Indagações sobre economia e política a partir de um ponto de vista metapsicológico: o enigma da pulsão (dezembro/2014)

May 27, 2017 | Autor: W. Marquezan Augusto | Categoria: Sigmund Freud, Giorgio Agamben, Biopolitics, Psicanálise, Biopolítica
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Indagações sobre economia e política a partir de um ponto de vista
metapsicológico: o enigma da pulsão.
Walter Marquezan Augusto


Uma das possíveis interpretações das teses biopolíticas, de Foucault
a Agamben, pode ser expressa da seguinte forma: a partir do momento que a
civilização moveu a linha do que é vida e o que é morte corpórea, criando
polos de orientação para a saúde, o que foi posto em jogo é a condição
extracorpórea. Tornou-se, então, possível e relevante perguntar: o que é o
humano? Qual vida é vivível? E, por consequência, matável. Vida e morte
são, neste sentido, conceitos políticos;[1] e, qualquer resposta que a
ciência possa dar, só acentuará este caráter.
Sendo assim, podemos perguntar: se vida e morte são conceitos
políticos, como é possível um conceito como "pulsão de morte"? Esta, sem
dúvida, é interrogação que parte de uma perspectiva externa à psicanálise,
mas que com ela se relaciona na medida das suas descrições
metapsicológicas, e que certamente orientam a clínica analítica.[2]
Não podemos esquecer que o conceito de pulsão, desde a sua introdução
nos Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), não é um dado
inicial da experiência analítica; não serviu "como ponto de partida
empírico para a construção teórica da psicanálise". Foi justamente o
contrário. E não por outro motivo Lacan pôde afirmar que a "pulsão não está
na base da teoria psicanalítica, mas no topo".[3]
Freud inaugura a temática da pulsão de morte em 1920, no texto "Além
do princípio do prazer". A questão central que o provoca às suas
especulações é: que relação possui a compulsão à repetição com o princípio
do prazer?[4] Esta interrogação, que permaneceu sem resposta até o final do
ensaio, justificava-se pela estranheza que causava a repetição de vivências
que foram reprimidas, mas que eram em si desprazerosas. Quer dizer, Freud
situa o problema como se o princípio do prazer, especialmente na sua versão
"punitiva", o desprazer, fosse pedagógico ao aparelho psíquico; como se uma
vez vivenciado o desprazer, o código seria alterado para não vivenciá-lo
novamente. A compulsão à repetição faz este esquema falhar, sobrepujando o
domínio do princípio do prazer sobre o curso dos processos de excitação da
vida mental;[5] há algo para além disso.
A argumentação se desenvolve em torno da premissa de que a pulsão,
que é fonte do impulso, aparece como algo que não está ligado a um processo
nervoso, e que, portanto, é seu próprio caráter que é determinante para a
relação com a compulsão à repetição. Mas nessa trama, Freud adentra ao
labirinto da busca das origens da vida, e, por consequência, do significado
da morte.
"Em algum momento", diz Freud, "por uma ação de forças ainda
inteiramente inimaginável, os atributos do vivente foram suscitados na
matéria inanimada".[6] Diante deste mito da criação, a pulsão seria um
"impulso, presente em todo organismo vivo, tendente à restauração de um
estado anterior", e, assim, "o objetivo de toda vida [seria] a morte".[7]
Na história da biopolítica, portanto, Freud certamente escreve uma
nova página, mas que não pode ser reduzível a um mero discurso de governo.
Nas suas especulações, para além da pretensão científica, há a constituição
de um legado político que, segundo Jorge Alemán, foi captado por Lacan e
pode ser expresso da seguinte forma: "a Lei não é aquilo que pretende ser,
a instância do super-Eu, o imperativo categórico, o herdeiro do complexo de
Édipo, seja qual for a nobreza simbólica com a qual se apresente, mantém
uma relação estrutural com a pulsão de morte".[8]
Mas, e o caráter econômico? Conforme fora introduzido no texto de
1915, a polaridade econômica sustentava-se no índice prazer-desprazer para
alterar os impulsos da pulsão;[9] ou seja, a metáfora econômica permitia a
Freud pensar "a plasticidade própria a uma energia psíquica".[10] Se por um
lado a pulsão é pensada não mais somente nos termos do princípio do prazer,
por outro, a sua polaridade econômica ainda pode ser amparada pelo seu
caráter anárquico.[11]
Quando Lacan propõe a "desmontagem" da pulsão, afirma que a
sexualidade domina a economia do intervalo entre o significante do recalque
primordial e a interpretação do desejo.[12] Mas, este intervalo também é um
intervalo entre duas extremidades que comportam o impossível: de um lado, o
"real", dessexualizado, e, de outro, a demanda investida no princípio do
prazer que, sem se dizer enquanto tal, também é impossível.[13] É, deste
modo, que o fundamental nessa montagem é o "vaivém em que ela se
estrutura".[14]
É, no mínimo, interessante que uma das mais recentes contribuições de
Giorgio Agamben tenha sido a sua tese de que a condição mais própria ao
homem é a da sua inoperosidade, e que esta é capturada no centro de uma
oikonomia do poder.[15] E se prosseguirmos nesta aproximação, salta-nos aos
olhos a possibilidade de que o espetáculo que o filósofo italiano evoca sob
o paradigma da glória talvez guarde identidade com aquela estética que
podia lidar com a economia pulsional dos casos que causavam estranheza a
Freud, e que para os seus esforços analíticos/terapêuticos nada podiam
ajudar. Talvez tenha sido um sobrinho de Freud, Edward Bernays, um dos
pioneiros a perceber tal conexão.[16]
Aqui, no entanto, chegamos a uma encruzilhada aporética: não é
possível saber se é através de uma economia que a pulsão, e por que não, o
humano, se revela; ou se, somente pelo pulsional, e anárquico, que o
econômico é possível. Esta infame especulação não me parece ser de toda
desprezível. Parece-me que entrevemos a opacidade que nos é tão íntima e
que, ao mesmo tempo, parece nos constituir do exterior, como aquilo no qual
a palavra não penetra, mas que nos move. Um campo para o qual todo saber
parece ser dicência, do qual só possível atravessar, "fugindo do perigo",
como reivindicação de uma experiência.[17]
"O indivíduo pode visar numerosos
objetivos pessoais, finalidades, esperanças,
perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes
esforços e elevadas atividades; mas, quando o
elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio
tempo, não obstante toda agitação exterior,
carece no fundo de esperanças e perspectivas,
quando se lhe revela como desesperador,
desorientado e falto de saída, e responde com um
silêncio vazio à pergunta que se faz consciente
ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a
pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e
absoluto, de toda atividade e de todo esforço -
então se tornará inevitável, justamente entre as
naturezas mais retas, o efeito paralisador desse
estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir
além do domínio da alma e da moral, e de afetar a
própria parte física e orgânica do indivíduo."
Thomas Mann – A Montanha Mágica

