. 220-22.

104

CAPÍTULO III O CASAMENTO NO IMAGINÁRIO SOCIAL O imaginário da sociedade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, sofreu deslocamentos importantes, trazendo novas dimensões a vida familiar, de modo geral, e feminina, de forma mais específica, com o início da reurbanização e modernização de seu espaço público. Na cidade em processo de europeização, a mulher lançou-se às vias públicas, que passavam a permitir circulação em ambiente mais salutar e seguro. Aí, ela desfrutou de novos encantos e sensações, produzindo rica economia de tais aspectos. É objetivo, neste capítulo, abordar alguns desses elementos concernentes à experiência dos indivíduos ao redor de uma instituição vista como central e elementar, o casamento. Conforme Perrot, a família nuclear, pensada como “célula de base”, como “átomo da sociedade civil”, fundada sobre o casamento monogâmico, emergiu por entre sistemas culturais de parentesco múltiplos, mais amplos e persistentes, triunfando nas doutrinas e nos discursos do século XIX, dentre eles, o literário. Essa família, como uma rede de pessoas e um conjunto de bens, foi responsável por gerenciar os interesses da vida privada, assegurando a transmissão dos patrimônios material e simbólico, herdados e produzidos em confluência com a esfera coletiva, tendo a função de reproduzir e de controlar as práticas das figuras que a compunham, com força normativa e reguladora, dada em torno do casamento, que tendeu a absorver toda a cena e o espetáculo social. Considerando o casamento como forma de apuração de si mesmo, a escolha social do cônjuge constituiu em objeto de estratégias que ocuparam o centro das atenções familiares que teve alguns traços principais, dentre eles, a prática de desposar o semelhante.164

164

PERROT, Michelle. Introdução de Os Atores. In: PERROT, M., 1991, p. 91. ; Idem, Figuras e papéis, 1991, p. 132, 135. ; Idem, Funções da família. In: PERROT, M., 1991, p. 105. 105

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1. “NA ESCOLHA DE UM CONSORTE”: “CASAR COM IGUAL” Na sociedade francesa, por essa época, houve uma diminuição da idade por ocasião do casamento, que, na fluminense, também se revelou bastante baixa. Para as mulheres, as idades em que, usualmente, realizavam os casamentos, era entre os 16 e 20 anos, mas havia ainda uma boa incidência daqueles na faixa dos 22 a 25 anos. Casamentos outros existiam que ultrapassavam essas idades, porém, bem poucos. A idade dos 17 anos era apresentada, normalmente, como a idade para o casamento, embora, segundo um narrador machadiano, toda noiva tivesse sempre 15 anos, o que, em realidade, podia ser considerado muito cedo para o matrimônio, pois vistas ainda, por essa época, como “criançolas”. Já para os homens, os casamentos realizavam-se dos 23 aos 30 anos. Portanto, essas faixas de idade extrapolavam aquelas propostas pelos médicos que viam o casamento como uma instituição higiênica, para o qual a mulher deveria ter idade ideal de 18 a 20 anos e o homem de 24 a 25 anos.165 Nos casamentos, o velho princípio da igualdade entre os cônjuges, presente desde os tempos coloniais, quando da época de seleção do futuro cônjuge, permanecia sendo levado em conta166 essencialmente se tratando de igualdade social e moral; a etária, não raro, era desconsiderada, contrariando também as indicações dos médicos higienistas e dos moralistas. Casar-se com pessoa de condição social inferior significava “descer a uma aliança indigna” de seu status e um desrespeito à pessoa, assim como ao nome dos pais, sendo

165

MACHADO DE ASSIS, J. M., Iaía Garcia, 1955, p. 25, 42, 123. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 33, 38. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 15. OC. ; COSTA, J. F., 1989, p. 221. 166 LIMA, Lana Lage da Gama. A boa esposa e a mulher entendida. In: LIMA, L. L. da G.(org.) Mulheres, adúlteros e padres: história e moral na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987. p. 21. ; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T. A Queiroz: EdUSP, 1984. p. 66-70. 106

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mesmo hábito das famílias, na sua função de regular as estratégias matrimoniais, mandar os filhos para fora da cidade, para o interior ou mesmo exterior, como forma de prevenir consórcios indesejáveis. De acordo com esse princípio da igualdade, vemos Estela, em Iaiá Garcia, não se casar com Jorge, porque considerava aquele consórcio “uma espécie de favor”, e ela tinha grande “respeito” a sua “própria condição”. Não queria conhecer “a polidez humilhante, nem a afabilidade sem calor”. Casando-se com Luís Garcia, seu “nome não serviu de pasto à natural curiosidade dos amigos” de seu marido. Segundo ela, ninguém perguntou: “Quem é ela? donde veio?” , pois “não foi preciso descer nem subir”. Casou-se com gente de sua “igualha”, ao menos socialmente, uma vez que, na idade, Garcia era quarentão e ela nem vinte anos possuía.167 Contrair matrimônio fora de seu meio ou desprezar a questão da eqüidade social era até possível, ainda que objeto de proibições, quando se minimizavam as diferenças no decorrer de um longo trabalho de conquista da família, no qual tinham relevo os predicados morais daquele em estado inferior, como virtude, honestidade, honradez, discrição, educação. Entretanto as suspeitas e tensões podiam permanecer implícitas, chegando mesmo a destruir posteriormente o casamento, como ocorrera com Bento e Capitu, em Dom Casmurro. Capitolina, que foi vista em criança como uma “pequena muito desmiolada”, tendo comportamento ao qual o pai fazia vista grossa por cálculo, para que as coisas corressem de maneira que o casamento tivesse de se realizar, acabou por vencer as objeções familiares, mas, no futuro, tornou refém da desconfiança mantida pelo esposo, até separarem-se. No entanto, nem sempre, “a distância social que [...] separava” os namorados era reduzida ou rompida e, como casamentos desiguais eram mal vistos pela elite da sociedade, uma mãe de família rica e tradicional, como D. Antônia, de Casa velha, presa aos laços de seu grupo social e a seus critérios de 167

MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 313. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 222. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 42-3, 96, 103-4, 107-9, 291. OC. 107

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seleção do companheiro, que dispensavam o amor e a atração física, por considerá-los fantasia da literatura, afirmava que a vida “não é novela de príncipes que acabam casando com roceiras, ou princesas encantadas”. Afinal, casar com uma moça pobre deixava sua família desacreditada diante da parentela, como ela expressou: “com que cara daria [...] semelhante notícia aos nossos parentes...”. 168 Se, dentre as estratégias que regulavam os casamentos, era usual o hábito de mandar os filhos para fora da cidade para afastá-los da possibilidade de estabelecer laços inconvenientes e proibidos, a existência da “casamenteira” também o era, às vezes, funcionando com a mesma finalidade, como instituição que auxiliava os pais ou os membros da comunidade a controlar as uniões. A função dos casamenteiros, de arranjar casamento para moços e moças, foi por muitos desempenhada, não sendo rara a presença de uniões por eles “ajeitadas”. 169 Em vários romances, Machado apresenta o problema da ascensão e mobilidade social por meio do casamento, que era aliança, negócio, objeto de cálculo, em que a escolha estava atrelada, sobretudo, à ambição. Em Memórias póstumas..., Virgília, quando por época de casar-se, escolheu Lobo Neves em detrimento de Brás Cubas a quem amava, pois o primeiro, igualmente ambicioso, prometeu-lhe que um dia a faria não baronesa, como esta lhe pediu, mas, sim, marquesa, porque ele seria marquês. A moça, ambiciosa, “comparou a águia e o pavão, e elegeu á águia, deixando o pavão com seu espanto...” Mesmo Guiomar, de A mão e a luva, também escolheu, dentre seus três pretendentes, aquele que “nascera para vencer”, para atingir a “glória”, que lhe daria amor, “mas não o quisera fruir na vida obscura. [...] Ela queria um homem que [...] sentisse dentro de

168 Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 12. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 197.; ANDERSON, M., 1984, p. 49. 169 MACHADO DE ASSIS, J. M., Iaiá Garcia, 1955, p. 90. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 246-7, 250, 256, 258. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 281. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 90. OC. ; ANDERSON, M., 1984, p. 50-1.

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si força bastante para subi-la aonde a vissem todos os olhos”. Força que significa ter os meios materiais e capital simbólico para tal. Aqui, nesses casos, os interesses orientados externamente pelo grupo familiar e social deram lugar aos interesses relevantes para os imediatamente interessados. Ambição e amor são sentimentos que aparecem bastante atrelados, sendo, quando possível, considerados na eleição do cônjuge, e os interesses variados, princípio de muitas uniões.170 No que se refere à preocupação com a conformidade etária, casar com “um sujeito velho” podia encontrar, na família, alguma resistência, mas não era um obstáculo tão difícil de transpor como a igualdade social. Podia dar muito o que falar, mas não passava disso. Esse costume entrou em desuso, perdendo sua força, embora não sendo de todo extirpado, mesmo que esses casamentos fossem reprovados pelos moralistas e pelos higienistas. Segundo os primeiros, junto a um velho, a jovem esposa procuraria mais facilmente um amante moço, e para os segundos, o velho tinha já os órgãos reprodutores “enfraquecidos” e com as “funções perturbadas”, o que os tornava inaptos para procriar, quando todo homem deveria ser pai e toda mulher mãe.171 O casamento era, em regra, um negócio, cuja operação a família conduzia. Embora, na seleção dos cônjuges, os filhos passassem a ter uma maior autonomia, sendo mesmo consultados sobre sua vontade, a influência dos pais, nessa escolha, continuou existindo de forma decisiva, sendo ela pautada, não raro, no princípio da racionalidade que dispensava os sentimentos dos envolvidos. Constantemente, deparamos com os projetos dos pais feitos para os filhos, pelos quais estavam eles destinados a alguém que não seus próprios eleitos. Mesmo que vários desses arranjos ou negociações tivessem sua realização frustrada, existiam aqueles

170

MACHADO DE ASSIS, J.M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 149-50. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 169, 190, 225-6, 242. OC. ; ANDERSON, M., 1984, p. 51. 171 MACHADO DE ASSIS, J. M., Esaú e Jacó, 1959, p. 392-3, 396. OC.; COSTA, J. F., 1989, p. 220. 109

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em que a vontade dos pais era ainda imposta, particularmente, às filhas. Nessas condições, os sentimentos que permeavam as relações matrimoniais, nem sempre, ultrapassavam a “gratidão”, o “respeito”, a “admiração” e a “estima”. O amor romântico e a atração sexual como motivos da união do par e a sua utilização como critério de seleção do companheiro, embora fizesse parte da literatura há muitos séculos, pelos menos desde o XVI, para os grupos mais elevados, eram tratados como fantasia. Era comum dizer que, para efetuar a união de duas pessoas, bastava que se tivessem “já alguma estima mútua”, que isso lá de “fogos ardentes [...] são coisas que ficam bem em verso [...] mas na vida, que não é prosa nem verso, o casamento apenas exige certa conformidade de gênio, de educação e de estima”. Assim, “a maior parte dos casamentos fazem-se independentemente do amor”, e, se um dia ele passasse a existir, viria com o tempo e com a convivência. Conforme um narrador, “a reflexão das mães de família era que um casamento nunca se recusa, salvo circunstâncias especiais”, pois “um bom marido não é coisa fácil de achar”. Logo, sentimentos românticos, paixão e atração física, eram totalmente dispensáveis, especialmente para as moças pobres que nutrissem o desejo de casar-se. Para essas donzelas, até mesmo “simpatia” com relação ao pretendente era dispensável, segundo uma mãe, viúva e pobre, que dizia que “a simpatia viria depois; e uma vez que ele não lhe repugnava, podia casar”. 172 Na escolha do consorte, o interesse em manter o legado material entre a família, quase sempre, estava presente dentre aqueles que faziam a eleição, sendo prática primordial para impedir a dispersão dos bens acumulados pelo grupo. Em conformidade com as práticas e saberes sobre essa esfera econômica, que zelava pela distribuição e consumo dos bens, o casamento de Eugênia com seu primo Emílio foi aprovado pelo irmão deste, não só porque a moça o merecia, “como porque 172

MACHADO DE ASSIS, J.M. Histórias românticas, 1955, p. 159-3l0. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 90, 104. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 367. OC. ; ANDERSON, M., 1984, p. 49.

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era muito melhor que tudo ficasse em casa”. As partilhas daquilo que foi produzido e acumulado tornavam-se “muito mais sumárias”. 173 Porém o amor também se fazia presente em várias escolhas, nas quais se considerava uma afeição romântica e impunha-se a vontade dos diretamente envolvidos ou a livre escolha, conforme um novo ideal de casamento em difusão. O amor romântico apresentava-se em ascendência no contexto da perspectiva da individualidade que se firmava, opondo-se aos interesses e orientações do grupo familiar e da coletividade e criando conflitos e tensões. Se, conforme as prescrições moralistas, os sentimentos, até então, deveriam dar lugar à razão, no momento da seleção do parceiro, agora, na segunda metade do século, crescia a convergência entre casamento e amor, sendo as mulheres aquelas que mais se inclinavam para essa possibilidade. Mesmo que não partilhado reciprocamente, estava presente nas considerações, sobretudo, das moças na hora de eleição de seu par, e se tornava, muitas vezes, responsável pela infelicidade destas no casamento, pois, quase sempre, este era um sentimento unilateral. Em geral, acreditava-se que o amor conjugal “podia nascer depois, como fruto da convivência” e que “esperar uma grande paixão para casar-se era arriscar-se a morrer esperando”. 174 Na busca de apreendermos a questão da igualdade social, percebemos ainda aquela pautada no aspecto moral, sendo o bom partido para uma moça um “marido digno e capaz”; aquele que possuía qualidades morais, físicas e condições materiais para prover a família. Este era considerado um bom “projeto de marido”. O noivo adequado deveria ter procedimento “sóbrio, direito, resoluto, sem desfalecimentos, nem demasias ociosas”, sendo pessoa que “nascera para vencer”, notadamente se os primeiros passos de “homem público” estivessem dados, pois a

173

MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 196.; LIMA, L. L. da G., 1987, p. 22. ; ANDERSON, M., 1984, p. 50. 174 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memorial de Aires, 1955, p. 29, 46-7. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 250. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 137-8. 111

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política e a esfera governamental eram a “estrada que leva os fortes à glória”. Para uma moça que almejasse estar em evidência, conquistando “relevo público” e “notoriedade”, casar-se com homem de carreira política era o ideal. 175

2. HONRA E FAMA DA ESCOLHIDA No processo de seleção dos cônjuges, as virtudes necessárias a uma moça que almejava tornar-se esposa expressam um modelo de feminilidade no qual se pressupunha ser “boa”, “amiga”, “modesta”, “solícita”, “econômica” e “prendada”. Assim, Helena, em romance homônimo, era “dócil, afável, inteligente [...] praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa, com igual interesse e gosto. [...] Havia nela [...] um acordo de virtudes domésticas e maneiras elegantes”. A moça casadoira, “além das qualidades naturais”, deveria possuir “algumas prendas de sociedade” que a dotassem de um patrimônio simbólico. Dessa maneira, Helena tinha “magnífica voz de contralto [...] era pianista distinta, sabia desenho, falava corretamente a língua francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de costura e bordados e toda a sorte de trabalhos feminis”. À esposa estava reservado um papel importante na nova ordem burguesa, pois da habilidade feminina e de seus dotes socioculturais dependia o sucesso do casal, não raras vezes, advindo dos contatos travados nas recepções, como já referido e como veremos ainda mais adiante.176 De posse de tais prendas, cabia às moças ainda possuir outros dotes simbólicos de alto valor no mercado das trocas matrimoniais, que não se reduziam aos bens materiais. O capital simbólico da reputação feminina, como define Perrot, que pressupunha qualidades exigidas como recato e castidade, ser honrada, honesta e discreta, passava, necessariamente, pela noção de virgindade, a qual era tanto física como moral. Ser honrada significava, antes de tudo, ser virgem, sendo que a perda da “virtude”, fora ou anteriormente ao casamento, jogava as 175

MACHADO DE ASSIS, J. M., Iaiá Garcia, 1955, p. 96. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 190, 242. OC. 176 Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 320. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 3940, 145. OC. 112

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mulheres no mundo da “desonra” e da “desgraça”, trazendo a si, a seus familiares e lares a infelicidade. Para a mulher, quando “perdida”, o “mundo fecha-lhe as portas e lavra mandamento de interdição”, sendo minimizadas as possibilidades de contrair um casamento, as quais se tornavam remotas ou mesmo impossíveis, a não ser que aquele que a seduziu, que a “perdeu”, com ela se casasse.177 Sendo então a virgindade tão importante, existiam ainda instituições que funcionavam nos moldes dos velhos recolhimentos coloniais, que possuíam o objetivo de alojar e zelar pela honra das jovens, de alguma forma ameaçada pela “libertinagem” do mundo, como era o caso do convento da Ajuda. A história de Cecília, de Contos esquecidos, assemelha-se àquelas narradas por Ewbanb, em 1846, sobre as virgens enclausuradas na Ajuda, separadas do mundo por injunções familiares ao entrarem em conflito com os planos traçados por eles para seus futuros. A jovem começou namorar Venâncio, e este pediu licença à sua mãe, uma viúva, para tal. Porém, ao ter o pedido negado, pois a senhora tinha outros projetos para a filha, continuaram se encontrando, de noite no quintal, até que foram descobertos e ela mandada para esse convento, “de onde sairia quando fosse tempo de casar”, afinal se todos os encontros eram encarados como perigosos e possuíam regras, os dados a escondido burlavam as regras impostas às moças da elite.178 Estando, assim, a honra intimamente ligada à idéia de fama pública, impunha-se às moças recato no viver, e aquelas que também a tinham de namoradeira podiam encontrar dificuldades para arranjar marido. Para elas não serem

177

Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 43,57-68. ; PERROT, M., Funções da família, 1991, p. 114. 178 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos esquecidos, 1956, p. 257-8. ; EWBANK, Thomas, apud LEITE, Miriam Moreira (org.) A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: Hucitec, 1984. p. 63-5.; ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 156. 113

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consideradas como “namoradeiras”, a relação deveria evoluir para um namoro oficializado e noivado. A família da moça era responsável pela forma como o namoro transcorria e, logo, pela sua fama e honra, garantido-lhe a respeitabilidade e o casamento futuro. Nesse sentido, pensava a Sra. D. Leonarda, de História de uma fita azul: “_ Quem há de querer casar com uma estouvada daquele gênero, que ainda bem não acabou um namoro, já começa outro?” Esse “costume de namorar a torto e a direito” era considerado “um desvio do espírito das mulheres”, fazendo com que os rapazes não as vissem com bons olhos, e, mesmo quando as namoravam, tratavam-nas simplesmente como passatempos, não as levando a sério.179 Assim, a fama de namoradeira podia desgraçar a vida de uma moça, e aquela que a possuía, de forma fundada, de namorar todo mundo, deitando os olhos a quem queria, marcando encontros, escrevendo cartas, fazendo juramentos e “promessas de fidelidade, de amor eterno, de paixão invencível”, estragava “a vida por suas próprias mãos”. Tais moças deveriam abrir mão de esperanças inúteis de encontrar alguém para desposá-las.180 Para uma donzela preocupada com sua reputação, “as aparências” comprometiam tanto que era perigoso o simples fato de um rapaz, com quem tinha pouco conhecimento, “um estranho”, falar-lhe em um “deshabillé tão pouco elegante”, caracteristicamente matinal (cabelos frouxamente atados no alto da cabeça e roupão de musselina). Se o controle do corpo e da aparência permeava as relações cotidianas, nesta situação, Guiomar, de A mão e a luva, foi repreendida por sua madrinha que lhe disse: “_ Mas, menina, isso não é bonito. Que diriam se os vissem?... Eu não diria nada, porque conheço o que você vale, e sei a discrição que Deus lhe deu. _ Mas as aparências...” Nesse contexto, de como aparecer aos olhos dos outros, uma mulher jamais deveria ir à casa de um homem solteiro sozinha, pois “os

179 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 221. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 81. 180 Ibidem, p. 255-64. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 97. ; ESTEVES, M. de A., 1989, p. 145.

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olhos da sociedade” a vigiavam e a boca a maldizia. Conforme Lamber, a moça alguma era “permitido caminhar na rua sem ir acompanhada por um parente muito próximo”. 181 Nessa sociedade, na qual se dizia que as mulheres tinham por “carreira” o casamento; em que este poderia ser “bom negócio” ou “grande negócio”; em que a “questão principal é casar”, pois um “marido, ainda que mau, é sempre melhor que o melhor dos sonhos”, podendo ser “governista, oposicionista, ambas as coisas ou nada, _ contando que fosse marido”, pouco importava o posicionamento ideológico do pretendente e sua colocação política. Casava-se com um rapaz “à toa, sem vontade”, por não ter outro com quem casar, sendo a questão da honra muito importante, sobretudo da donzela, e jamais poderia ser esquecida. Tudo se deveria fazer para protegêla e resguardá-la.182 Assim é que vemos e entendemos a necessidade e a preocupação em desmentir os boatos desairosos para a probidade de uma moça, como aqueles de fuga com um namorado. Os raptos, por sedução ou por violência, praticados desde os tempos coloniais e mesmo ainda no período republicano, considerados como crime e atos indecorosos, era desfecho de muitas histórias nas quais as famílias se opunham às escolhas feitas pelos filhos com relação a seu par. Eles driblavam o controle e o policiamento da família na busca de superar a rejeição desta à sua eleição. Em decorrência dessas situações de fugas ou raptos, as moças sofriam fortes conseqüências, pois, se alguns raptores casavam-se com aquelas que os acompanhavam, santificando e legalizando sua união, nem todos o faziam, deixando-as expostas a outras situações de concubinatos, quando, por um motivo ou por outro, o primeiro se desfizesse. Desta forma, interditada a “estrada real”, que era

181 MACHADO DE ASSIS, J. M., A mão e a luva, 1957, p. 46, 52. OC.; Idem, Ressurreição, 1955, p. 98-100. OC. ; LAMBERG, Maurício, apud. LEITE, 1984, p. 39. 182 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memorial de Aires, 1955, p. 135. OC.; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 240, 253, 256. OC; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 271. ; SOIHET, R., 1989, p. 122-3.

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o casamento, estavam elas caminhando “por um atalho obscuro” que era o concubinato, na visão dos abastados.183 Essas moças, vítimas da “fatalidade” ou “de ódios de família”, que impediam muitos casamentos, a cata de novas aventuras, possivelmente, eram aquelas que tratavam na imprensa fluminense de “negócios de coração”, declarando, em anúncios misteriosos, que precisavam da proteção de um homem. Comumente, “moças distintas de boa educação”, ou uma “senhora séria” pediam pelos jornais “a proteção de um senhor viúvo”, ou “de um homem honesto”, ou ainda de “um cavalheiro rico”, que as “proteja ocultamente”. Solicitavam a quem tivesse condições, enviar cartas à tipografia do jornal endereçada à pessoa com as iniciais indicadas. Esse costume, que começava então a florescer na cidade por volta da década de 1860, era, segundo o cronista, “uma operação econômica praticada ‘nobremente’” por damas pobres necessitadas do coração e da vida, que procuravam quem lhes podia dar beijos, casa, vestido, calçado e prato.184 Nessas circunstâncias, a “melhor nora” era aquela “boa, discreta, prendada, amiga” da família do noivo e ainda dedicada e capaz “dona de casa”. Essa função, que cabia à mulher, incluía tomar “conta de tudo”, ver e guiar os serviços todos da casa inteira, pagar as contas, fazer o rol das despesas, cuidar de mantimento, roupa, luz... Se ao homem da casa competia prover o dinheiro que a sustentasse, à mulher, a quem o entregava, pertencia a atividade de distribuí-lo. Capitu, após a morte de sua mãe, tornou-se “uma dona de casa” e seu pai, aposentado, “não fazia mais do receber o ordenado e entrega-lo à filha”, que o distribuía conforme as necessidades. Isso a gabaritou para a função que deveria exercer ao casar-se com Bento, sendo esses pontos considerados e destacados nas conversas familiares sobre a conveniência ou não do futuro casamento. Sendo “aprovada” 183

MACHADO DE ASSIS, J.M., Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 57-82. OC. ; Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 195. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 74, 86. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 266. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 42, 93, 113. ; SILVA, M. B. N. da, 1984, p. 75-80. ; ESTEVES, M. de A., 1989, p. 97. 184 MACHADO DE ASSIS, J. M., A semana v.1, 1959, p. 378-9, 381. OC. 116

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como projeto de “uma boa esposa” e tendo recebido a licença pedida para casar, realizado o casamento, coube a ela gerir a economia doméstica. Seu esposo a considerou “poupada”, e não foi “só de dinheiro mas também de coisas usadas”; fazia “puras economias de dinheiro”, contava, somava... de modo que existia até “sobras do dinheiro que [ele] lhe dava mensalmente para as despesas”: era “um anjo”. A “boa mãe de família”, talvez, já não fosse aquela tão “fecunda e ignorante”, mas também nem tão letrada que entendesse do “terreno elevado da arte, da história e da filosofia”. Ela deveria ser perfeita moralmente, mas nem tanto intelectualmente; não lhes era “comum” algum “sentimento de poesia e de arte”, que as fizesse “superiores”, mesmo aquelas que preferiam e podiam “brilhar fora de casa”, não muito dadas “aos cuidados do governo doméstico”, em uma época em que “as mulheres são essencialmente donas de casa”. 185 Fora disso e do casamento, “um negócio”, caso precisassem trabalhar para se sustentarem, existiam alguns trabalhos que eram aceitos. Se educadas, instruídas, logo sabedoras das prendas de salão, como línguas, música, desenho... e dos dotes domésticos, podiam ter “uma profissão honesta”, sendo professoras, das primeiras letras, de línguas, de piano, de rendas e bordados _ mestras de meninas e de algumas crianças do próprio bairro, atividade vista como adequada ao sexo feminino, pois considerada uma extensão das funções maternas. Além disso, sobretudo se sem instrução, poderiam utilizar da própria residência como espaço de trabalho, sendo doceiras ou costureiras, e neste último caso, tendo a possibilidade ainda de trabalhar em casa ou loja de modista. Com estas atividades, lícitas e honradas, mas pesadas, conseguiam seu sustento material ou ao menos contribuíam com a economia doméstica, ajudando nas “despejas da casa” e comprando algum objeto de uso próprio que necessitavam. Já o comércio não era uma atividade tradicionalmente aceita para mulheres brancas, como era para as negras, como as quitandeiras, basta ver que a loja de ourivesaria 185

Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 25, 320-1, 334-7. OC. ; Idem, Contos fluminenses v.1, 1955, p. 8, 25. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 64. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 92, 133. 117

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de Marcela, em Memórias póstumas..., era pouco procurada, segundo Brás, “talvez pela singularidade de a dirigir uma mulher”. 186

