Infâncias, violências e sexualidade - Uma aventura autobiográfica com Pedro Almodóvar

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR MILTON SANTOS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

INFÂNCIAS, VIOLÊNCIAS E SEXUALIDADE: UMA AVENTURA AUTOBIOGRÁFICA COM PEDRO ALMODÓVAR

por

RAMON VICTOR BELMONTE FONTES

Orientador(a): Prof. Dr. LEANDRO COLLING

SALVADOR (2016)

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR MILTON SANTOS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

INFÂNCIAS, VIOLÊNCIAS E SEXUALIDADE: UMA AVENTURA AUTOBIOGRÁFICA COM PEDRO ALMODÓVAR

por

RAMON VICTOR BELMONTE FONTES

Orientador(a): Prof. Dr. LEANDRO COLLING

Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre.

SALVADOR 2016 2

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FOLHA DE APROVAÇÃO

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Às infâncias silenciadas, o meu mais afetuoso GRITO de amparo. Ao meu abusador, o meu mais escarnecedor e revolucionário sorriso. Aos afetos que me ensinam, cotidianamente, a brincar de [re]viver. À minha vontade de ser pai e mãe de tantxs. 5

GRATIDÃO

À Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado da Bahia por ter financiado os dois árduos anos desses caminhos dissertativos, à UFBA e ao Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade por toparem os meus devaneios dissertativos;

À minha mãe Rute, meu pai Marcos e minha irmã Marcella por aturarem os momentos de tensão extrema e, também, por nutrir comigo a esperança e a alegria de um futuro melhor, menos precário. A vocês o meu mais paradoxal e obstinado amor;

Ao meu melhor e mais afetuoso amigo-irmão Kim de Vasconcelos [meu Xerxes, meu velho pajé], por me apresentar a VERDADE como a única e mais potente arma na batalha da vida, por abrir e dividir o seu lar durante os meses mais difíceis de minha caminhada, por me proporcionar as melhores conversas e as melhores loucuras. Irmão, pra você ofereço o melhor de mim. A ti, caríssimo irmão, canto "En chantant", da Família Beliére, e lhe reafirmo: "Estamos vivos e somos infinitos!";

À Tia Ana Vasconcelos e Tia Inês Vasconcelos por serem tão afetuosas, tão amigas e tão compreensivas no momento em que mais precisei sair de minha zona de conforto. Obrigado por abrir o lar de vocês e permitir que eu dividisse o cotidiano convosco... Obrigado por me darem a chance de morar em frente ao mar, gratidão eterna às águas de caloroso afeto;

Ao meu desorientador, meu amigo, meu irmão Leandro Colling. Sem sua ventania, sem seu carinho, sem a sua atenção e sem a sua objetividade poética nenhuma linha teria sido produzida. Muita gratidão por ter me esperado e por ter confiado em mim... Seu afeto é o furacão causador de todo esse processo dissertativo. O que os ventos de Oyá uniram nada é capaz de separar. Gratidão eterna! Olorum modupé, irmão! Axé para nós;

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Aos amigos que fiz na Força Aérea Brasileira por me incentivarem diuturnamente e por me mostrarem que fiz as escolhas mais acertadas de minha vida: estudar e não perder a ternura jamais. Os meses que moramos juntxs foram os mais incríveis, mais sinceros, mais divertidos, mais duros e mais amadurecedores de toda a minha existência. Somos muitos e estamos espalhados pelo Brasil inteiro, mas tenham a certeza que ao lembrar de vocês só vejo Belos Horizontes e por onde for hei de sentir, no céu, por terra ou mar, saudade ao de ti partir, não xs deixarei jamais...";

Ao CuS (Cultura e Sexualidade) por alargar minhas possibilidades reflexivas, por me interpelarem por todos os lados. Carlinha [sou a menina dos seus olhos e você é o meu presente macumbeiro]; Samuca [meu caçador de flechas que me positivam cotidianamente]; Vivi [meu eterno crush e minha eterna fonte de alegrias, de resistência e de re-existências]; Tiago [minha ins-piração acadêmica]; Cacau [minha pouta preta e macumbêra irmã . Acesso em 18 abr. 2016.