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de
Henrique Burigo. 2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer, II, 2. O reino e a glória: uma genealogia da
economia e do governo. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo,
2011.

ALEMÁN, Jorge. Para una izquierda lacaniana.... Buenos Aires: Grama
Ediciones, 2010.

FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. In: Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. V. XIV (1914-1916).
Rio de Janeiro: Imago, 2006.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: História de uma neurose
infantil: ("O homem dos lobos"): além do princípio do prazer e outros
textos (1917-1920). Traduzido por Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2010.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução
à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O mal radical em Freud. 5.ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2004.

RODRIGUES, Amália Cardoso. No abismo da separação: a gênese da obra de
arte. Dissertação de mestrado apresentada a Faculdade de Belas Artes da
Universidade de Lisboa. Lisboa, 2011. Disponível em:
http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/6145/2/ULFBA_TES487.pdf Acesso em:
novembro/2014.

SAFATLE, Vladmir. A teoria lacaniana da pulsão como ontologia negativa. Sem
data. Disponível em: http://www.oocities.org/vladimirsafatle/vladi091.htm
Acesso em: novembro/2014.

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[1] AGAMBEN, 2010, p. 160.
[2] Especialmente no que diz respeito à teoria da pulsão (cf. SAFATLE, s.
data, s. página: "Podemos dizer que sua [de LACAN] peculiaridade vem da
insistência da relação entre direção do tratamento e reconhecimento da
dignidade ontológica de certos conceitos metapsicológicos, especialmente o
conceito de pulsão (Trieb).").
[3] LACAN apud GARCIA-ROZA, 1986, p. 65.
[4] FREUD, 2010, p. 179.
[5] FREUD, 2010, p. 183-4.
[6] FREUD, 2010, p. 204.
[7] FREUD, 2010, p. 202;204; grifo do autor.
[8] ALEMÁN, 2010, In: El legado de Freud, p. 57, tradução livre.
[9] In: Os instintos e suas vicissitudes. FREUD, 2006, p. 144
[10] SAFATLE, s. data, s. página.
[11] GARCIA-ROZA, 2004, p. 19, cf trecho: "a verdadeira dualidade em
psicanálise não seria a dualidade corpo/linguagem, mas sim a dualidade
corpo-linguagem/pulsões anárquicas."
[12] LACAN, 2008, p. 172.
[13] LACAN, 2008, p. 165.
[14] LACAN, 2008, p. 175.
[15] AGAMBEN, 2011, p. 268. E que uma das condições para esta oikonomia
seja justamente seu caráter anárquico.
[16] Um dos responsáveis pela atualização da "propaganda", que inclusive
procurou Karl Abraham para lhe aconselhar. Cf.: "The Century of the Self",
documentário de Adam Curtis.
[17] Segundo LACOUE-LABARTHE apud RODRIGUES, 2011, p. 27-8.
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