Implicações políticas da mercantilização da força de trabalho.

September 27, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Historia, Socialismo, Marxismo, História, TEORIA MARXISTA
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Implicações políticas da mercantilização da força de trabalho


Iraci del Nero da Costa
José Flávio Motta




No artigo intitulado A emergência da mercadoria força de trabalho:
algumas implicações detivemo-nos na análise do movimento de autonomização
do âmbito econômico com respeito a outras dimensões da vida em sociedade.
Tal descolamento da esfera econômica, aliada ao fenômeno de coisificação –
desumanização – do homem, teve por corolário, no plano das ideias, o
estabelecimento da economia como ciência autônoma, com objeto próprio e
claramente delimitado. No texto vertente preocupar-nos-emos com algumas
consequências de natureza política do surgimento da aludida mercadoria.
Mais especificamente, trataremos da universalização da propriedade privada,
da liberdade e da cidadania, universalização esta que se acha integrada ao
próprio funcionamento do Estado Moderno, instância garantidora da dominação
política da classe economicamente dominante; consideraremos, ademais, que a
superação de tais condições representará a emergência de uma nova forma de
sociabilidade humana a qual decorrerá, necessariamente, da ação política
consciente dos homens, não estando assentada, portanto, sobre elementos de
caráter econômico.


A transformação do trabalhador livre em assalariado, ao passo que
conforma a relação de produção definidora da sociedade capitalista, imprime
nos indivíduos que integram tal sociedade uma igualdade fundamental, dada
pela propriedade privada. Essa universalização da propriedade está, de
fato, na origem do atributo de grande plasticidade do capitalismo. Em
outras palavras, dita plasticidade decorre do fato de, na sociedade em
questão, a transferência de renda – exploração da mais-valia, para alguns,
obtenção de lucros, para outros – dar-se no âmbito dos mercados em virtude
de contratos estabelecidos entre iguais, vale dizer, entre proprietários de
mercadorias, ainda que muitos o sejam, apenas, de sua própria força de
trabalho.


Sobre essa igualdade – todos são proprietários – funda-se o Estado
Moderno, que deixa de ser um mero instrumento de dominação política a
expressar imediatamente os interesses da classe economicamente dominante.
Como afirma Poulantzas: "o Estado capitalista apresenta o fato particular
de que a dominação propriamente política de classe não está nunca presente,
sob a forma de uma relação política: classes dominantes-classes dominadas,
nas suas próprias instituições. Tudo se passa nas suas instituições, como
se a 'luta' de classe não existisse. Esse Estado apresenta-se organizado
como unidade política de uma sociedade com interesses econômicos
divergentes, não interesses de classes, mas interesses de 'indivíduos
privados', sujeitos econômicos". Tal peculiaridade do Estado capitalista
"(...) permite distinguir radicalmente esse Estado (...) dos Estados
escravagista ou feudal. Estes últimos limitavam a organização política das
classes dominadas, fixando institucionalmente as classes dos escravos ou
dos servos, nas suas próprias estruturas, através de estatutos públicos,
quer dizer, institucionalizando a subordinação política de classe
–'estados-castas'" (POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais.
São Paulo: Martins Fontes, 1977, p. 181).


Evidencia-se, pois, para o autor em foco, a contradição principal do
Estado capitalista, em cuja descrição se faz presente, uma vez mais, a
aludida igualdade entre todos os indivíduos: "o Estado capitalista tem por
função desorganizar politicamente as classes dominadas, enquanto organiza
politicamente as classes dominantes; de excluir do seu seio a presença,
enquanto classes, das classes dominadas, enquanto nele introduz enquanto
classes, as classes dominantes; de fixar a sua relação com as classes
dominadas como representação da unidade do povo-nação, enquanto fixa a sua
relação com as classes dominantes como relação com classes politicamente
organizadas; em suma, esse Estado existe como Estado das classes
dominantes, ao mesmo tempo que exclui do seu seio a 'luta' de classes. A
contradição principal desse Estado não consiste no fato de se 'dizer' um
Estado de todo o povo quando é um Estado de classe, mas, precisamente, no
fato de se apresentar, nas suas próprias instituições, como um Estado de
'classe' (das classes dominantes que contribui para organizar
politicamente) de uma sociedade institucionalmente fixada como não-dividida-
em-classes; no fato de se apresentar como um Estado da classe burguesa,
subentendendo que todo o 'povo' faz parte dessa classe" (POULANTZAS, 1977,
p. 182).


