Impotências de uma Arte Queer

June 1, 2017 | Autor: M. Araujo dos Santos | Categoria: Latin American Studies, Queer Studies, Contemporary Art, Queer Theory, Brazilian Studies, Latin American Art
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IMPOTÊNCIAS DE UMA ARTE QUEER Matheus Araujo dos Santos

A palavra queer, de origem inglesa, designa o que é estranho, exótico, raro. Desde o século XX ela passa a ser usada como ofensa contra dissidentes sexuais; sapatonas, travestis, viados e outros sujeitos que apresentem alguma ameaça ao regime sexopolítico vigente. A partir do final dos anos 80 e início dos 90, nos Estados Unidos, o termo aglutina uma série de práticas estéticas, políticas e teóricas que apostam na positivação da injúria. O monstruoso e o abjeto passam a ser local de afirmação e de produção de novas estratégias de luta. O corpo é, então, entendido como arma contra os modelos heteronormativos que esmagam as existências anormais. A crítica queer incide sobre as construções binárias de gênero e as formações identitárias monolíticas. Pensar em uma Arte Queer no contexto brasileiro exige um esforço de deslocamento do termo e o questionamento das reais potências de tal categorização. Neste texto, proponho três sugestões para uma aproximação queer das artes por aqui produzidas e descrevo alguns trabalhos artísticos que acredito levantarem a questão de forma potente.

I - Se quisermos nos aproximar das artes através de uma perspectiva queer não devemos seguir nenhuma espécie de cânone. Não há possibilidade de uma História Oficial. O queer surge nas fraturas nos sistemas e nos gestos que atentam contra o normal. A adesão a linhagens canônicas seria um erro na medida em que produziríamos outra vez hierarquias e graus de importância, criando novamente um centro legítimo e suas margens não-autorizadas. Pensar as artes brasileiras através de uma perspectiva queer não significa, portanto, o mesmo que pensar em uma Arte Queer Nacional, pois isso conduziria à produção de nichos que serviriam apenas ao mercado e às transações financeiras no campo das artes.

Estaríamos produzindo outra normalidade, como afirma Helder Thiago Maia ao discutir as possibilidades de uma literatura queer em seu livro Devir Darkroom (2014). Não existe arte queer em si; queer é sempre uma relação que não pode ser reduzida a um conjunto de obras ou de artistas, mas depende diretamente das possíveis fissuras causadas por gestos artísticos em determinado contexto econômico, político, sexual etc. Partir de uma perspectiva queer significa dar atenção aos momentos nos quais essas práticas perturbam os discursos hegemônicos sobre gênero e sexualidade. Mas não só. Os gestos queer tendem também a uma quebra na estabilidade da própria forma, dirigindo-se não apenas a questionamentos temáticos, mas problematizando o próprio fazer artístico. Na década de 70, sob o regime da ditadura militar no país, os Dzi Croquettes confundiam espectadores e agentes da repressão com seus corpos híbridos e discursos afiados. “Não somos homens. Não somos mulheres. Somos gente como vocês”, diziam com um sarcasmo provocador de um riso muitas vezes confuso. As rigorosas técnicas de dança e encenação da Broadway serviam a mais profana celebração dionisíaca. As suas existências ameaçavam o sistema político e a ordem sexual, visto que o modo de vida Dzi ultrapassava as apresentações no palco e formava redes políticas e afetivas reais em um cenário de tomada militar. O mesmo pode ser dito do Vivencial, grupo de teatro Olindense que no mesmo período investia na criação coletiva e na irreverência como estratégia de transgressão. Ainda que uma perspectiva queer (hoje profusa em aparatos teóricos) nos evidencie as rupturas na ordem sexopolítica causada pelos grupos, categorizá-los como Arte Queer seria abrir mão do que neles há de mais potente; o questionamento de identidades fixas que limitam as possibilidades de experienciação e intervenção no mundo. O queer -como se dá a conhecer enquanto paradigma estético, teórico e político- emerge cerca de duas décadas após as ações do Dzi e do Vivencial. Aceitá-lo como molde interpretativo estanque das poéticas desenvolvidas no Brasil e na América Latina, seja no passado ou no presente, parece pouco potente tendo em vista o nosso contexto marcado pela colonização, exploração escravagista e processos de miscigenação amparados por projetos estatais de embraquecimento. O quadro geopolítico brasileiro é formado por uma série de questões às quais o queer não pode passar imune.

