Indícios de uma pedagogia de Momo: o papel pedagógico dos chargistas na modernização do Carnaval

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INDÍCIOS DE UMA PEDAGOGIA DE MOMO: O PAPEL PEDAGÓGICO DOS CHARGISTAS NA MODERNIZAÇÃO DO CARNAVAL1 Reinaldo Ramos Diniz Doutorando em Educação (UERJ) Professor e pesquisador do Grupo Linguagens Desenhadas e Educação (UERJ) [email protected] Thulio Pereira Dias Gomes Mestrando em Ciência da Informação (IBICT-UFRJ) Pesquisador do Grupo Linguagens Desenhadas e Educação (UERJ) [email protected]

RESUMO: Aborda o papel dos chargistas na modernização do carnaval carioca. Pressupõe que os chargistas tecem/falam sobre/no cotidiano e que as charges são ricas fontes históricas. Objetiva identificar indícios de uma função pedagógica dos chargistas na modernização do carnaval. Adota o paradigma indiciário de Ginzburg como modelo epistemológico. Analisa a implantação do modelo europeu de carnaval no contexto da modernização do país. Discute o papel da imprensa nesse processo como tecedores sobre/no cotidiano. Conclui que há indícios da participação de chargistas nesse processo. Defende a charge como documento na história social do conhecimento. Reafirma a adequação do paradigma indiciário como alternativa epistemológica para o conflito entre o racionalismo e o irracionalismo. PALAVRAS-CHAVE: Carnaval carioca. Charges. Identidade carioca. Paradigma indiciário. Rio de Janeiro. 1

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, discutimos o papel dos chargistas na modernização do carnaval carioca. Partimos de dois pressupostos. O primeiro é que os chargistas assim como os cronistas tecem/falam sobre/no cotidiano. O segundo é que as charges são ricas fontes de informação histórica. Dessa forma, assumimos como

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Este trabalho surge do diálogo entre as pesquisas desenvolvidas pelos autores no Grupo de Pesquisa Linguagens Desenhadas e Educação, afiliado ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248

objetivo identificar indícios de uma função pedagógica dos chargistas durante a modernização do carnaval, no contexto de implantação de um projeto de país. É possível dizer que as imagens funcionam como mediadoras de relações sociais e, progressivamente, se tornam a principal linguagem pela a qual o mundo se constrói e compreende a si mesmo. Este mundo cada vez mais é sensível à interpretação iconográfica da publicidade, do cinema, da televisão, da internet, dos quadrinhos, da caricatura e a de tantas outras formas de produção imagética. Dessa maneira, a apreensão de ideias representadas em imagens favorece a compreensão da sociedade, tanto a presente quanto a passada. Este estudo, de cunho teórico, adota o modelo epistemológico, ou paradigma, indiciário proposto por Ginzburg (1991, p. 169). Para o autor, “quando as causas não são reproduzíveis, só resta inferi-las a partir dos efeitos”. Com base neste paradigma, procuramos pistas de como as charges indicam as maneiras de expressar opiniões, ideologias, visões de mundo e conceitos de forma direta ou indireta. 2

HUMOR NO CARNAVAL CARIOCA

Diversas manifestações caricaturais compõem o atual carnaval carioca, marcadas por uma diversidade de apresentações, tanto nas escolas de samba quanto nos blocos de rua. Esta grande variedade movimenta o Rio de Janeiro não somente nos quatro dias de folia no verão. A grande festa inicia em meados de setembro, com as escolhas dos sambas enredos das escolas, até o domingo seguinte ao carnaval oficial com grandes desfiles processionais, como o caso do Monobloco, que, anualmente, arrasta cerca de 500 mil pessoas, na Avenida Rio Branco, no centro da capital fluminense. A impressionante audiência de foliões do carnaval carioca atraíram empresas que tornaram o carnaval carioca um grande negócio. (FERREIRA, 2012). Como exemplo desse negócio, é possível citar o esquema empresarial montado para o desfile das escolas de samba. Mais de meio milhão de pessoas, direta e indiretamente, são envolvidas, durante o ano todo, na tecedura desses desfiles. Empresas de diferentes setores trabalham e patrocinam, com interesses comerciais e ideológicos, para oferecer o que chamam de “Maior Show da Terra”, slogan da propaganda oficial. Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248