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Figura 2 - Cenas de Café Müller

[Cena 2] - Nos minutos iniciais da filme Fale com ela (2002), escrito e dirigido por Pedro Almodóvar, a medida em que uma cortina de teatro se abre na tela, somos levados pelo cineasta espanhol ao mesmo Café criado por Pina em sua obra. No desenrolar da cena, nós, espectadores, somos, simultânea e metalinguisticamente, deglutidxs: pelo teatro [onde se passa/passou a coreografia], pelo cinema [que retrata a coreografia, seus espaços e a narrativa almodovariana que se inicia] e pela dança [que, num ato intertextual, relembra os movimentos e intenções de estréia da obra de Pina Bausch], ao mesmo tempo em que começamos a supor quais os caminhos narrativos serão privilegiados pelo cineasta para contar a sua história. 60

[Escrita 1] - Nessas linhas dissertativas, quando eu "falo com ela/ele" ou, ainda, quando "falo dela/dele" refiro-me multiplamente à narrativa de abuso sexual em minha infância e aos fragmentos fílmicos dos filmes de Pedro Almodóvar. É a partir desses retalhos que costuro, neste capítulo, uma reflexão entre: a tutela do corpo e da subjetividade infantil pelo indivíduo adulto ~ + ~ as normas de sexualidade e gênero que incidem sobre tais corporalidades ~ + ~ o ato de escrever como uma [re]ação contra o abuso sexual. A película Fale com ela narra a história de quatro indivíduos que se encontram nas dependências do hospital particular El Bosque: Benigno, jovem enfermeiro e trabalhador da clínica; Marco, escritor de uma emotividade latente; Lydia, toureira profissional que sofre um acidente em uma de suas corridas e, por último, Alicia, uma jovem bailarina amante dos filmes e da literatura. Para me ajudar na reflexão me aterei primeiramente apenas à relação entre Alicia e Benigno, pois é a partir desse contato que Almodóvar relata aos espectadores uma experiência de abuso sexual, experiência essa a que me proponho refletir aqui. Hablemos! Após sofrer um acidente de carro numa noite chuvosa, a bailarina Alicia entra em estado de coma e é internada na clínica onde o enfermeiro Benigno trabalha como cuidador. Nos minutos inicias da película, o rapaz, em companhia de outra enfermeira, lava, com extrema dedicação, o corpo da jovem recém-chegada. É uma cena considerada comum em ambientes hospitalares, nos quais os agentes de saúde cuidam dos corpos enfermos e/ou inertes. Porém, na cena em questão, o diretor espanhol sugere uma relação de cuidado muito mais afetuosa que lembra a romântica narrativa ocidental do zelo dos pais pelxs filhxs recém nascidxs (Fig 3).

Figura 3 - Benigno cuida de Alicia

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Apesar do corpo imóvel da paciente, Benigno a trata como se tal inércia não existisse - pelo menos no plano subjetivo -, ele conversa sobre cenas do cotidiano, questiona-a sobre preferências estéticas (cortes de cabelo, roupas e decoração do quarto), pergunta e "ouve" as respostas expressadas através da imobilidade de Alicia, reproduz fielmente, através da contação de histórias, os filmes e peças a que assiste cotidianamente enquanto Alicia mantém-se inerte. Em um desses relatos artísticos Benigno detalha para a letárgica mulher a coreografia Café Muller e de como, ao final da apresentação, conseguiu o autógrafo da própria Pina Bausch, numa fotografia do espetáculo, onde se lia: "Espero que vença os obstáculos e comece a dançar!". A frase esperançosa de Pina nos traz agora às linhas dessa minha escrita, isto é, a partir dela me ponho a refletir sobre as circunstâncias do meu abuso, na infância, e de como o silêncio que mantive, ao longo dos anos sobre tal experiência, se aproxima poeticamente do estado de coma que assistimos na personagem Alicia. Se nela o obstáculo é a incapacidade de falar e de se expressar emocionalmente por causa do estado físico e do coma, derivado do acidente, no caso do Ramon infante o obstáculo se resumia, igualmente, nessa impossibilidade de falar sobre a violência que sofria cotidianamente, incapacidade essa derivada do medo de sofrer sanções de todos os tipos, portanto, uma incapacidade subjetivada. A punição poderia vir de qualquer lugar, mas a instituição social que mais me amedrontava era a família. Ainda criança compreendi que a minha família, nascida e cultivada num ambiente militarmente áspero, com limites muito rígidos de hierarquia e papéis de gênero, certamente assumiria o papel inquisidor, no momento mesmo em que eu expressasse como o meu vizinho "brincava de pinto"16 comigo. Isto é, era como confessar que as fronteiras de gênero tidas como corretas e reiteradas diariamente por todxs elxs (mãe, pai, tios, tias, primo, prima, avô, avó...) estavam sendo transpostas cotidianamente sob seus desatentos olhares. Jamais aceitariam tal afronta! Contemporaneamente, ao refletir sobre esse medo, ecoa em mim os escritos de Preciado (2014) quando questiona Quem defende a criança queer?. Para x autorx, motivadx pelas manifestações conservadoras "em defesa da criança e da infância", ocorridas na França em 2013, essa criança reivindicada por tais discursos - entre eles o discurso da família nuclear burguesa ocidental, a qual elxs pretendem proteger simplesmente "não existe". Elx continua: 16

"Brincar de pinto" era como o vizinho metaforicamente me "convidava" para as sessões de abuso sexual.