II - O queer deve ser deformado pelo contexto geopolítico do Brasil A difícil tradução da palavra para línguas latinas denota o problema do seu uso na conjuntura sul-americana. Parte dxs ativistas, teóricxs e artistas já se deram conta disso. Outra parte parece reproduzir a tentativa de transformar o queer em uma identidade entre tantas outras, prontas para a venda e o consumo. Processo que pode lhes garantir um espaço reservado em instâncias como a Academia e o Museu; Teoria Queer, Arte Queer, Shopping Queer... Assumir a existência de uma Arte Queer Brasileira sem nenhuma reflexão sobre como determinados saberes e práticas nos são impostos é, para além de estar a serviço das forças capitalistas, continuar a reproduzir o processo de genocídio epistemológico ao qual fomos submetidos desde as invasões européias. Em um show em Salvador, em 2008, Pêdra Costa, a frente da banda Solange Tô Aberta!, tira um terço do cu enquanto canta ao som do batidão do funk. Com tanga, cocar, cílios postiços e o corpo raspado pela metade, Pêdra, ao lado de Paulo Belzebitchy, que fazia parte do projeto na época, canta letras com conteúdo político explícito: “Homossexual é uma categoria/ inventada no século 19/ Antes era putaria, sacanagem e vê se fode!/ Sodomia era o nome/ Da bendita doação/ Era, era tão sagrado/ Dar o cu por diversão!”. Hija de Perra, artista e ativista chilena, deixa como seu principal legado a crítica incisiva à dominação dos nossos desejos pelos processos de colonização dos quais somos resultado. Não haveria, por aqui, outras configurações corporais, desejantes e sexuais antes que os povos originários fossem submetidos aos valores culturais europeus? Ao tirar o terço do cu, Pêdra parece reivindicar estas questões. O terço cagado é consequência de um processo antropofágico atento aos excrementos que produz. É preciso deformar o queer. “Diga ‘queer’ com a língua para fora”, sugere o ativista Felipe Rivas: Cuír... Quier... Kuir...

III - Práticas kuir são práticas marginais.

Em 2014 na cidade de Rio das Ostras/RJ, a artista Raíssa Vitral enfia uma bandeira do Brasil na buceta, que depois é costurada pelos lábios, aprisionando em um gesto violento o símbolo da pátria. A ação do Coletivo Coiote provoca horror em muitos que a assistem. No dia seguinte o jornal O Globo publica uma matéria cujo título inquire: “Performance ou Crime?”. Em seguida o aparelho judicial é acionado na tentativa de condenação do que por muitos foi entendido como um ritual satânico. Na internet chovem bravatas. A artista tem sua imagem e endereço divulgados e é ameaçada de morte. O kuir é o crime. É o atentado violento que revela as estruturas de opressão, explicitando quais corpos são perseguidos, violados e exterminados em uma sociedade guiada pelo machismo, a heteronormatividade e o racismo. O kuir é o marginal; mendigx, puta, drogadx, menor, assaltante, assassinx, índix, travesti, pretx, punk, imigrante ilegal. As práticas artísticas guiadas por uma perspectiva kuir devem estar conectadas a toda essa rede non grata. Em 2015, em Veneza, x artista Jota Mombaça demarca em um mapa mundi as fronteiras do Brasil, Estados Unidos e Europa. Com o próprio sangue estabelece os limites territoriais e escreve em letras garrafais THE COLONIAL WOUND STILL HURTS (A FERIDA COLONIAL AINDA DÓI). Não há possibilidade de paz.

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