3. RUMO ÀS BODAS: DOS PEDIDOS E C O N T R A TO S A N T E N U P C I A I S À S PROMESSAS QUEBRADAS Para aqueles namoros que não tinham oposição alguma dos pais, talvez por não possuírem outros projetos de enlace matrimonial para os filhos e nem verem outros empecilhos à sua realização, restavam, aos rapazes, pedir-lhes as licenças para o casamento, tanto à sua família como à da pretendida, como o fez Bentinho, que solicitou a sua mãe, viúva, licença para casarse com Capitu. O rapaz que desejava casar-se deveria transmitir sua proposta e pedido de casamento aos pais da moça, de preferência ao pai ou à mãe, mas, quando órfã, a algum parente de responsabilidade, como um irmão, sobretudo mais velho, ou madrinha ou tios. Tais pedidos, às vezes, eram realizados por intermédio de uma pessoa amiga, outros diretamente pelo pretendente, fosse verbalmente ou mesmo por cartas, porém, quase sempre, depois de receber a autorização prévia da jovem. Dado o consentimento, de imediato ou não, às vezes, por necessidade de perscrutar os sentimentos, opinião ou simplesmente a vontade da solicitada, o período do noivado era bastante curto em contraste com os países anglo-saxônicos, onde, segundo Lamberg, essa fase podia durar até anos. Se, na França, o noivado durava de três semanas a alguns meses, prevalecendo o prazo de dois meses como o mais conveniente e o mais adotado, no Rio, a grande maioria dos noivados oscilavam de 186

Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 17, 298. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 15, 43. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 139, 227-9. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 142-3. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 389. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 13, 262. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 175. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 203-4. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 131. OC. ; SOIHET, R., 1989, p. 117-9.; DIAS, Maria Odila L. da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 116. 118

O Casamento no Imaginário Social

um a seis meses. Esse curto espaço de tempo era “despendido pelos noivos naquele deleitoso viver”, que já não era “o colóquio furtivo do simples namoro”, nem era “ainda a intimidade conjugal, mas um estado intermédio e consentido, em que os corações” podiam “entornar-se livremente um no outro”. 187 Nesse intervalo de tempo, no qual a sociedade consentia já uma maior intimidade entre os namorados, resolviam-se algumas questões práticas, como “as formalidades eclesiásticas”, a exemplo do costume tradicional das “denunciações” ou “banhos”, que significavam a publicação ou divulgação da união pela igreja. Ainda entre essas questões, existiam aquelas relativas ao regime de bens, de “preparo do enxoval”, de busca de “casa para noivado” _ lua-de-mel_ , de circulação das “cartas de participação”, enviadas aos amigos e familiares. Portanto, quanto menor o prazo do noivado, mais correria trazia para sua preparação, pois, em síntese, o processo pressupunha que fossem as “certidões passadas”, os “banhos corridos”, as datas marcadas, as encomendas da festa feitas, a “escolha dos convidados, etc.!” Nos casamentos aburguesados, que eram, não raro, vistos como um negócio, o dote e outros contratos antenupciais possuíam grande importância na regulação desses arranjos e do regime de bens sobre o qual eram edificados, afinal, só os proprietários se casavam com tais acordos. O dote era indispensável para a realização de um bom casamento, sobretudo porque “um bom marido” não era “coisa fácil de achar” naquele momento, como dizia Valéria, de Iaiá Garcia, à Estela. Porém, como o interesse da primeira, senhora conhecedora das estratégias matrimoniais de seu tempo, passava por casar rapidamente a outra, dotou-a de imediato, pois o resto viria com mais um pouquinho de habilidade. Querendo “casar-se bem”, mas em situação desfavorável, temos várias moças, como a bela Miloca, a qual “infelizmente” tinha seus “desejos [...] longe de realização”, pois “dos rapazes casadeiros nenhum contestava a beleza da moça; mas corria entre eles uma teoria de que a mais 187

MACHADO DE ASSIS, J.M., A mão e a luva, 1957, p. 235. OC. ; LAMBERG, M. apud LEITE, M. M., 1984, p. 39. ; MARTIN-FUGIER, A., Os ritos da vida privada burguesa, 1991, p. 239 119

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bela mulher deste mundo precisa não vir com as mãos abanando”. Isso tornava inútil sua esperança de se casar. Uma vez sem dote, a mulher estava fadada ao celibato. O dote podia ser uma isca, fazendo “foscas” aos rapazes. Se um jovem sem fortuna podia casar-se burguesamente, o inverso raramente ocorria; uma jovem sem dote possuía todas as possibilidades de permanecer solteira.188 O dote, sendo dinheiro ou outros bens materiais, que permitiria que o casal levasse um dado padrão de vida, independente de seus rendimentos, garantindo sua estabilidade, poderia ser valorizado na escolha e realização de um casamento como meio de se arranjar na vida por noivo velhaco, ou como forma de reparar fortunas corroídas na vida equívoca, com o jogo e com a prostituição. Assim, poderia ser com aquele que se unisse com certa Cláudia, possuidora de “cerca de vinte apólices e uma preta velha”; com Cecília, que, além de possuir “um rosto simpático”, tinha de dote “cem contos limpos, em moeda corrente”; com Carlota, que tinha “um bom dote”, “sob forma de bons prédios”. Nessas condições, os caçadores de dote não eram poucos, e o frívolo Azevedinho “namorava o dote de Ângela”, da mesma forma como Coutinho, que, embora amasse Luísa, “não a amaria talvez se não tivesse nada de seu”. 189 Possuindo o dote papel relevante e fundamental na economia de trocas que era o casamento, constituía uma preocupação de muitos pais a acumulação de alguma propriedade que servisse parara dotar suas filhas. O dr. Cordeiro, de Contos sem data, “médico de longa prática”, teve na sua vida uma “única cobiça”, que era conseguir “acumular um pecúlio com que pudesse amparar a velhice e dotar Carlota, o que conseguiu à força de muita economia e muito trabalho”. Mas o dote podia

188

MACHADO DE ASSIS, J.M. Iaiá Garcia, 1955, p. 90, 105. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 393. OC. ; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 241. 189 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos fluminenses v.2, 1955, p. 34, 259. OC. ; Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 14,30. ; Idem, Contos esparsos, 1956, p. 236. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 109, 172. ; MARTINFUGIER, A., 1991, p. 241. 120

O Casamento no Imaginário Social

advir da solidariedade e caridade de algum rico, como ato de boa ação, como o que pensou Brás Cubas em praticar, talvez dotando “alguma menina pobre.” 190 Um noivo prudente não tocaria no assunto do dote para não parecer interesseiro, esperando que a manifestação a esse respeito viesse da família da noiva. Outros, porém, com muita “arte e dissimulação”, tratavam dessa questão contratual nesse período do noivado, quando o dote lhe era entregue, e outros ainda poderiam, sobretudo se bons estrategistas, propor o lavramento de alguma “escritura de separação de bens”, contando, é claro, que “não seria aceita” e que ocorresse então um matrimônio benéfico, pois apenas os endinheirados estabeleciam contratualmente um regime de bens.191 No período ainda do noivado, encontramos as noivas idealizando e sonhando com as bodas. Nessa fase se expressa um conteúdo cultural e afetivo tecido em torno do casamento e se ressaltam os aspectos simbólicos dos laços matrimoniais. As mães, que faziam a iniciação das filhas no mundo, sentavam-nas ao pé de si e recitavam “um catecismo de deveres e costumes” de uma “senhora casada”, que “traz consigo responsabilidades gravíssimas”, tirando “alguns conselhos do seu coração e da sua experiência”. 192 Isto tudo, todavia, podia não se realizar, acontecendo a quebra da promessa de casamento, o que trazia à moça danos à sua reputação moral, sobretudo se esta se houvesse entregado ao noivo frente a seus juramentos de aceitá-la “por mulher diante de Deus e dos homens”, ou com ele fugido e depois

190 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos sem data, 1956, p. 129. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 175. OC.; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 107-9. OC. ; LIMA, L. L. da G., 1987, p. 22. 191 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos sem data, 1956, p. 154. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p.108. OC. ; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 240, 241. 192 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 34, 259. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 135,154. ; Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 14, 30. ; PERROT, M. Figuras e papéis, 1991, p. 156-7.

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sendo abandonada “pelo tratante”. No entanto, mesmo não havendo nenhum fato que afetasse diretamente a virgindade da noiva, a simples quebra da promessa de um casamento já marcado era considerado como um procedimento indigno daquele que o fizesse. Um “mal” que não podia remediar sem que algum dano à “reputação da moça” ocorresse, expondo-a “à curiosidade dos outros e às caçoadas...” e sendo ato “desairoso à família”. Era atitude considerada “ordinária”, “indigna” e “cruel”, que afetava o valioso patrimônio simbólico de uma moça.193

4. DA CELEBRAÇÃO E DA LUA-DE-MEL AOS IMPEDIMENTOS DO MATRIMÔNIO Nem todas as promessas feitas eram desrespeitadas, ao contrário até, a grande maioria as cumpria, quando se tratava ao menos da realização do casamento, que, até o advento do regime republicano, era apenas oficializado “na câmara eclesiástica”, onde se escrituravam as certidões. Tratado dos papéis, consagrava-se a união “pelas bênçãos da Igreja”, prosseguindo o ritual de variada codificação. Na celebração pública desse ritual privado, quando os noivos davam o sim na presença do sacerdote, pais, padrinhos, testemunhos e respectivos amigos e familiares, “um pequeno discurso do padre acerca dos deveres que o casamento” requeria e impunha-se, assim como sobre a “santidade daquela cerimônia”, era ouvido por todos, dando sua conclusão. Se, em 1821, Graham, comentava que “não é permitido aqui a nenhum solteiro comparecer a um casamento”, sendo a cerimônia realizada “na presença dos parentes próximos, desde que casados, de ambos os lados”, nos registros machadianos, já era possibilitado que os solteiros estivessem presentes ao lado dos casados, embora pudessem essas presenças significar alguma “ameaça” ao ato, e, por isso,

193

MACHADO DE ASSIS, J. M. Contos recolhidos, 1956, p. 48. ; Idem, Helena, 1955, p. 269. OC. ; Idem, Contos fluminenses v.2, 1955, p. 129-132. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 147. 122

O Casamento no Imaginário Social

em geral, a maioria dos convidados esperava na casa da noiva por seu regresso.194 Esse momento de “muita comoção” povoava sempre os sonhos das mulheres com os ritos das festas brilhantes, muitos carros, vestido branco, flores de laranjeira, grinalda, padrinhos, etc. No entanto, é interessante notar que Machado não descreve nunca a realização direta de uma cerimônia de casamento. Sempre que aparece uma noiva casando-se, isto acontece em sonho, ou ainda, como uma visão fantasiosa percebida por uma janela distante. As cerimônias, os noivos, roupas brancas... foram representados como sendo a felicidade, mas existente como tal apenas na imaginação das pessoas. Talvez, Machado assim o fizera por ver, no cotidiano, a grande maioria dos casamentos como infelizes. A única cena de casamento descrita, mesmo que parcialmente, foi o de uma viúva, quem sabe, por já conhecer o que era o matrimônio em si e este não ser mais apenas sonho, devaneio... Padrinhos ilustres, préstitos pomposos, roupas brancas, cavalos brancos, anúncios no jornal noticiando o consórcio, a igreja, etc., tudo conforme o codificado, eram símbolos do casamento ideal, faziam parte da fantasia de muitas moças, mas nem tanto de sua experiência concreta, tornando-se não raro o signo da felicidade, ao menos até casar-se. Mas casarse de branco, no entanto, não era para todas as noivas. Uma viúva, “vestia escuro”. Porém, independente disso, depois das bodas, de volta da igreja, poderiam os noivos, seguindo os ritos, na sua entrada em casa, meio a muita efusão e “grande alvoroço”, serem surpreendidos pelas escravas que lhes deitavam “sobre a cabeça um dilúvio de folhas de rosa”. Aí, nessa ocasião, receberiam cumprimentos, beijos e abraços dos convidados que comemoravam o enlace com algum chá e alguma música, algum almoço, jantar, baile e muitos brindes e discursos. Estes últimos, às vezes, poderiam ser proferidos por oradores de “fama” no círculo de conhecidos, aqueles

194 Idem, Contos avulsos, 1956, p. 93. ; GRAHAM, Maria, apud LEITE, M. M., 1984, p 36.

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de palavrório rebuscado, que a alguns parecia até “um dicionário”. 195 Casados, os noivos iam passar a lua-de-mel em lugares aprazíveis como a Tijuca ou Petrópolis ou ainda na Europa, o que era mais raro. A moda da viagem de núpcias, costume inglês, que se difundiu na França por volta de 1830, garantia a intimidade do jovem casal de ficarem a sós em espaços de clima ameno e de belas paisagens, possuindo papel simbólico importante ao deixar marcas na memória que testemunhavam um momento fundamental da vida. Na Tijuca, mais perto do rumor da Corte, findava a lua-de-mel, que, usualmente, durava de uma a quatro semanas, quando as faceiras senhoras começavam a mostrar-se impacientes para exporem publicamente “os sinais exteriores do novo estado”, não lhes bastando mais estarem casadas “entre quatro paredes e algumas árvores”; precisando do “resto do mundo também”, dos passeios pelas ruas e pelos teatros, como ansiava por fazê-lo, dentre outras, Capitu, ostentando “seu chapéu de casada”, que expressava sua nova posição social.196 Consolidada a vida do novo par no desfrute de uma maior intimidade entre estes, entrariam agora a usufruir dos prazeres ou desprazeres familiares e da vida conjugal. Porém, antes de adentrar nessa fase, resta indicar ainda algumas interdições civis e religiosas que se colocavam à realização dos casamentos: o incesto, que era considerado como um pecado mortal, e os votos solenes. O incesto era, há muito, um dos “impedimentos dirimentes” do casamento, sendo visto como transgressão “à lei divina” e à “lei humana”, fruto do “mal”, causador de “horror, assombro e remorso”, um “desvio da lei social e religiosa”, afeição odiosa e “espúria”, que não deveria “achar guarida na alma de um homem honesto e cristão”. A revelação de sua existência interditava a realização do matrimônio, 195

MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 38, 306, 371. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 321. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 139, 240. OC. ; Idem, Histórias da meianoite, 1957, p. 99, 118-9, 121. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 93. 196 Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 322-6. OC. ; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 244-6. 124

O Casamento no Imaginário Social

e alguns até recorriam ao forjamento da existência de uma relação dessas para afastar um rapaz de uma moça, às vezes, por não aceitar um casamento desigual.197 Nesse momento, as relações entre primos consangüíneos já não eram mais consideradas incestuosas e, logo, não encontravam empecilho algum e nem condenações, havendo muitas histórias de consórcios entre estes, sendo comuns e aceitos. Muitas famílias até as preferiam na busca de manter seu patrimônio material longe do alcance de estranhos. Mesmo os casamentos entre tios e sobrinhos não constituíam impedimentos da igreja e nem de leis civis.198

5. DO QUE É O CASAMENTO À VIDA CONJUGAL O casamento era percebido de modo variado, múltiplo, possuindo significados diversos, conforme a condição social e sexual dos indivíduos. Para os homens, habitualmente, possuidores de maior autonomia, o casamento significava o tolhimento da liberdade e uma prisão. Mas não só para eles. Embora para algumas moças, que viviam sob o jugo do pai, casar significasse “adquirir a liberdade de arruar”, para outras, essa liberdade podia vir “sob a forma de uma prisão”, pois trazia a submissão ao marido, levando outras, ainda, a dizer que “não há nada como ser solteira [...]; a liberdade”. 199 Para uma donzela, poderia ser o casamento mesmo um meio de deixar um “mundo de futilidade” como o de solteira.

197

MACHADO DE ASSIS, J. M., Helena, 1955, p. 242-7. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 209-218. ; Idem, Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 149-50. OC. ; ALMEIDA, Ângela Mendes de. O gosto do pecado: casamento e sexualidade nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 80. 198 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos avulsos, 1956, p. 129. ; Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 138-40. ; Idem, Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 313. OC. ; Idem, Contos esparsos, 1956, p. 185. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 124. OC. ; LEWKOWICZ, Ida. A fragilidade do celibato. In: LIMA, L. L. da G., 1987, p. 58. 199 MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias românticas, 1955, p. 248, 278. OC. ; Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 114. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 248. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 150. OC. 125

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Era “tempo de seriedade”, de ser esposa e mãe, como pregavam tantos discursos, como a “encomendação em regra” das mães e da bênção nupcial. Para uma moça pobre, poderia significar “proteção”, o fim das “incertezas, angústias e melancolias”, caso fosse o noivo pessoa bem situada ou trabalhadora. Se acabasse “nos braços de um ricaço, estimado, respeitado, dentro de um palacete com uma carruagem às ordens...” poderia ser um “prêmio grande da loteria de Espanha”. Poderia ser também o meio de alcançar o “ruído exterior”, o “rumor público” se casasse com um “homem público”, um político. Para outras, também, uma mãe, por exemplo, “o casamento era uma loteria, mas que havia um meio certo de tirar prêmio grande: ser boa esposa”. 200 Este “estado vitalício”, regido pela moral religiosa, que a “Igreja consagrou e só a morte extinguiria”, tornava-se o lugar da intimidade e da privacidade, e os noivos, além de se mudarem da casa dos pais, buscavam distanciar-se do convívio de estranhos. Mas, se a realização do casamento era “muita vez um prelúdio, em vez de um desenlace”, o remate, no entanto, “não tardava”. Vamos a ele. Bento Santiago _ “Bentinho” _ , de Dom Casmurro, indica-nos algumas normas morais que impunham a submissão feminina e marcavam o seu desenrolar, ao recitar para Capitu um versículo de São Paulo, que dizia: “_ As mulheres sejam sujeitas a seus maridos [...] Do mesmo modo, vós maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida...” Ainda desvelando os contornos culturais do casamento e suas regras sociais, Capitu, a jovem esposa, por sua vez, que não sabia da Escritura, mas que algumas palavras decorou, falou: “Sentei-me à sombra daquele que tanto havia desejado”. Estavam demarcadas, de início, as regras do jogo, em que a submissão da esposa ao marido, dentro do matrimônio, era uma delas. A ambiciosa e inteligente Capitu, que há muito estudava as formas para alcançar seus objetivos, com sua sagacidade, já sabia que deveria ater-se a alguns convencionalismos, como parte do seu 200

Idem, A mão e a luva, 1957, p. 190. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 128.

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O Casamento no Imaginário Social

processo de aceitação, mostrou sabedora do script e agiu conforme o esperado pelo grupo social, avançando o movimento de sua domesticação.201 Na crônica que caracterizava a vida conjugal, ou seja, no transcorrer da existência cotidiana do casal, a “fidelidade e algum estilo” era o que bastava. Da fidelidade trataremos depois, porém buscando o sentido da expressão “estilo”, pode-se dizer que nele estão inclusas a superioridade do homem e a submissão da mulher, assim como a “estima” desta para com aquele. Na vida de um casal, essas regras eram fundamentais para que a união tivesse sucesso. O marido deveria exercer sobre a mulher “influência”, não deixando “inverter-se a pirâmide do poder”, pois isso “destruía uma das condições do casamento”, além disso, o maior perigo ainda poderia ser “perder a estima” daquela. 202 Nessas circunstâncias, a mulher, que deveria senão ser a sombra do homem, ao menos estar sentada nesta, era fruto da ação deste, sua produção. Cabia ao marido a tarefa de fixar as impressões passageiras e frívolas que as esposas porventura possuíssem. Assim, o “casamento não é uma solução [...] é um ponto de partida.” Nele, o “marido fará a mulher”, mesmo que não se possa “exigir tudo” e “alguma coisa” seja “preciso sacrificar”, pois do “sacrifício recíproco é que nasce a felicidade doméstica”. Além do grande sacrifício, na verdade, ser da mulher, o homem era aquele que, teoricamente, lhe trazia a felicidade, sendo esta, por isso, entrevista ajoelhada aos seus pés.203 Todavia muitas mulheres subvertiam essa regra básica. Nem todas se configuram como submissas aos maridos, pois existiam aquelas que, por seu “gênio” ou “ambição”, governavam a vida do casal, sendo comparadas ao diabo. “Por meios vários e secretos” elas, com suas “instigações”, tramavam para que seus anseios fossem realizados, sendo

201

Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 322-3. OC. Idem, Helena, 1955, p. 96, 197-8. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 95. OC. 203 Idem, Helena, 1955, p. 96. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 265-6. OC. 202

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representadas como sujeitos em muitas situações. Eram elas “os verdadeiros donos das casas” ou “rainhas”, sendo os maridos “governados” por elas. Outras, se não impunham suas idéias aos seus cônjuges, ao menos as inspiravam, sendolhes, com sutileza, “guia e amparo” claros e firmes nas mais variadas questões do cotidiano familiar. D. Cláudia, de Esaú e Jacó, mostra, por exemplo, o lado forte e politizado de algumas figuras femininas.204 Ainda no estilo da vida conjugal, estavam inclusas também noções de privacidade e intimidade, que supunham o resguardo da vida do casal, de suas núpcias, até mesmo a amizades íntimas. Assuntos ligados ao sexo, procriação e ao leito tinham contornos secretos. Carlos Maria, de Quincas Borba, repreendeu Maria Benedita, por ela haver comentado a uma grande amiga sobre sua gestação. “Carlos Maria reprovava essa generosidade, porque dá um ar de sorte grande ao seu estado moral e doméstico, e porque lhe parecia banal e inferior”. A vida privada do casal deveria restringir-se a si, sendo “vedada ao mundo”, circunscrita “ao interior de uma casa”. 205 A experiência a dois, em bases conjugais, não foi tão diversa, existindo, basicamente, casamentos marcados pelo infortúnio e pela infelicidade, e aqueles em situação oposta, sendo o primeiro grupo mais abundante. Nesse, encontramos, sobretudo, aquelas esposas infelizes e desencantadas, devido a sua visão romantizada de amor em um matrimônio que não lhes dava possibilidade de realização, pois era arranjo, acordo, negócio. Tendo sede de amor, conforme as propostas veiculadas na literatura romântica, nas quais esse sentimento deveria orientar a escolha individual e fundar a vida conjugal como condição de felicidade, muitas acabavam vivendo a fadiga, a exasperação e o tédio; levando, por fim, uma vida de resignação à indiferença dos maridos.

204

Idem, Histórias românticas, 1955, p. 137. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 183. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 120, 180, 223, 309. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 246. OC. ; PIETRANI, A. M., 2000, p. 60-1. 205 Ibidem, p. 332-4. 128

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Mesmo que não fosse pelo motivo anterior, muitas outras uniões insatisfatórias, marcadas pelo conformismo, dissimulação e aridez, podem ser levantadas na obra machadiana, que contrapõe casamento por amor às alianças políticas e econômicas. Uniões nas quais, segundo um dos narradores machadianos, um dos consortes recebia em troca de seu amor uma afeição “de esmola”, em que se possuía “o vaso sem possuir o perfume”. O amor foi apresentado por Machado como um sentimento elevado, que deveria ser considerado na hora da escolha do parceiro visando a uma vida conjugal feliz, mas os arranjos matrimoniais, originados de pactos por interesses econômicos e políticos, eram hegemônicos. A “fusão completa e absoluta” raramente ocorria, pois o amor, quando existia, era, muitas vezes, via de mão única.206 Se o pai de Brás Cubas queria que o filho se casasse com Virgília, filha de um conselheiro do império, pois este era uma grande influência política, que logo abriria caminho para que o jovem ingressasse na vida pública, a moça preferiu se casar, por interesse, com Lobo Neves, do que, por amor, com Brás, conforme a prática tradicional. Mas, por outro lado, a visão romântica, de escolha pessoal e de consideração da expressão das opiniões e sentimentos, substituiu, em muitos casos, os critérios utilitários como base fundamental de seleção do cônjuge controlados pelos grupos familiares da comunidade. Nesse sentido, pode-se destacar a atitude de Fidélia que rompia o equilíbrio do poder entre pais e filhos, ao enamorar-se de Eduardo e com ele casar-se “contra a vontade dos dois pais, e amaldiçoados por ambos”, pois o seu “pai e sogro eram inimigos políticos”. Muitos faziam “apologia da paixão conjugal de Fidélia”, contavam a história de como se conheceram na Corte e como, “quando souberam quem eram, já o mal estava feito, mas provavelmente o mal se faria, ainda que soubessem desde o

206

Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 48. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 223. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 279, 297, 303, 317. OC. ; Idem, Contos fluminenses v.1, 1955, p. 163. OC. ; Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 22. ; D’INCAO, Maria Ângela. O amor romântico e a família burguesa. In: D’INCAO, M. A (org.), 1989, p. 67. 129

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princípio, porque a paixão foi repentina.” O pai da moça, indo à Corte, teve notícia do caso e levou-a para fazenda, onde esta “entrou a não querer comer”, fazendo com que a mãe, que “estava ao lado do marido”, passasse a intervir por ela, e o pai, que a ameaçava “com palavras duras, dizendo-lhe que a poria fora de casa”, declarasse “que não lhe importava vê-la morta ou até doida”. Porém, como Fidélia resistiu e adoeceu, ele cedeu, “impondo a condição de nunca mais receber a filha nem lhe falar; não assistiria ao casamento, não queria saber dela.” Na família de Eduardo, a oposição “não foi menor” e “O pai do noivo também declarou que não os queria ver.” 207 A imagem construída de Fidélia foi de uma mulher forte, que se apresentava sempre pronta a tomar as suas próprias decisões referentes a seu destino. Além dessa fuga para realizar seu casamento, ela, posteriormente, entregou a fazenda herdada do pai aos ex-escravos presentes na propriedade, renunciou a sua viuvez perpétua quando quis e abandonou seus pais adotivos, o casal Aguiar, ao sair do Brasil, quando novamente envolveu-se sentimentalmente. Ela fez uso do seu direito de livre escolha tanto no que refere às opções materiais quanto às sentimentais.208 Logo, nem todos os casamentos apresentavam-se marcados pelo infortúnio, pela infelicidade e pelo tédio, que prevaleciam em razão da interferência ou ao controle da seleção do cônjuge pelos grupos familiares. Encontramos, embora em quantidade menor, aqueles nos quais os cônjuges eram felizes e, quando não felizes, ao menos não desgraçados. Estes experimentavam momentos e atitudes de companheirismo; conforme D’Incao, o amor fruto da convivência, da construção cotidiana, sem paixões, gerado na confiança e no respeito recíproco, sem sobressaltos. Existiam casais “amantes” e “amados”, “muito afetuosos”, ternos e “amigos um do outro”, que desfrutavam a felicidade conjugal. Na maioria das vezes, os

207 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 149-50. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 29, 46-9. OC. ; ANDERSON, M., 1984, p. 48-9. 208 PIETRANI, A. M. , 2000, p. 65-6.

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matrimônios, mesmo quando “começam pelo amor [...] acabam pela estima”, sendo felizes aqueles casais que, talvez soubessem “substituir os fogos da paixão pela reciprocidade da confiança e da estima”, ou aqueles que já casassem sem essas “ilusões juvenis”. 209

6. A HONRA DA MULHER CASADA Nessa sociedade, a boa esposa não era somente aquela feliz, serena, dedicada, modesta, solícita e econômica. Aquela que fora escolhida entre as moças honradas deveria, sobremaneira, preservar sua honra. Nesse sentido, essa noção continua a estar ligada à fama pública e advém, sobretudo, de sua fidelidade. Ser fiel ao marido, nunca traindo o “juramento conjugal”, garantia, em grande parte, que sua honra não seria afetada, enquanto que a traição, representada pelo adultério, além de pecado e crime, significava a desonra. Uma esposa virtuosa seria aquela que, se tentada por um homem ou possuída pela “intolerância das paixões criminosas”, tinha forças para repelir as ilusões malévolas de acordo com os princípios morais vigentes.210 No entanto, como havia um policiamento do cotidiano, uma interferência de parentes, vizinhos, amigos e inimigos na vida alheia, ocorria muita fofoca acerca dos casos de amor. Nesse contexto, a repulsa, nem sempre, garantia à mulher a isenção da infâmia. Se D. Leonor, de Helena, repeliu o conselheiro Vale, o fez com tal arte, que iludiu os faladores, porque, mesmo assim, o “sussurro” acabou surgindo, sendo apenas posteriormente “esquecido e morto”. Já para D. Ana, o boato fora fatal, deixando-a “difamada, perdida, sem futuro, nem reputação”. Essa senhora, casada com um “homem de boa fé”, recebera de seu cunhado, marido de sua falecida irmã, uma declaração atrevida, dizendo que gostava dela, e como esta possuía “cabelinho na

209 PEREIRA, L. M., 1958, p. 29. ; D’INCAO, Maria Ângela. O amor romântico e a família burguesa. In: D’INCAO, M. A., 1989, p. 79. ; MACHADO DE ASSIS, J.M., Iaiá Garcia, 1955, p. 104. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 32. OC. 210 Idem, Helena, 1955, p. 44. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 177-8. OC.

