«In Vitro. Resenha a ‘O Vidro’, de Luís Quintais. Lisboa: Assírio & Alvim, 2014», Pequena Morte, 06.06.2015. URL: http://www.pequenamorte.net/

July 15, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Literatura Comparada, Literatura Portuguesa, Poesia
Share Embed


Descrição do Produto

IN VITRO [Resenha a O Vidro, de Luís Quintais. Lisboa: Assírio & Alvim, 2014] PEDRO SERRA

Talvez possamos começar por dizer que um ricochete d’O Vidro1 põe a vibrar a demanda de um nome: por exemplo, o nome ‘Ovídio’, o das modulações tristíssimas. 2 Um potencial sónico, uma sonoridade, digamos, virtual: que se actualize e sublime como ‘presença espectral’ – Ovídio, ‘o vidro’. Diante disto – e não é pouco – nos colocam os versos que encetam o livro de Luís Quintais. Neles, temos toda a perícia da arte poética que põe em marcha. Veja-se, sobretudo, a pregnância – isto é, a ‘impressão forte’ – do verbo ‘precipitar’. Com a vénia do poeta, cito integralmente este primeiro ‘talho’ de um longo poema de trezentos versos: “Indomáveis padrões fazem precipitar | espectros do que és, || presenças sem significação que tu irás | afastar com gesto hábil. || Mas hoje consentes substância, | movimento e palavra às iradas margens” (11). ‘Precipitar’ como ‘lançar em precipício’ ou queda; mas também como ‘caminhar acelerado’, veloz passagem; e, enfim, naquela que me parece ser a ressonância que concede mais densidade – e leveza! – ao uso expressivo deste verbo, ‘precipitar’ na acepção química de ‘substância sólida’ que se separa e deposita. A poesia – e é esta a lição de há muitos anos de Luís Quintais – é, digamos, ‘substância consentida’ (é acolhimento do fantasma, da literatura como fantasma como propôs Fernando Guerreiro3; é, ainda, materialização da possibilidade de ‘sentir com’). Vinda ‘do’ e ‘pelo’ Outro – aqueles geniais “indomáveis padrões” –, é também enviada ‘para’ e ‘ao’ Outro – o equívoco “tu” do poema, que tanto pode ser ocupado pela tópica do “Eu é um outro” ou pela tópica de um “leitor hipócrita” – a poesia no poema é uma forma de 1

Lisboa: Assírio & Alvim, 2014. Cf. Ovídio, Tristes y Pónticas. Madrid: Gredos, 1992. 3 Cf. Fernando Guerreiro, Teoria do Fantasma. Lisboa: 2011. 2

substância que tem num ‘sedimento em suspensão’ – num precipitado químico, precisamente – um dos seus poderosos análogos. E a química não deixou de ser, recordemos, uma analogia a que recorreu T. S. Eliot, uma intuição que decerto ainda vale a pena perseguir nas suas potencialidades plásticas: “When the two gases previously mentioned are mixed in the presence of a filament of platinum, they form sulphurous acid. This combination takes place only if the platinum is present; nevertheless the newly formed acid contains no trace of platinum, and the platinum itself is apparently unaffected; has remained inert, neutral, and unchanged. The mind of the poet is the shred of platinum”4. O platino eliotiano, neste sentido, pode fazer arquivo com o ‘vidro’, cuja inorganicidade e amorfia serão, digamos, atributos desse necessário catalizador da alquimia poética: no fundo, a presença da matéria que a poesia passa a limpo. Cada um dos cinquenta talhos do longo poema “O Vidro” – esta primeira parte do livro é seguida por uma outra metade, “Ecolália”, conformando ambas um duo que concede ao conjunto a figura de uma dobradiça móvel, de uma concha bivalvular – vai sendo “espectro”, “presença sem significação”, habilmente afastada numa gestualidade que, no fundo, é a de um leitor passando as páginas de um livro. De um leitor, de nós leitores, que vamos passando as páginas d’ O Vidro, postos em marcha por cada um dos ‘talhos’ depositados na página – três dísticos que graficamente sugerem calhas tubulares, válvulas –, separados ou truncados, e que funcionam como “padrões” indómitos – paradigmas, estampas, estalões – da comoção generalizada desta poesia. Estes “padrões”, no fundo, são “textos”, aquela textualidade antecessora de toda a escrita poética. Em “Ecolália” lemos, precisamente: “como se um texto indomável me engolisse e me percutisse a carne” (64). Muito mais haveria a dizer sobre estes indómitos “texto” e “padrão”. Porque, desde logo, as ressonâncias literárias desta imagem do ‘padrão’ nos conduzem, por exemplo, a Virginia Woolf, que em Moments of Being 4