A multidão de pessoas envolvida com a feitura do carnaval carioca torna a festa constante, contribuindo para a consolidação de uma das mais representativas identidades do Rio de Janeiro. Muita gente se dedica e vive do/no/com o mundo do samba, atuando cotidianamente para a realização dessa festa. Desde seu princípio, uma das características marcantes do carnaval é o humor, encontrado em piadas, em marchas carnavalescas, em fantasias e em caricaturas. É possível observar na folia um tom de irreverência crítica aos costumes, aos políticos e a outras questões de ordem social. Os foliões usam o humor como se quisessem desmascarar o real, de “[...] captar o indizível, de surpreender o engano ilusório dos gestos estáveis e de recolher, enfim, as rebarbas das temporalidades que a história [...] foi deixando para trás.” (SALIBA, 2002, p. 29). A irreverência de outrora permanece no carnaval dos dias atuais, das fantasias às canções. Por exemplo, no que diz respeito, muitos nomes dos blocos não identificam uma ou outra forma de ritmo, mas se apresentam de uma forma jocosa e expressam irreverentemente outras realidades. “Largo do Machado, Mas Não Largo Do Copo”, “Vai tomar no Grajaú”, “Pereca sem dono”, “Meu Face No Teu Book” e “Mostra o fundo que eu libero o benefício” são exemplos de nomes humorísticos desses blocos irreverentes no carnaval carioca. Esta orgástica festa brasileira teve, em sua gênese, o entrudo. Esta manifestação muito peculiar chegou ao Brasil com os portugueses, durante o período colonial. Para Edmundo (1950), havia certo anarquismo no entrudo lisboeta dos séculos XVIII e XIX. De acordo com autor, o entrudo era visto como a forma mais rústica da folia carnavalesca com a qual o folguedo se expressava. O entrudo consistia em uma grande algazarra, nos dias da folia da carne, na qual os brincantes se divertiam jogando limões-de-cheiro, água suja, farinha, ovos, piche e tudo mais que pudesse sujar os passantes. O entrudo era compassado com muito batuque, comida, bebida e um gingado sensual. O jogo das molhadelas era, mesmo sendo reprimido desde o século XVII, praticado por todas as classes, inclusive pelo Imperador D. Pedro II. (EDMUNDO, 1950). Apesar da adesão popular, em meados do século XIX, há uma recusa, por parte da nova elite comercial e industrial, a essas formas “grosseiras e indecentes de folia”. A molhadeira e a sensualidade passaram a ser tachadas como brincadeiras de mau gosto. A figura 1 é um exemplo da crítica ao entrudo e à algazarra do carnaval carioca. Na figura, Angelo Agostini critica esse costume. É importante observar na Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248

charge que não apenas os populares, mas também a elite praticava essa diversão em seus casarios. FIGURA 1 – Entrudo na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, em 1884, retratado por Angelo Agostini (detalhe).

Fonte: CRULS, 1949.

Naquela época, estava em jogo a implantação de um projeto de nação, gestado no seio dessa nova elite. O modelo de modernização era europeu e tudo passou a ser importado, inclusive, o carnaval. Vista como barbárie, a folia do entrudo era furiosa e brutal em sua espontaneidade. Por isso, paulatinamente, foi substituída pela modelo de carnaval cosmopolita de cidades europeias, como Paris, Nice, Roma e Veneza. A modernização da pândega orgástica deu origem aos bailes de máscaras, aos préstitos alegóricos das grandes sociedades carnavalescas, como, por exemplo, os Tenentes do Diabo (1855), os Democráticos (1867) e os Fenianos (1869). Nos salões, uma nova realeza foi entronizada, como símbolo desse carnaval burguês e fidalgo, Momo e seu cortejo, composto por Polichinelo, por Arlequim, por Pierrô e por Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248