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venta” levantou-lhe a mão e castigou-o no rosto. Ele, por vingança, tratou de maldizê-la, trabalhando contra ela, levando com que o marido a pusesse “pela porta fora” depois de cinco meses. Estava perdida.211 Com seu caráter policialesco e coercitivo, a opinião pública dava medo aos que se encontrassem em alguma situação de infidelidade, ou que pudessem, de algum modo, provocar uma suspeita. Ela impunha uma censura da sociedade aos indivíduos e configurava em tribunal da reputação, como diz Perrot. Lobo Neves, de Memórias póstumas..., esposo de Virgília, amante de Brás Cubas, “tinha medo da opinião”, daquele “tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e julga”; enquanto Sofia, de Quincas Borba, ainda uma aprendiz das novas regras sociais, na quais adulação e sedução se confundiam no jogo da ascensão, sentiu também “o temor da opinião”, quando Rubião namora-a em uma festa, e quando ainda Carlos Maria, no seu passeio a cavalo, passou por ela vagarosamente e a cortejou sorrindo, fazendo-a “considerar-se já objeto de suspeita ou de calúnia”, levando-a até a formar planos para dissipá-los, como não visitar ninguém ou sair da cidade.212 Nesse contexto, no qual a mulher da elite adquiriu novo papel nas relações públicas do casal, e o jogo dos salões era marcado por olhares, palavras e meias-palavras sussurradas, que limitavam sua liberdade, ainda não era permitido a ela sair sozinha à rua. Mesmo casada e idosa, uma mulher não deveria ir sozinha à rua e às casas onde não houvesse outra mulher, pois a sociedade reparava. Se era uma mulher nova, então, tal ato seria considerado de “sofrível leviandade”, sendo tratada como uma “mulherzinha”. Para evitar que as mulheres cometessem adultério, era que os passeios e as visitas deviam ser poucos e sempre acompanhados de outras pessoas, principalmente de um parente

211

Idem, Helena, 1955, p. 44. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 213. OC. ; ESTEVES, M. de A., 1989, p. 198-201. 212 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 321. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 108-9, 111. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 176. 132

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próximo. Logo, o horário, a companhia e os locais de destinos tomados eram fatores importantes na avaliação da honestidade de uma mulher.213 Mas, ao mesmo tempo, outras regras morais e atitudes já se configuravam no que refere à honra da mulher casada, advindas da modernização da cidade e da sociedade carioca, em que os hábitos e valores foram se adequando a uma nova ordem social burguesa, marcada pela ambigüidade e pela conveniência, na qual se confundia adulação com afeição e era permitida maior mobilidade. Dessa ambigüidade, sobrevinha muito transtorno pessoal, até que os novos personagens sociais tomavam consciência de seu papel e adequavam-se às novidades. Os padrões de comportamento ficaram mais elásticos e o que dantes caracterizava uma situação flagrante de adultério, ou em vias de consolidação, tornava-se apenas simples atos aceitos dentro dos novos códigos do salão, os quais passavam a ter papel importantíssimo nas relações sociais e econômicas da família. As mulheres inserem-se na vida da cidade, saem sozinhas com suas amigas e o recato dá vez a práticas exibicionistas. O casal Palha, de Quincas Borba, protótipo do arrivista, representa os aprendizes desse jogo social, marcado por ambigüidades, e os educadores dos novos padrões morais e conjugais, pautados na conveniência, válidos para a vida doméstica e pública. Esse casal valorizava mais a vida externa e seus dividendos do que a íntima, sendo que, inclusive, dormiam em quartos separados, numa época que era cada vez mais usual os esposos dividirem o mesmo aposento e a mesma cama, como sinal de intimidade. Sofia e Palha formavam um casal em ascensão social, para os quais a adulação e o exibicionismo nos salões eram instrumentos afinados para atingir seus objetivos, um “empurrão para cima”. Nessa nova sociedade, à mulher cabia o papel de apoio ao esposo na busca do sucesso de seus negócios. Ela tornava-se o chamariz para atrair políticos e capitalistas, pessoas úteis à 213

MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias românticas, 1955, p. 301-3. OC. ; LAMBERG, M. apud LEITE, M. M., 1984, p. 39. ; ESTEVES, M. de A., 1989, p. 43. 133

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sua realização. Era a relações públicas da casa e, conforme D’Incao, dela passava a depender o sucesso da família, de manter seu nível e prestígio social ou de empurrar para cima o status do grupo familiar.214 Nesse contexto, se antes os manuais dos moralistas, como mostra Vainfas, recomendavam que o marido não levasse sua mulher à presença de homens moços e suspeitos, que não permitisse que ela aparecesse a todos, “fazendo dela pano de mostra”, agora a realidade era outra. Palha despendia tudo o que ganhava para ornar a casa e enfeitar a esposa para granjear admirações e apoios. Se Natividade, de Esaú e Jacó, é o protótipo da nova mãe de família, Sofia o é da nova esposa como mulher à qual se atribuía função de promover a carreira do marido de modo a obter ascensão social. Ela, aliás, nem filho possuía, e era um verdadeiro instrumento de “empurrão para cima”. Ela, como seu nome indica, foi capaz de “adquirir aos poucos” essa “sabedoria”, essa “ciência” com a experiência social e passou mesmo a corrigir as imperfeições nas atitudes do marido. Seu objetivo de enriquecimento, juntamente com o marido, dava as medidas da nova noção de honra. Noção altamente permeada pela idéia de conveniência.215 Assim, para favorecer seus interesses, Palha recorria às estratégias de mercado, tinha a “vaidade singular” de exibir a esposa, de usá-la como capital simbólico, ao decotar “a mulher sempre que podia, e até onde não podia para mostrar aos outros as suas venturas particulares”. A isso, de ser usada como expressão dos êxitos comerciais do marido e de atrair admiração e novos investimentos, de início, ela resistiu, mas logo “acabou gostando de ser vista, muito vista, para recreio e estímulo dos outros”, tornando-se a impulsora das relações sociais oportunas para o êxito do casal. Meio a muita beleza, elegância, decotes e à “adulação das mulheres [...] que

214

MURICY, K., 1988, 93-5. ; D’INCAO, M. A., 1997, p. 229. ; SOIHET, R., 1989, p. 119, 123. ; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 246. 215 VAINFAS, Ronaldo. A condenação do adultério. In: LIMA, L. L da G, 1987, p. 49. ; MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 192, 287, 296. OC. 134

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confunde-se com afeição”, vemos indivíduos, desconhecedores dos novos códigos de salão, não distinguindo adulação com sedução afetiva, criando situações antes vistas como perigosas. A própria Sofia, objeto mercantilizado, como aprendiz dos novos padrões ficou, a princípio, receosa, tendo de ser auxiliada por Palha, que possuía toda uma vocação nata para a vida moderna, que é moralmente fragmentária; na qual a noção de honra está reduzida à conveniência; e “os novos padrões sociais disfarçam a sedução para sedutores e seduzidos”, permitindo “seu exercício sem conflitos morais”, como diz Muricy.216 Se Sofia um dia, primeiramente, temeu os farejadores e indagadores dos negócios alheios, os mexeriqueiros e suas opiniões, devido aos tratos e às “atenções particulares” que despendia a Rubião, com a finalidade de receber financiamentos e empréstimos, por imaturidade em lidar com essas novidades, depois de aprender as lições, inscritas no novo código social, ela agia com habilidade e destreza sem igual. Seduziu ainda o enlouquecido capitalista com a finalidade de obter uma boa doação para sua comissão de caridade, assim também chamando a atenção de Teófilo, um político em ascensão, que, em certa ocasião, lhe “envolvera [...] em um grande olhar de admiração”, deixando Palha lisonjeado e “cheio de vaidade”. Nos salões e bailes, toda a gente admirava-a e “alguns homens falavam (com pena) das suas virtudes conjugais, da profunda adoração que ela tinha ao marido”. Para “as despesas da vaidade, bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos”; podendo ser comparados “à lanterna de uma hospedaria em que não houvesse cômodos para hóspedes”. Escancarava as janelas, “mas a porta, se assim podem chamar ao coração, essa estava trancada e retrancada”. Sofia era fiel, suas atitudes, que, a olhos ignorantes dos novos padrões de conduta social, eram perniciosas, faziam parte do novo código de salão que

216

Ibidem, p. 68, 265. ; MURICY, K., 1988, p. 93-4. ; SOIHET, R., 1989, p. 119. 135

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se construía e do papel representado pela nova esposa inserida também nas estratégias do mercado.217

7. OS PROBLEMAS CONJUGAIS E O ADULTÉRIO Era da infidelidade da mulher ou do marido que vinha a maior parte dos problemas conjugais. O adultério ou sua possibilidade, às vezes, vislumbrada pelo ciúme, trazia à vida do casal o transtorno, a infelicidade e até mesmo a destruição do matrimônio. Outros problemas podiam enfrentar os casais como “o fastio”, uma vez que o amor, que nem sempre existia, “podia acabar depressa”, além do mais “as duas índoles podiam ser incompatíveis.” Além disso, “também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria, doenças...” Mas o pior mesmo era que “podia vir algumas dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica...”. 218 O adultério era uma situação altamente vivenciada pelos personagens machadianos, sendo abundantes os adúlteros e as adúlteras. Sua existência mostra-nos dois modos diferentes de vivenciar, entre mulheres e homens, essa experiência, pois norteados por normas e regras distintas. Em conformidade com o antigo Código filipino, a sociedade consagrava ao adultério uma visão unilateral, porque se punia a mulher não acontecendo o mesmo ao homem. É exemplar nesse sentido, a passagem de Memórias póstumas... na qual o comandante de uma galera relatou “a história dos seus amores”, vividos certamente fora do casamento, e “elogiou a fidelidade e a dedicação da mulher”, sua esposa. Magistralmente, Machado, em um pequeno período de frase, contrapôs o comportamento aceito e usual aos dois sexos.219 À traição masculina reagiam as esposas, quase sempre, com resignação e aceitação passiva da realidade que lhes deram.

217 MACHADO DE ASSIS, J.M., Quincas Borba, 1957, p. 68, 99, 108, 325, 386. OC.; MURICY, K., 1988, p. 99-100. 218 MACHADO DE ASSIS, J.M., Histórias sem data, 1957, p. 223-4. OC. 219 Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 86. OC. ; VAINFAS, R., 1987, p. 43. ; STEIN, I., 1984, p. 75, 77.

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Elas se calavam e mantinham as aparências, apresentando-se acostumadas à indiferença e aos esquecimentos dos maridos, podendo até, uma e outra, ser chamada de “a santa”. De início, sentiam-se com a alma quebrada, choravam, arrufavam-se, lutavam e algumas mostravam mesmo grandes desejos de separar-se, mas, em seguida, recolhiam-se “à dignidade do silêncio”, frente às razões do “decoro”, em tornar “pública a história das suas desgraças domésticas”. Cumpria a elas educar e proteger os filhos do casal, dominando a paixão e encerrando em si mesmas todo o “ressentimento” e “suplício”. 220 Já o adultério feminino quase nenhuma aceitação possuía, sendo costume o marido punir a esposa adúltera com a morte, defendendo, assim, sua honra maculada. Esta solução para a traição feminina era uma ameaça constante àquelas mulheres que assim se comportavam. Talvez por estarem faltando com a “idéia ao dever”, viviam acometidas de temores causados, sobretudo, pela possibilidade de sua morte pelo marido ou pelo amante, que também podia dispor de sua vida. Por meio dessas “aventuras amorosas”, percebemos os códigos, as concepções morais, os mecanismos e os comportamentos existentes postos em ação em tais casos. Em Memórias póstumas..., Virgília e Brás Cubas, vivenciavam um caso de amor espúrio, ilícito, pois adúltero, contrariando “todas as leis sociais”. Andar por essas “estradas escuras” foi “problema que [...] assustou” Brás por algumas semanas, assim como provocou em Virgília “momentos de remorsos”, que passou vários dias impressionada por achar que o marido desconfiava, levando-a a dormir mal e sonhar que ele ia matá-la. Sentiu-se “perdida”: “_ perdida... morta”. 221 Existia, em relação aos adúlteros, “uma verdadeira floresta de olheiros e escutas”, que policiavam a vida de todos,

220 MACHADO DE ASSIS, J. M., Helena, 1955, p. 23, 252. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 94-5. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 92. OC. ; STEIN, I., 1984, p. 77. ; SOIHET, R., 1989, p. 127-8. 221 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 182, 184-5, 199, 201. OC. ; STEIN, I., 1984, p. 79. ; SOIHET, R., 1989, p. 128-9.

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dos quais “tinham os amantes de resvalar com a tática e maciez das cobras”. As desconfianças públicas ameaçavam-nos com seus olhares afiados e compridos, com o falatório, com as cartas anônimas, levando-os, às vezes, a instar repetidamente na idéia de fuga. A fuga, no entanto, desagradava a mulher, pois com esta ela afastaria do filho e perdia as vantagens da posição social que detinha, isto é, a consideração pública de mulher casada. Nessas circunstâncias, arranjar uma casinha na qual pudessem encontrar-se e alguma senhora para servir de medianeira do amor, alcoviteira, ajudaria a conservar as aparências. Ela não desejava desligar totalmente dos preceitos da sociedade patriarcal, mas deslocá-los e reorganizá-los, de modo a manter as aparências e conservar as condições que lhe eram oferecidas.222 Em tal situação, Brás Cubas “costumava ficar carrancudo a princípio, quando ouvia alguma alusão” a seus amores, mas, lá no fundo, sentia “uma impressão suave e lisonjeira”, uma vez que ele não tinha sua reputação afetada e nem sua condição social abalada. Segundo Brás, nessas circunstâncias, ele achou “homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si,” e juravam “aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia”. Para ele, a razão dessa diferença é que “a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e, portanto, tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia”; já o homem, por sua vez, “sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, _ essa boa fatuidade, que é a transpiração luminosa do mérito”. Assim, o código de valores patriarcais impunha à mulher casada, envolta em relacionamentos extraconjugais, a dissimulação, que impedia de ser punida e

222

MACHADO DE ASSIS, J.M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 211-215. OC.; PIETRANI, A. M., 2000. p. 56.

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estigmatizada; e, ao homem, a possibilidade e o dever de expor sua conquista e receber reconhecimento social.223 Quando o esposo de Virgília recebeu carta anônima denunciando os amantes e acrescentando que “a suspeita era pública”, ela tudo negou, fazendo-se de indignada frente àquela suposta e “infame calúnia”, mostrando-se irritada com a insistência daquele. No entanto a desconfiança passou a existir, mas, na ocasião de flagrar os amantes e confirmar as denúncias, Lobo Neves não o fizera, pois, segundo Brás, “ele tinha medo _ não medo de mim, nem si, nem do código, nem da consciência; tinha da opinião”. Assim, Brás inferiu que “esse tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e julga, era o limite posto à vontade de Lobo Neves”. A opinião pública, “que lhe arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquérito acerca do caso, que coligiria uma a uma todas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que as relataria na palestra das chácaras desocupadas”, era “terrível” e “tão curiosa das alcovas”. Portanto, ela “obstou à dispersão da família”. 224 A moral pública e o tribunal da reputação a ela associado, como elementos de coesão social, estabeleciam um código de decência de gênero com limites no olhar atento dos outros, sendo norma os indivíduos o acatarem e o reproduzirem para serem aceitos, conquistarem e manterem sua estima coletiva. Frente à opinião pública que o levaria a uma “página de sangue”, um crime passional, pois era costume conferir ao homem o direito de matar a mulher adúltera para lavar sua honra ultrajada, para limpar sua reputação, Lobo Neves agiu de modo a não confirmar o adultério, pois, se o fizesse, não poderia simular a mesma ignorância de antes. Dessa forma, Brás pode concluir que “a opinião é uma boa solda das instituições domésticas”. Nesse romance, o narrador não censura o adultério, embora haja condenações à mulher adúltera, que retratam a moral vigente,

223

MACHADO DE ASSIS, J.M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 250-1, 363. ; Grifos meus.; PIETRANI, A. M., 2000, p. 58-9. 224 MACHADO DE ASSIS, J.M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 286, 306, 321-2, 363. 139

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sendo Virgília, na visão social, “uma ruína”, mas para Brás, que com esse olhar não se identificava totalmente, não era uma ruína qualquer e, sim, “uma imponente ruína”. Seu personagem protagonista narra a história com distanciamento dos acontecimentos, postumamente _ do “além-túmulo”, sendo um “defunto autor”. 225 Porém, em Quincas Borba, os juízos condenatórios fazemse multiplicados, retratando a férrea moral vigente, de cunho religioso, embora aí o caso de traição nem fosse real. A situação estava envolta por “pecado”, “tentações”, “remorsos” e “arrependimentos”. Os envolvidos sentiam-se como “malucos” e tentados pelo “diabo”, tendo atitudes “indignas”, “desrespeitosas” e que faltavam à confiança concedida. A mulher traiçoeira, além de ser associada ao diabo, também o era a um “monstro” metade gente e cobra, sendo uma “miserável”, “indigna” e “vil”, merecedora da ira do marido que deveria “estrangulá-la” e “arrancar-lhe o coração aos pedaços” além de pisoteá-la. Por essa “ação ruim”, que a um homem moralmente constituído e cristão deveria “vexar”, o “castigo” era aceito e justo, podendo ser ele uma “vingança” ao “patife” desrespeitador de casa alheia.226 Com relação à Capitu, de Dom Casmurro, sua história é a do ciúme do esposo. As suspeitas por ele levantadas não passam disso. Nada prova a infidelidade de Capitu e mesmo o casmurro marido, supostamente traído, que acreditava no fato, dá-nos, a todo o tempo, indícios de que tudo não passa de fruto de seu ciúme exacerbado, descaracterizando suas evidências. Tudo pode ser produto da sugestão do esposo ciumento, afinal, a própria visão de Capitu que temos é aquela dada e construída por ele. Ela era aquilo que o marido quis mostrar que fora, ao buscar “restaurar na velhice a adolescência”, uma vez que não havia mais outros testemunhos dos acontecimentos, pois as outras pessoas morreram e os amigos que lhe “restam são de

225

Ibidem, p. 324, 23. ; STEIN, I., 1984, p. 80, 82-3. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 177. 226 MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 49, 70, 73-4, 82-8, 99, 100-8, 114-6. OC. 140

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data recente...”. Segundo ele, “todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos”. Machado, como autor, não interfere na narrativa, mostrando outra percepção da realidade e, assim, temos uma representação unidimensional do fato e de seu processo.227 Capitu, caracterizada como “cigana oblíqua e dissimulada”, causava temor aos representantes da moral patriarcal. Sua figura provocava medo no seio de uma família tradicional, certinha e religiosa como a de Bentinho, que tornou vítima de sua beleza, ambição e inteligência. Embora seus traços perigosos fossem atenuados, tornando-a domesticada, para o casamento e por meio dele, ela continuava distinta do conceito de feminilidade hegemônico. Pensava com sua própria cabeça, tinha “idéias atrevidas”, examinava tudo, queria saber de tudo e refletia sobre os modos de como atingir seus objetivos. Se, em dados momentos, mostrou-se conformada às expectativas sociais, em outros suplantou o convencional e, como transgressora, foi exilada no estrangeiro, ocorrendo finalmente seu completo silenciamento. Devoradora, como seu olhar, tinha caráter que não se coadunava com os horizontes dos valores da sociedade do momento e, como era apenas internamente “emancipada” das normas paternalistas, bateu de frente com elas no mundo exterior. Seu silêncio, ao calar diante das acusações do marido ciumento, revela sua descrença em romper externamente com o estabelecido, o qual acabou por impor seu exílio.228 Fugas, opinião pública, cartas anônimas, desforra da honra, morte... eram aspectos presentes na vida dos adúlteros. Crime e pecado eram noções advindas do campo jurídico e do religioso, que expressavam a condenação à infidelidade e estavam disseminadas no imaginário social, trazendo inquietude e desassossego àqueles envolvidos em tais práticas. Essas experiências problemáticas podiam trazer aos casais sua desagregação, fosse por meio da separação, do desquite, do divórcio, do abandono do cônjuge ou da morte de um deles em crime passional. As aventuras amorosas podiam abalar a paz do 227 228

Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 7-10, 272, 338-9, 375, 381-2. OC. PIETRANI, A. M., 2000, p. 70-4. 141

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casal, e a “forma conjugal” ser dissolvida. O adultério e o ciúme engendravam a separação e o crime.

8. A DISSOLUÇÃO DA FORMA CONJUGAL: DA SEPARAÇÃO À VIUVEZ Bento e Capitu, de Dom Casmurro, separaram-se diante da suspeita de adultério. A separação foi “indispensável”, uma vez que, para ele, no momento, não havia dúvidas, ela o traíra de fato. Assim, viajaram para Europa e ficaram na Suíça, aquela e o filho, levando Bento a viajar de quando em vez para o velho continente “com o intuito de simular” o prosseguimento da vida conjugal e “enganar a opinião” pública. Separados por suspeita equívoca de infidelidade, foram ainda Menezes e Madalena, sendo esta mandada para o Rio de Janeiro e ele ficando no Norte. Também expulsa de casa pelo marido, pois difamada por um boato, fora D. Ana, assim como Fernanda, a qual o marido apenas suspeitou ser infiel.229 Divorciados, na acepção de mera separação, sem direito a novo casamento, foram vários personagens por motivos também diversos, constituindo desde falta de amor, aborrecimento, leviandade, libertinagem, frivolidade até violência física. As brigas, quando, sobretudo, violentas, e não decorrentes puramente do ciúme, eram ocasiões em que o desejo de separação era veiculado e mesmo do qual se originava. Os divórcios eram tratados judicialmente e, às vezes, “arranjados amigavelmente os interesses pecuniários”, sendo resultados das tensões surgidas nos casamentos, como o adultério, o abandono do lar e a violência. Muitas esposas mostravam que a imagem da mulher submissa é um mito; nem todas eram resignadas e submissas, separando de maridos os quais lhes desagradavam, e que o casamento já não era tão eterno e indissolúvel como se colocava nesse momento de sua disseminação para todas as classes sociais. Conforme Brügger, as mulheres, no Brasil do

229

MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p 420-4. ; Idem, Contos fluminenses v.1, 1955, p. 126. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 213. OC. 142

O Casamento no Imaginário Social

século XIX, foram as responsáveis pela maioria dos pedidos de divórcios.230 Mas nem toda a dissolução da vida conjugal se dava pelas vias jurídicas, constitucionais e pacíficas, pois, como dissemos, havia o costume do homem matar a mulher adúltera e até mesmo seu amante, como forma de punição e de vingança da honra maculada. Os escândalos, agressões e crimes passionais não eram, certamente, novidades do período e, até o início do século XIX, as Ordenações Filipinas regulavam as atitudes diante da infidelidade, permitindo ao marido matar a esposa e o rival, desde que este fosse de condição inferior ao traído. Depois, no período imperial, o Código criminal, de 1830, punia o adultério com prisão e trabalhos forçados, mas quem provasse que cometeu o homicídio sem intenção ou que tivesse ficado louco poderia ser absolvido. Já o Código penal republicano, de 1890, abria a possibilidade de absolver ou amenizar as penas relativas aos crimes passionais, recorrendo ao argumento da privação dos sentidos ou da inteligência no ato do crime. No conto A cartomante, Vilela, depois de receber muitas cartas anônimas denunciando a traição de Rita, convocou Camilo, o amante, para uma visita a sua casa, e este, quando lá chegou, encontrou a moça morta e ensangüentada, tendo ele o mesmo fim. Dentre outros casos de amantes, em Páginas avulsas, o marido, depois de encontrar a esposa que fugira com um “peralvilho”, matou-os “com os maiores requintes de crueldade.” Além disso, vários eram os cônjuges abandonados, tanto homens como mulheres, quando a única solução para viver um “amor culpado” tornavase a fuga dos amantes. Assim, refugiava-se em Petrópolis, na Europa ou em outras províncias.231

230 Idem, Histórias românticas, 1955, p. 279, 307, 327. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 34-7. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 214. OC. ; Idem, Várias histórias, 1957, p. 234. OC. ; SAMARA, E. de M., 1986, p. 57, 66-7, 69. ; BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Divórcio e casamento nos oitocentos. Nossa história, Rio de Janeiro, v. 2, n. 22, p. 68-71, ago. 2005. 231 MACHADO DE ASSIS, J. M. Histórias sem data, 1957, p. 59-60. OC.; Idem, Várias histórias, 1957, p.14. OC. ; Idem, Histórias da meia-noite,

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No entanto, se a fuga e o abandono eram formas sociais de resolver paixões criminosas, que significavam em si a desagregação do casal, outra mais natural também vinha pôr fim à vida conjugal, que era a morte de um dos cônjuges, o que trazia as figuras do viúvo ou da viúva, as quais, sobretudo as últimas, eram muito comuns na sociedade e freqüentes na obra machadiana. A viuvez podia vir acabar com casamentos felizes, com os quais os cônjuges teriam tirado sorte grande naquela loteria, ou simplesmente finalizar uma vida de infortúnios, principalmente para a mulher, se o consorte era dado à vida sensual e libertina. As viúvas, na obra machadiana, eram mulheres que possuíam situação oposta às solteiras, subordinadas aos pais ou aos irmãos, ou mesmo a outras mulheres casadas, que eram submissas aos maridos. Aquelas eram mulheres representadas como independentes e possuidoras de poder de decisão; estavam relativamente livres do jugo de pais e irmãos. Eram independentes para decidir as questões pertinentes ao seu destino e ao cotidiano da casa, organizando sua vida e dispensando a atuação de intermediários, inclusive, na resolução de novos matrimônios ou outros negócios, pois “a viúva dispunha de si”. 232 Existiam viúvas que possuíam “um túmulo no coração” e não mais voltavam a contrair enlaces matrimoniais, enquanto outras, que possuíam “um ninho”, cansavam logo de chorar e casavam-se novamente. Estas últimas eram muitas e almejadas pelos jovens à busca de casamento. A figura da viúva, querida e desejada por muitos pretendentes, é sempre presente,

1955, p. 221-2. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 224. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 53. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 328. OC. ; Idem, Papéis avulsos, 1957, p. 18, 157. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 389. OC. ; ENGEL, Magali G. Paixão e morte na virada do século. Nossa história, Rio de Janeiro, v. 2, n. 19, p.64-7, mai. 2005. p. 65 e 67. 232 MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 264, 303. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 98-100, 207. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 117, 223, 255. OC. ; STEIN, I., 1984, p. 86, 90. 144