T. S. Eliot, “Tradition and the Individual Talent”, in Hazard Adams, ed., Critical Theory Since Plato. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971, p. 763.

lhe concedeu uma poderosa caução: “Behind the cotton wool is hidden a pattern; that we — I mean all human beings — are connected with this; that the whole world is a work of art; that we are parts of the work of art. Hamlet or a Beethoven quartet is the truth about this vast mass that we call the world. But there is no Shakespeare, there is no Beethoven; certainly and emphatically there is no God; we are the words; we are the music; we are the thing itself”.5 A palavra, a música – a coisa da poesia, desde logo da poesia de Luís Quintais – refractam esse ‘padrão’, o sublime de uma unidade incógnita, não conhecida mas intuída: a poesia como irredutível intuição, precisamente. Ainda, e por outro lado, o vocábulo ‘padrão’ não deixará, n’ O Vidro, de trazer à retentiva todo um cemitério de imagens que se reportam ao passado individual e colectivo do Império, e que a ‘ecolália’ infantil da segunda metade do livro dispõe num vaivém impressionante. Seja como for, cada talho de “O Vidro” comove o seguinte, enlaçados por encavalgamentos de violência diversamente graduada. É entre talhos que replica, também, a figura do ‘sedimento em suspensão’. Assim, e para me ater ao arranque do livro, aquele terceiro dístico “Mas hoje consentes substância, | movimento e palavra às iradas margens” atrai uma nova linha; atrai realmente, num sentido muito físico, o verso no verso da página em que se inscreve, e onde lemos “que assinalam a tua passagem, monólitos e sombras onde não haverá || certamente abrigo” (12). Passar a página, ir irreversivelmente de um ponto a outro mas, também, detonar o gesto reverso – voltar ao ponto inicial: eis uma fenomenologia da leitura, talvez ‘a’ fenomenologia de toda a leitura. Aquela que, ao voltar às “iradas margens” pode ler já – como no Ovídio lido em ‘o vidro’, ou ao invés – o espectro sónico da palavra ‘imagens’. Aliás, é ao nível da forma substancial destes versos que se deverá a queda num sentido sempre adiado: ‘imagens’ são “iradas margens” na condição de que o seu contrário também seja verdade. Novamente, um ‘sedimento em suspensão’ entre cujos possíveis podemos considerar a 5

San Diego, New York, London, Harvest Books, 21972, p. 72.