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Os defensores da infância e da família apelam para a figura política de uma criança que eles constroem, uma criança pressupostamente heterossexual e com o gênero normatizado. Uma criança que privamos de qualquer força de resistência, de qualquer possibilidade de fazer um uso livre e coletivo de seu corpo, de seus órgãos e de seus fluidos sexuais. Essa infância que eles pretendem proteger exige o terror, a opressão e a morte. [...] aproveitam-se do fato de que é impossível para uma criança rebelar-se politicamente contra o discurso dos adultos: ela é sempre um corpo a quem não se reconhece o direito de governar (PRECIADO, 2014, sem paginação).

O medo das sanções, principalmente as familiares, que me acompanhou durante toda a infância e boa parte da adolescência, serviu como justificativa para o silêncio que mantive sobre o abuso sexual sofrido. O silêncio social é violento em muitos sentidos: ele reafirma o discurso heteronormativo familiar, na medida em que não desestabiliza justamente por não denunciar - aquela narrativa coerente entre sexo, desejo e prática sexual (BUTLER, 2010) [nesse caso, uma prática violenta sobre um corpo lido como indefeso, tutelado], assim a minha subjetividade continuava refém daquela prática e de suas possíveis sanções; era violento pois se mantinha oculto em todos os espaços, impedindo, portanto, o debate, a reflexão e uma ação de repúdio naquela construção familiar; era violento pois produzia um duplo movimento na criança que fui, isto é, me enquadrava numa mudez etária, justamente por pertencer à condição de criança tutelada pelos olhares e vozes dxs adultxs, ao mesmo tempo, impedia-me de romper essa tutela, pois as ameaças sugeridas cotidianamente paralisavam-me ante à possibilidade real de ser castigado ou até mesmo morrer. Essa relação entre o silêncio e a fala me remete a um episódio muito instigante e ao mesmo tempo sintomático, ocorrido num colégio de classe média alta, num bairro luxuoso da capital baiana. Em meados de 2015, juntamente com duas companheiras do CuS (Viviane Vergueiro e Carla Freitas), fomos convidadxs pelo grêmio estudantil dessa instituição de ensino para debater sobre questões de sexualidade e gênero. Como o tema era amplo decidimos falar sobre as nossas pesquisas atuais e de como os recortes específicos de cada umx de nós serviam para refletir sobre o ambiente escolar e as demais políticas a respeito de sexualidade e gênero. Quando comecei a proferir meus recortes científicos e falar abertamente sobre como a vontade de falar sobre o abuso sexual que experienciei na infância estava me transformando cotidianamente, uma garota da platéia, em prantos, levantou-se do assento e saiu da sala. É interessante frisar que, mesmo vendo-a sair da sala, em nenhum momento notei que ela chorava 63

copiosamente. Viviane e Carla me avisaram que, de fato, todxs perceberam a garota sair chorando muito... Como eu não percebi o choro copioso daquela garota em minha frente? É bem possível que essa cegueira encontre ecos na própria necessidade de proteção subjetiva [de minha parte]: não ver o choro dela metaforicamente me remetia ao meu próprio choro que estava sendo exposto ali, naquele noite, em frente a uma multidão de pessoas desconhecidas, era a primeira vez que tornava público as mudanças de minha pesquisa e do meu desejo de falar do meu [nosso] abuso sexual. Uma espécie de retorno às instituições sociais que contribuíram para o meu silêncio durante os anos [a família e a escola]. Ao voltarmos novamente para o texto de Preciado (2014) e reler a minha história familiar tendo a concordar com o argumento de que "a criança e a infância, como motivo de proteção da instituição familiar" é uma farsa. Ou seja, o destino de tal proteção não são as corporalidades e subjetividades infantis, em toda sua potência, mas sim a proteção e manutenção da norma heterossexual. A produção discursiva em torno da infância é muito mais reafirmação da norma do que a multiplicação de possibilidades subjetivas e/ou identitárias. Preciado (2014), inspiradx por Michel Foucault, sintetiza:

A criança-a-ser-protegida [...] é o efeito de um dispositivo pedagógico perigoso, o lugar de projeção de todas as fantasias, o álibi que permite ao adulto naturalizar a norma. A biopolítica [segundo Michel Foucault, um poder que se exerce sobre os corpos e as populações] é vivípara e pedófila. A reprodução nacional depende dela. A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia do gênero vigia o berço dos seres vivos que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterossexuais. A norma faz sua ronda em torno dos corpos frágeis. Se você não for heterossexual, a morte o espera. A polícia do gênero exige qualidades diferentes do garotinho e da garotinha. Ela molda os corpos a fim de desenhar órgãos sexuais complementares. Ela prepara a reprodução, da escola até o Parlamento, industrializa-a (PRECIADO, sem paginação, 2014) [grifo meu].