O Casamento no Imaginário Social

aparecendo como possuidora de alta cotação na bolsa de valores conjugais, pois, ordinariamente, possuía algo de seu, ao menos o “bastante para viver”. Nesse sentido, era “um bom negócio para qualquer moço ativo, [...] porque as duas bolsas fariam uma grande bolsa”. 233 Dentre aquelas que resolviam viver em estado de viuvez, escolhendo, no dizer do narrador, a “viuvez por ofício”, algumas o faziam por se considerarem “moralmente [...] casadas” e outras por promessas feitas ao falecido. Estas, costumeiramente, viviam apegadas ao código do luto, metidas em eternos vestidos escuros e sem adornos, conforme os rituais, e algumas ainda tinham o hábito de elogiar o marido depois de morto, mesmo que houvesse levado uma vida de casada marcada por brigas e desilusões. Detentoras de um patrimônio material e daquele simbólico, elas, certamente, preferiam estar presas ao morto e à liberdade que a morte deste lhe trouxera, a submeter-se outra vez a outro homem num outro casamento.234 Dessas viúvas eternas donas de si, de sua mão, de seu corpo e bens, que não se casavam novamente, destacam-se aquelas proprietárias que tinham aprimorado gosto pelo exercício do poder, pela forma como experimentavam sua influência na sociedade e realizavam os projetos que decidiam levar a cabo. São mulheres fortes, independentes, poderosas e, às vezes, orgulhosas de sua autoridade, detendo todo o poder de decidir e dando os passos necessários para execução de seus projetos. D. Antônia foi descrita como uma mulher que “governava” o “pequeno mundo” da “casa velha”, “com muita discrição, brandura e justiça”, mas que, em verdade, não distante está de Valéria, de Iaiá Garcia, que possuía “organização moral [...] forte”, capaz de grandes esforços, preferindo “soluções radicais” aos problemas que lhe eram postos. Numa sociedade em que a mulher apresentava-se sempre como dependente de alguém, as viúvas eram seres independentes e capazes de gerir a sua vida e

233

MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 302. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 293. OC. 234 Ibidem, p. 190. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 58. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 8. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 190. OC. 145

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a dos seus, assim como seus negócios. A morte do esposo libertava-as.235 Tratamos aqui, basicamente, do casamento e daqueles com ele envolvidos, ou seja, aqueles que institucionalizaram suas relações, mesmo que, muita vez, apenas perante a Igreja. Mas afora desse mundo, outros personagens viviam, alguns até a sonhar com este, eram as concubinas, as solteironas e as mundanas ou os concubinos, os celibatários e os libertinos. Constituíam, em sua maioria, de certa forma, numa gama marginalizada de pessoas, se mulheres, que desviaram da única estrada que lhes daria glória e segurança, metendo-se, às vezes, por atalhos obscuros. Abordaremos esse universo no último capítulo, no entanto, cabe ressaltar que o casamento era regra ainda apenas para as elites; para as mulheres pobres, nem sempre se tornava acessível, levando-as a tomar “maridos de empréstimo e de ocasião”, fazendo-se concubinas destes, mesmo que muitas já nutrissem o desejo de “ser casada”, o que talvez outras velhas mães, como D. Plácida, censurariam dizendo: “_ Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vêm essas fidúcias de pessoa rica”. 236

235

Idem, Contos sem data, 1956, p. 167. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 70. OC. ; STEIN, I, 1984, p. 89. 236 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 228-9. OC. 146

CAPÍTULO IV IMAGENS DA INFÂNCIA FLUMINENSE OITOCENTISTA Conforme Anne Martin-Fugier, após o casamento, o tempo da vida privada se voltava inteiramente para os filhos. Logo vinha a gravidez, a espera do bebê, o batizado, a criação, a educação, os brinquedos, a instrução escolar, a adolescência, os estudos superiores e o casamento. O ritmo de vida da família obedecia a essa evolução e, se o número de filhos era pequeno, eles se convertiam num cabedal afetivo e social, em conformidade com o movimento que produzia uma maior intimidade conjugal e familiar, no qual a paternidade e a maternidade tornaram-se valores em alta e a criança, objeto de investimento material, simbólico e emocional.237 No que refere à família brasileira, segundo Costa, até o século XIX, ignorava-se ou subestimava-se a criança, e o desvelo dos pais para com ela é uma imagem recente.238 A convivência afetiva entre pais e filhos tomou um novo sentido, afastando-se da família antiga, em que os laços sentimentais eram bastante desvalorizados e pouco manifestos, havendo distanciamento entre seus membros. Trataremos, neste capítulo, dos laços familiares que envolviam a relação entre pais e filhos não adultos, inseridos na cultura fluminense da segunda metade do oitocentos por meio dos registros machadianos, perseguindo o processo acima mencionado.

1. PAIS E FILHOS: AFETO E TERNURA O interesse pelos filhos não adultos, na representação machadiana, faz parte das relações familiares, sendo eles objetos de considerável investimento afetivo e sentimental. A demonstração de afeto para com estes ficou patente, assim como formas variadas de dedicação, de exposição e de ostentação da figura da criança e do alarde ao redor dela. Encontramos pais 237 238

MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 247-8. COSTA, J. F., 1989, p. 155-8. 147

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que viviam escondendo-se nos recantos “da casa para fazer rir” a filha e que “caíam nos braços um do outro” quando se encontravam. Pai que “pegava dela e sentava-a nos joelhos. Depois, beijava-a, [...] beijava-a outra vez”. Seu rosto, na presença da filha, “acendia-se de um reflexo de juventude”. Nesse sentido, Bento Santiago, de Dom Casmurro, foi também um pai apaixonado, ao menos até começar a suspeitar da ilegitimidade do filho. Para o pequeno, fez planos de carreira, deu muitos brinquedos, tratouo com carinho e contava suas travessuras com emoção e sentimento igual, dizendo ser aquele “um rapagão robusto e lindo”. Além disso, falava da “alegria quando ele nasceu”, como coisa que nunca tivera igual: _ “uma vertigem e uma loucura. Não cantava na rua por natural vergonha”, sem falar no “encanto” das horas de amamentação.239 Em Memórias póstumas, Brás Cubas conta também que seu pai adorava-o tanto a ponto de um tio ter de fazer, “às vezes alguns reparos ao irmão”, dizendo-lhe “que ele [...] dava mais liberdade do que ensino, e mais afeição do que emenda”. Isto, porém, de certa forma, traduz a atitude dos pais, em geral, diante da educação dos filhos em si, pois por ela estavam responsáveis as mães. Como esses casos, há outros tantos, nos quais temos pais contemplativos, deslumbrados, apaixonados, vibrantes e dedicados, que, pelo afeto com que tratavam os filhos, mantinham unida a família; sobretudo aqueles que, por seu amor, involuntariamente, levavam estes a realizarem atos, às vezes, indesejáveis para fazerlhes o gosto, como o pai de Maria Luísa, de Contos sem data. Ele, segundo o narrador, “não seria capaz de impor à filha” nenhum casamento, mas esta, ao perceber que “o pai não rejeitava a pretensão” de um sujeito, “temeu desenganá-lo” e casou-se. Era a submissão pelo amor ao pai e não mais a seu despotismo.240 Embora, na relação dos pais com os filhos, estes últimos passassem a ser indivíduos possuidores de maior autonomia, a obediência ao pai era uma atitude que permanecia até mesmo

239 MACHADO DE ASSIS, J. M. Iaiá Garcia, 1955, p. 14. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 341. OC.; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 248. 240 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 48. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 27, 95.

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após sua morte, quando suas vontades regulamentadas por lei, como mediante de testamento, prevaleciam. Assim, a heroína de Helena, considerada uma filha ilegítima, foi acolhida no seio da família, mesmo havendo oposição a isso, pois fora essa a designação do falecido conselheiro Vale. O pai morto ainda governava os vivos, embora sua morte fosse também libertadora para eles. Seu desejo ordenava a família ainda postumamente, mas limites já existiam nesse poder.241 O pai, provedor, apesar de impor obediência e ter seu poder resguardado, já não era mais o senhor único da casa; aquele que, na família colonial, subordinava totalmente a esposa e a figura dos filhos, subestimando a da criança. O pai de Brás Cubas era figura triunfante, dominador, senhor da casa, sendo temido por sua mulher, “o marido era na terra o seu deus”, mas sua educação adveio da “colaboração dessas duas criaturas”, e ele, já no começo do século XIX, dividia na casa, o trono dantes ocupado apenas por aquele. Em 1805, Brás, ao nascer, tornouse “desde logo o herói da [...] casa” e era alçado ao ar pelo pai como se intentasse mostrá-lo “à cidade e ao mundo”. Tornou-se um “menino diabo”, “arguto, indiscreto, traquina e voluntarioso”, “um gênio indócil”, mas, mesmo assim, o pai tinha-lhe “grande admiração”; e se, às vezes, o “repreendia, à vista de gente, faziao por simples formalidade”, pois, em particular, dizia: “_ davame beijos”, quando não “exclamava a rir: Ah! Brejeiro! ah! Brejeiro!”, quando aprontava alguma de suas muitas malvadezas fruto de seus infindos caprichos. Conforme o narrador, em diálogo com Wordsworth, “o menino é pai do homem”. A experiência de Brás revela atitudes que expressam a expansão de um sentimento da infância que vinha se formando na família moderna na qual a figura da criança era central e, como tal, paparicada e idolatrada, tratada nas relações cotidianas com carinho e familiaridade.242

241 Idem, Helena, 1955, p. 290. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p.129. ; ANDERSON, M., 1984, p.47. 242 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 43, 46,48. OC. ; TRIGO, Luciano. O viajante imóvel: Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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Mas, se na educação de Brás ele aprendeu a não considerar as normas e a só obedecer a seus próprios caprichos, sendo tão indócil, das crianças, em geral, esperava-se uma “subordinação graciosa” a seus pais, ou seja, uma “obediência discreta e pontual”. Porém aí já se abria um espaço que propiciava, inclusive, resguardar certa autonomia com relação aos progenitores. Autonomia que também a mãe passou a ter, sinal da elevação do estatuto da mulher, por ser também iniciadora da educação dos filhos, dando a esses os primeiros passos na sua socialização e no processo de introjeção cultural, inclusive, dos valores cristãos. Nesse sentido, a infância de Brás é novamente exemplar. Se cada membro da família apresentava um prognóstico a seu respeito, vendo-o como oficial de infantaria ou como cônego, seu “pai respondia a todos” que ele “seria o que Deus quisesse”. Por outro lado, conforme o narrador, sua mãe, controlada por seu pai, pois descrita como temente “às trovoadas e ao marido” a ponto daquele ser “na terra o seu deus”, doutrinava o filho a seu modo, fazendo-o “decorar alguns preceitos e orações”. A mãe tinha sua capacidade cada vez mais reconhecida, e deixava, geralmente, ao pai a responsabilidade de ser provedor da sustentação material dos filhos, assim, como certa dedicação afetiva necessária para seu desenvolvimento. A família Santos, de Esaú e Jacó, é a representação acabada desse modelo, em que o pai, banqueiro e capitalista, passava os dias no trabalho, deixando à Natividade a educação dos filhos. Com relação a isso, ela dizia: “_ Agostinho não me ajuda; tem outros cuidados”. 243 Portanto, “os lineamentos” que formavam a imagem dos filhos nasciam destas duas figuras, do pai e da mãe, mesmo que eles oferecessem uma educação, “no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa”, como aquela recebida por Brás. Nesse contexto, no qual se reconhecia a capacidade da esposa, realçava-

p. 68.; PERROT, M., Figuras e Papéis, 1991, p. 126-8.; ARIÈS, P., 1981, p.162-3. 243 MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 43-4, 48. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 196. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p.152. OC. ; SCHWARZ, R., 1990, p. 72. ; AIRÈS, P., 1981, p. 25, 263. 150

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se o papel materno e recalcava-se, de certo modo, o poder do pai, não menos dedicadas, amorosas, meigas e ternas, eram as mães. Porém, havia também aquelas austeras e severas, que, despoticamente, governavam a vida de seus filhos como lhes convinha. No entanto, austeridade e rigidez eram características de quase todas elas, isto, possivelmente, por estarem agora mais responsáveis direta e verdadeiramente pela formação dos filhos. Eram essas novas mães-educadoras que transmitiam o patrimônio cultural básico da sociedade a seus filhos. De tal forma, a mulher passou a ter papel primordial na nova família, pois reconhecia que a educação possuía suma importância na formação dos indivíduos. Ela tornava o indivíduo um do grupo, ao orientar-lhe de modo a identificar-se com a cultura deste e seus padrões sociais. Por meio da educação, a criança internalizava e incorporava a cultura como um conjunto e globalidade, considerando modos de vida, funções, papéis, valores, sentimentos... Assim, conhecia as obrigações e as expectativas que a coletividade tinha em relação a ela. O grupo familiar, em condições ordinárias, ao inteirar a criança com o mundo, propiciando suas primeiras experiências, informava-a da infinidade de compromissos que a esperava. Aprendizado que mediava sua compreensão da vida, transmitindo motivações e esquemas interpretativos e comportamentais, já escolhidos e convencionados. Portanto, era pertinente fortalecer o papel da mãe-educadora, formadora da subjetividade dos indivíduos com base no objetivo social. Para essa nova mãe, responsável por tamanha empresa, adjetivos que qualificavam suas atitudes e sentimentos com relação às crianças espalham-se pelas páginas machadianas, definindo a imagem contraditória da mulher “tipo da mãe de família”. São as mães “uma mistura de austeridade e meiguice, de extrema bondade e extrema rigidez”, tendo ainda grande parte de sua “felicidade” reduzida aos filhos. Eulália, de Iaiá Garcia, possuía “destreza materna” e tomava sua criança às mãos, beijando-a muitas vezes, rindo para ela e fazendo-lhe até um monólogo, “tudo com graça e poesia”. A mãe de Brás Cubas, por sua vez, era possuidora de “pouco cérebro e muito coração”, enquanto D. Glória, de Dom Casmurro, mãe de Bentinho, mesmo o 151

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obrigando a uma carreira que ele não queria, por respeito a uma promessa para que esse vingasse, era sentida como “adorável como uma santa”. A figura das mães estava, em geral, inserida num processo de sacralização e celebração da família e, não raro, era associada a imagens de santas, ao passo que o seu oposto, as adúlteras e as mundanas, por exemplo, às de Eva, demônios e serpentes.244 Se a maternidade era um valor em alta e a figura materna incessantemente exaltada e apresentada como uma função gratificante para a mulher, Natividade, de Esaú e Jacó, era o tipo de mãe modelo com toda a sua dedicação e desvelo, preocupandose e sacrificando-se pelo destino dos filhos. Frente a algumas dificuldades com eles, hesitou, inicialmente, em recorrer a uma cabocla no morro do Castelo para saber-lhes o futuro, mas, como “mãe era mãe”, rompeu as resistências e lá subiu. Constantemente, ficava “receosa” dos filhos se meterem em “barulhos”; ficava “atônita” diante dos atos destes, e os esperava, à noite, chegar da rua, “inquieta”, para depois dormir. Em pequenos, ficava a contemplá-los, “não era só fitá-los, [...] era beijá-los também e apertá-los ao coração”. “Toda ela estava nos filhos” e estes, com ternura, respondiam a seu devotamento maternal. Sua imagem de boa mãe, uma invenção da modernização, dista das mães de sociedades tradicionais, que encaravam a evolução e a felicidade das crianças pequenas com indiferença. Ela punha o bem-estar dos filhos pequenos acima de tudo.245 Coroando essa imagem da boa mãe, as atitudes e as emoções fortes dos filhos perante sua morte constituem uma manifestação importante dos sentimentos presentes nas relações interpessoais. Brás só voltou ao Rio depois de bacharelar-se em Portugal e peregrinar alguns anos pela velha Europa, quando seu

244

MACHADO DE ASSIS, J. M., Ressurreição, 1955, p. 32,71. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 120. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 48,117. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 37,259. OC.; Idem, Contos esparsos, 1956, p. 252. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 113, 157. OC. 245 Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 46, 51. OC.; MARTIN-FUGIER, A., 1991, p. 248. ; ANDERSON, M., 1984, p. 58. 152

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pai suplicou que viesse “depressa” ou acharia “tua mãe morta”. Segundo o rapaz, “esta última palavra” foi para ele “um golpe”, pois “amava” sua mãe e “tinha ainda diante dos olhos as circunstâncias da última benção” que ela lhe dera, a bordo do navio, por entre soluços e abraços apertados. Ele, que estava em Veneza, deixou “tudo” e disparou “como uma bala na direção do Rio de Janeiro”, onde era “lugar-comum, tristemente comum, [...] a consternação da família” diante da doença. Sua irmã “andava a cair de fadiga” pelos cuidados com a mãe enferma, que ao ver o filho, teve o rosto aluminado por um sorriso. Era a primeira vez que ele encarava “a morte de uma pessoa amada”, mas não chorou “durante o espetáculo”, tendo “os olhos estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta” pela forma como morreu aquela “criatura tão dócil, tão meiga, tão santa, que nunca, jamais fizera verter uma lágrima de desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada...” Brás ficou “prostrado” e, após o “sétimo dia, acabada a missa fúnebre”, retirou-se da Corte, na vida simples da Tijuca, “durante as primeiras semanas depois da morte”. Renunciou tudo, recomendou expressamente que o “deixassem só”, pois “tinha o espírito atônito”, e viu brotar em si a hipocondria. Seu “espírito ainda mais cabisbaixo” do que sua figura, “apertava ao peito [sua] dor taciturna, com uma sensação única,” a que chamou de “volúpia do aborrecimento”, a qual foi aplacada ao cabo de sete dias na solidão da floresta e da serra.246

2. A GRAVIDEZ: UMA “BENÇÃO”, UM “SONHO”? No movimento de constituição da imagem da mulher na recente cultura familiar, a figura da mãe terna e dedicada dominou a obra machadiana. Todavia a mãe tão devota, que era Natividade, que trazia até em seu próprio nome a indicação de sua função e dom materno, carregava em si, ao mesmo tempo, uma ambigüidade diante da gravidez, geralmente, nesse momento, idealizada. Seu comportamento estava próximo daqueles condenados pelos médicos higienistas e seus ideais, que indicavam 246 Ibidem, p.48. ; MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 95-9, 100, 103-5. OC.

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que a mulher nascera para ser mãe, ao desconstruir o aparato erigido acerca do prazer de dar a luz e da ventura materna. Natividade, que andava na “alta roda do tempo”, nos primeiros dias, sentiu-se desconcertada frente à “vida nova”, tendo o ímpeto de “esmagar o gérmen”, além de criar “raiva do marido”. Sentiu que “Lá se iam bailes e festas, [...] a liberdade e a folga...” Aquela criança “vinha [...] deformá-la por meses, obrigála a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto...”. Porém, se essa imagem inicial dessacraliza o ideal de ser mãe, já ao imaginar o filho com uns três anos de idade “no regaço da aia”, o que lhe daria um aspecto mais jovem do que era em realidade, foi que se reconciliou com o marido e a gravidez, achando “A maternidade [...] uma aurora nova e fresca”. 247 Mas se Natividade, a personagem machadiana em maior confor midade com o ideal materno, resistiu, de início, à maternidade, para, em seguida, exaltá-la, Virgília, de Memórias póstumas, que rompe com o modelo de esposa presente na tradição familiar, muito menos se apresentou empolgada ao engravidar-se. Não porque não soubesse quem era o pai, o marido ou o amante, mas pelo “medo do parto e vexame da gravidez”, assomada pela complicação e pela “força da privação de certos hábitos da vida elegante”. Nessas circunstâncias, temendo que o filho denunciasse o adultério, o aborto, que não sabemos se involuntário ou provocado, não trouxe a ela tristeza nem veio derribar nenhum edifício de utopias maternais. Sua atitude, possivelmente, estava também associada à banalização da mortalidade infantil, que possuía na época alto índice de freqüência na sociedade carioca, contribuindo para não a sentir com sofrimento. Mesmo Maria Benedita, de Quincas Borba, que também glorificava a maternidade, condicionando-se à figura da mãe e se anulando, aceitando com resignação esse estado, ao considerar “a si mesma um templo divino e recatado, em que vivia um deus, filho de outro deus”, achava “a gestação [...] cheia de tédios, de dores, de incômodos”, porém acolhia “o mal com 247 Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 33. OC.; PIETRANI, A. M., 2000, p. 84-5.

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resignação, _se não é que o agasalhava com alegria, _ uma vez que era a condição da vinda do fruto”. 248 Essas mães, talvez em menor grau a última, estavam longe daquelas glorificadas pelos médicos higienistas, que condenavam as mulheres preocupadas com o mundanismo. No entanto elas acabam nos revelam seus sentimentos e estados psicológicos produzidos frente à gravidez e à maternidade. Já a imagem dos pais, talvez, não estivesse tão longe daquela proposta por diversas formas de saberes, pelos discursos filosóficos, jurídicos, médicos e estatais. Eles revelavam entusiasmo diante da possibilidade de terem filhos, considerada como a finalidade básica do casamento, e concebiam a paternidade como forma de “assegurar a dinastia” das famílias, de completá-los e de continuálos, perpetuando a raça e transmitindo o legado de sua civilização. Por meio do filho, sobretudo legítimo, transmitiam-se os patrimônios econômicos, sociais e culturais. O pai de Brás Cubas muito bem representa essa concepção quando conversa com o filho, já adulto, sobre seu futuro, no qual incluía uma noiva e um lugar a ocupar no parlamento: _ Ah! Brejeiro! Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustra-lo ainda mais. 249

O desejo de ter filhos, o sentimento de paternidade, foi expresso com grande intensidade. Betinho, ansiosamente queria um filho, e para Santos, de Esaú e Jacó, a gravidez de Natividade era uma “bênção”. Achou-se tão feliz diante da notícia de realização de um “sonho de dez anos” que “a emoção atava-lhe a língua”. Brás Cubas, que, na mocidade, tinha lá “umas cócegas de ser pai”, quando, por exemplo, via a afeição e a ternura 248

MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 284-5. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 343. OC.; PIETRANI, A, M., 2000, p. 85, 89, 92, 93. 249 MACHADO DE ASSIS, J. M., Esaú e Jacó, 1959, p. 33. OC. ; Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 122. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 434. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 114. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 147-8. 155

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existente nas relações entre pais e filhos, também, quando sua amante Virgília engravidou, diante da possibilidade de ter “um filho”, “um ser tirado do meu ser”, dizia ele, que se tornara sua “preocupação exclusiva daquele tempo”, esquecera de todas as conseqüências do fato e os grandes acontecimentos que poderiam estar atordoando o mundo no momento, para só pensar “naquele embrião anônimo”, que lhe trazia tanto orgulho, para quem fazia planos futuros e com quem ficava a conversar, antecipando “carícias paternais”. No seu “diálogo com o embrião”, chamavao de “maroto e pelintra gracioso”, via-o indo “à escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço”, bacharel, “baby e deputado, colegial e pintalegrete”, até que o aborto “esboroou todo o edifício das [suas] quimeras paternais”. Brás, ainda por essa época, não possuía, certamente, aquela lúcida visão pessimista da humanidade que o levou por fim a dizer: “_ Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, indicando a perspectiva do filho ser objeto de investimento afetivo e material, de ser herdeiro tanto dos bens materiais quanto simbólicos.250 Por outro lado, diante da norma que cada vez mais se estabelecia, pela qual o casamento tinha por fim a procriação, devendo todo homem ser, antes de tudo pai, e toda mulher, mãe, somados as manifestações que exprimem uma expansão do sentimento de maternidade e de paternidade, a impossibilidade de ter filhos trazia, para o centro das representações, frustração, desgosto e melancolia. O casal Aguiar, de Memorial de Aires, envoltos pela esterilidade, sofria por não ter tido filhos, e isto se consistia na “única ferida do casal”, que, num processo de compensação, tratava seus afilhados como “filhos postiços”. D. Carmo, que “possuía todas as espécies de ternura, a conjugal, a filial, a maternal”, vivia ressentida por não ter filho e logo, não ter alcançado, o dito ponto alto da vida familiar. Bento Santiago, de Dom Casmurro, também vivia morto de vontade para ter um, a ponto de dizer aceitar “um triste menino que fosse, amarelo e magro, mas um filho, um filho próprio” de sua pessoa, pois assim 250

MACHADO DE ASSIS, J. M., Esaú e Jacó, 1959, p. 31-3. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 117, 272-3, 285, 419. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 150, 152. 156

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Capitu, que transitava com facilidade entre a casa e a rua, se tornaria mãe, selando as conveniências da função de uma esposa comum. Os filhos eram representados, não raro, como o coroamento do matrimônio, a benção do “Senhor” à união; um “verdadeiro brinde”. Com eles, cumpria-se o objetivo traçado para ao casamento, a procriação, e a função de dar continuidade à família.251 Mas, se o ideal de possuir “um filho próprio” era exaltado, o que requeria uma esposa dedicada aos afazeres da casa e nela enclausurada, domesticada, afastando das figuras da mulher perigosa e traiçoeira e do filho ilegítimo, o menino Escobar, gerado por Capitu, foi visto como fruto duvidoso, pois oriundo, talvez, de um adultério. Essa dúvida Bento não conseguiu digerir e superar, destruindo, aos poucos, suas fantasias paternais e findando com seu casamento. Capitu representa uma rasura na imagem da maternidade que asseguraria uma paternidade inquestionável.