De outra parte, o Estado Moderno ganha relativa autonomia com respeito
à esfera econômica, podendo, portanto, assimilar, ainda que parcialmente,
interesses das classes subalternas. Torna-se, pois, o locus social no qual
as classes antagônicas lutarão pela hegemonia política e ideológica.
Sirvamo-nos, neste ponto, uma vez mais de Poulantzas: "O Estado
capitalista, com direção hegemônica de classe, representa, não diretamente
os interesses econômicos das classes dominantes, mas os seus interesses
políticos: ele é o centro do poder político das classes dominantes na
medida em que é o fator de organização da sua luta política. (...) o Estado
capitalista comporta, inscrito nas suas próprias estruturas, uma certa
garantia de interesses econômicos de certas classes dominadas. Isto faz
parte da sua própria função, na medida em que essa garantia é conforme à
dominação hegemônica das classes dominantes, na relação com esse Estado,
como representativas de um interesse geral do povo. (...) A noção de
interesse geral do 'povo', noção ideológica mas que recobre um jogo
institucional do Estado capitalista, denota um fato real: esse Estado
permite, pela sua própria estrutura, as garantias de interesses econômicos
de certas classes dominadas, eventualmente contrárias aos interesses
econômicos a curto prazo das classes dominantes, mas compatíveis com os
seus interesses políticos, com a sua dominação hegemônica" (POULANTZAS,
1977, p. 185).


A igualdade fundamental por nós salientada, assentada sobre a base
dada pela propriedade privada, manifesta-se, na sociedade capitalista, na
igualdade de todos em face da lei e no gozo dos direitos que são iguais
para todos e universais, dentre os quais se destacam a liberdade de
pensamento e de organização, a cidadania. Claro está que a universalização
de direitos e da cidadania não deve ser entendida como algo propiciado
imediata e automaticamente pelo capitalismo, pois, como sabemos, tal
universalização decorreu das lutas sociais desenvolvidas, sobretudo, por
classes e segmentos sociais subalternos. Afirmamos, sim, e isto é crucial
para o entendimento de nossas postulações, que a transformação da força de
trabalho em mercadoria e a ampla generalização desta forma – com a
correlata emergência do capitalismo – permitiram que a referida
universalização e as lutas das quais ela decorreu pudessem dar-se no âmbito
da sociedade capitalista nascente sem necessidade, portanto, de que tal
sociedade e sua base econômica fossem destruídas; pelo contrário, na medida
em que tais lutas e suas conquistas atuaram e continuam a atuar no sentido
de integrar econômica, política e ideologicamente as camadas subalternas ao
seio social, verifica-se a afirmação e consolidação do modo de produção
capitalista, o qual se vê legitimado aos olhos daquelas camadas; cabe
frisar, aqui, que a consideração de tais lutas sociais, as quais compõem
todo um capítulo da história da humanidade, foge ao escopo deste nosso
artigo.


Tenha-se presente, por outro lado, que "essa garantia de interesses
econômicos de certas classes dominadas, da parte do Estado capitalista [e
esse espaço de universalização de direitos e da cidadania, acrescentaríamos
nós – IDNC/JFM], não pode ser concebida, apressadamente, como limitação do
poder político das classes dominantes. É certo que ela é imposta ao Estado
pela luta, política e econômica das classes dominadas: isto apenas
significa, contudo, que o Estado não é um utensílio de classe, que ele é o
Estado de uma sociedade dividida em classes. A luta de classes nas
formações capitalistas implica que essa garantia, por parte do Estado, de
interesses econômicos de certas classes dominadas está inscrita, como
possibilidade, nos próprios limites que ele impõe à luta com direção
hegemônica de classe. Essa garantia visa precisamente à desorganização
política das classes dominadas, e é o meio por vezes indispensável para a
hegemonia das classes dominantes em uma formação em que a luta propriamente
política das classes dominadas é possível" (POULANTZAS, Nicos, 1977, p. 185-
186). Luta essa que, nos quadros da sociedade capitalista, tem como limite
último e pedra de toque inquestionável o respeito absoluto da propriedade
privada a qual, ademais, é confundida com a própria noção de liberdade.


Em suma, o Estado capitalista move-se no contexto da plasticidade
característica da sociedade à qual corresponde. Este atributo, de um lado,
surge como decorrência da emergência da mercadoria força de trabalho, na
medida em que se refere a um espaço criado em meio a relações que se
estabelecem entre iguais, igualdade dada pela propriedade de mercadorias: o
trabalhador é dono da mercadoria força de trabalho, os capitalistas detêm a
propriedade dos meios de produção. De outro lado, a aludida plasticidade
coloca-se como o campo no qual se exercita a possibilidade da
universalização da liberdade e da cidadania: todos são iguais perante a
lei. Uma última referência a Poulantzas é aqui oportuna: "por outras
palavras, é sempre possível traçar, de acordo com a conjuntura concreta,
uma linha de demarcação, abaixo da qual essa garantia de interesses
econômicos de classes dominadas por parte do Estado capitalista não só não
põe diretamente em questão a relação política de dominação de classe, mas
constitui mesmo um elemento dessa relação" (POULANTZAS, 1977, p. 186). A
supressão dessa linha, a nosso ver, significará o fim da história natural
da humanidade e o início da história posta conscientemente pelo homem,
passagem esta que exigirá a superação da luta econômica pela luta política
a qual dirigir-se-á à afirmação e consolidação de uma nova forma de
sociabilidade, forma essa não mais assentada na propriedade de mercadorias,
mas, como avançado, imposta e suportada pela ação política consciente de
uma humanidade disposta a suplantar a coisificação das relações existentes
entre seus integrantes.
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