Colombina. Os atordoantes Zé-Pereiras, diabos, velhos, morcegos, Pai-João e índios foram substituídos, como figuras centrais do carnaval carioca, por esses personagens da commedia del’arte. 3

PEDAGOGOS DE MOMO A modernização do carnaval carioca trás algumas indagações sobre a forma

como esse processo foi operacionalizado no imaginário da população carioca. Coutinho (2006) aponta a imprensa como grande responsável por essa transição, atuando de forma ideológica nas camadas populares e na classe média, na difusão do projeto civilizatório elitista do carnaval carioca e dos demais costumes relacionados a essa folia. O autor declara: de fato, como organizadora e promotora da festa, a empresa jornalística cumpriu a função de depurar as manifestações das classes tidas „perigosas‟ de seus traços „ameaçadores‟ (seus signos capazes de minar o sistema simbólico dominante). Contudo, embora estivessem ao lado do „progresso e da civilização‟, os jornalistas boêmios, identificados pela sua própria origem ao universo cultural proletário, foram também negociadores da existência possível do Carnaval dos negros, mulatos e brancos pobres numa sociedade que acabara de sair do escravismo e continuava a usar a chibata para silenciar as vozes e os sons que vinham das ruas. (COUTINHO, 2006, p. 25).

Os cronistas não eram e não são, ainda hoje, somente os que dão sentido ou um ponto de vista da realidade, mas sim os que tecem/falam sobre/no cotidiano (CERTEAU, 1994). Neste sentido, é possível identificar uma função pedagógica destes cronistas. Sobre esse o papel da elite intelectualizada da sociedade, Pereira (2001, p. 88) afirma: Tal perspectiva, claro, não era apenas carnavalesca: pedagógica é um termo adequado para exprimir a visão de uma parcela intelectualizada da sociedade, próxima ou dependente das elites tradicionais, mas empenhadas em projetos de transformar a nação e na atualização do país sob uma ótica liberal e progressista.

Para a população brasileira das três primeiras décadas do século XX, os jornais e revistas com charges e ilustrações informavam e formavam seus hábitos e valores, pois não existiam escolas para esta camada demográfica. Ademais, os outros meios de comunicação de massa (rádio, cinema, etc.) estavam em sua forma embrionária. Dessa forma, os jornais, as revistas e o teatro eram os responsáveis por grande parte da educação. A outra era feita nos lugares de convivência e em Scientiarum Historia VII . 2014 . ISSN 2176-1248

algumas escolas do movimento operário anarquista (GALLO; MORAES, 2009). Neste contexto, nos desperta interesse o papel dos caricaturistas e dos chargistas nesse processo modernização do carnaval carioca. Cunha (2008) observa a importância da introdução de imagens nos jornais em uma época de altas taxas de analfabetismo. A autora afirma: é interessante notar que, apesar das altas taxas de analfabetismo existentes no Brasil no início do século XX, há um crescimento do consumo de alguns periódicos e revistas semanais. Tal fato estaria intimamente relacionado com as inovações pelas quais a imprensa estava passando nestes anos, com as mudanças e seu layout, mas principalmente, com a introdução de imagens. (CUNHA, 2008, p. 88).