Viajando pelos fragmentos memorialísticos consigo exemplificar alguns momentos no quais essa proteção da norma ficava evidente dentro da teatralidade familiar. Recordo-me, por exemplo, que em algum momento da minha infância meu pai e minha mãe fizeram a assinatura mensal da revista de nudez feminina Playboy. Naquela época meu pai acordava cedo, com céu ainda escuro, para trabalhar. Antes mesmo de se preparar para a lida, ele, juntamente com minha mãe [ainda sonolenta], me acordavam, me colocavam sentado no sofá e me entregavam, mês a mês, a nova edição

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da Playboy. Os dois ficavam em pé, lado a lado, e observando-me atentamente tentavam motivar minha curiosidade por aquele exemplar impresso, ainda envolto no plástico transparente. Diziam: "chegou presentinho novo, filhO!"; "Olha aquela artista famosa na capa da revista, filhO!"; "Mais uma pra coleção, filhO!"... Desconfiado que aquela teatralidade queria me dizer o que era "o certo", esboçava uma expressão de curiosidade e folheava cuidadosamente a revista tentando cumprir aquele misterioso papel. Não tinha a real noção do que aquelas imagens de mulheres nuas queriam me dizer, apenas observava-as ao mesmo tempo em que tentava identificar as expressões de aprovação ou desaprovação naqueles inquisidores rostos que me vigiavam. Não sei ao certo o que motivou essas "ações de proteção", elas poderiam variar desde uma desconfiança a um medo brutal de que eu não seguisse a norma, poderiam ser motivadas por uma leitura que elxs faziam de minha subjetividade, corporalidade e ação, nesse caso, talvez, mais próximo de uma feminilidade do que de uma masculinidade coerentemente esperada do meu cisgênero corpo; poderiam ser motivadas pelas leituras dxs outrxs [vizinhxs, familiares, amigxs...] que chegavam aos seus ouvidos... Muitas possibilidades! A única certeza, que às vezes escapava em algumas falas, era que elxs tentavam me ensinar a "ser homem". Ao voltarmos para as cenas iniciais de Fale com ela, quando Café Muller é apresentado a nós, espectadores, através do copioso choro de uma das personagens de Almodóvar, é inevitável não metaforizar sobre as produções discursivas em torno da minha infância. O interior do caótico e melancólico Café de Pina Bausch pode muito bem nos servir como imagem para entender a minha infância subjetiva e fisicamente violentada. Explico: na medida em que acompanhamos as dançarinas se chocando desgovernadamente pelas paredes do ambiente monocromático, de olhos fechados e com expressões faciais que denotam tristeza, é possível poetizar sobre o caos subjetivo produzido pelo abuso sexual e psicológico enfrentando pelas crianças. Ao mesmo tempo, quando refletimos sobre as reiterações constantes da heteronorma e sua produção constante de medos e ameaças, perpetradas pelas instituições sociais e seus discursos, é possível ouvir o ensurdecedor silêncio dos pedidos de ajuda que são neutralizados antes mesmo de irromper nos lábios e línguas das crianças violentadas. É como dançar no limbo do Café bauschiano, é como tentar produzir movimentos de saída do Café, mas o cinzento caosfeicultor te tragar novamente para dentro dele, é como assistir o mesmo Café sombrio através do olhar do personagem que chora

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copiosamente na platéia do filme... Ele apenas chora! Chora muito, pois não consegue ou não pode falar (Fig.4).

