\"Índio fazer barulho?\" Reflexões sobre o \"índio da escola\"

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ÍNDIO FAZER BARULHO? REFLEXÕES SOBRE O “ÍNDIO DA ESCOLA”

Úrsula Pinto Lopes de Farias - UFRRJ [email protected]

Samanta Samira Nogueira Jurkiewicz. - UFRRJ [email protected]

Aqui nessa casa Ninguém quer a sua boa educação Nos dias que tem comida Comemos comida com a mão E quando a polícia, a doença, a distância, ou alguma discussão Nos separam de um irmão Sentimos que nunca acaba De caber mais dor no coração Mas não choramos à toa Não choramos à toa (...) A vida que vai à deriva É a nossa condução Mas não seguimos à toa Não seguimos à toa (Arnaldo Antunes)

PRA INÍCIO DE CONVERSA...

Certa ocasião, em uma turma de quarto ano do Ensino Fundamental, após discutir com os alunos sobre as diversas formas de resistência indígena ao Europeu, desde combates ou os acordos que faziam, um aluno levantou-se e disse: “Ah! Tia, agora sim! Pensei que os índios eram uns idiotas. Em tentativa de ampliar futuras discussões e reflexões, foi respondido ao aluno que os índios não são idiotas, mas o que acontece é que muitos desconhecem o que ocorrera na História do Brasil, por isso, talvez ele tivesse esta falsa impressão. Refletindo essa questão em seus por quês, um pensamento inicial remeteu a uma possível falta de leitura dos professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano de escolaridade) e até mesmo à falta de formação mais específica que abordasse essa temática e que os conduzia então a tratar a questão indígena com

uma

superficialidade folclórica. Dizemos formação mais específica por considerar que o quadro de professores desta etapa de escolaridade possuírem graduação em Pedagogia ou apenas o curso de Formação de Professores do Ensino Médio. Em conversa com outros professores sobre essa questão e também recordando o que aprendemos sobre os índios na escola de nossa infância, não houve como não ponderar os muitos conceitos, informações e discussões que não chegariam facilmente aos docentes nas escolas. A fala do aluno sobre o índio classificado como idiota nos alerta para duas iniciais questões: o que se produz na academia e a demora a chegar à escola por conta de uma divulgação científica ineficaz, que muitas vezes encastela saberes, faz circular as informações apenas entre os “ilustrados”? Há uma falha na formação continuada dos professores dos anos iniciais em decorrência do maior apelo ao ensino de matemática e das demais áreas de conhecimento por reforçar a cultura de que “a criança precisa sair dos anos iniciais lendo, escrevendo e fazendo as quatro operações e o resto ela aprende depois, pois quem lê aprende tudo”? Tais questões podem acarretar o pensamento de que “para história a gente dá uma folhinha com texto e depois faz uns exercícios de fixação”. E é nesta folhinha (folha de ofício impressa com textos e desenhos), distribuídas às crianças que o “índio da escola”, tem sido ensinado e reforçado há muito tempo. O “ÍNDIO DA ESCOLA”

O índio mora na floresta gosta de caçar O índio mora na floresta gosta de pescar Sua tanga é feita de penas Dos pássaros da floresta Seu colar é feito de dentes De dentes de animais Gosta de nadar, gosta de pular Gosta de dançar em suas festas Gosta de lutar e de pintar Gosta de tocar os seus tambores (Música “O índio” )

Músicas como esta geralmente são cantadas pelas crianças desde a educação infantil e assim as crianças aprendem que os índios moram na floresta, desde antes de iniciarem o ensino fundamental, aos seis anos de idade. A partir do primeiro ano,

continuam aprendendo sobre este índio quase que exclusivamente em atividades de datas comemorativas, tais como o Dia do Índio, Descobrimento do Brasil e Folclore. A partir daí as crianças começam a construir um conceito de índio que não existe em outro lugar senão a escola. É o “índio da escola”. O “índio da escola” é de papel, é passivo e está na grande maioria das vezes ao lado de sua oca, como parte de uma paisagem natural, atemporal. É tratado como um personagem folclórico. Ao “índio da escola” foi destinado um lugar entre a Cuca e o Saci, posando para um retrato que esvazia de sentido toda a história dos povos nativos e a permanência dela, viva, na nossa cultura, no espaço urbano, na configuração do Brasil que nos tornamos. O “índio da escola” está lá, com sua peninha na cabeça, com seu arco e sua flecha, sempre sorrindo e, nas palavras do aluno que fez a observação, um tanto “idiota”, passivo, que não produz, não constrói, não reage... Move-se apenas na “dança da chuva”.

ÍNDIO FAZER BARULHO? ÍNDIO NÃO FAZ MAIS LUTAS?