Entre estes “chargistas-pedagogos”, citamos Angelo Agostini, nas Revistas Illustradas, Raul Pederneiras, na Fon-Fon! e J. Carlos, em O Careta. Tais chargistas e caricaturistas contribuíram para a tecedura desta “nova” visão de carnaval. De acordo com Teixeira (2005, p. 22-23), a charge é um instrumento de produção

de

identidade

capaz

de

identificar,

sem

qualquer

relação

de

estranhamento, a realidade com a ficção, a verdade com a fantasia e o sujeito com o personagem. O autor argui que na charge é produzida uma identidade por diferença, “porque constrói um personagem que não se assemelha com o sujeito real do qual deriva. Ao contrário, é a relação de diferença entre eles que o aprofunda a sua mútua identificação”. Teixeira conclui que, na charge, “é a diferença que torna possível o personagem como outro sujeito do real”. É possível dizer, então, que as charges são uma tentativa dos chargistas se apropriarem da realidade, de criar uma realidade, de uma cotidianidade, para produzirem uma nova identidade. Ao executarem tal empreitada, os chargistas não são neutros em suas proposições, de forma que há uma influência do vivencial, composto das suas experiências pessoais, as quais delatam a sua intencionalidade. A produção das revistas ilustradas, durante o processo de modernização do carnaval, seguiam uma lógica discursiva e pedagógica, com a intenção de criar um sistema de verdade que dominaria tanto as mentes como os corpos, às vezes de forma branda, às vezes, violenta. A charge ocupou uma função amalgamadora desta nova/velha cultura nacional: o carnaval. A figura 2 apresenta uma charge, de J. Carlos, publicada na Revista O Careta.

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FIGURA 2 – Charge de J. Carlos

Fonte: CARLOS, J. [Pierrô enxuta índio]. O Careta, 20 fev. 1909.

A importância da produção imagética dos chargistas pode ser justificada na possibilidade que oferece de resgate e de reconstrução dos fios que teceram a história do carnaval e da construção da subjetividade do carioca. Através dos traços humorísticos do carnaval, é possível compreender o contexto do período, os problemas políticos, a moda, os costumes, o dia a dia, o cotidiano que a população carioca vivia na segunda metade do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX. 4

CONCLUSÕES OU INDÍCIOS PARA NOVAS INVESTIGAÇÕES Esta discussão ainda está longe de chegar a uma conclusão ou a conclusões.

A intenção foi a de apresentar alguns indícios de que existiu, durante o processo de modernização do carnaval carioca, algo que pode ser chamado como pedagogia de Momo. Como promotora e organizadora da festa, a imprensa foi agente da operacionalização deste processo no imaginário carioca. Os chargistas, como membros da imprensa e tecedores sobre/no cotidiano, não ficaram de fora e sua participação no processo é investigada em nossa pesquisa. Em nossas pesquisas, a charge tem se apresentado como rica fonte histórica primária. Dessa forma, nossos resultados contribuem para o reconhecimento da

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charge como documento bem como de seu papel na história social do conhecimento e das ciências. Também observamos o humor como produtor de outras formas de verdade, fora da razão. Cabe ainda reafirmar a adequação do paradigma indiciário como uma alternativa epistemológica para esta pesquisa, na medida em que nos tem ajudado “a sair dos incômodos da contraposião entre „racionalismo‟ e „irracionalismo‟.” (GINZBURG, 1991, p. 143) e nos aproximar da muitas vezes temida intuição.

REFERÊNCIAS CERTEAU, Michel de. Artes de fazer: a invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de Momo: imprensa e carnaval na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. CRULS, Gastão. A aparência do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio: 1949. v. 2. CUNHA, Fabiana Lopes da. Caricaturas carnavalescas: carnaval e humor no Rio de Janeiro através da ótica das revistas ilustradas Fon-Fon! e Careta (1908-1921). 2008. 510 f. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. EDMUNDO, Luiz. Recordações do Rio Antigo. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1950. FERREIRA, Felipe. Escritos carnavalescos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2012. GALLO, Sílvio; MORAES, José Damiro. Anarquismo e educação: a educação libertária na Primeira República. In: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena (orgs.). Histórias e memórias da educação no Brasil: século XX. 3 ed.. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. v. 3. GINZBURG, Carlos. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991. MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia da Letras, 2009. SALIBA, Ellias Thomé. Raízes do riso. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2005. (Coleção FCRB; Série Estudos, 2).

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