Figura 4 - Choro da personagem ao assistir Café Müller

- - - - - - - - - - - - - - -

[Cena 3] - Às margens de um rio, num dia ensolarado, um garoto de nome Ignácio, visivelmente constrangido como se estivesse fazendo algo a contragosto, canta a canção Moon River enquanto um padre, chamado Manolo, dedilha os acordes da música ao seu lado17. Enquanto isso outras crianças nadam, brincam e riem bastante, livres dos olhares de qualquer adulto. Os acordes do violão silenciam e por um instante ouvimos apenas a voz do garoto entoar a canção. Somos surpreendidos com um grito de "Nãããão!" e em seguida acompanhamos o garoto fugir de trás do arbusto, cair e bater a cabeça em uma pedra. Ao mesmo tempo, acompanhamos o padre sair de trás do mesmo arbusto, correr em direção ao garoto caído e ajeitar a sua batina, sugerindo para nós que estava quase desnudo por de trás daquela vegetação. A câmera dá um zoom no rosto do

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A cena citada faz parte do filme "Má Educação" (2004), do cineasta Pedro Almodóvar, e pode ser vista online a partir do endereço < https://goo.gl/QrZbnr >. Acesso em 21 jul. 2016.

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garoto e vemos escorrer sangue de sua testa (Fig.5), logo em seguida a voz em off do garoto diz: "O sangue escorreu e dividiu minha testa em dois. Senti que a mesma coisa iria acontecer com minha vida. Que ela seria sempre dividida e nada poderia fazer para evitar".

Figura 5 - Ignácio se machuca ao tentar fugir do adulto abusador

[Cena 4] - Após se mudar do bairro da Liberdade, em Salvador, Marcos, o meu vizinho abusador, foi morar num prédio estilo classe média do bairro de Brotas. Como as nossas famílias eram muito próximas, depois que ele e sua família estavam instalados em sua fantástica e curiosa residência, fomos visitá-los. Quando digo que a nova residência era curiosa e fantástica me refiro especificamente à arquitetura diferente da existente onde tínhamos sido criados, isto é, morávamos em uma avenida curta, com as casas perfiladas aonde todos os vizinhos se conheciam. A nova residência de Marcos era num prédio alto, que tinha áreas diferentes, possuía elevador e um espaço de nome engraçado que, segundo os adultos, era destinado à nós crianças: o playground. Chegamos ao apartamento, nos alimentamos brevemente e enquanto os adultos conversavam na sala espaçosa fomos convidados, por Marcos, para conhecer o playground. Era muita aventura para as deslumbradas crianças: elevador, piscina ao longe, playground amplo e doses acolhedoras de brisa do entardecer! Não sei precisar ao certo por quanto tempo fiquei nesse paraíso, mas sei que aquela fantasia encerrou-se para mim em questão de minutos. Marcos inventou que eu estava "perturbando" demais e disse que eu iria descer. Enquanto via as outras crianças brincando no recémconhecido playground ele me puxava pela mão em direção ao elevador sob o pretexto de que não merecia brincar mais. O mais curioso era que eu não tinha feito absolutamente nada! Portanto não entendia o motivo de meu "castigo". Dentro daquele elevador [que até poucos minutos era um objeto astronomicamente engraçado, curioso e 67

que nos levava a qualquer lugar em questão de minutos], sozinho com ele, senti pela primeira vez um pânico me paralisar. Não conseguia olhar para cima e meu rosto estava na altura de sua bermuda. Ele colocou seu "brinquedo" para fora e forçou minha cabeça em direção a ele. Recuei bruscamente. O elevador chegou no andar solicitado, a porta abriu e eu rezei para que alguém visse aquilo, mas ele já tinha guardado seu "brinquedo" e o andar estava vazio. Entramos em casa e ele relatou para os adultos que eu estava abusando demais lá em cima e por isso ele resolveu me privar das brincadeiras... Se existisse uma câmera naquela sala esse seria o momento que o zoom preencheria meu rosto com uma expressão de ódio, de raiva e, sobretudo, de impotência diante daquela violenta injustiça. Calei por medo! Calei por mudez física! Calei aos 8 anos de idade e só consegui falar sobre tudo isso aos 24 anos. [Escrita 2] - Essa relação paradoxal entre silêncio e explosão discursiva em contextos de violências pode ser refletida a partir de lugares distintos. Elegi os escritos de Michel Foucault (1988; 2010) e Judith Butler (2010) para me ajudar a refletir sobre as violências, nesse caso, mais especificamente, sobre as violências empreendidas em torno das subjetividades, entendidas, aqui, pelo viés da subalternidade: a infância e as performances de sexualidade e gênero que são dissidentes da heteronorma. A eleição dessxs autorxs é particularmente importante para o meu processo de escrita pois põe em devir a própria narrativa de vida que estive e ainda estou inserido, isto é, quando exponho os fragmentos de meu abuso consigo fazê-los dialogar num processo de empoderamento sócio-político, reconstrução/ressignificação subjetiva e reflexão crítica da realidade social em que estou inserido. A incursão genealógica de Michel Foucault em torno do aparato discursivo sobre a sexualidade ocidental nos legou, entre outras coisas, pelo menos dois argumentos fundamentais para refletir sobre o [meu/nosso] abuso sexual infantil: o primeiro é a prática confessional, herdeira das técnicas de direção de consciência fundamentadas na cosmovisão cristãocêntrica e o segundo argumento versa sobre a natureza e aperfeiçoamento do olhar da instituição familiar burguesa em torno das corporalidades e subjetividades das crianças. Para Foucault (1988; 2010) a explosão discursiva em torno das sexualidades, facilitada pelos mecanismos confessionais das instituições sociais, foi a ferramenta que possibilitou a transformação do olhar da família nuclear burguesa sobre os corpos infantis. Se aceitamos o olhar proposto por Foucault é inevitável não nos questionarmos sobre a própria natureza desse "poder da família" em torno da infância: para quais propósitos sócio-políticos ele atua? Quais vozes podem falar dentro 68

