Inclinado sobre os Verdes

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Ela está reclinada e me conta como sua avó teria aprendido o francês, tardiamente. E, de analfabeta, teria se alfabetizado pelo francês. Ela, no entanto, é uma personagem num sonho e é de se supor que também o seja sua avó. Mas há algo de extremamente verdadeiro nisso, e esta verdade se aproxima da cor.

Pais se felicitam quando uma criança muito pequena repete a frase de um outdoor, sentada no banco de trás do carro. Ou de mãos dadas a um dos adultos. Sim: a frase está correta, a criança memorizou o que já ouvira. O dito pode figurar também numa placa de trânsito, num aviso, seja de "curva adiante" ou "pare". Estará a criança lendo, perguntam-se os pais. Provavelmente não, eventualmente sim, como no passo dado pela avó onírica, analfabeta até então. Algumas crianças se alfabetizam em casa, a partir de ditos/frases simples que identificam e ampliam essa pesquisa-por-significado-sígnico por si mesmas, num desdobramento que lhes soa natural e empírico, até alcançarem certo domínio do alfabeto escrito. Antes de ser um trabalho de prodígio, é um trabalho de minúcia.

Debruçado na janela da sala, com olhos abertos [não, meu objetivo precípuo não é curtir o sol], eu me deparo com subtonalidades de verde nas muitas árvores e arbustos dispostos ao alcance dos olhos. Nas clássicas teorias da cor, de Goethe a Kandinsky, eu poderia transitar do repouso ao tédio. Mas eu me simplesmente me debruço e olho. Meço os timbres em cada ressonância íntima em mim.

Se luzes se dispõem sobre um show ou ringue, cores variadas, é também no verde [ou nos verdes] que meu olhar descansa. Se eu sonho que estou numa biblioteca em longas fileiras paralelas, reencontro ali livros que já lidos alhures, aquém-além dos livros de que disponho. Ocorre-me, no sonho, que já dispus deles algum dia, alguma vez, em alguma instância de mim. E eles me mostram como um ser-em-curso, repercebendo-me, como a fala da criança diante do outdoor, como o outro aprendizado em sonho da velha avó. Não poderia saber-lhe o montante dos anos. Nem identificar exatamente os livros, seu "onde e quando". Alguns deles feitos de vidro e areia; espécimes aparentados às "horas de vidro" [hourglass], à marcação da ampulheta ou dos dedos de Keith Jarrett sobre o piano, na música fluida e não interrompida que, no entanto, ocorrerá só uma vez.

Joachim Jeremias estudou os costumes na Judeia dos tempos de Jesus, as profissões, comércios locais, vocabulários atinentes a essas profissões e classes sociais, além dos timbres de judeus e galileus naquele contexto, e no aramaico de então. Alguns diriam que ele foi fechando o círculo para encontrar "a página vazia". Seu propósito era achar a "Ipssima Vox" [a exata voz] de Jesus, a partir da recuperação do circuito idiomático-semântico do aramaico e hebraico de então, revertendo os textos disponíveis em hebraico, grego e latim àqueles idiomas, até achar o "timbre" e "idioma pessoal" de Jesus: sua voz distinguível e única. Com isso, muitos dos dizeres em grego, latim ou hebraico mais próximos dos que agora se usam, alcançam nova luz; muitos dos ditos só sendo alcançados em seu jogo de palavras no aramaico de origem: polissemia e métrica.

Os procedimentos verdes são cuidadosos e meticulosos, como os dos botânicos. Ou os das crianças e velhos em seus albores.








Marcelo Novaes




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