figuração de um poeta nos limites do Império, um Ovídio movido pela ira e que põe em marcha imagens iradas. Surpreende, neste livro de Luís Quintais, uma memória que, como se sabe, inextricavelmente ligada, à melancolia, é mobilizada por uma espécie de violência, uma ferocidade difícil: “Fero é o vento que se desprende da tua voz” (20). A dificuldade passa por objectos verbais como este ‘desprender’. Porque o que ‘desprende’ é também o que ‘prende’. Dei conta de vários casos. Por exemplo, temos um ‘demover’ (cf. 13) que também ‘move’. Mas talvez o mais importante seja o das virtudes – das virtualidades – de uma escrita, uma poesia como escrita, que é um ‘descrever’, uma ‘descrita’: isto é, um ‘des-escrever’, uma ‘des-escrita’, valendo-nos do valor negativo de um prefixo ‘des’ que ali se camuflasse. Leiam-se as seguintes imagens: “Tudo descreves sob céptica tinta, e o mundo” (19); “é precipitado no eco da descrita forma | com que o fazes” (20). A escrita poética é uma forma de descrita, um ‘descrever’ – uma perda de mundo, de experiência, de memória; enfim, é descrição desta queda. Eis aqui, então, uma das ferocidades implicadas. Aquela que terá, neste livro, segundo creio, uma figuração maior no “grito”. Trata-se, em primeiro lugar, de uma figura polivalente. Deixo para outro momento a questão animal/humano que a figura do “grito” conjura, uma complexa matéria que atravessa este livro e que, como se sabe, vem de trás na poesia de Luís Quintais. O ‘grito’ devolve-nos o modo expressionista destes versos, que demandam, muito embora, uma dicção que se distingue perfeitamente de opções tonais – decerto disponíveis no campo poético – quer “bíblicas” quer “gravitacionais”, quando movidas pela autocomplacência: “aqui em cima | sobre o espelho da cidade sem bíblicos acentos || ou gravitações redentoras” (25). O ‘grito’ de Quintais não propõe liturgias da redenção. Tanto a solo como a nível coral, digamos. Começos e fins trazem no bojo a mola desse ‘grito’. Por um lado, “quando rompeste o saco, tudo era já tão mau, tão sujo, tudo trazia já a mácula do saco e do que escondia, pulsante, lá dentro” (65). Num outro envio teremos, ainda, “neurónios espelham || o rigoroso legado da tua morte futura” (47). Ou seja, a mortalidade, mácula do indivíduo e da

espécie: “gritam os nascituros” (15), lemos logo nos primeiros compassos do livro. Uma figura que reincidirá no paroxismo dos seguintes versos da segunda metade do volume: “Rompiam-se sacos placentários, criaturas atiradas para a rua do sem-regresso berravam” (63). Eis a violência no cerne que toda a memória do sujeito, no cerne de toda a memória do mundo, inviabilizando – mas também, em rigor, impelindo – a História – acumulação de “cinzas” e de “corpos [que] saem dos fornos” (22) – e a Biografia – acumulação de “estilhaços”, o fulgor “arbitrário” do passado (cf. 35-36 e 71). A mácula da mortalidade determina que nesta poesia se disponha tanto a “biografia numa só frase que ainda persegues” (41) como também um “quebrar essa mão do lembrar” (79). Eis, enfim, no âmago do livro, aquele vaivém de bolas e de balas do poema em prosa que lemos na contracapa; vaivém de balas e bolas que é, no fundo, análogo da própria escrita, análogo do poema, análogo de qualquer dos ‘talhos’. Na impossível habitação, intelectual e sensível, de um presente que não seja desassossego, o poeta de Luís Quintais, replicando esse grito individual e colectivo, instala-se num “des-lugar” – no “húmus em que te instalas, páginas” (17) – acumulando restos daquela ‘descrita forma’. É assim quando se maneja uma arte que ‘desprende’ do ‘vivo’ e da ‘vida’. Com ressonância eliotiana conspícua: “Arde hoje, amanhã gritarás, | depois serás simplesmente oco, || o homem oco” (45). O presente é uma combustão em que tanto o passado como o futuro – aliás, comutáveis – são abrasados. Devir ‘oco’ do homem e do mundo, mas que é, também, devir ‘eco’. Agonismo que vai consumindo, pauta de uma ‘vida’ que se esvai mas que não rasura potencialidades. Assim, o cepticismo do sujeito do poema tanto assentará que “Eu gritarei sem que nada se escute”, como inscreverá a seguinte cláusula: “Um eco será a única hipótese de entendimento” (65). O “des-lugar” deste sujeito poético – sempre desperto por uma música que não há (cf. 67 e 69), comovido pelo “pretérito [que o] desloca” (69) – tem uma figuração impressionante no ‘tubo’. Uma tubagem que circula, e por onde circula, o sujeito e o mundo, indistintos. Tatuagem dos cenários desta poesia:

“No tecto do hotel, sob os tubos | de ar condicionado” (15) e os “tubos catódicos” (18). Sobretudo, como já insinuei no início do meu comentário, o próprio poema “O Vidro” inscrito nas páginas como sugestão de calhas tubulares, assimilando a si tanto a vida psíquica como a vida social – a “cidade” que percorre o livro. Assim, “Escuta-me, sou a tua cidade, vem até mim, | reclama uma parte e dessa parte a tua parte ainda || e volta a entrecruzar os dedos sobre | o frio destino destes tubos, destas estradas” (58). Por palavras com que ensaio uma síntese: a poesia d’“O Vidro” é uma poesia in vitro. In vitro: locução latina, cujo sentido literal é, como se sabe, ‘em vidro’; nome da produção em laboratório – da elaboração –, num tubo de ensaio; nome da experimentação que engendra, fecundação; nome, ainda, de um lugar de treino, de treinamento em formas artificiais de criação. Creio, neste sentido, que O Vidro é este laboratório. Ei-lo, em palavras do poeta: “aqui, no observatório || da noite e do magna” (24). Seja como for, o poeta, propõe O Vidro, vai a caminho do passado: “Abrem-se portadas e és ofuscado pelo || brilho do passado, e caminhas | para ele sem acreditar em nada que não seja ||| já estilhaço” (35-36). Noutro dos achados linguísticos de Luís Quintais, rimando com estas ‘portadas abertas’, o passado será ‘entrevistado’: “Amanhã entrevistarei o passado” (51). Quem diz passado, diz infância. Como aquele “homem a caminho da infância” que nos deixou Carlos de Oliveira,6 talvez uma das mais poderosas imagens para dar uma forma à modernidade poética. Quem diz infância, diz igualmente ‘experiência’, como Walter Benjamin et alii nos convidaram a pensar.7 No livro de Luís Quintais lemos, também, do transporte ou transferência dessa impossível ‘língua da inocência’, o seu fantasma ou ‘indomável padrão’: “uma inocência viaja | até à luz mais negra cobrindo a tua face” (41). Uma ‘língua da inocência’ cuja perda move o poema, “a perdida voz || da inocente vontade de poesia” (48). Como ‘indomável padrão’ – que é também, no fundo, alguma poesia, alguma literatura que possa 6 7

Cf. Carlos de Oliveira, Obras. Lisboa, Caminho, 1992, p. 1091. Cf. Giorgio Agamben, Enfance et histoire. Paris: Payot, 1989.

funcionar como infância do mundo –, move a solidão de uma expressão silente: “Só em silêncio se pode aceitar a destruição mais irreversível. Não se pode regressar aí, a essa graça em forma de país, onde se foi jovem e mortal” (77). Eis o desafio de Luís Quintais: pensar a infância como graça, pensar um país como graça. Em “jovem e mortal” leremos tanto – como nos casos de ‘Ovídio/o vidro’ e ‘imagens/iradas margens’ – “jovem e mortal” como “jovem imortal”. Em O Vidro, a grandeza do cepticismo que nele pulsa – “tudo descreves sob céptica tinta” (19), como destaquei acima –, é a grandeza deste substancial consentimento do impossível. Enfim, concluo provisoriamente dizendo que se, como propus, n’O Vidro um verso na página impele o verso da página seguinte – o contrário também é verdade: recto e verso acabarão por ser, em rigor, comutáveis –, igualmente se nos instiga a pensar uma outra complexa figuração da fenomenologia da leitura do poema “O Vidro”: experimente-se, neste sentido, a iluminar a página e a tornar sensível, na folha interposta entre o olhar e a lâmpada, à contraluz e in vitro, “a morte em ideia dentro do encéfalo-cartógrafo” (47).

“In Vitro”, Pequena Morte, 06.06.2015. URL: http://www.pequenamorte.net/in-vitropor-pedro-serra/#.VXMRYSgox-x. Inicialmente publicado no facebook a 11 de Maio de 2014. A menção ao platino de Eliot foi incorporada a 30 de Setembro de 2015.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.