3. A CRIAÇÃO: OS “BABIES” POR ENTRE MÃES E AMAS Como, em nome do pudor e da decência, a sociedade brasileira do século XIX vetava o acesso masculino ao corpo da mulher, sendo este, até então, pouco explorado pelos homens, e a introdução do médico no cuidado da saúde feminina, especialmente no que refere ao toque das partes consideradas pudendas, recebia muitas resistências, sendo mesmo uma indecência aqueles fazerem o parto, a figura da parteira fazia parte da tradição. Brás Cubas, por exemplo, nasceu por meio das mãos de uma “insigne parteira minhota, que se gabava ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de fidalgos.” 252 251

MACHADO DE ASSIS, J. M., Memorial de Aires, 1955, p. 28. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p.340. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 178. OC. ; Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 122. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 150-2. ; PIETRANI, A. M., 2000, p. 80, 94. 252 MARQUES, Rita de Cássia. Médicos de senhoras. Nossa história, Rio de Janeiro, v. 1, n. 6, p. 66-70, abr. 2004. p. 66. ; ALENCASTRO, L. F., 1997, p. 71-3. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 152.; MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas , 1957, p. 43. OC. 157

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Quando Capitu, esposa de Bentinho, engravidou, e, enfim, nasceu-lhe a criança tão esperada, possivelmente, assim como Brás Cubas, por meio das mãos de uma parteira, o filho “não era escasso nem feio”, como já pedia o pai ansioso, “mas um rapagão robusto e lindo”, segundo ele. Se os olhos do pai de Brás “babavam” de “orgulho” e, com a mão espalmada sobre a cabeça do filho, fitava-o longo tempo, “namorado, cheio de si”, a alegria de Bento, por sua vez, também foi enorme. Mas, para o último, “as horas de maior encanto e mistério eram as de amamentação”, quando o menino chupava “o leite da mãe”. 253 Esta passagem, rara na obra machadiana, de certo modo, faz uma apologia à amamentação materna, adequada à campanha dos médicos, que haviam decidido fazer com quê as mães amamentassem, em detrimento do aleitamento mercenário feito pelas escravas, que, segundo eles, era responsável pela alta taxa de mortalidade infantil, uma vez que eram, a seu ver, amas inaptas, relapsas e viciadas.254 As mães, ainda herdeiras dos costumes coloniais, não possuíam o hábito de amamentar seus filhos, continuando a entregá-los a amas, que, geralmente, eram escravas de ganho usadas por seus senhores, como estratégia de subsistência econômica, contudo elas moravam na casa da família, não ocorrendo a separação do bebê e contribuindo para o progresso do sentimento de infância. Dentre muitos nessas situações, podemos citar, inclusive, os filhos de Natividade, que foram cuidados e aleitados por duas amas. Às amas estavam entregues os bebês, aos quais dispensavam, sob a supervisão das mães, os primeiros cuidados até que fossem desmamados. Passada a “operação de desmamar”, as amas eram despedidas, chegando a vez das “amas-secas” ou aias, aquelas que, “zelosas do ofício”, brincavam, cuidavam das crianças e lhes introjetavam as primeiras marcas da sociedade e de sua cultura, principalmente, por meio das “repreensões”. 255 253

Ibidem, p. 45. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 341. OC. COSTA, J. F., 1989, p. 256. 255 MACHADO DE ASSIS, J. M., Esaú e Jacó, 1959, p. 74-6. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 179. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 32.; 254

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As crianças, nessa fase de suas vidas, possivelmente, já haviam sido batizadas, o que ocorria, habitualmente, logo que nasciam ou no primeiro ano de vida. Por essa ocasião, quase sempre, acontecia uma comemoração em casa, como um almoço ou um baile. Se em outubro de 1805 na “árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor”, em, aproximadamente, cinco meses, ocorreu seu batizado na igreja de S. Domingos, o qual foi comemorado com “uma das mais galhardas festas do ano” de 1806. Nessas celebrações rituais, do batismo e da festa comemorativa, a criança era incorporada ao universo religioso católico, sendo-lhe transmitida uma dimensão mística, espiritual, cristã e introduzida formalmente na sociedade, com a apresentação, principalmente aos parentes, amigos e vizinhos, portanto, inserida na comunidade e em seu sistema simbólico.256 Nesse sistema, os padrinhos escolhidos eram considerados como pais e mães espirituais, aqueles que tinham o dever de não faltar em um momento de transe, como a morte dos pais, tendo a tarefa, definida pela Igreja, de dar formação moral e religiosa aos afilhados. Assim, eram amigos íntimos, pessoas importantes, honrosas, ilustres e influentes, que dariam orgulho aos pais e afilhados, ou, ainda, apenas parentes queridos e próximos. Os laços rituais estabelecidos nesta esfera eram explorados, sobretudo, em sua dimensão simbólica. Os padrinhos de Brás Cubas eram indivíduos de alta hierarquia social, “descendiam de velhas famílias do Norte e honravam deveras o sangue que lhes corria nas veias, outrora derramado na guerra contra Holanda”, recebendo, por isso, o tratamento de “excelentíssimos”. Ao padrinho acoplava-se o trato de senhor e de coronel, que eram seguidos pelo nome: Paulo Vaz Lobo César de Andrade e Sousa Rodrigues de Matos. O nome da sua madrinha não ficava atrás deste tão pomposo do marido. Não raro, acontecia serem estes que escolhiam o nome da criança, Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 18. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 72. OC. ALENCASTRO, L. F., 1997, p. 63-7. ; ARIÈS, P., 1981, p. 237. 256 MACHADO DE ASSIS, J. M., Dom Casmurro, 1957, p. 344. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 2, 1955, p. 392. OC. ; ARANTES, Antonio Augusto. Pais, padrinhos e o Espírito Santo: um reestudo do compadrio. In: ARANTES, A. A., 1994, p. 199-203. 159

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ou decidiam-no em caso de dúvida dos pais, sendo, geralmente, atrelado a uma concepção simbólica religiosa.257 De tal forma, a escolha do nome não se dava de forma aleatória, inseria-se no sistema simbólico imediato da sociedade, procurando, inclusive, às vezes, determinar alguns traços da personalidade do indivíduo e até indicar outros aspectos de sua condição social. Nesse contexto, vemos também ocorrer um deslocamento importante no interior da família. Embora Perpétua, por volta de 1871, tenha escolhido os nomes dos “santos apóstolos S. Pedro e S. Paulo” para seus afilhados, Aires, em seu Memorial..., fala, em 1888, que uma mudança nessa área estava se operando no sentido de substituir os nomes cristãos por leigos, advindos de fontes de inspiração variada, como os romances que se liam. Segundo ele, “quando [...] era menino, ouvia dizer que às crianças só se punham nomes de santos ou santas”, de acordo com a tradição católica daquele tempo, mas que agora “parece que já não queremos Anas nem Marias, Catarinas nem Joanas, e vamos entrando em outra onomástica, para variar o aspecto às pessoas.” 258 Criavam as senhoras endinheiradas e elegantes suas crianças pequeninas, que recebiam o nome de “babies”, como indica o vocabulário corrente, ao tratar da primeira infância, cercadas por amas, mucamas e aias, as quais também lhes transmitiam a cultura que lhes fora imposta pelos senhores. Às amas, além de aleitarem, estavam entregues os bebês para serem lavados, enfaixados e acalentados, logo, podendo ser vistas a receber uma criança manhosa, aos gritos e repelões das mãos de uma senhora. Assim, não só as vemos amamentando ou levandoos para os berços com sono, mas cuidando, entre outras coisas,

257

MACHADO DE ASSIS, J. M., Helena, 1955, p. 152. OC. ; Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 12. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 343. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 44-5. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 41-2. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 34-5. OC. ; ARANTES, A. A., 1994, p. 195, 197. 258 MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 34-5. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 51. OC. Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 41-2. OC. ; ALENCASTRO, L. F., 1997, p. 53-9. 160

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de passear com eles puxados em carrinhos, ou ainda, a dar-lhes chocalhos para brincarem e mesmo a “repreendê-los”, conforme as normas estabelecidas e as coerções que estas impunham. Às mucamas e aias ou amas-secas eram já entregues, quando mais crescidos, por época de aprenderem a andar _ do “só só”. Nesse período, eles brincavam na relva das chácaras, por ela correndo ao fugir da mucama ou ficando no regaço das aias.259 Pela observação das brincadeiras usuais por essa época, podemos perceber progressivamente tanto o desenvolvimento físico e mental das crianças, como eram suas vidas, a historicidade desses folguedos e dos elementos que a constituíam. Assim, costumeiramente, as crianças abastadas eram encontradas brincando em vastos jardins do entorno das casas. Era também comum a imagem de meninos negros obrigados a imitar cavalos, como fazia Brás Cubas com cinco anos de idade divertindo-se montado ao dorso do moleque Prudêncio _ seu “cavalo de todos os dias”, a fustigá-lo com “uma varinha” e dando “mil voltas”, isso lá na primeira metade do século. Já na década de 1870, Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó, brincavam com seus “cavalinhos de pau, bandeirolas, teatros de bonecos, barretinas e tambores”. 260 Por essa época, pode-se observar que os brinquedos vão se tornando objeto de consumo e produtos de uma indústria voltada para esse setor. Assim, com a idade de cinco ou seis anos, Ezequiel, de Dom Casmurro, filho de Bento e Capitu, ganhava de seu pai “cavalos de pau e espada” e, quando passavam batalhões nas ruas, “corria a ver”, como “todas as crianças o faziam”. Brincava ele também de tocar “corneta com a mão”, levando o pai a dar-lhe “uma cornetinha de metal”, assim como “soldadinhos de chumbo e gravuras de batalhas”. É interessante

259

MACHADO DE ASSIS, J.M., Histórias sem data, 1957, p. 177. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 43-5, 58, 273. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 33,75. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 6972. OC. ; ARIÈS, P., 1981, p. 45. 260 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 46-7. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 76. OC. ; FREYRE, G., 1978, p. 368-9. ; MEIRELLES, Renata. Pipa, pião e chicote. Revista de história, Rio de Janeiro, v. 1, n.4, p. 25-9, out. 2005. p. 25. 161

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notar que essas atitudes, mesmo que inconscientemente, eram formas de produzir certa educação cívica, que ia criando no menino o desejo de ser soldado ou o sentimento patriótico. Desde a infância, aprendiam-se valores e normas para o futuro, e, nesse sentido, os brinquedos imitativos eram meios básicos no processo de aprendizado e inserção cultural das crianças. O gosto de imitar as atitudes dos adultos transformava, usualmente, nessa idade, em brinquedos atividades e comportamentos do mundo daqueles. Em tal aspecto, temos também Ezequiel a “imitar os outros”, nos seus “gestos, modos e atitudes”, como o fizeram, um dia, Bentinho e Capitu, que brincavam inclusive de médico e de padre.261 Na mesma idade, igualmente era que estavam as crianças a brincar “com balanços”, “com arcos”, peteca, bodoque, papagaio de papel, fazendo “rodas”, ou trepando em árvores, como Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó, que, aos sete anos, também corriam pela chácara por “aposta”. Podiam estar ainda ouvindo “histórias de meninos”, como As três cidras e O príncipe formoso, dentre outras. Gênero de histórias que, ordinariamente, reforçam a idéia da educação que treina, pois, por meio delas, certos conhecimentos eram transmitidos e adquiridos. Já se fossem crianças ricas, lá por volta da década de 1890, estariam, com certeza, correndo de bicicleta e velocípede, mandados para cá pela indústria européia.262 As brincadeiras de criança, às vezes, traziam em si o começo de um namoro que os uniria no futuro. Foi lá pelos quatorze anos que, atraídos e encobertados pelas brincadeiras, Bentinho e Capitu, de Dom Casmurro, namoravam, de olhos fitos um no outro, de mãos dadas e, quando surpreendidos pelos pais, diziam estar “jogando siso”, soltando as mãos depressa e ficando atrapalhados. Do “jogo de sério” à experimentação da “sensação

261

Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 44, 348, 353. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 153. 262 MACHADO DE ASSIS, J.M., Dom Casmurro, 1957, p. 44. OC. ; Idem, Contos esparsos, 1956, p. 263. ; Idem, Contos recolhidos, 1956, p. 204212. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 78. OC. ; Idem, Várias histórias, 1957, p. 212. OC. ; Idem, A semana v.3, 1957, p. 140. OC. 162

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do beijo”, do primeiro, a distância era pequena.263 Dessa forma, se nas sociedades tradicionais a idéia de infância como uma fase específica no ciclo da vida humana não existia, fazendo as crianças parte da sociedade adulta, as representações machadianas indicam transformações nas atitudes e nos comportamentos dos pais para com os filhos, próprios das sociedades modernas. Nesse universo cultural, elas não vestiam, não trabalhavam e não viviam como adultos. O vestuário próprio, os brinquedos, os jogos e a literatura infantis e as novas atitudes relativas à educação, são indícios da separação da infância da idade adulta.264

4. A EDUCAÇÃO: DAS “PRIMEIRAS LETRAS” À ESCOLARIZAÇÃO No entanto, meio a essas brincadeiras e antecedendo o momento do namoro, por volta dos seis e sete anos, era que se começava uma nova fase na vida das crianças, circunscrita pelo ingresso na educação escolar. Nessa época, eram lhes dados a aprender os primeiros “rudimentos da leitura” e, por meio dela, o avanço do processo de socialização e internalização da cultura. Por tais vias, iam-se interiorizando múltiplos aspectos e elementos necessários à organização e manutenção da sociedade, oferecendo às crianças, no entanto, possibilidades restritas, às vezes, únicas, e negando-lhes a opção. Era geralmente em casa, sobretudo se filho de família não abastada, que um dos pais ensinava “as primeiras letras”, as quais nem todos ultrapassavam. Foi em casa que o pai de Helena, de romance homônimo, um funcionário público, deu-lhe “as primeiras lições”, assim como foi aí também que a mãe de Guiomar, de A mão e a luva, “lhe ensinou a ler”, dentre outras.265 Para as classes mais privilegiadas, no entanto, o usual era enviar as crianças diretamente à escola para lá aprenderem as “primeiras 263

Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 45, 48-9, 50, 114. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 34. OC. ; Idem, Contos fluminenses v.2, 1955, p. 19. OC. 264 ANDERSON, M., 1984, p. 59. ; ARIÉS, P., 1981. 265 MACHADO DE ASSIS, J.M., Helena, 1955, p. 268. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 62. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 140,190. 163

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letras”. As crianças do sexo masculino eram levadas a “colégios de meninos”, enquanto as do feminino, a escolas de meninas, como aquele colégio do Engenho Velho, onde estudou D. Carmo, de Memorial de Aires, ou, dentre outros, aquele de Botafogo, o Colégio Imaculada Conceição. Esse sistema de ensino duplo, pelo qual ocorria a separação de meninos e meninas no processo de aprendizado social, diz respeito à organização da coletividade, em que os comportamentos, atitudes e padrões não eram gerais a todos os sexos, pois cada qual possuía suas especificidades em relação às posições e funções na divisão social dos papéis, do trabalho e das aparências, requerendo, pois, uma especialização na formação das crianças em instituições especiais, adaptadas a tais finalidades.266 A idade dessa inserção da criança no mundo escolar também variava e os meninos ingressavam mais cedo na escola. Dentre eles, encontramos o filho do escrevente Amaral, em Relíquias de casa velha, indo para o colégio com cinco anos, enquanto para as meninas, sete anos fora a idade mais baixa com a qual deparamos, sendo Capitu, de Dom Casmurro, aquela que, desde essa idade, ia ao colégio. Porém, segundo Agassiz, a maioria era enviada à escola nesta faixa de idade _ sete ou oito anos.267 A renovação da sociedade fluminense incrementou a demanda de escolarização e com isso houve um aumento no número de estabelecimentos escolares que tanto funcionavam em regime de internato para algumas crianças ou de externato para outras. De qualquer forma, predominava o que Ariès denomina de “longo processo de enclausuramento das crianças” por meio da escolarização, principalmente com os internatos. A instrução feminina era feita por professoras e tendia à preparação das meninas para desempenharem o papel social de esposas e mães, ao receberem uma educação moral e mundana, necessária nos

266

Idem, A semana v.2, 1959, p. 69. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 36. OC. ; Idem, Crônicas v.1, 1955, p. 102. OC. 267 Idem, Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 219. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 104. OC. ; AGASSIZ, L.R; E.C. apud. LEITE, M. M., 1984, p. 74-77. 164

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jogos matrimoniais e na vida de adulta. Nessas escolas para o sexo feminino, o nível do ensino era pouco elevado, visto que seu objetivo era ”fazer mães de família”. As jovens aprendiam “a ler, escrever e contar”, além do “francês, doutrina e obras de agulha” _ coser e bordar..., conforme solicitava a função de “dona de casa” e de “boa esposa”, que deveria ser gestora da economia doméstica. Assim fora onde estudara Capitu, menina de classe média baixa; foi possivelmente aí, juntamente com o exemplo materno, em casa, que aprendera a ser “poupada”, a “economizar”. Mas não era apenas isto, porque, no colégio de Iaiá Garcia, de nível mais elevado, esta aprendera, também, piano. Já Fidélia, de Memorial de Aires, a filha do Barão de Santa-Pia, aprendera, no seu, desenho e pintura a mais. Logo, dependendo da condição social da família, as filhas tinham ou não uma educação mais requintada e completa. 268 Se, para uma adolescente, estudar era uma forma de preparar-se para exercer seu papel de mulher do lar, que cuidava da casa, dirigia os empregados, fazia a interlocução do marido com os outros e educava os filhos, era desnecessário saber latim e dominar conhecimentos científicos especializados, bastando apenas um verniz de cultura geral, das artes recreativas e alguma formação de economia doméstica. A educação mundana completa de uma jovem consistia em tocar piano, cantar, falar francês, inglês ou alemão _ “latim não era língua de meninas”, talvez para não lerem a Bíblia e os clássicos. Portanto, saber desenhar e entender de costura e bordados, significava estar preparada, com os conhecimentos inerentes ao seu futuro de mãe e esposa, que deveria reproduzir, sucessivamente, as tarefas e os papéis. Nas famílias abastadas, não raro, encontramos professores particulares para completar em casa a instrução, às vezes, sumária, das meninas; principalmente no que se referia às línguas e à música. Machado, em Cherchez la femme, texto escrito a propósito das aulas para o sexo feminino no Liceu de Artes e Ofícios, em 1881, 268

ARIÈS, P., 1981, p. 11. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 165. ; COSTA, J., F., 1989, p. 180. ; MACHADO DE ASSIS, J. M. Crônicas v.1, 1955, p. 102. OC. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 15. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 320-1, 334-5, 337. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 138, 190. OC. 165

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defendia “a educação da mulher” como “uma grande necessidade social”. Para ele, à sociedade brasileira, marcada por duas “classes feminis”, faltava “certa orientação”, visto que uma possuía apenas uma “crosta elegante, fina, superficial, dada ao gosto das sociedades artificiais e cultas”, e a outra era composta por uma “grande massa ignorante”. Logo, educar a mulher era “educar o próprio homem”, a mãe completaria o filho, uma vez que era ela quem transmitia “a porção intelectual do homem”. Essa defesa vinha a público num momento em que as mulheres constituíam, cada vez mais, em instrumentos de grande valor no processo de formação e produção dos filhos-cidadãos.269 Não poucas dessas meninas estudavam em regime de internato ou pensionistas, formas que se impuseram, conforme indicavam os médicos higienistas, como meio de isolamento e separação da criança do ambiente familiar ainda considerado nefasto e contagioso pelos vícios da tradicional família colonial, que deveriam ser extirpados. Assim, eram liberadas da escola apenas para passar os fins de semana com a família, como acontecia a Iaiá Garcia, que era buscada no colégio pelo preto liberto Raimundo, servidor de seu pai, com o qual brincava ao chegar em casa. Os “pensionatos” eram freqüentados pelas filhas das classes mais abastadas e neles se podia ficar “em contato com as filhas das mais elevadas senhoras da capital”. 270 Nessa sociedade, marcada pela desigualdade social e econômica, nem todas as crianças podiam ter acesso às escolas, mesmo existindo as públicas, onde o ensino primário funcionava muito mal, mas abrigava filhos de famílias pobres e escravas. Assim aconteceu com Estela, de Iaiá Garcia, filha de um escrevente pobre, que até aos dez anos de idade nada aprendera, quando, por proteção do desembargador Gomes, que algumas

269

Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 104. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 40. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 214. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 143-4. OC. ; Idem, Poesia e prosa, 1957, p.125,127. ; MARTINFUGIER, A., 1991, 236-7. 270 MACHADO DE ASSIS, J. M, Iaiá Garcia, 1955, p.10. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 383. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 73, 103. OC. ; COSTA, J. F., 1989, p. 171-3, 180-1. 166

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vezes lhe “pagou o ensino” além de dar-lhe o “enxoval completo”, entrou para um colégio.271 Se o ingresso das crianças do sexo feminino nas escolas acontecia posteriormente ao dos meninos, sua saída, entretanto dava-se anteriormente ao destes. As meninas com treze ou quatorze anos já eram consideradas, normalmente, como que possuidoras dos estudos completos, pois teriam cursado cinco anos de escola, como ocorreu com Iaiá Garcia e Capitu, meninas de classe média, filhas de funcionários públicos. Para alguns pais mais endinheirados, porém, o período de permanência de suas filhas na escola era prolongado, sendo que por volta de 15 e, no mais tardar 17 anos, estavam concluindo seus estudos e saindo do colégio. Apenas uma, dentre tantas meninas-moças na obra machadiana, a filha de D. Camila, de Histórias sem data, prolongou seus estudos até os 19 anos, possivelmente, cursando o secundário, mas o fez por interesse de sua mãe que queria lá mantê-la como forma de along ar-lhe a infância e, conseqüentemente, diminuir, ou ao menos não acusar, o próprio envelhecimento. Assim, embora a escolarização não fosse um monopólio de uma classe e de um sexo, a instrução primária era basicamente a educação completa para o sexo feminino; os cursos secundários eram por elas pouco freqüentados. Devido a essa educação sumária lhes dada é que as vemos serem descritas como “frívolas” e “criaturas da moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruína de trinta séculos”, não compreendendo, não gostando nem podendo “entrar no terreno elevado da arte, da história e da filosofia”. 272 Muitas relações familiares futuras eram efetivadas previamente nessa fase escolar, como indicam os exemplos, já

271 MACHADO DE ASSIS, J. M., Iaiá Garcia, 1955, p. 41. OC. ; MARCILIO, Maria Luiza. O bê-á-bá no caos. Revista de história, Rio de Janeiro, v. 1, n.4, p. 82-5, out. 2005. 272 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos avulsos, 1956, p. 10. ; Idem, Iaiá Garcia, 1955, p. 42. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 27. OC. ; Idem, A mão e a luva, 1957, p. 65. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 179, 263. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 436. OC. ; Idem, Contos fluminenses v.1, 1955, p. 24. OC.

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citados, da relação de amizade de Sancha e Capitu, iniciadas na escola e a de seus esposos, Escobar e Bento, também começada no seminário. Porém findo esse período, a uma menina de quatorze e quinze anos, “se nos primeiros tempos bastavam os brinquedos e as escravas para diverti-la, era chegada a idade em que os brinquedos perdiam de moda e as escravas de interesse”, não havendo “leituras nem escrituras que fizessem de uma casa solitária [...] um paraíso”. Começavam elas a preocuparem-se com o namoro, assim como foi com Caetaninha, de Histórias sem data, ou Capitu, que já não achavam mais graça nas brincadeiras infantis. A última deixou de celebrar missas às escondidas com Bentinho, nas quais a hóstia era sempre um doce, para, às escondidas ainda, pegar-lhe as mãos para contar-lhe os dedos, ou passar as suas pelos cabelos dele, além dos sonhos que eram “aventuras extraordinárias” nos quais eles subiam ao Corcovado pelo ar, dançavam na lua, e anjos lhes perguntavam por nomes para dar a outros que acabavam de nascer; em todos eles andavam “unidinhos”, o que indica um desejo simbólico de proezas sexuais.273 Os meninos, em regime de internato ou não, freqüentavam colégios particulares, estabelecimentos exclusivos para seu sexo, que lhes dariam uma educação especial, inerente às expectativas que a sociedade neles depositava, preparando-os para o bacharelado. Recebiam aula de professores e freqüentavam, na maioria das vezes, não apenas os mestres “de primeiras letras”, com os quais aprendiam “a ler, escrever, contar”; que lhes incutiam “no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia”, como, por exemplo, história e geografia. Eles, quase sempre, percorriam os bancos da escola secundária, como o colégio Pedro II, o colégio Rosa ou num seminário.274 273

Idem, Histórias sem data, 1957, p. 263. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 36, 40, 328. OC. ; LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. p. 177.; GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud: a educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 94. 274 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memorial de Aires, 1955, p. 40. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p.95. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 94. OC. ; Idem, Contos avulsos, 1956, p. 103. 168

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Na fase da educação escolar, desde as “primeiras letras”, as lições de escrita, de leitura e de contar, assim como o enclausuramento imposto e sua disciplina severa tornavam sem colorido e desinteressante o mundo da escola, cheio de aborrecimentos e enfadonho com seus dias integrais (manhã e tarde), regime rigoroso e a presença da ameaçadora palmatória. Esta fora o “terror” de muitos em seus “dias pueris”, mesmo que já “tão praguejada dos modernos” em sua racionalidade pedagógica, sendo questionada ao ser utilizada na escola como instrumento de controle disciplinar, de dar “compostura na aula”. Ela atormentava a meninada, principalmente se colocada à vista, como “pendurada no portal da janela, [...] com os seus cinco olhos do diabo”, que tudo pareciam ver para punir e impor ordem. Olhar diabólico de que, possivelmente, muitos alunos buscaram afastar-se com os instrumentos supostamente devidos, como juras e votos, a exemplo de que fizera Coimbra, que “evitou muita palmatoada com promessas de orações a santos.” Assim, se, por um lado, no mundo da escola, da “enfadonha escola”, se aprendia a ler, escrever e contar, sendo de “amarguras esse tempo”, pois marcado pelos “ralhos, os castigos, as lições árduas e longas”, pelos quais se incutiam “no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe”, e o mais que o professor sabia, tudo balizado pela presença da “benta palmatória”, por outro, a experiência de “gazear a escola” fazia parte da vida da criança, que resistia a ser enclausurada e excluída do mundo exterior em toda a sua diversidade e intensidade, especialmente quando se deparava com um dia “esplêndido” de sol. Nessas circunstâncias, podia surgir um cetro arrependimento por ter ido a escola, pois “ficava preso”, ardendo “por andar lá fora”, sobretudo se estivesse vendo pela janela da sala de aula um papagaio de papel subir alto num morro próximo, enquanto, se estava ali “sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.” Mas se tudo isso fosse vislumbrado antes de adentrar em tão enfadonho lugar, podia-se sair a “ir caçar ninhos de pássaros, ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição ou simplesmente arruar, à toa”, “fazer diabruras” , como talvez seguir, marchando, ao som de um rufo, uma companhia de fuzileiros com a qual deparava, ou fazer-se de “imperador nas 169

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festas do Espírito Santos”, ou findar o dia em uma praia, ou ainda “onde quer que fosse propício a ociosos”. 275 As experiências do aprendizado das primeiras lições em uma escola e de gazear as aulas, nem sempre, foram vivenciadas por todos. Bentinho, de Dom Casmurro, por exemplo, mesmo sendo menino rico, fez seu aprendizado das “primeiras letras, latim e doutrina” em casa, com um velho padre amigo de um tio. Porém nem por isso esses rapazes estavam em piores condições para enfrentar os estudos secundários, preparatórios para o ingresso em alguma faculdade, feitos, não raro, em colégios internos e religiosos, como os seminários, nem mesmo ficavam distantes dos males sexuais que rondavam essas instituições. Assim, a prática da educação em casa, que algumas famílias alimentavam, dava lugar a outro regime no qual havia uma vigilância constante contra as práticas sexuais dos adolescentes, vistas como viciosas e perigosas. Os internatos eram apontados como lugares de maus hábitos e de vícios, de amizades perversas e anomalias, como a masturbação e a homossexualidade.276 A luta entre a consciência e a imaginação de Bentinho frente a um fato ocorrido quando ele foi para o seminário, bem expressa tais idéias, possivelmente pelas admoestações que antes recebera. Nas idas e vindas entre sua casa e o estabelecimento, de tempo em tempo, um dia, viu cair na rua uma senhora que levava meias e ligas de sedas, as quais ficaram a enroscar-se diante de si, em fantasia, inclusive nos sonhos de noite. Frente a tais sonhos, eróticos, que o perseguiram até de madrugada, rezava, mas ainda de manhã “o mal” vinha e ele tentava “vencê-lo”. Como não conseguia rejeitar “aqueles quadros”, as “visões feminis”, passou a considerá-las “como simples encarnações dos vícios, e, por isso mesmo, contempláveis, como o melhor modo

275

Idem, Várias histórias, 1957, p. 209-223. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 60-2. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 228. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, 1955, p. 275. OC.; LEMOS, Daniel C. de Albuquerque. Entre a palmatória e a moral. Nossa história, Rio de Janeiro, v.1, n. 15, p. 80-2, jan. 2005. ; ARIÈS, P., 1981, p. 277. 276 PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 165. 170

