Implicações Normalmente Desprezadas do Período \"das Posses\" no Conteúdo da Legislação de Terras do Império e na Formação da Estrutura Fundiária no Estado de Goiás

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Implicações Normalmente Desprezadas do Período "das Posses" no Conteúdo da Legislação de Terras do Império e na Formação da Estrutura Fundiária no Estado de Goiás

Cláudio Grande Júnior

RESUMO: Trata-se de pesquisa que enfrenta a amplitude da repercussão, tanto no conteúdo da legislação de terras do Império, como nos seus efeitos na formação da estrutura fundiária brasileira, do rotineiro apossamento de terras do domínio do Estado perpetrado por particulares durante a colonização, mas, sobretudo, após a independência, quando do chamado período "extralegal" ou "das posses" (1822-1850). A primeira hipótese é a de que o Decreto n.º 1.318, de 1854 (Regulamento da Lei de Terras do Império) procurou resolver o problema das posses já existentes de forma muito mais direta e contundente do que normalmente a bibliografia, principalmente jurídica, relata. A confirmação dessa primeira hipótese conduz à segunda, de que o conteúdo de tal normatização teve um papel muito mais decisivo na formação da estrutura fundiária brasileira do que o usualmente considerado pela bibliografia, especialmente a jurídica. Assim, para uma melhor contextualização, o trabalho começa rememorando que a Coroa Portuguesa tentara, em consonância com seus interesses mercantilistas e preocupações militares, organizar o aproveitamento das terras conquistadas no Brasil, por meio do instituto jurídico das sesmarias. Todavia, posses não autorizadas sempre ocorreram e, a partir do declínio do ciclo aurífero, se alastraram definitivamente, sem que a Coroa conseguisse inibi-las, forçando o sistema jurídico a lhes reconhecer alguns efeitos jurídicos, até, por fim, ser suspensa a concessão de novas sesmarias em 1822. Sem a substitutiva normatização jurídica sobre o direito à propriedade imobiliária absoluta, as terras do Império ficaram abertas ao livre apossamento por particulares até a promulgação da Lei n.º 601, de 1850 (Lei de Terras do Império). A segunda parte do trabalho se inicia com a verificação de que muitos estudos sobre história agrária brasileira concluem que a grilagem foi o meio usual de constituição da propriedade privada imobiliária no Brasil, porque a legislação de terras do Império teria surtido poucos efeitos práticos quanto ao efetivo reconhecimento do domínio privado e ao regular destacamento do patrimônio público das terras então possuídas por particulares, uma vez que há poucos registros de posses legitimadas e menos ainda de sesmarias revalidadas. O trabalho passa, então, à constatação de que as análises feitas nesses estudos se calcam, muitas vezes, na interpretação literal e aparentemente mais óbvia dos arts. 3º a 5º da Lei de Terras do Império, desconsiderando a ingerência interpretativa a tais dispositivos, promovida pelos arts. 22 a 27 do seu Regulamento de 1854. Prossegue-se examinando que, na verdade, uma mais cuidadosa interpretação sistemática da Lei de Terras de 1850, em conjunto com seu Regulamento de 1854, permite inferir que foi reconhecido o domínio privado absoluto a todos os que possuíam terras naquele momento, desde que a aquisição dessas posses tivesse se dado por algum título que, pela legislação da época, também fosse hábil à aquisição do domínio, mesmo que essas terras tivessem sido originariamente adquiridas por meras posses de seus antecessores ou por concessões de sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem cultivadas. Somente quem não tivesse esse tipo de título considerado legítimo de aquisição é que deveria providenciar a revalidação da sesmaria ou a legitimação de sua posse. Por último, a pesquisa procura verificar os efeitos disso. Nos atuais limites territoriais do Estado de Goiás, os indicativos são de que a grande maioria das terras, nas quais há hodiernamente algum interesse mercantil, tiveram seus domínios privados plena e automaticamente reconhecidos por força do disposto nos mencionados arts. 22 a 27 do Regulamento de 1854. É a situação atestada pela maioria dos registros paroquiais. A partir de uma amostragem extraída das averiguações continuamente feitas pela Procuradoria-Geral do Estado de Goiás para manifestações em ações de usucapião de terras supostamente particulares, pôde-se afirmar que 2/3 dos casos se referem à situação de título legítimo de domínio reconhecido pelo art. 22 do Regulamento de 1854. Corroboram os números semelhantes do levantamento feito por Maria Amélia Garcia de Alencar, detalhando mais de 93% de ocorrência dessa situação em Morrinhos e, no mínimo, 83% em Rio Verde e 49% no Município de Goiás. Desse modo, conquanto reconhecidamente a legislação imperial tenha surtido poucos efeitos quanto à identificação de terras devolutas e à regularização de determinadas terras estatais possuídas por particulares, dando margem à grilagem, pelo menos em Goiás dita legislação surtiu grande efeito quanto ao reconhecimento da propriedade privada absoluta sobre a maior parte das terras de domínio estatal então possuídas por particulares. Isso demonstra os enormes reflexos do período "das posses" no conteúdo e nos efeitos concretos da legislação de terras do Império, contribuindo decisivamente para a formação da estrutura fundiária no território do atual Estado de Goiás.

EMENTA: História agrária brasileira. Direito agrário. História do direito. Questão Agrária. Determinadas implicações do período "extralegal" ou "das posses" na legislação de terras do Império. Os significados dados pelos arts. 22 a 27 do Regulamento de 1854 da Lei de Terras do Império aos arts. 3º a 5º da referida lei, determinativos da definição de terras devolutas e da noção de título legítimo de domínio privado sobre a terra. Efeitos do art. 22 do Regulamento da Lei de Terras do Império na formação da estrutura fundiária em Goiás: reconhecimento do domínio privado absoluto sobre a maioria das terras então apenas possuídas por particulares, no território correspondente ao atual Estado de Goiás.



Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Administrativo Contemporâneo pelo Instituto de Direito Administrativo de Goiás. Procurador do Estado de Goiás. E-mail: [email protected].


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