desse [novo?] cenário familiar, ou, mais importante ainda, quais vozes são obrigadas a silenciar em prol dessa nova lógica de atuação? Na tentativa de refletir sobre as questões elencadas vou propor um jogo metafórico e acrônico axs nobres leitorxs. Trata-se de um jogo em que a personagem principal [peão ou peoa] é um sofá, móvel principal das salas de estar em "casas de família" e, curiosamente, o palco central da trama psicanalítica. Para jogar o jogo eu disponho de dois dados, idênticos, onde todas as faces tem o valor um. Lanço os dados... Qualquer lançamento, somados, resultará dois. Ao avançar sobre o tabuleiro, na primeira jogada, a mensagem que lemos/ouvimos é: "O abuso sexual só existiu porque as figuras de pai [1] e mãe [1] não existiram efetivamente em sua infância! Revés: Espere uma [vida] rodada". Enquanto espero a rodada permito-me digredir. ... No momento em que decidi falar sobre o meu abuso sexual publicamente, tentando minimizar o adoecimento psíquico resultante da clausura dolorosa e silenciosa da violência sofrida na infância, eu iniciei uma análise psicanalítica, de viés freudiano clássico, com um profissional. Em aproximadamente oito meses de encontros semanais consegui nomear a violência como "abuso", consegui ressignificar a culpa subjetiva que nutri durante anos por julgar ter "seduzido" o meu abusador e consegui entender o quão violenta é a experiência do abuso sexual. O que não consigo entender até hoje é a natureza da afirmação que ouvi em uma das sessões: "O abuso sexual só existiu porque as figuras de pai e mãe não existiram efetivamente em sua infância!". Mesmo compreendendo que as consequências de tal afirmação encontram eco em nossas performances e tabus sociais, que tendem a supervalorizar e até mesmo idealizar um modus operandi de ser pai e mãe - que seria responsável, portanto, pela proteção e cuidado da infância -, na medida em que transpomos tal afirmação para a própria vivência e subjetividade da criança que fui, sofredora, portanto, do abuso, um curtocircuito se instala de tal forma que uma espiral de silêncio se estabelece novamente sobre a violentada subjetividade infantil. Isto é, mas onde será que o abusador está nessa violenta trama psicanalizada? Se para esse meu analista xs culpadxs do meu abuso foram xs meus genitorxs [ou a inexistência delxs], o próprio discurso psicanalítico excluiu a materialidade do abusador18.

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É importante ressaltar que me refiro aqui não à materialidade e corporalidade dos meus pais, mas sim à discursividade e produção de uma LEI superior responsável pela regulação de nossas subjetividades. No discurso psicanalítico essa discursividade se refere diretamente àquilo que produz em nossas