Índio não faz mais lutas Índio não faz guerra Índio já foi um dia O dono dessa terra Índio ficou sozinho Índio querer carinho Índio querer de volta a sua paz (Michael Sullivan e Paulo Massadas)

Essa epígrafe é parte de uma canção interpretada pela apresentadora e cantora Xuxa Meneghel e podemos arriscar dizer que faz parte do repertório escolar de comemoração ao Dia do Índio e festas infantis há mais de vinte anos. É o índio que “já foi um dia/ O dono dessa terra”. Nossa questão é: uma imagem acerca da figura dos indígenas foi formada, seja através das imagens, seja através das canções que também fazem uma pintura e que fizeram alguém com tão pouca idade ter uma construção tão fechada sobre a ideia de “índio”. Nossa questão é usar essas inquietações para tentar refletir o como descolonizar tais visões e a importância de um processo de formação crítica que deve abarcar professores e alunos. (GOMES, 2008). “Peris” e “Iracemas” povoam o imaginário. A visão Romântica, o “bom selvagem” de uma discussão histórica ultrapassada ainda está muito presente no ambiente

escolar, apesar de haver discussões em torno disto nas revistas mais populares de educação que chegam as mãos dos professores. Esta visão estática, congelada e desfigurada dos nativos brasileiros gera ideias semelhantes à retirada dos comentários de leitores de um jornal de ampla divulgação: “No Brasil e no mundo índio deixou de ser índio há muito tempo. São pessoas normais como nós que usam celulares e notebooks de última geração1” Essa declaração foi feita no contexto das discussões sobre a desocupação da “Aldeia Maracanã”, no Rio de Janeiro, para a construção de um estacionamento no entorno do Estádio Maracanã. Não se considera índio quem vive na cidade, usa roupas e celular. Índio de verdade vive nu, descalço, na floresta, no pretérito. “Índio” virou uma condição de gente que não é normal, segundo a declaração acima. É o “índio da escola”, feito de papel, pálido, sem vida. José Ribamar Bessa Freire, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em uma palestra proferida em um curso de extensão em 2002, enumera cinco equívocos acerca dos índios, a saber: o índio genérico, desconsiderando a diversidade étnico-cultural das populações nativas; culturas atrasadas, uma vez que não seguem os padrões civilizatórios do português; culturas congeladas, não poder ser índio quem usa roupa, relógio e celular; os índios pertencem ao passado, estão lá, é como se não existissem mais; e , por último, o brasileiro não é índio, pois a herança cultura hegemônica é a do português, mas isto não significa apagarmos de nossa memória o quanto somos “índios” em nossa configuração como nação (FREIRE, 2002) . Estas ideias equivocadas a respeito dos nativos perpetuam-se na escola por conta de um conceito de colonização que vai além das questões políticas. Uma vez independentes politicamente de Portugal mantemos em nossa cultura a presença hegemônica dos saberes, da visão que temos sobre como nos constituímos como nação e como indivíduos. É o que um grupo de estudo, formado por pesquisadores, em sua maioria latino-americanos,

denominado

Modernidade/Colonialidade,

conceitua

como

colonialidade do saber, do poder e do ser. A colonialidade, portanto, sustenta-se na classificação racial/étnica da população mundial como pilar do padrão de mundo do poder capitalista, operando em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivas da

1

Publicado em http://oglobo.globo.com/rio/conheca-perfil-de-membros-da-aldeia-maracana-

7927368#ixzz2e6Byxtqm ,acessado em 6 de setembro de 2013

existência social, cotidiana e da escala social. A colonialidade “origina-se e mundializa-se a partir da América”. (QUIJANO, 2009, p. 73, 112) Pensando no viés acima descrito de construção de imaginários, a escola pode ser reprodutora das ideias de um processo de colonização que desfigurou a ideia que se tem sobre a presença indígena na nossa formação enquanto sociedade e daquelas comunidades que são consideradas tradicionais, por manterem a hegemonia da cultura nativa nas suas relações sociais. Neste sentido, Maldonado-Torres nos chama a atenção para a maneira como a colonialidade se faz presente, não só na educação formal: A colonialidade se mantém viva nos manuais de aprendizagem, nos critérios para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos, em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna. Enfim, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. (MALDONADO-TORRES apud OLIVEIRA, 2012, p. 39, 40)

Como, utilizar canções como as citadas de forma a suscitar em nossos pequenos, reflexões ao invés de apenas assimilação por meio de imagens construídas na prática cotidiana, principalmente escolar? Será que postos diante de discussões que envolvam outras áreas do conhecimento, que dialogue com outros gêneros textuais como charges, cartazes, fotografias, áudios e reportagens sobre as recentes manifestações da população indígena nossos alunos continuariam achando essas pessoas idiotas e passivas? A imagem continuaria em um passado que remete tão somente ao período histórico do “Descobrimento” do Brasil? Índio não faz mais lutas? Faz.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Arnaldo. Volte para o seu lar. Disponível em: http://letras.mus.br/marisamonte/83173/. Acessado em 06/09/2013.

FREIRE, José Ribamar Bessa. Cinco ideias equivocadas sobre os índios. Palestra proferida em 22 de abril de 2002.

Disponível em

http://www.taquiprati.com.br/arquivos/pdf/Cinco_ideias_equivocadas_sobre_indios_palest raCENESCH.pdf. Acessado em 06/09/2013

GOMES, Nilma Lino. Descolonizar os currículos: um desafio para as pesquisas que articulem a diversidade étnico-racial e a formação docente. In: Anais do XIV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino. Porto Alegre: PUCRS, 2008, p. 516-527.

MASSADAS, Paulo e SULIVAN, Michael. Brincar de índio. Disponível em: http://letras.mus.br/xuxa/91250/. Acessado em 06/09/2013.

OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. História da África e dos africanos na escola. Desafios políticos, epistemológicos e identitários para a formação dos professores de história. Rio de Janeiro: Ed. Imperial Novo Milênio/FAPERJ, 2012.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009, p.73-117.

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