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de temperar o caráter e aguerri-lo para os combates ásperos da vida.” Tais impulsos sexuais, que foram resolvidos pelo tratado acima descrito entre sua “consciência” e sua “imaginação”, realizado, segundo ele, no intuito de fortalecer-se, estavam provavelmente associados à prática da masturbação, pois, além do relatado, o narrador informa que “o contrato fez-se tacitamente, com alguma repugnância, mas fez-se.” A perseguição dessas imagens femininas expressa o despertar das pulsões sexuais do adolescente seminarista, que “era virgem de mulheres”, e certamente elas não iam embora simplesmente “de cansadas”, com o ele informou.277 Já uma outra passagem descrita sobre o seminário está relacionada à homossexualidade. Bento, que conheceu Escobar em tal instituição escolar religiosa e tão rápido ficou dele muito íntimo, foi repreendido por um religioso que o viu abraçar com fervor por sua habilidade em fazer cálculos aritméticos mentais. Fica evidente aquilo que intrigou e desgostou o padre, embora não seja possível afirmar que tal questão, a homossexualidade, estivesse presente de modo consciente ou inconsciente entre os amigos. Betinho, ao ficar “tão entusiasmado com a facilidade mental do amigo”, não pôde “deixar de abraçá-lo” e, como isso ocorreu no pátio, “outros seminaristas notaram a [...] efusão” dos dois e “um padre que estava com eles não gostou”, recomendando a eles “modéstia”, atitude que “não consente esses gestos excessivos”; podendo “estimar-se com moderação”. Mas, como Escobar considerou que “os outros e o padre falavam de inveja”, propondo ao amigo “viver separados”, aquele o interrompeu “dizendo que não” e, como o outro, emitiu um reticente “Mas...”, complementou que deviam ficar “ainda mais amigos” que até ali foram. Em resposta, diz ele, “Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos.” Daí em diante, “a amizade de Escobar fez-se grande e fecunda” a ponto de achar uma forma de dispensar Bentinho da promessa feita por D. Glória de torná-lo padre, 277

MACHADO DE ASSIS, J. M., Dom Casmurro, 1957, p. 48, 195-8. OC. ; GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 81. 171

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possibilitando-o casar-se com Capitu depois de terminar o curso de advocacia.278 Os filhos, agora dotados de uma relativa autonomia, escolhiam suas futuras profissões, oscilando, quase sempre, entre a medicina e o direito, mesmo que cursando o secundário em seminários. O fato mostra-nos a ênfase dada à personalização e à autonomia dos indivíduos, assim como também evidencia a queda da vocação para a vida religiosa, que era muitas vezes uma imposição familiar, pois lhes garantia prestígio social. Queda acusada diante da “escassez de padres ordenados no [...] seminário”. Nesse sentido, vemos que, se D. Glória, mãe de Bentinho, havia feito a promessa de dar a Deus um sacerdote, o filho, caso vingasse, este acabou sendo substituído por um “mocinho órfão” qualquer, representando, segundo o narrador, “um cochilo da fé”. Mesmo seu amigo seminarista, Escobar, não se ordenou, levando-nos a concluir que, se, em algumas famílias, “era uso antigo que um dos rapazes fosse padre”, esse costume entrou em desuso, indicando uma diminuição da inspiração religiosa. Já o pai de Brás, enquanto o tio o via como cônego, “respondia a todos” que ele “seria o que Deus quisesse”. 279 Ingressar nos estudos superiores, habitualmente, dava-se por volta dos 16 a 18 anos de idade. Usualmente, os estudos eram feitos na Europa, até a chegada da corte, mas, com a abertura de novas escolas, passaram a ser aqui realizados. Isto não quer dizer que deixassem de existir aqueles que estudassem direito em Coimbra ou em Heidelberg, ou medicina em Lisboa. Porém, após os meados do século, ficavam quase todos por aqui; formava-se na Faculdade de Direito do Recife, na de São Paulo;

278

MACHADO DE ASSIS, J. M., Dom Casmurro, 1957, p. 301-3. OC. ; GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 324. ; SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. A interdição do desejo. São Paulo: João Scortecci Ed., 1989. Para Sampaio, numa leitura psicanalítica de Dom Casmurro, esse episódio é uma pista, um dos indícios da homossexualidade de Bentinho que ficou encoberta pela história da traição. 279 MACHADO DE ASSIS, J. M., A semana v.2, 1959, p. 80. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 263, 308. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 280. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 13. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 43-4. OC. ; LEWCOWICZ, I., 1987, p. 56. 172

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na de medicina do Rio de Janeiro; na Escola Politécnica e na Escola Central, onde se estudava matemática. Ser bacharel em Direito ou Medicina era marca de superioridade, dava importância e dignidade a quem possuía tais títulos, exercendo sedução, pois valendo como uma carta de recomendação.280 Por essa época, a duração da infância abastada já estava prolongada ao período do ciclo escolar sendo mesmo sinal indicativo do status do indivíduo nessa sociedade. Para as meninas, ainda com 15 anos eram consideradas “crianças”, mas, aos 16, quando estavam concluindo seus estudos, já eram vistas como “adolescentes”, possuindo, mesmo aos 17, “pretensões de mulher”. Estavam em uma “idade de transição”. Conforme a evolução de um sentimento da infância em expansão, sobretudo desde o século XVII, um traje especial distinguia a criança dos adultos, sendo ainda a preocupação com sua educação parte constituinte desse processo no qual ela assumia lugar central dentro da família. Até aí, traziam “vestidos de adolescentes”, aqueles “curtos”. Contudo, prolongar o uso dos “vestidos adolescentes”, o quanto fosse possível, e conservar a filha “no colégio até tarde”, podia ser uma estratégia eficiente “para proclamá-la criança” de acordo com as tramas do imaginário tecido sobre a criança. Assim, o traje, igualmente com o costume de freqüentar a escola, era indício de posições e posturas, delimitando fronteiras e distinções sociais estabelecidas a partir da situação de adolescente e de adulto. Substituí-los era símbolo de transição para outra fase. 281

280

MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias românticas, 1955, p. 30. OC.; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 74,89. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 256. OC. ; Idem, Memorial de Aires, 1955, p.43, 46. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 117. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 313. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 70, 255. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 31. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 8. OC. ; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 22 ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 115-6. 281 MACHADO DE ASSIS, J. M., Contos fluminenses v.2, 1955, p.19. OC.; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 171. OC. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 33. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 148. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 170. OC. ; ARIÈS, P., 1981, p. 156-7, 162-4, 187. 173

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A criança do sexo masculino, embora nenhum sinal indique o período de mudança de seus trajes, também era considerada, propriamente, menino aos 15 anos e “adolescente” aos 16, sendo os 17 anos aquela “idade em que a metade do homem e a metade do menino formam um só curioso”, sendo visto como “criança com fumos de homem” ou “homem com ares de menino”. Contudo, a adolescência era fase de turbulência na família e de conflitos. Nessa idade crítica, desenhavam-se as promessas do futuro, mas também os riscos das paixões nascentes, da iniciação sexual e de atitudes criminosas, que exigiam a intervenção severa da família. José Maria, por essa idade, com dezenove anos, entrou “no período dos amores” indo a uma “ceia de rapazes e mulheres” no Jardim Botânico, que possuía lá seu lugar nos territórios dos prazeres sexuais mercantilizados da corte.282 Brás também, aos dezessete, teve sua incorporação no mundo das práticas sexuais com moças pagas, recebendo algumas lições para sua educação sentimental, ao ser levado a uma casa de uma dama de maus costumes nos Cajueiros. Vivendo sua “primeira comoção [da] juventude”, aprendeu sobre a matéria das ligações entre sexo, sentimento e dinheiro, quando, para ter a bela Marcela, uma mulher pública, espanhola de vida alegre, que aponta a presença de estrangeiras nesse ramo de negócios, cometeu desatinos e desviou boa soma de seu pai para movimentar esse “comércio dos corações”. Com os gastos altos para presenteá-la e mantê-la, o pai irado com seus “caprichos juvenis”, com o dinheiro que sumia no ar, deu “ordem” para ir estudar direito em Coimbra. Após discurso moralizante, condenando os vícios elegantes e conclamando o nome e a honra da família, para chamar o desviante a tomar juízo ou ficar sem nada, como “arruador e gatuno”, foi levado à força à casa do intendente de polícia e depois embarcado para Portugal, onde 282 MACHADO DE ASSIS, J. M., Várias histórias, 1957, p. 48, 52. OC.; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 171, 312. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 63-5, 67-8, 70, 73-4. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 136. OC. ; Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 917. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 219-20. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 162-3.

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embebeu-se da cultura do tempo, do caldo do “romantismo prático e liberalismo teórico”, apreendendo “de todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentação”, saindo de um cultura confinada pela colonização e abraçando as idéias modernas.283 Ao se tornar uma extensão da infância, a adolescência apresentava-se prolongada até o final da vida escolar, associada à necessidade de introdução no indivíduo de disciplina. Mesmo que os estudos superiores fossem marcados por certa falta de comprometimento com a vida adulta e suas responsabilidades, até aí, as extravagâncias juvenis eram toleradas pela família. Alguns indivíduos, como Brás, mesmo que enviados para universidades longínquas para torná-los homens “sérios” e não “arruadores”, estudavam mediocremente, adquirindo conhecimento de modo superficial, ornamental e conquistando fama, “nomeada de folião”, e quando desses estabelecimentos saíam com grau de bacharel, embora pouco sabendo do que lhe fora ensinado, continuavam a gozar a vida, buscando “prolongar a universidade pela vida adiante”. Certos pais achavam até “necessário” dar-lhes mais “alguns meses à vida livre”, para depois chamá-los “à razão”. Assim, para os rapazes, esse era um tempo de liberdade e de aprendizagem, período alegre, de amores passageiros, de viagens, de camaradagens e de uma sociabilidade intensa.284 Uma vez, porém, concluídos os estudos superiores, eram chamados os jovens à seriedade da vida adulta; às suas responsabilidades e compromissos, dentre os quais, a profissão e o casamento. Nesse sentido, Bento, de Dom Casmurro, ao chegar de São Paulo, foi descrito “desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata [...] pensando na felicidade e na glória”, vendo pela frente “o casamento e a carreira ilustre”.

283 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 63-5, 67-8, 70, 73-4, 80-1. OC. ; SOARES, Luiz Carlos. Rameiras, ilhoas, polacas... a prostituição no Rio de Janeiro do século XIX. São Paulo: Ática, 1992. p. 49-50. ; SCHWARZ, R., 1990, p. 72-3. 284 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 74, 89-90. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 136. OC. Idem, Histórias da meia-noite, 1955, p. 9-17. OC. ARIÈS, P., 181, p. 191. ; PERROT, Michelle, À margem: solteiros e solitários, 1991, p. 293.

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Iniciava-se uma nova etapa em sua vida, alcançando plena condição de homem e de membro do grupo. Sua formatura e casamento designavam a passagem para outro estado, conferindolhe prestígio e dignidade.285 A infância abastada, alargada pela adolescência e espichada pelo período do ciclo escolar _ de formação da juventude _ , passava a permitir, até aí, um descompromisso com o mundo do trabalho e das posturas de adulto. Portanto, possuía também o término dos estudos superiores, para os rapazes, uma função ritualística de passagem para a vida adulta, instaurando uma ruptura no seu processo de inserção social, outorgando uma distinção entre os indivíduos e os papéis por eles encenados. Essa nova atitude para com os filhos contrasta com aquela vivida no mundo colonial, em que, segundo Costa, “ao pai-proprietário interessava o filho adulto com capacidade de herdar seus bens, levar adiante seu trabalho e enriquecer a família. A criança tinha uma vida paralela à economia doméstica”, ocorrendo “‘a adultização’ precoce da infância. Tão logo chegavam à puberdade, os filhos eram levados a assumir a postura de adultos”. No entanto, essa renovação foi incrementada com a exigência de escolarização, decorrente da chegada da corte portuguesa, quando as famílias locais, “pressionadas pelos costumes europeus” e por novas “necessidades econômicas, passaram a desejar que os filhos tivessem um melhor nível de instrução”. 286

5. MORTALIDADE INFANTIL E A CRIANÇA ABANDONADA Todavia, até aqui, tratamos, sobretudo das crianças filhas das classes ricas e daquelas que sobreviveram numa sociedade com alta taxa de mortalidade, assim como ainda daquelas de classes menos privilegiadas, mas que, de uma maneira ou de outra, conseguiram recursos que lhes dessem alguma estabilidade, às vezes, provinda da proteção, de um favor, que lhes permitisse inserção num mundo educacional dentro do padrão que 285 286

MACHADO DE ASSIS, J. M., Dom Casmurro, 1957, p. 318. OC. COSTA, J. F., 1989, p. 158-9, 180.

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analisamos. Porém, ao lado dessas, outras existiam para quem a realidade se apresentava de modo diverso e minguado. São elas crianças ilegítimas, mortas, abandonadas, escravas, ou mesmo filhas de gentes pobres que lhes davam outro direcionamento à vida. As crianças de origem ilegítima, filhas concebidas fora do casamento, podiam ser reconhecidas quando por ocasião da morte do pai. O filho ou filha “natural” eram, mediante dos testamentos, reconhecidos e mesmo declarados herdeiros. Esses filhos podiam ser frutos de relações pré-maritais ou significavam a existência das aventuras extraconjugais do pai-marido. Ainda que fossem indicadores da ilegitimidade, de práticas e relações sexuais fora do casamento, eram, mesmo assim, recebidos dentro da própria casa da família, até pela viúva. Os filhos bastardos acabavam sendo “tolerados” na família, com alguma condescendência, como exemplifica o caso da heroína de Helena.287 Já com relação à mortalidade infantil, bastante claro nos fica o quanto a sobrevivência das crianças era incerta. Podemos sintetizar tal situação no comentário curto de um pai ao afirmar que “_ Nem todas as crianças vingam...”, como ainda em dois outros momentos em que se fala sobre os nascidos. No primeiro, o Sr. Seabra, de Histórias da meia-noite, dizia àquele que havia escolhido para padrinho de seu filho, que, se o “pequeno vingasse”, mandá-lo-ia estudar em França; no segundo, o nascituro perpetuaria a dinastia dos Lemos, se não morresse na crise de dentição. A possibilidade da morte da criança estava tão presente e colocada de uma forma que nos dá a impressão da perda não ser muito sentida, dolorosa e pranteada. Essa mortalidade não era vista pela família como um mal, havendo recursos simbólicos de positivação desta. Tal indiferença não foi comportamento e sentimento aceitos somente, mas até incentivado no contexto de uma mentalidade religiosa que lhe dava consolo com a figura do “anjinho”. A criança morta merecia a devoção familiar, provinda dos preceitos religiosos antigos, que formavam o imaginário mortuário, os quais associavam a existência da criança, de seu 287 MACHADO DE ASSIS, J. M. Helena, 1955, p. 17-9, 22. OC. ; ANDERSON, M., 1984, p. 53.

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estado de alma puro, inocente, à vida sobrenatural, cultuando-a, quando morta, como anjo. Assim, uma criança que “morreu com poucos meses” era concebida como um “anjinho” e como tal, podia proteger sua família.288 Beirando a mortalidade infantil, estava o abandono de crianças, ou seja, crianças que, por falta de meios materiais para serem mantidas e criadas por suas famílias ou por outros motivos, como as imposições morais, entre as quais estava uma gravidez indevida, que, portanto, morreriam ou não poderiam ser criadas com as mães, eram expostas, para que outros lhes dessem possibilidade de vida. Essas crianças enjeitadas, que, em tempos anteriores a 1738, eram deixadas em adros de igrejas, praças, ruas e portas de casas, passaram a ser, a partir desse momento, recebidas e abrigadas na chamada Roda dos Expostos, mantida pelos cofres públicos. Nesse asilo, localizado, no momento, na rua dos Borbons, utilizava-se o mecanismo de uma roda, que era uma espécie de caixa giratória onde se colocavam as crianças enjeitadas, de modo que secreta ficava, pois desconhecida e anônima, a origem social do abandonado e daquele que abandonava. O abandono de crianças tornava-se também institucionalizado.289 O conto Pai contra mãe, de Relíquias de casa velha, é uma página da história da criança pobre e da criança negra. Nele, o pai de um recém-nascido luta para preservá-lo em detrimento da maternidade de uma escrava fugida que estava grávida. Acossado pela miséria, sem poder assegurar casa e comida para sua família, Cândido Neves, um caçador de escravos fugidos, viu-se obrigado

288

MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias da meia-noite, 1955, p. 12, 122. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 285. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 222. ; MURICY, K., 1988, p. 30. ; REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, L. F., 1997, p.112-3. ; VENÂNCIO, Renato Pinto. Entregues à própria sorte. Nossa história, Rio de Janeiro, v. 1, n. 9, p. 42-8, jul. 2004. p. 43. 289 MACHADO DE ASSIS, J. M. Crônicas v.2, 1955, p. 89. OC. ; GONÇALVES, Margareth de Almeida. Expostos, roda e mulheres: a lógica da ambigüidade médico-higienista. In: ALMEIDA, Ângela M.[et al]. Pensando a família no Brasil: da colônia à modernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo/ UFRJ, 1987. p. 38, 41, 47-8. 178

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a quase dar o filho à Roda, pois passara “semanas sem vintém”. A “Roda dos enjeitados” era a saída para que o filho não morresse à míngua, visto que, em casa, faltava “a carne e o feijão” e “do leite que beberia da mãe” não poderia sobreviver. Porém, a caminho da roda com o pequeno, encontrara em um beco a escrava fugida que estava procurando, e deixando seu filho em uma farmácia, pegou dela e arrastou-a pelas ruas rumo à residência de seu senhor, mesmo sabendo de sua gravidez, o que a levou a abortar ao chegar a casa. Mas abençoando a fuga, que acabara de lhe dar a recompensa de cem mil réis de gratificação, permitindo-lhe trazer de volta seu filho, nem dava importância ao aborto, chegando mesmo a dizer que “nem todas as crianças vingam”; pronunciamento que fez com que seu coração batesse forte, pois o filho esteve tão próximo daquele limite, e voltaria a estar, quem sabe, em conseqüência da vida difícil e incerta dos homens livres pobres.290 A Roda dos expostos, no entanto, não só possuía a finalidade de acolher os filhos das classes populares que não tinham meios materiais para sustentá-los, como nos indica, também, a existência de filhos ilegítimos, frutos de prazeres e uniões ilícitas que a família e a sociedade reprovavam. A ilegitimidade revela atitudes relativas aos comportamentos sexuais fora do casamento ou pré-maritais. Nesse sentido, esse asilo de “enjeitados” era um instrumento de preservação da família e da sociedade, possuindo, portanto, uma função social dupla.291

6. CRIANÇAS ESCRAVAS E CRIANÇAS POBRES As condições de vida das crianças escravas era uma reprodução miniaturizada do regime imposto aos adultos em igual estado. Assim, num “leilão de escravos”, em 1864, encontrava-se “na fileira dos infelizes [...] uma pobre criançinha”, que abria os “olhos espantados e ignorantes para todos”, sendo um atrativo 290

MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 9-26. OC. 291 GONÇALVES, M. A., 1987, p. 37-52. ; LEITE, Miriam L. M. O óbvio e o contraditório da Roda. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. p. 98-111. 179

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“pela tenra idade e triste singeleza”. O preço “da desgraçadinha” fora “fabuloso”, por fim. No entanto, o comprador deu à “infeliz” a liberdade. Mas nem todos finais de outras histórias similares eram tão felizes, como podemos ver no caso da escrava que abortou a favor do filho do seu caçador.292 Ainda jovens, até por volta dos sete para oito anos, os filhos escravos deixavam de ser crianças para ingressarem no mundo dos adultos, na qualidade de aprendizes, sendo, nas residências, as crias, os moleques e os pajens. Da própria história da criança branca rica, podemos deduzir, em parte, a das crianças escravas, que tinham sua infância amputada, sobretudo com o advento da lei do Ventre Livre, por volta dos oito anos. Assim, um escravo jovem podia servir a uma família, sendo pajem e acompanhante de um “nhonhô”, como Quincas Borba, de Memórias póstumas..., e Bentinho, de Dom Casmurro, tiveram os seus. Esses “moleques” serviam também para anunciar às pessoas que o almoço estava na mesa; para fazer entrar visitas; para levar e trazer notícias, bilhetes, cartas e recados, na época das cartas, como recurso único de correspondência; para ajudar o senhor a vestir-se; para acompanhar as senhoras em viagens e aos banhos de mar; para carregar compras; para apanhar nas árvores do pomar frutas para os filhos dos senhores, às vezes, à força de cascudos.293 Entretanto a figura do moleque, a criança escrava que teve sua infância encurtada no momento em que essa fase da vida dos filhos dos brancos estava sendo prolongada, estava submissa, como qualquer outro cativo, à vontade do senhor e exposto a receber seus petelecos, cascudos e pontapés. Assim foi que Prudêncio, de Memórias póstumas..., o já citado moleque da casa dos Cubas, era por Brás, em criança, montado todos os dias, como cavalo. Se Brás trepava-lhe ao dorso com uma varinha na mão, 292

MACHADO DE ASSIS, J.M. Crônicas v. 2, 1955, p. 63-4. OC. Idem, Ressurreição, 1955, p.15, 211. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 276. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 78. OC. ; Idem, Papéis avulsos, 1957, p. 25. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 107. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 62. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 81. OC. ; MATTOSO, Kátia Q. O filho da escrava. In: DEL PRIORE, M., 1991, p. 78. 293

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fustigando-o e dando-lhe mil voltas, o negrinho não tinha outra opção além de “obedecer”, mesmo que, algumas vezes, gemendo e, quando muito, dizendo: _ “ai nhonhô!”, ao que aquele retorquia: “_Cala a boca, besta!”. À condição de animal, fora também relegado o pajem de Helena, em Helena, o moleque Vicente, que tinha 16 anos, mas que seria no máximo, adolescente caso fosse branco, quando a senhora diz que, saindo a passear a cavalo na companhia deste, era “como se fosse só”. Segundo a jovem, seu espírito gostava, às vezes, “de trotar livremente na solidão”. Vicente, desumanizado, era um animal como a égua Moema na qual montava a heroína, de acordo com a visão senhorial predominante no momento. Assim, a criança escrava vivia sua infância como sendo uma redução do escravo adulto, submetida igualmente à vontade dos senhores, mesmo que dos “nhonhôs”. 294 Voltando às crianças das classes pobres, vemos que também mantiveram o período de sua infância encurtado. Quem nos fala sobre isto é o conselheiro Aires em seu Memorial, quando um dia viu, na rua, dois grupos de crianças, um deles formado de “meninos e meninas, de vários tamanho, que iam em linha, presas pelas mãos”, chamando-lhe a atenção pela “idade, riso e a viveza”; o outro, visto uns dez minutos depois, era de crianças entre as quais “algumas [...] carregavam trouxas ou cestas, que lhes pesavam à cabeça ou às costas, começando a trabalhar, ao tempo em que as outras não acabavam ainda de rir”. Dentre os trabalhos infantis, temos “meninos que vendiam bilhetes de loteria”, os vendedores de jornais, engraxates e quitandeiros.295 Para as crianças pobres, a educação era diferente daquela já observada entre as crianças ricas. As primeiras letras lhes eram transmitidas, não raro, pelos pais, talvez ensinadas mal, pois era como sabiam, a exemplo da mãe de Guiomar, de A mão e a luva. Mas, já lá pelos quatorze, quinze anos, começavam a trabalhar como aprendizes de um ofício junto aos adultos, com algum

294

MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 46-7. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 219. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 107. OC. 295 Idem, Memorial de Aires, 1955, p. 142-3. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v.1, 1955, p. 225. OC. ; Idem, A semana v. 1, 1959, p. 350. OC. 181

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pequeno comerciante, procurador ou artífice, habilitando-se para ganhar a vida. Nesse sentido, de permanência de um ensino exclusivamente prático, de caráter empírico, para os filhos do povo, foi que Silvestre, de Contos esquecidos, menino de quatorze anos fora posto pelo pai como seu ajudante de procuradoria, mas que, por sua organização franzina, “pareceu-lhe melhor metê-lo em cartório, onde se habilitava para escrevente juramentado, e mais tarde escrivão ou tabelião”. Assim, aconteceu também com Inácio, de Várias histórias, que fora posto pelo pai como agente ou escrevente “do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito”. 296 Desta forma, a aprendizagem provinha ainda, nesse meio, da sobrevivência antiga do costume de enviar as crianças para outras casas, onde, em contato com os adultos, aprenderia diretamente com eles um ofício, marcando também, de certa maneira, uma desvalorização dos laços afetivos entre pais e filhos, pela distância da família. Silvestre, que fora morar na casa de um procurador onde aprenderia uma profissão, só iria ver a família “aos domingos, ou de mês em mês”, dependendo ainda se “portasse”, como dizia seu pai. Já Inácio estava há cinco semanas na casa do solicitador, morto de solidão, “longe da mãe e das irmãs” e nenhuma possibilidade de ir vê-las fora veiculada, pensando mesmo até em fugir. A afinidade existente não era extensiva a todos, como também parece não deixar de ser unilateral. Ela advinha da aproximação da família e da criança.297 Nesse meio social, persistia o autoritarismo despótico do pai, que impunha a obediência por meio da punição e dos castigos físicos. As únicas vezes, talvez, a que Machado se refere a tais práticas estava ele representando famílias das classes pobres. É o solicitador Borges, de Várias histórias, com quem Inácio fora aprender uma profissão, quem dizia ir contar para o pai deste

296

Idem, A mão e a luva, 1957, p. 62. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p. 190-1. ; Idem, Várias histórias, 1957, p. 48. OC. ; COSTA, J. F., 1989, P. 195-6. ; ARIÉS, P., 1981, p. 193, 230-1. 297 MACHADO DE ASSIS, Contos esquecidos, 1956, p.195. ; Idem, Várias histórias, 1957, p. 50-1. OC. ; ARIÈS, P., 1981, p. 232-3. 182

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da sua inadimplência, para que este lhe sacudisse “a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau”; assim como ainda era o pai de Silvestre, de Contos esquecidos, que apareceu, planejando-lhe um castigo como forma corretiva, pois este, na posição de voyeur, devorava gravuras eróticas, estando a “folhear retratos de mulheres nuas”, que indicam a existência de uma produção de material pornográfico nesse século, o qual requeria uma leitura secreta por ser prática despudorada e condenada. Já Natividade, de Esaú e Jacó, representando as classes ricas e a expressão moderna da educação liberal, que opunha os castigos físicos aos morais, mesmo que sempre enfrentasse vários conflitos e tensões entre seus filhos, até brigas, jamais recorrera aos primeiros, abolindo a prática da punição corporal. Ela procurava persuadi-los pela conversa, levando-os a obedecer-lhe, assim como ao pai, “sem grande esforço, posto fossem teimosos”, utilizando, inclusive, “os estudos” para fazê-los emendar. Ela buscava uma interiorização, incutindo-lhes a necessidade de um controle sobre si. O sentimento da infância encontrava aí, nos meios burgueses primeiramente, sua expressão mais moderna. Assim, nos meios da elite, as crianças já não apanhavam muito em casa, mas entre as classes populares choviam as surras. 298 À infância reduzida para as crianças das classes menos abastadas contrapunha-se aquela prolongada das classes ricas, mediante a conservação delas na escola, a qual iria educá-las, discipliná-las e formá-las. Ao lado disso, a tão ressaltada valorização dos laços afetivos entre pais e filhos, presente na elite, aparece descolorida nos segmentos pobres.