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A constatação dessa exclusão discursiva do meu algoz pela trama psicanalítica mais afinada com a psicanálise freudiana clássica foi justamente a mola propulsora que me instigou a refletir sobre o abuso sexual, nesse caso, mais especificamente, sobre como a discursividade incide violenta e silenciosamente sobre uma corporalidade entendida como masculina. Ou, em outras palavras: por que o abuso sexual em garotos é tão perturbador e ao mesmo tempo tão ocultado, silenciado e invisibilizado nos discursos e práticas das instituições sociais?19 Ao voltarmos para o último capítulo da História da sexualidade - volume 1 (1988), intitulado Direito de morte e poder sobre a vida, lemos a reflexão de Michel Foucault a respeito da transformação dos mecanismos de poder relacionados à gestão da vida. A célebre passagem do autor coroa tal transformação: "Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte" (p.150). De forma rápida, pois não é o objetivo desse trabalho demonstrar a gênese dessas transformações, resumo, a partir de Foucault, que na época clássica, e antes dela, na época "antiga e absoluta", o poder era legitimado por um indivíduo soberano, que tinha "direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida", culminando, portanto, "com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la" (p.148). Já partir do século XVII, tais mecanismos, agora transformados, "apresentam-se como complemento de um poder que se exerce, positivamente sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto" (p.149). Acionando os argumentos de Ariès (2014), é curioso constatar que a própria noção de infância ganha força, também, a partir do século XVII. Ao olhar para as transformações desses mecanismos de poder, Foucault (1988) elenca dois "pólos de desenvolvimento" a partir dos quais a gestão da vida e da morte, e subjetividades [não deslocadas das relações da cultura] a noção normativa de certo e errado, em territórios culturais. Na psicanálise clássica essa lei superior é produzida a partir do Complexo de Édipo, isto é, na relação direta e libidinalmente prazerosa, ou não, entre a criança e as figuras que cumprem o papel social da família. 19

Essa pergunta encontra justificativa em dados estatísticos realizados por órgãos de proteção à criança e adolescente ao redor do mundo e, também, em textos acadêmicos que refletem os abusos em corporalidades lidas como masculinas. Dentre eles destaco aqui: 1 - Ocultos a plena luz. Un análisis estadístico de la violencia contra los niño (UNICEF, 2014). Disponível em Acesso em: 22 ago. 2016; 2 - Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva) : 2009, 2010 e 2011 (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013). Disponível em Acesso em: 22 de ago. 2016; 3 - Violência sexual contra meninos: dados epidemiológicos, características e consequências. (HOHENDORFF, Jean Von; HABIGZANG, Luísa Fernanda; KOLLER, Silvia Helena. 2012) Psicol. USP, São Paulo, v.23, n.2, p. 395-416. Disponível em Acesso em 22 ago. 2016.

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por conseqüência dos indivíduos que estão submetidas à elas [isto é, todxs nós], irá se apresentar ao processo histórico. O primeiro pólo centrou-se no "corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação das suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos" (p.151), ou naquilo que o autor chama de "disciplinas anátomo-política do corpo humano". O segundo pólo, que se forma por volta da metade do século XVIII centrou-se no "corpo-espécie", no corpo "transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos", aqui, "a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar" serão o foco de sua análise. Nesse segundo pólo, para o autor, "tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores, isto é, uma bio-política da população" (p. 151152). A partir do desenvolvimento desses pólos o autor arremata: "Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida." (1988, p.157), isto é, agora as instituições sociais agirão a partir do "direito de fazer viver e de deixar morrer" (2010, 202). Após as reflexões de Foucault e concentrando um olhar na instituição social "família", no discurso psicanalítico teatralizado em minha análise e, priorizando, também, um recorte específico em relação às questões de sexualidade e gênero, caras a esse trabalho, posso refletir melhor sobre as questões elencadas acima: para quais propósitos sócio-políticos esses mecanismos de poder atuam? Quais vozes podem falar dentro desse cenário familiar e terapêutico?  [voltamos ao tabuleiro]  Os questionamentos encontram ecos naquilo que Judith Butler (2010) vai nomear, a partir das autoras Monique Wittig e Adrienne Rich, como "matriz heterossexual" ou "heteronorma". Para Butler, esses conceitos designam a "grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados", ou melhor, caracteriza o

modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade" (BUTLER, 2010, p. 216).