298

MACHADO DE ASSIS, Várias histórias, 1957, p. 47. OC. ; Idem, Contos esquecidos, 1956, p.191. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 78, 80,109. OC. ; PERROT, M., Figuras e papéis, 1991, p. 158. ; LEMOS, D. C. de A., 2005, p. 80. ; GOULEMOT, Jean Marie. As práticas literárias ou a publicidade do privado. In: CHARTIER, Roger. História da vida privada, 3: da Renascença ao século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 402-4. 183

CAPÍTULO V À MARGEM DO CASAMENTO E DA FAMÍLIA NUCLEAR A família nuclear, célula, átomo da sociedade moderna, instituída no casamento monogâmico e indissolúvel, que triunfou nas doutrinas e nos discursos do século XIX, sendo totalitária, buscava impor suas finalidades a todos, geralmente, produzindo revoltas, tensões e conflitos entre indivíduos dispostos a escolher seus próprios destinos. Ela era o tema central do teatro da vida privada e fornecia-lhe os seus principais personagens e os papéis de maior destaque, suas práticas e rituais, suas intrigas e conflitos, sendo a mão invisível que controlava a sociedade civil. Nesse contexto, a família e o casamento, do qual ela originava, configuravam-se como centros irradiadores das regras e normas, em torno das quais se constituíam, na periferia, as pessoas solteiras e solitárias, as quais eram, freqüentemente, definidas em função daqueles personagens centrais ou se identificavam em relação a suas margens. Se a família era o centro da cena, elas eram a periferia, a borda.299 Com o casamento estavam envolvidos, quase sempre, os indivíduos das classes médias e altas, que institucionalizaram suas relações aproximando-se ou adequando-se ao modelo defendido pela cúpula católica desde os primórdios coloniais, uma vez que os populares viviam, predominantemente, amasiados.300 Mas, fora da órbita desse mundo edificado e perseguido pela Igreja, outros tantos personagens tiveram sua existência, passageira ou permanente, alguns até a sonhar com esse formato de união monogâmica e indissolúvel, como concubinos, concubinas e solteironas. Já outros, nem tanto se identificavam com tais princípios, como as mundanas, os celibatários e os libertinos que afastavam das normas seguidas pelas pessoas que aderiram ao tipo de relação interpessoal seguido pela elite. Eles constituíam, 299 300

PERROT, M., Introdução de Os Atores, 1991, p. 91. ESTEVES, M., de A., 1989, p. 179.

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em sua maioria, de certa forma, uma gama marginalizada de pessoas ao se afastarem ou se libertarem dos conceitos aceitos tradicionalmente pelos abastados. Se mulheres, inseridas no universo cultural defendido pelas elites, se desviaram, dentro da perspectiva burguesa, da única estrada que lhes daria reconhecimento social, glória e segurança, metendo-se, às vezes, por atalhos obscuros e por zonas de exclusão. Procuraremos neste capítulo, então, deixar deles, alguns traços e impressões, não fotográficos, mais “retratos” pincelados, elaborados a partir do discurso literário, que transfigura seus modos de vida, às vezes, alternativos, originais e contestatórios, assim como de sua linguagem da qual emanam aspectos da sexualidade e dos limites estabelecidos ordenadores das condutas.

1. CONCUBINATOS: ILEGÍTIMAS

VIVENDO

UNIÕES

Se o casamento se impunha, como era regra, no modelo familiar das classes abastadas, médias e altas, possuindo força normativa ao agir dos indivíduos, para os pobres, sua realização nem sempre ocorria. Eles, como já dito, viveram em concubinatos, “maritalmente”, ainda que mantivessem o desejo de se adequar ao ideal de ser casado, como D. Plácida, de Memórias póstumas, que expressa o poder coercitivo do modelo de conjugabilidade seguido e valorizado pela elite. 301 A história de D. Plácida elucida a existência e as experiências de muitas outras mulheres que não contraíram matrimônio. Ela mesma era “filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora.” Casou-se aos quinze anos, mas enviuvou-se aos dezesseis, tendo de sustentar a mãe e filha fazendo doces, cosendo e ensinando a algumas crianças do bairro, atitudes e afazeres costumeiros na economia da gente de sua condição. Não aceitou “seduções” e “propostas” dos pretendes que não queriam levá-la ao casamento, pois “queria ser casada”. Sua mãe mortificava-a para que “tomasse um dos 301 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 228-9. OC.

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maridos de empréstimo e de ocasião que lha pediam”, mas resistiu, mesmo sabendo muito bem que a mãe não fora casada e conhecendo “algumas que tinham só o seu moço delas”. Plácida, aqui a figura que internalizou o modelo de casamento burguês, não queria, inclusive, que a filha “fosse outra coisa” senão casada, e, por isso, tinha “imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de entregar costuras”, visto que vários capadócios rondavam-lhe a rótula. Nessas ocasiões, “A gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra coisa”. Alguns as cumprimentavam, outros diziam graçolas, e a mãe chegou mesmo a “receber propostas de dinheiro...”. Mas se D. Plácida protegeu-a o quanto foi possível, seu desejo de ser livre determinou que um dia fugisse com um sujeito e, certamente, vivesse “maritalmente” com este, depois com outro... pois das fugas raramente saía casamento, que pressupunha pureza e recato. Ela, como boa parte da população, não deu valor em se casar.302 O casamento então se contrapunha às tradições e aos costumes dos populares, nos quais a prática do amancebamento era usual. No conto Um almoço, de Relíquias de casa velha, Seixas, quando pobre, manteve concubinato com D. Lúcia, tendo, inclusive, com ela uma filha. Só consagrou tal relacionamento quando, anos depois, veio a melhorar de vida, prosperando financeiramente. Assim, “Após longos anos de desamparo e aflições, via-se enfim constituída em família”. 303 Para as classes populares, ser marido e mulher era partilhar a mesma casa, mesa e cama. Viviam em modelos de união ilegítimos e temporários, embora, algumas vezes, inspirando-se no comportamento dos casados. Em realidade, tal prática era diversificada e não uniforme. Já o matrimônio formalizado e sacralizado, criador da célula familiar por excelência, estava bastante limitado a certos estratos da população. No entanto, tornava-se cada vez mais o meio ideal para vivenciar as experiências a dois, sendo uma aspiração que

302 Ibidem, p. 228-9.; SAMARA, E. de M., 1986, p. 41. ; LEWCOWICZ, I., 1987, p. 55-6. 303 MACHADO DE ASSIS, J. M., Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 136. OC.

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tendia a alastrar-se e abarcar um número maior de pessoas, pertencentes, inclusive, a classes sociais diversas.

2. SOLITÁRIOS Na obra machadiana, a família é predominantemente pequena e tende a adequar-se ao modelo nuclear, sendo poucas aquelas constituídas por um número de pessoas superior a quatro. Era reduzida a quantidade de filhos, uma vez que a maioria tinha apenas um ou dois, que, quase sempre, deixavam a casa paterna depois de se casarem. Grande era também o quadro dos casais que não tinham filhos, como já dito anteriormente, no primeiro capítulo. Embora pouco numerosa, essa família não se restringia aos pais e filhos. Nela, encontramos parentes próximos, que estariam sós no mundo, como viúvos, solteirões e órfãos, geralmente irmãos, pais, tios, afilhados ou sobrinhos coabitando a mesma casa. Contudo esses quase solitários, raramente, ultrapassavam o número de um por domicílio, vivendo juntamente com o núcleo familiar. Muitos domicílios abrigavam “famílias” alternativas compostas de tios viúvos ou solteiros e sobrinhos órfãos, ou também viúvos, como ainda pais viúvos com filhos, que também podiam estar em igual estado. No entanto, pessoas solitárias, que viviam sozinhas, eram muitas, adequando-se a uma tendência observada em várias pesquisas, da existência de muitos domicílios habitados por apenas uma pessoa.304 Bento Santiago, após sua separação de Capitu, teve José Dias vivendo com ele, mas, após a morte deste, ficou só, no seu canto e ensimesmado, um casmurro, recebendo de vez em quando algumas “amigas” que impediam que sua alma ficasse em “um canto como for lívida e solitária”. Aires, por sua vez, que tinha uma irmã viúva e solitária, vivia sozinho e se recusou a

304 MACHADO DE ASSIS, J. M. Esaú e Jacó, 1959. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957. OC. ; Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 236, 425, 428. OC. ; Idem, Histórias sem data, 1957, p. 89. OC. ; Idem, Helena, 1955, p. 8. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 2, p. 204. OC. ; Idem, Contos fluminenses v. 1, 1955, p. 57. OC. ; LEWCOWICZ, I., 1987, p. 56. ; SAMARA, E., de M., 1986, p. 17, 19.

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residir com aquela que insistia na idéia. Se ele resistiu, preferindo ficar no seu “canto”, mesmo ela, depois, quando o irmão mudou a proposta, chamando-a para viver em sua casa, afirmou que também tinha gosto por ficar consigo mesma.305

3. SOLTEIRONAS: HUMILHAÇÕES E LÁGRIMAS Nessa sociedade, na qual o destino da mulher e seu futuro estavam associados ao casamento e ao modelo familiar a ele inerente, aquela que não o realizasse era vista de maneira negativa. Se o primeiro caminho era a norma, o outro era o desvio e, como exceção da regra do mundo burguês, o anormal, logo, rumando para as zonas de exclusão, sendo estigmatizada e marcada por isso por meio de vários sinais. Ela continuava a viver na dependência dos pais ou de parentes, pois era consideração comum que a mulher necessitava de proteção, e sentia como vergonhosa a situação em que se encontrava. D. Tonica, de Quincas Borba, foi uma dessas mulheres permanentemente solteiras, “ou mais que solteira”, que ansiava por um casamento. Contava “trinta e nove anos, e uns olhos pretos, cansados de esperar”. Sua dor era grande e de “humilhação”, debulhava-se em “lágrimas legítimas”. Seu problema consistia na permanência demasiado prolongada do estado civil de solteira, levando-a, constantemente, a comparar-se às outras mulheres que a cercavam e amigas do colégio e da família, e com isso comentar: “_ todas as outras são casadas...”. 306 No entanto, como fora do casamento a mulher era nada, D. Tonica ainda mantinha alguma esperança de mudar sua situação; vivia em vigília e à espera. Com seus “pobres olhos [...] sem parceiros na terra”, indo já “resvalar do cansaço na desesperança”, achou em “si algumas fagulhas”. Volver olhos “uma e muitas vezes, requebrando-os era o longo ofício dela”,

305 MACHADO DE ASSIS, J. M., Dom Casmurro, 1957, p. 423-4, 4289, 430, 435, 437, 439. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 127-130. OC. 306 PERROT, M., À margem: solteiros e solitários, 1991, p. 287, 293, 298. ; MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias românticas, 1955, p. 310. OC. ; Idem, Quincas Borba, 1957, p. 64, 69, 84. OC. ; STEIN, I., 1984, p. 83-4.

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que os armou mesmo para um rico capitalista, Rubião. Este lhe apareceu como, talvez, o “destinado pelo céu a resolver o problema do matrimônio. Rico, era ainda mais do que ela pedia; não pedia riquezas, pedia um esposo.” Todas as suas anteriores “campanhas fizeram-se sem a consideração pecuniária”, e, ainda assim, “nos últimos tempos ia baixando, baixando, baixando”, sendo que “a última foi contra um estudantinho pobre...” Porém, em relação a Rubião, pensava, interrogativa, que talvez “o céu” lhe “destinava justamente um homem rico”. Pensando assim, “D. Tonica tinha fé em sua madrinha, Nossa Senhora da Conceição, e investiu a fortaleza com muita arte e valor”. Contudo viu-se novamente frustrada, ficando a esperar todas as noites por aquele que não vinha. Ao imaginar-se “Quarentona, solteirona” teve um “calafrio” e “Ergueu-se de um golpe”, entrando a dar voltas, até atirar-se à cama chorando, devido à grande “humilhação”, pois uma mulher sozinha despertava vergonha e vexame.307 Suas expectativas continuavam muitas, mas suas esperanças esvaíam-se, e, ao completar os quarenta anos, “gemeuos consigo, logo de manhã”. Nesse dia, como ressacada moralmente, “não pôs fita nem rosa no cabelo”, ficou “metida em si mesma” e foi “roendo o pão da solitude moral”, ao passo que se arrependia dos últimos esforços na busca de marido. Remoeu consigo a idéia de que aos quarenta anos “era tempo de parar”. Mas não parou, e a sorte parecia lhe sorrir, como contou seu pai: “_ É verdade, vai casar, custou, mas acertou. Achou por aí um noivo [...] Pessoa séria, meia-idade...” A necessidade de casar era tão grande que nem importou com os “defeitos” daquele: “Que importa?”, interrogou o narrador, afinal, “Era o noivo”, mesmo sendo “mais baixo que ela”, viúvo e pai de dois filhos, dos quais um estava no batalhão de menores e outro, tuberculoso, condenado à morte. Mesmo assim, “todas as noites, ao recolher-se [...], ajoelhava-se ante a imagem de Nossa Senhora, [...] agradecia-lhe o favor e pedia-lhe que a fizesse feliz.” Para sentir-se completa, “Sonhava já com um filho...”. Ficou tão agradecida por livrar-se do peso de ser uma eterna solteirona, 307

MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 69, 70. OC. ; PERROT, M., À margem: solteiros e solitários, 1991, p. 293. 189

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situação lastimável e desprezível, da qual até mesmo seu pai zombava, como ao dizer que estaria “livre do trambolho”, que ria de tais gracejos, pois já “estava acostumada às graças do pai, e tão disposta à alegria que nada a vexava”. No entanto, o noivo faleceu três dias antes do casamento, e D. Tônica espremeu “as últimas lágrimas, uma de amizade, outras de desesperança”, deixando seus olhos “tão vermelhos, que pareciam doentes”. Enfermos do eterno solteirismo, do fardo humilhante que continuaria a carregar, do vexame a que era submetida, da situação constrangedora de ser estorvo, de ser dependente por tempo prolongado do pai. 308 Como solitária, era autoritária, governava a vida do pai, sendo maledicente, intrigante, mexeriqueira e maldosa, preocupando-se com a existência das esposas dos conhecidos que não se comportavam bem. Para essa personagem, sob clara e forte influência dos princípios religiosos, uma notícia de adultério poderia parecer-lhe “hedionda” e ser motivo para ver a possível adúltera como “um monstro, metade gente, metade cobra”, assim como para pensar em “vingar-se exemplarmente”, dizendo “tudo ao marido”. Contar-lhe “tudo” _ “ou de viva voz ou por uma carta...” Chegava a imaginar o colóquio, antevia o espanto do marido, depois o agastamento, depois os impropérios, as palavras duras que ele havia de dizer à mulher, miserável, indigna, vil... Todos esses nomes soavam bem aos ouvidos do seu desejo; ela fazia derivar por eles a própria cólera; fartava-se de a rebaixar assim, de a pôr debaixo dos pés do marido, já que o não podia fazer por si mesma... Vil, indigna, miserável....309

Igualmente solteirona e morando sob a proteção de parentes, encontramos D. Úrsula, de Helena, que contava cinqüenta e poucos anos e “vivera sempre com o irmão, cuja casa dirigia

308 MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 167, 366-8, 385. OC. ; PERROT, M., À margem: solteiros e solitários, 1991, p. 293. 309 MACHADO DE ASSIS, J. M., Quincas Borba, 1957, p. 83-4. OC. ; PERROT, M., À margem: solteiros e solitários, 1991, p. 299.

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desde o falecimento da cunhada”. Todavia, como ressalta Stein, “dirigia apenas no senso administrativo”, pois quem detinha o poder de decisão, depois da morte do chefe da família, era Estácio, o filho, e o padre Melchior, capelão da casa. “Dona Úrsula é apenas informada dos acontecimentos, iniciativas e decisões sobre as quais não é chamada a opinar”; ela não detém o poder como as viúvas, que o adquiriram com o casamento e o mantinham com o posterior falecimento do marido.310 Em situação similar a de D. Tonica, de Quincas Borba, que vivia com o pai e sem dote vantajoso, estava Celestina, de Contos fluminenses, que, desde os treze anos, teve a idéia de casar-se entrando na cabeça “e ali se conservou [...] até os trinta e oito”. Vivendo sob a proteção da mãe viúva, um dia, por meio de uma carta, apareceu-lhe um pretendente, que pensou ser “o prêmio da demora”, aquele que finalmente “se dispunha a fazê-la feliz”. À noite, quando tarde conseguiu dormir, sonhou com ele e com o casamento, até que, pela manhã, a escrava informou-lhe que a carta era para sua irmã, fazendo-a chorar a última lágrima “que o amor lhe arrancou”. A solteirona planeou em sonhos suas bodas suntuosas, nos quais a grande preocupação que a tomara fora a exposição ao público daquele ato tão esperado durante quase toda a sua vida. Muita gente estava a ver a realização do matrimônio; toda a vizinhança viu-a passar com o marido; muitos curiosos, gente, e mais gente, presenciavam e avistavam a sua felicidade de estar casando-se. Mas, por fim, era um “delírio”, e a pobre mulher continuou fadada a suportar o peso de ser solteirona, sob o olhar de toda aquela mesma gente, de ser fracassada e ter de conformarse à vida cinzenta de solteirona.311 Dos vários grupos de indivíduos que se encontravam à margem do casamento e levavam uma existência solitária, mesmo que vivendo com parentes, talvez, fosse o das solteironas aquele que mais almejasse ingressar na vida de casado. Para elas, a idéia

310 MACHADO DE ASSIS, J. M., Helena, 1955, p. 8. OC. ; STEIN, I., 1984, p. 83. 311 MACHADO DE ASSIS, J.M. Contos fluminenses v.2, 1955, p. 367, 370-3. OC.

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de casar-se, introjetada em suas mentes, torna-se uma obsessão, vigília e longa espera, pois a salvação, o prêmio pelos vexames, humilhações, zombarias e gracejos que recebiam e as faziam sofrer.

4. CELIBATÁRIOS: O CELIBATO ERA UMA REMORA? Já para o homem celibatário, considerado como aquele que em idade avançada ainda mantinha-se solteiro, às vezes, mesmo assim, provisoriamente, a situação era um pouco diferente. Os homens que permaneciam solteiros, mesmo que para sempre, não eram,em geral,desprezados como o sentiam ser as solteironas. No entanto, nos romances da primeira fase, Machado, bem próximo das idéias, das doutrinas e dos discursos vários que louvavam a família como célula mater da sociedade, como dos moralistas, dos religiosos e da medicina, representou-os de forma um tanto quanto negativa, aproximando-os da figura do libertino. Porém, mesmo assim, eram considerados como bons partidos para uma moça se casar, uma vez que o casamento era a via que os redimia de tal desvio e significava sua inserção e recuperação para o mundo da normalidade e do estabelecido como modelo exemplar. 312 Em Ressurreição, Félix foi apresentado como um médico de “trinta e seis anos, idade em que muitos já são pais de família, e alguns, homens de Estado”, mas “Aquele era apenas um rapaz vadio e desambicioso”. Seu caráter não era “inteiriço, nem de um espírito lógico e igual a si mesmo”, tratava-se de algo “complexo, incoerente e caprichoso, em que se reuniam opostos elementos, qualidades exclusivas e defeitos inconciliáveis”. Com relação a seus sentimentos, a “desconfiança” foi ressaltada provinda das decepções que encontrará, na vida libertina, lugar dos vícios e perigos. Além disso, era virtualmente possuidor de “um ceticismo desdenhoso ou hipócrita”, que tinha também “raízes na mobilidade do espírito e na debilidade do coração...” Ele, enfim, “era mais que tudo fraco e volúvel”. Com relação

312

MURICY, K., 1988, p. 74. ; STEIN, I., 1984, p. 85. ; PERROT, M., À margem: solteiros e solitários, 1991, p. 293.

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ao casamento, seu desinteresse era latente e suas seqüelas morais impediam sua felicidade: “Félix é essencialmente infeliz”, porquanto desprezava o casamento, instância elevada como modelo ideal de relacionamento pessoal e de regime sexual saudável, tendo uma existência marcada por modos alternativos de vida, marginalizados, uma vez que condenados pela Igreja, pois pecados, e pela medicina por ser ameaça à sanidade do corpo e à moral, comprometendo o capital genético com o contágio de doenças e o cultural com a desconsideração de ser esposo e pai. 313 Já, na obra Iaiá Garcia, Procópio Dias, outro celibatário, também possuía seu lado negativo. Era um homem de cinqüenta anos e, para ele, a “vida física era todo o destino da espécie humana”, sendo seus credos o lucro e o gozo. Pretendeu-se casar com a virginal e quase adolescente Iaiá, pela sua “mediocridade do nascimento”, achando que esta deveria ser-lhe agradecida pela escolha, que lhe era um “favor”. No entanto, mesmo visto com muitos defeitos _ vingativo, corrupto, sensual, inescrupuloso e talvez pusilânime, como Félix, de Ressurreição _ , Procópio foi considerado por Jorge como “simpático”, sendo um marido que Iaiá deveria “aceitar com ambas as mãos”, pois “apaixonado e opulento”. Mas se esses personagens celibatários eram condenados pelos médicos, inclusive, por unirem-se a mulheres jovens que obtinham em troca ganhos econômicos, a postura de Jorge deve ser entendida como salvacionista; era uma oportunidade de adequação e acerto que estava sendo dada a um desviante, assim como Lívia era a possibilidade de Félix inserir-se na ordem do saudável, aquela reconhecida e valorizada pela elite.314 Nos romances da segunda fase, momento no qual se inserem também as principais representações acima tratadas com relação às solteironas, os celibatários receberam um tratamento bastante diferente, tornando-se positivos, normais e comuns. Brás Cubas, com quarenta e quatro anos, ainda solteiro, estava em

313 MACHADO DE ASSIS, J.M., Ressurreição, 1955, p. 12-3, 53, 121, 234. OC. ; MURICY, K., 1988, 67-71. ; LEWCOWICZ, I., 1987, p. 55. 314 MACHADO DE ASSIS, J. M., Iaiá Garcia, 1955, p. 117, 179-80. OC. ; MURICY, K., 1988, p. 68, 73-4.; COSTA, J. F., 1989, p. 244.

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idade de desejar luzir, de ingressar na vida política e ser aplaudido. Seu estado civil não se constituía num grande obstáculo à realização de seus projetos sociais, ao contrário até, pois, para um homem, a “vida celibata podia ter certas vantagens próprias”, mesmo que consideradas “tênues e compradas a troco da solidão”. Sua história não traz censuras pesadas a seu estado civil, e Brás desnuda o que outros personagens escondiam. Para ele, casar-se é cogitado como meio de ter filhos e companhia. Seu pai perseguia a idéia de vê-lo casado e sua irmã Sabrina, também, o queria esposo e pai: “_ Não, senhor, agora quer você queira, quer não, há de casar-se [...] Que belo futuro! Um solteirão sem filhos.” Frente a isso, ele via novamente a idéia de ter filhos percorrer-lhe e afir mou: “Sim, cumpria ser pai.” Isso o impulsionou ao matrimônio, desprezando mesmo a origem inferior da família da pretendida, a qual já havia se elevado socialmente. Para seu cunhado, ele “devia casar quanto antes...”, pois achava que era “indispensável casar, principalmente tendo ambições políticas”, campo no qual “o celibato é uma remora”. Mas não casou, nem teve filhos, a moça morreu. Porém, ainda assim, tornou-se deputado. 315 Já o conselheiro Aires, em Esaú e Jacó, sexagenário, embora viúvo, foi apresentado como pessoa que “tinha o feitio do solteirão”, sendo descrito como homem “cordato” por “tédio à controvérsia” e que não possuía “quase nenhum vício”. Seu desinteresse pelo casamento já não era visto como algo negativo, senão como maturidade, pois “casou por necessidade do ofício” com “a primeira moça que lhe apareceu adequada a seu destino” e, ainda que tivesse vivido com a mulher, “era com se vivesse só”, quando falecera, “não se afligiu com a perda”. Nos textos da primeira fase machadiana, a felicidade vinha com o casamento e quem não se casava era “infeliz”. O casamento era visto como a forma ideal e o meio certo para se ser feliz. Assim, um jovem que “desejava ficar solteiro” era apresentado quando não como libertino, como um “misantropo”, “reservado”, “triste” e “agoniado”. Por sua vez, o casamento trazia-lhe “horizontes novos”, como a felicidade e o 315 MACHADO DE ASSIS, J. M., Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 337-40, 349, 358. OC. ; STEIN, I., 1984, p. 85.

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amor; era mesmo a “felicidade pelo casamento”. Para Aires, dando um conselho, casar era “bom”, embora ele, particularmente, “não amava o casamento” e, segundo no narrador, “não foi propriamente casado”. Essa atitude, em outros celibatários da primeira fase machadiana, era algo impossível de acontecer, e o assunto seria tratado com ironia e desprezo.316 Se antes o celibatário nutria-se da desgraça das famílias, ansiando para que aparecesse um “escândalo” doméstico e praguejando “o reinado da virtude”, sentindo “nostalgia da imoralidade”, agora Aires era o guardião das virtudes familiares. Ele era visto por Natividade como um homem “amigo”, “moderado”, “hábil”, “fino”, “cauteloso”, mesmo que tivesse alimentado certo “gosto” em relação a ela, uma mulher casada. Ainda assim, esta o via desta maneira e pedia-lhe ajuda com relação a problemas que atravessava com os filhos. Seu gosto por ela “não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou dela, como de outras jóias e raridades, mas tão depressa viu que não era aceito, trocou de conversação”. Ele era um homem solitário, um quase “solteirão”, que, por sua característica principal, a de ser cordato, não vivia os conflitos da paixão e menos ainda a frieza das convenções amorosas. Aires apresentava uma percepção da sociedade desencantada de todo e qualquer romantismo que pudesse existir nas relações familiares vividas por outros personagens. Segundo ele, “só os solteirões podem avaliar as idéias das mulheres”, e, logo, também dos indivíduos em família, devido a seu relativo distanciamento dessa realidade.317 Nóbrega também, de Esaú e Jacó, foi representado com caracteres positivos, morais e materiais, embora fosse homem “maduro”, que “trazia o rosto batido dos ventos da vida, a despeito das águas de toucador”, e a cujo “corpo faltava aprumo e as maneiras não tinham graça nem naturalidade”. No entanto, possuía situação de relevo, recebendo uma denominação, que “pegou”, de

316 MACHADO DE ASSIS, J. M. Esaú e Jacó, 1959, p. 58, 150. OC. ; Idem, Contos esparsos, 1956, p. 225-252. ; Idem, Ressurreição, 1955, p. 53. OC. 317 Ibidem, p. 16. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 57, 150, 152-3. OC. ; MURICY, K., 1988, p. 80-1.

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“grande homem”, podendo dar a uma moça posição esplêndida, pois “ricaço, estimado”, possuidor de palacete e carruagens. Além disso, o “capitalista” configurava um “prêmio da loteria de Espanha” para qualquer pretendente, “diziam todos”, valia sua moral, que “era o seu principal e maior mérito”. D. Rita via-o como “a melhor solução da vida” para a jovem Flora, de quem ele gostava “com um sentimento de proteção”, dando “conselhos à moça”, nos quais “pôs em relevo a posição do pretendente, o presente e o futuro, a situação esplêndida que lhe dava este casamento, e por fim as qualidades morais de Nóbrega”. 318 Muitos foram aqueles para quem o celibato era sua “alma”, sua “vocação”, seu “costume” e “ventura”. Eles não tinham vocação para o casamento, sendo-lhes a solteirice o programa de toda a vida, sem que inconveniente quase nenhum lhes viesse importunar, a não ser, talvez, se tivesse alguma inserção na vida pública. Como funcionário do serviço diplomático, Aires “cuidou que era melhor ser diplomata casado que solteiro”, casando-se, mas “enganou-se”. Já se o indivíduo possuía “ambições políticas”, no campo da “política o celibato [era] uma remora”, um estado que contribuía para adiar se atingir o objetivo almejado e não um obstáculo intransponível ou um real impedimento, uma vez que Brás Cubas tornou-se deputado mesmo tendo uma longa história celibatária e dela não se desligando. No entanto, ser solteirão era, ainda assim, um marco da transgressão das regras do jogo social e uma das linhas “negativas” do desenho do retrato de um homem. Brás, no capítulo final de suas memórias, denominado “Das negativas”, após enfatizar que “este último capítulo é todo de negativas”, arrolou que não foi ministro, nem califa, nem conheceu o casamento e nem teve filhos. Se dentre tais negativas a derradeira foi minimizada, ao encontrar “um pequeno saldo”, que foi não ter transmitido “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, as primeiras “dessas faltas” não receberam relativização.319

318

MACHADO DE ASSIS, J. M., Esaú e Jacó, 1959, p. 390-3. OC. Idem, Relíquias de casa velha v.2, 1955, p. 28. OC. ; Idem, Páginas recolhidas, 1955, p. 53. OC.; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 58. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 349. 418-9. OC.

319

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5. LIBERTINOS: VIDAS A RÉDEAS SOLTAS Também avesso ao mundo idealizado do casamento e de suas regras, embora não raro se casasse, temos ainda a figura do libertino, que, em muitos momentos, confundia-se com o celibatário, sobretudo daquele oriundo da primeira fase machadiana. Dos celibatários libertinos podemos citar Félix, de Ressurreição, e Procópio Dias, de Iaiá Garcia, mas existem outros tantos casados. Luís Batista, em Ressurreição, era um libertino, embora fosse casado. Levava uma vida de “aventuras amorosas”, pois, para ele, a vida era “uma ópera bufa com intervalos de música séria”. Nessa perspectiva, achava que o casamento era bom, desde que se considerasse uma “condição única”, que era a de ser “um pouco livre”. Ser livre era, para ele, uma característica essencial para o casamento. “Galhofeiro e sensual”, vivia o rapaz a ter “mulheres amantes” e a satisfazer seus caprichos, enquanto, em casa, Clarinha, sua esposa, encontravase resignada com as atitudes do marido.320 Igualmente libertino, era o conselheiro Vale, em Helena, que, mesmo casado, levava uma vida “marchetada de aventuras galantes”, despendendo “o coração em amores adventícios e passageiros”. Ao lado desses, podemos enumerar vários outros, como Lulu Borges, de Contos sem data, que deixava em casa a esposa “sozinha para ir-se a orgias e vícios de toda a sorte”, nas noitadas de jogo e de “mulheres impuras”. 321 Assim, esses libertinos casados eram a rasura, o arranhão na idéia tão valorizada e sacralizada de casamento como espaço privilegiado para um regime sexual aceito e recomendado. Por fugirem do templo da sexualidade normal, o lar, e do altar das celebrações legítimas, o leito conjugal, percorrendo espaços periféricos e marginais, inseriam-se no território das formas e práticas sexuais “degeneradas”, desqualificadas, atreladas ao princípio da infidelidade. 322

320

Idem, Ressurreição, 1955, p. 194, 196. OC. Idem, Helena, 1955, p. 19, 23. OC. ; Idem, Contos sem data, 1956, p. 159. 322 PERROT, M., Funções da família, 1991, p. 115-6. 321

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Mas a libertinagem possuía ainda outros componentes que também agitavam o lar burguês, atrelados às atitudes de jovens que buscavam prazeres transgressivos, isto é, para além daqueles que a família oferecia nos seus restritos limites domésticos e nos espaços públicos dados à sociabilidade convencional. Desta maneira, eram muitos os indivíduos, mesmo que a título provisório, que, antes “de canalizar a vida” e de inserirem no “tempo de seriedade”, trazidos pela “encomendação em regra” da benção nupcial, apareciam envoltos pelos “desperdícios elegantes”, “à vida de rédea solta” e a todas as “seduções juvenis”. Na boêmia, que, segundo Perrot, invertia as normas da vida privada burguesa, a exemplo da relação com o tempo e com os espaços, adentrando em “arquipélagos do prazer ilegítimo”, viviam muitos rapazes desfrutando “a reputação de libertinos”, ao freqüentarem “jantares de Citera”, casas de “damas da moda”, de mulheres “públicas”, em “perdição completa”, nem sempre se atendo ao “decoro” requerido nos lugares públicos e sendo objeto de escândalos. Entregues “a uma vida libertina”, traziam tensões e conflitos para o lar, “a dor e a vergonha” à família que, por sua vez, como espaço moral e da norma, dominado pelo pai, os chamava à “razão”. Mas, quando já considerados como estando em estágio “adiantado na carreira da libertinagem”, as dificuldades encontradas para por fim a tais procedimentos equívocos dessa sociabilidade juvenil podiam ser muitas e, nem sempre, fáceis de conseguir. Custou-lhes, não raro, uma viagem para fora da cidade, talvez alguma província ou mesmo para a Europa, se abastados. 323

6. MULHERES PERDIDAS Por outro lado, como face da mesma moeda, existia também a figura da mulher perdida, que era aquela que mantinha relações amorosas e sexuais com vários homens, tirando delas proveito financeiro, fosse por meio de presentes, dinheiro e casa 323 MACHADO DE ASSIS, J. M., Iaiá Garcia, 1955, p. 106. OC. ; Idem, Histórias românticas, 1955, p. 162, 165, 260, 310. OC. ; PERROT, M., À margem: solteiros e solitários, 1991, p. 295. ; CORBIN, Alain. A relação íntima ou os prazeres da troca. In: PERROT, M., 1991, p. 534.

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montada. Elas eram mulheres que viviam à margem do casamento e da sociedade, sendo, comumente, representadas, nas obras da primeira fase machadiana, como astuciosas, perigosas e infiéis. Por trás dessa denominação um tanto ampla e elástica, abrigavam-se figuras diferenciadas, como cortesãs, amantes mantidas, atrizes, meretrizes e outras mulheres públicas, “de partido”, como eram chamadas, que foram vistas, nas tentativas de classificação das autoridades, como prostitutas, fossem na prostituição pública ou clandestina, escamoteada, de primeira classe, de segunda e até de terceira, baixo meretrício ou alto, conforme algumas variantes. No entanto, no universo machadiano, tiveram lugar as primeiras (cortesãs, amantes e atrizes), das quais trataremos a seguir. 324 Em Ressurreição, Cecília era amante mantida de Félix, numa casa no Rocio, assim como Menezes também possuía a sua. Cecília foi descrita como “uma rapariga sossegada, carinhosa”, não sendo “positivamente uma alma perdida”, mas “uma moça de bons sentimentos”, que conservava “certa dignidade no vício”, tendo “uma alma nobre, elevada...” Segundo o narrador, a moça “não era hipócrita quando dizia gostar de um homem; qualquer que fosse a natureza dos seus afetos, ela os sentia sinceramente”. No entanto, se seus sentimentos podiam ter diversos fundamentos, sua fidelidade também era própria de sua condição: “se ela era amante para querer a um só homem, era independente para o esquecer depressa. Tinha a fidelidade filha do costume”. Assim, um juramento seu “não deveria valer muito aos olhos de um homem que conhecesse bem todos os recursos de uma mulher naquelas condições”. Quando Félix, para quem “os amores são todos semestrais”, a deixou, ela, por amor próprio, não aceitou seu favor, a oferta de meios para sobreviver, conquistou Moreirinha, amigo daquele, passando a ser o “altar” em que ele “fazia os seus sacrifícios diários e pecuniários”. Menezes, por sua vez, possuía também uma amante, com a qual “vivia [...] maritalmente”, era “uma pérola que pouco antes encontrara no lodo”. Porém não tardou para que ele descobrisse “em casa vestígios de outro amador de pedras finas”, deixandoo certo da “infidelidade da amante”. Se infiel era “a pérola”, não 324

SOARES, L. C., 1992, p. 26-40. 199

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menos perigosa tornou-se Cecília, levando seu amante à ruína. Moreirinha “de abatimento em abatimento”, de sacrifício financeiro em sacrifício, chegara a uma posição “miserável”, não sendo preciso, segundo o autor, “grande perspicácia para compreender que aquilo tudo era obra de Cecília. [...] Moreirinha estava eternamente condenado ao capricho daquela mulher” e, como “não compreendia o que era ser feliz sem publicidade”, o território de seus prazeres, sua “ilha de Citera não podia ser jamais a ilha de Robinson”, a exibia em público. Viciosas, infiéis, caprichosas, arruinavam seus amantes e os expunha na sociedade. 325 Dessa maneira, assim como os libertinos casados foram representados nos primeiros romances de Machado com forte carga negativa, advinda dos discursos moralistas ordenadores de comportamentos, também o foram as amantes. Elas eram associadas à imagem do vício, o atrativo sedutor e perigoso, que traziam infortúnios aos lares, famílias e esposas, consumindo fortunas, a paz doméstica, sendo infiéis e traiçoeiras. Se, no universo das mulheres públicas da cidade do Rio de Janeiro, as estrangeiras tinham lugar garantido e de destaque, Machado não desconsiderou esse dado; algumas de suas personagens envoltas com tais práticas possuíam laços de parentesco com o mundo da cultura espanhola ou hispano-americana, como apontam as figuras de Ângela da Soledade, Marcela, Carmem e Dolores. Por esta última, “uma figura de circo, uma chilena que voava em cima do cavalo”, João da Fonseca apaixonou-se, deixando sua esposa, Mora Cora, com que vivera feliz, e sua “estância para ir atrás dela”, até que voltou dentro de seis meses depois, “porque a aventureira se namorou do redator de um jornal, que não tinha vintém, e por ele abandonou Fonseca e a sua prataria.” Essa “aventura do marido [...] destruiu a paz do casal” e, quando ele voltou, o desquite fora proposto por Cora. 326

325

MACHADO DE ASSIS, J. M. Ressurreição, 1955, p. 26, 28, 47-9, 145. OC. SOARES, L. C., 1992, p. 49-50. ; MACHADO DE ASSIS, J. M. Helena, 1955, p. 17, 266. OC. ; Idem, Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 64-5. OC. ; Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 159. OC. ; Idem, Relíquias de casa velha v. 1, 1955, p. 33-4. 326

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Em Helena, Ângela da Soledade vivia com o conselheiro Vale, como sua amante. Ele a instalara em uma casa elegante de São Cristóvão. A moça, filha de um lavrador do Rio Grande, fora raptada de casa por Salvador, pai de Helena, porque a família dele, que “tinha alguns bens”, se opunha ao casamento pela classe inferior da moça. Depois da fuga foram “viver na campanha oriental”, Uruguai, em Montevidéu e, posteriormente, no Rio de Janeiro. Mas se a idéia de casar era a “justificação” e o “argumento contra o ressentimento” de seu pai, a “felicidade desviou qualquer idéia de santificar e legalizar” a união, que foi sendo adiada de mês para mês, de ano para ano, até que “afinal o projeto esvaiuse de todo.” Como dispensavam “o respeito da sociedade”, o casamento não foi realizado e também não teve força de obstar “os acontecimentos posteriores”. Quando Salvador viajou, deixando a amásia para rever o pai que estava por morrer, ela, mentirosa, enganadora e traiçoeira, deixou-se guiar por “uma paixão nova e delirante”. O narrador, no entanto, não condenou seu comportamento expressamente, vendo-a como mais uma vítima da fatalidade. Já Salvador, classificava a companheira como “um complexo de qualidades singulares” e considerava ele mesmo como o responsável por tê-la desviado da “estrada real para metêla por um atalho obscuro”. Ela era “Capaz de suportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das máximas privações”, não sendo “a riqueza que a seduziu”, teria ido “ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miséria”. Segundo Salvador, “Ângela nasceu metade freira e metade bailarina; capaz das austeridades de um claustro, não era menos das pompas da cena”. 327 Muitas eram as mulheres como Ângela que, por terem entrado em um atalho, não raro, sendo raptadas e fugindo de casa, eram abandonadas e tornavam-se amantes teúdas e manteúdas, como aquelas que pediam pelo jornal a proteção de um senhor. Mas se estas receberam do narrador alguma simpatia, o que prevaleceu na representação dos escritos da primeira fase machadiana foi a visão de serem desagregadoras da sociedade, que traziam à família dores e problemas. Porém, já nos escritos ditos da segunda fase, a mundana aparece como observadora da 327

Idem, Helena, 1955, p. 266, 268-70, 272-3, 278. OC. 201

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realidade social, detendo um conhecimento empírico sobre a sociedade e seu funcionamento. Carmem, em Esaú e Jacó, era uma “atriz da moda, pessoa chistosa e garrida”, com a qual Aires mantivera um encontro amoroso em Caracas. Ela o dissuadiu de ir procurar saber as razões de um tumulto de rua, dizendo, entre “duas carícias”, que se caiu um governo, ou se subiu, não era motivo para susto, pois, no dia seguinte, era ainda “tempo de ir cumprimentá-lo”. Ela, por esse comentário, colocava um tema fundamental da reflexão machadiana na sua fase segunda, que é a prevalência das razões individuais sobre as razões da história e da sociedade. Carmem não foi apresentada com nenhuma característica negativa, ao contrário, “ela enriquece com sua observação a experiência política e existencial do conselheiro”, no dizer de Muricy. 328 Desde Memórias póstumas..., Marcela, uma espanhola encantadora, sedutora de muitos homens, amante de Brás na mocidade, que se tratava de uma cortesã, “luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes”, recebeu tratamento similar. Essa linda dama de maus hábitos, que “não possuía a inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código, “cosas de España”, veio iniciá-lo e ensinar-lhe a significação das relações humanas. Fora a “primeira comoção [de sua] juventude”, conhecida em “uma ceia de moças, nos Cajueiros”, na qual “havia mais uma meia dúzia de mulheres, _ todas de partido _” e mostrou-lhe que fazia parte do seu “universo”, mas “não o era de graça”. Foi-lhe, segundo ele, “preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo”. Brás aprendeu, com tal “paixão ou ligação”, o nexo existente entre amor e dinheiro. Marcela fezlhe sentir a mediação pecuniária nos relacionamentos amorosos e humanos em geral, trocando as “aparências” de afetos por “sedas”, “jóias” e “dobras de ouro”. Brás dizia: “Bons joalheiros, que seria do amor se não fosse os vossos dixes e fiados? Um terço ou um quinto do universal comércio dos corações”. E ainda insistindo na idéia de que amor e interesse econômico não se excluíam, dizia: “O que eu quero dizer é que a mais bela testa 328 Idem, Esaú e Jacó, 1959, p. 159. OC.; MURICY, K., 1988, p. 80-1. ; STEIN, I., 1984, p. 91.

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do mundo não fica menos bela, se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada”. Marcela, por exemplo, diz ele, “amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”. Amou-o até que seu pai se sobressaltasse com a desaparição dos onze contos, pegando-o e enviando-o à Europa para estudar, pois o queria “homem sério e não [...] arruador e gatuno”, visto que aquele “caso excedia as raias de um capricho juvenil”. A dama era avarenta e depenava fortunas com seus agrados. Pagava “os sacrifícios” de Brás com toda a forma de sedução, como a prática cultural dos quadros vivos, com os quais satisfazia os desejos e caprichos do amante, que gostava de vê-la trajar de modos diversos, “com tais e tais enfeites”. Ela “cedia a tudo, risonha e palreira”, dizendo a ele: “_ Você é das Arábias”. 329 Estrelas da vida boêmia, de “sociedades equívocas” e periféricas, de “ceia de rapazes e mulheres”, como as ocorridas também no Jardim Botânico, essas figuras femininas possuíam seu lugar no imaginário social e da juventude. Num ambiente composto por “comidas, vinhos, luzes, flores, alegria dos rapazes” e muitos “olhos das damas”, elas aparecem como sendo “lépidas, frescas, astuciosas” e tendo “fama de devorar o coração e a vida dos rapazes”. Foi para esse território do prazer mercantilizado, do qual o Jardim Botânico, o Rocio, os Cajueiros, dentre outros espaços, eram “ilhas” e paradas de um circuito de práticas sexuais venais, a que José Maria, com dezenove anos, julgando-se “pronto” para sua iniciação sexual, rumou-se, por vontade própria, quando entrou “no período dos amores”. Ali, “uma das damas veio sentarse” à sua direita e outra a esquerda, e “fizeram tudo, tudo”. Ele só saiu de lá pela manhã e “apaixonado por ambas”. 330 No “mundo dos amores comprados e fúteis prazeres”, por onde passavam os “mais tresloucados da terra fluminense”, que viviam no “vício” e na desrazão, essas Evas pecadoras, “damas da moda”, chamavam “a atenção de todos”, como

329

MACHADO DE ASSIS, J.M. Memórias póstumas de Brás Cubas, 1957, p. 64-5, 67-8, 72-4. OC. ; SCHWARZ, R., 1990, p. 75. 330 MACHADO DE ASSIS, J. M., Histórias sem data, 1957, p. 219-20. OC.; CORBIN, A., 1991, p. 538-9. 203

Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

“recurso de ofício”. Agindo assim, podemos nos referir a Candinha, de Histórias românticas, vista a entrar num espetáculo “no meio do ato” ou a desfilar na rua do Ouvidor em uma “vitória puxada por um cavalo castanho e governada por cocheiro ainda rapaz, bianco vestito.” Dentro do carro, vinha “molemente recostada”, trazendo “as lágrimas dos pecadores [...] cristalizadas [...] nas orelhas, no colo e nos dedos” _ “umas fulgentíssimas pedras”. Assim, “mui galante e concertada”, olhava “preguiçosamente para as pessoas que passavam à esquerda do carro, mas sem mover a cabeça, e com um ar tão friamente aristocrático, que justificava bem a arrogância do cocheiro e a curiosidade dos passantes.” Quando via homens conhecidos, sorria, inclinava levemente a cabeça e com um gesto respondia “um sinal convencionado” vindo de algum deles, possivelmente, marcando um encontro. 331 Mas nem todas as mulheres públicas eram como tais “damas da moda”, possuindo carruagens, roupas caras e jóias sendo encontradas em casas luxuosas. Bento Santiago, já um verdadeiro Dom Casmurro, metido consigo e no seu canto, ao falar de suas “amigas”, que o consolavam na vida “solitária”, depois de separar-se de Capitu, conta que “uma só dessas visitas tinha carro à porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, calcante pede, e, se chovia”, era ele “que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro...”. 332 Representadas como viciosas e degeneradas ou como pedagógicas tais mulheres localizavam na beirada da ordem social, pois o centro estava reservado a outras personagens, com papéis e funções adequados ao universo da família nuclear e monogâmica. Personagens que seguiam de perto o script estabelecido, os protocolos sociais, adequando sua atuação às frágeis normas propostas. Personagens errantes cuja atuação era secundária, sendo seu papel uma “ponta”, embora, às vezes, mais emocionante que aquele de muitos atores de texto comum e monótono. Talvez, por isso mesmo, desqualificado por estes 331

MACHADO DE ASIS, J. M., Histórias românticas, 1955, p. 133-4, 151-3, 193. OC. 332 Idem, Dom Casmurro, 1957, p. 439. OC. 204

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últimos, considerados principais e que tinham a cena roubada pela figurante que rompia os tratados, improvisava e abandonava o texto de referência. De maneira geral, todos esses personagens, apresentados de forma negativa ou não, eram ao certo figuras que se apresentavam à margem do mundo oficial do casamento, principalmente se mulheres. Fossem elas solteironas, concubinas e mundanas, eram figuras que fugiram ao demarcado como ideal, não ingressando e usufruindo do mundo a elas reservado do matrimônio formal, aquele que lhes daria status, respeito e reconhecimento social. Mesmo alguns daqueles que se encontravam envolvidos de alguma forma nas teias do casamento, como certos libertinos, estavam localizados na periferia desse universo, pois dados às práticas dos prazeres venais, sendo vistos com muita ressalva por suas atitudes de ruptura por aqueles de conduta mais adequada às normas _ “normal”_ e aceitável. Foram eles excluídos do mundo estabelecido publicamente como ideal, o do casamento. Por afastarem-se das expectativas sócio-culturais neles depositadas, foram estigmatizados e marcados pelo peso e poder das palavras que ditas por todo canto criavam o “medo da opinião”. Opinião pública que punia o avesso do aceitável e que, como vimos, funcionou como um grande “tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e julga” e, por isso, por seu poder coercitivo, constituía-se numa “boa solda das instituições domésticas”. O normal, enaltecido, e o desviante, estigmatizado, advinha das perspectivas sociais existentes e das expectativas criadas para os indivíduos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra literária de Machado de Assis revelou-se uma fonte documental magnífica para o estudo da vida privada e da família carioca, com suas práticas cotidianas, na segunda metade do século XX, sobretudo daquelas da elite. Ela oferece imagens escritas, tecidas a bico de pena, das experiências de alguns grupos familiares, as quais constituem um imaginário dessa importante instituição social, naquele tempo, já conclamada e consagrada célula mater da sociedade. Imagens de modelos familiares diferenciados, diversos, que eram contrapostos e se inseriam numa luta por existir. Nesse campo, de lutas de representações, de um lado, em processo de configuração, erigia um tipo de família definida como nuclear, heterossexual e patriarcal, fruto do casamento monogâmico e indissolúvel, que era apresentada pelos simpatizantes e defensores da ordem social e moral como ideal, e, por isso, impunha-se e avançava; de outro, formas alternativas e residuais de agr upamentos familiares, com modos de conjugabilidade outros, em geral, temporários, ilícitos e praticados pelos segmentos sociais mais populares. Do texto machadiano emergem imagens de uma cidade em transformação em decorrência do avanço de um processo civilizador europeizante. Nesse movimento, não só o espaço físico passava por modificações, mas também a cultura urbana, tanto no refere à esfera pública quanto à vida privada. Machado trouxe, com maestria, para seus escritos, uma “multidão de coisas interessantes” sobre uma “história pública e íntima”, do cotidiano, marcada pela moralidade, que via sendo desenhada e redesenhada diante de seus olhos. Vislumbrava que sua obra, passado o tempo, poderia tornar-se “documento histórico, psicológico, anedótico” e ser lida, estudada, para entender aquela sociedade. Portanto, com seu olhar centrado nas questões miúdas, privilegiou, na sua escritura, o registro daquilo que observava ao seu redor, das coisas pequenas do dia-a-dia. Mas sua visão não era estreita, não lhe faltava perspicácia, ao contrário, era acurada, preocupada em desvelar aquilo que passava despercebido a olhos 206

Considerações Finais

interessados apenas nos grandes acontecimentos, nas grandes estruturas, nos grandes personagens e questões, naquilo que estava mais longe, distante das pessoas comuns e de suas experiências sociais. Desta forma, autodenominou-se como “historiador de cousas leves”. Sua pena produziu cenas que indicam a existência de um processo, em curso, de privatização da vida doméstica, de construção do lar como espaço de privacidade, de intimidade e de individualização das pessoas. Os traços da pintura desse quadro são indícios e vestígios de tal movimento e outros similares e até indissociáveis um do outro. Seus riscos e tintas desenharam uma casa aconchegante, que a família resguardava, de modo crescente, da indiscrição e da invasão pública, daquilo que vinha de fora. Nessa unidade doméstica, a presença de estranhos tornava-se indesejada e impedida, contra a qual se erigiam barreiras, como as cortinas e o afastamento da construção dos limites do lote e da rua, favorecendo o desenvolvimento de modernos sentimentos familiares, como a ênfase atribuída à emoção, ao afeto, à autonomia e aos direitos individuais. Na casa confortável, materialmente guarnecida e protegida, distante daquela característica do período colonial, avançavam as noções de intimidade, de individualidade e de aconchego. Nela, o modelo de família nuclear tornava-se hegemônico, com seu aparato moral, e referência totalitária para as experiências familiares modernas, nas quais tal molde permaneceu, de forma dominante e geral, ao longo do século XX, apenas se esfacelando, em ritmo crescente, na sua segunda metade, principalmente a partir dos anos de 1980. Como tal, seus traços e características fizeram parte da composição das imagens machadianas sobre a família abastada e mesmo daquelas de outros segmentos, ainda que em menor extensão e escala. Aspectos que foram por ele observados e tomados como matéria-prima de sua escritura, de suas narrativas, ficaram inscritos no centro das representações, como aqueles do filho ser a consagração do casamento, tornarse objeto de aumentado investimento afetivo, ser visto como 207

Imaginário Familiar: história da família, do cotidiano e da vida privada na obra de Machado de Assis

descendente e herdeiro dos bens materiais e simbólicos do grupo familiar. A família, célula reprodutora, que cercava a criança com atenções e ternuras, propiciava sua primeira socialização por meio das mães, espichava a infância ao tempo da escolarização e valorizava suas opiniões e sentimentos ou ressentia-se pela falta de um filho. Era patriarcal, dominada pela figura paterna, que devia garantir sua subsistência, material e subjetiva, preservar a moral, guardar sua honra e representar o reduzido grupo composto pela mulher e filhos. Subordinados eram os filhos e a esposa. Eles, submetendo suas escolhas à sua aprovação, mesmo ocorrendo alguma autonomia, e ela sendo fiel, dedicando-se a cuidar do lar, da casa, espaço das trocas afetivas, protegido da violação exterior, território da privacidade e da intimidade. Nessa família núcleo, centro, autoritária, normativa, permeada de tensões associadas às experiências de desenvolvimento da individualidade e às resistências ao poder paterno, a mulher passava a dividir com o marido o poder, desfrutando de maior independência e liberdade, educando os filhos e colaborando com as iniciativas e empreendimentos do esposo por meio dos momentos de sociabilidade. A mulher teve ainda seu comportamento demarcado pelas figuras extremas de Eva e de Santa; a primeira, quando adúltera ou possuidora de atitudes que colocassem em perigo o “sossego conjugal”, e a segunda, quando esposa e mãe dedicadas, conforme as matrizes. A família, como centro ao redor do qual gravitavam variados dependentes, com maior ou menor autonomia, irradiava sobre eles seus poderes, seus benefícios e seus favores, aprisionando-os e esperando pela indispensável paga. Essa família, autoritária e normativa, que afastava aqueles que fugiam de seus ditames e recusavam seus valores morais, que os vigiava, marginalizava e estigmatizava, tinha também no seu interior suas rasuras morais. Essas linhas gerais per meiam as representações machadianas sobre a estruturação da família fluminense, 208

Considerações Finais

contribuindo para a edificação das relações familiares modernas, e ao mesmo tempo, expondo as rachaduras do edifício ainda em construção. Com olhar atento e inquieto, Machado observou o que via no seu tempo; borboleteando, seus olhos flagraram os deslocamentos, as mudanças e as permanências, e retiveram as imagens desse movimento em sua escritura, com fina ironia e com ceticismo, pois, afinal, mesmo que reconhecido e instalado no seio dos altos segmentos sociais, era um mulato, epilético e gago a expor o escondido, o sabido, mas dissimulado, as rasuras do desenho, as inconsistências da ordem moral, para seus próprios defensores e representantes, dos quais dependia sua aceitação e seu reconhecimento . Isto requeria astúcia e perspicácia.

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Este livro foi composto em tipologia Garamond 12/11, Adobe PageMaker 6.5, com miolo em papel sulfite 75g, capa em papel reciclado 180g, na Gráfica São João, Catalão Goiás. 218

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