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Então, pensando a partir do argumento foucaultiano de que a norma é um reflexo das tecnologias de poder centrados na vida e pensando, também, o argumento butleriano de que as instituições sociais, a linguagem e a política se constituem e agem a partir de uma norma heterossexista, é inegável que o discurso psicanalítico clássico - de referência estritamente freudiana - proferido pelo meu terapeuta, esbarraria em tais lógicas. Explico-me: se em tempos remotos vivíamos uma "sociedade de sangue" ("sanguinidade") na qual a "honra da guerra e medo das fomes, triunfos da morte, soberano com gládio, verdugos e suplícios, o poder falar através do sangue era uma realidade com função simbólica", a partir do século XVI entramos em uma "sociedade do sexo, ou melhor, de sexualidade" na qual "os mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada", isto é, "o poder fala da sexualidade e para a sexualidade" (FOUCAULT, 1988, p.160-161). Em resumo: "Foram os novos procedimentos do poder, elaborados durante a época clássica e postos em ação no século XIX, que fizeram passar nossas sociedades de uma simbólica do sangue para uma analítica da sexualidade" (FOUCAULT, 1988, p.161). A psicanálise, enquanto disciplina que se origina no alvorecer do século XIX, que se ocupa do inconsciente desejoso e estrutura-se em torno de uma analítica da sexualidade, ao buscar uma explicação fixa e plausível para a violência sexual infligida sobre o meu cisgênero corpo e ao tentar dar coerência à sua própria produção discursiva e teórica, não tardaria em reproduzir o discurso heteronormativo. "O abuso sexual só existiu porque as figuras de pai e mãe não existiram efetivamente em sua infância" é uma afirmação duplamente violenta: ao desviar o protagonismo do meu abusador para as figuras de minha família esse discurso psicanalítico produz um movimento que tenta resolver um adoecimento subjetivo [motivado pela violência] apoiando-se em uma narrativa que repete e reafirma a matriz heterossexual. Isto é, mesmo que Marcos tenha cometido o abuso [e tal conjectura está nas entrelinhas do discurso do terapeuta] a culpa recai sobre a não vigilância e a, pretensa, negligência do meu pai e de minha mãe. Em outras palavras, o abusador mantém sua inteligibilidade (de gênero e de "adultibilidade") perante as instituições sociais, pois o silêncio a que sou impelido a conviver [por temer as represálias dessa mesma heteronorma], é o cenário da reiteração violenta do abuso. A afirmação do terapeuta é violenta, também, pois ao inquirir o Ramon infante, num flashback cinematográfico, produz sentimentos de raiva e decepção. Ou seja, ao recuperar 72

fragmentos violentos dessa infância [perpetrados por um indivíduo], o terapeuta libera o abusador de suas ações e traz ao palco psicanalítico as figuras do pai e da mãe para dar sentido à sua narrativa edipianizada. É o que podemos apreender da leitura de Foucault (1988) e Butler (2010). O primeiro, ao analisar as transformações dos mecanismos de poder, afirma:

[na analítica da sexualidade] pode-se a partir deste mesmo fim do século XIX [que é justamente o momento da potencialização do discurso psicanalítico], seguir o esforço teórico para reinscrever a temática da sexualidade no sistema da lei, da ordem simbólica e da soberania. É uma honra política para a psicanálise ter suspeitado (e isto desde o seu nascimento...) do que poderia haver de irreparavelmente proliferante nesses mecanismos de poder que pretendiam controlar e gerir o quotidiano da sexualidade: daí o esforço freudiano [...] para dar à sexualidade a lei como princípio, - a lei da aliança, da consanguinidade interdita, do Pai-Soberano, em suma, para reunir em torno do desejo toda a antiga ordem do poder (FOUCAULT, 1988, p.163-164) [grifos meus].

Judith Butler (2010), mesmo refletindo sobre a origem de um indivíduo para a teoria feminista [discussão que não vem ao caso aqui], nos lega a seguinte passagem: "A história das origens é, assim, uma tática astuciosa no interior de uma narrativa que, por apresentar um relato único e autorizado sobre um passado irrecuperável, faz a construção da lei parecer uma inevitabilidade histórica" (p. 64). Nesse sentido, o discurso psicanalítico proferido no setting terapêutico ao qual participei atua a partir da lógica de reprodução e reiteração da heteronorma, ou melhor, ele mantém a subjetividade abusadora em uma zona de conforto, sem inquirir sua lógica, sem questionar suas artimanhas e, portanto, silencia-a socialmente [para usar a metáfora da fala psicanalítica], ao mesmo tempo que a faz falar apenas dentro do consultório e deitada sobre o nosso personagem "sofá".  Lanço os dados novamente...  Resultado: 2. Avanço duas casas e leio no tabuleiro: "Quais vozes podem falar dentro desse cenário?". Olho para meu peão-sofá. O tabuleiro, numa bifurcação territorial, me oferece dois caminhos distintos: o caminho da direita e o caminho da esquerda. Preciso decidir! O caminho da direita, por ser o mais curto em extensão, mais rápido em relação a chegada e o mais rentável no nosso Banco Imobiliário®/Monoply® Subjetivo, conserva uma trilha de reprodução heteronormativa, coerentemente harmonizada com a 73

família nuclear burguesa e com os discursos/práticas cristãocêntricas de culpabilidade e confessionalidade. O caminho da esquerda, por apresentar uma extensão ampla na qual as casas apresentam diversificadas mensagens de sorte/revés e interpelações constantes axs jogadorxs, nos permite uma multiplicidade de jogadas, mas não nos leva a chegada tão facilmente. Reflito: quero chegar logo ou quero continuar jogando? Xs corpxs doem, as fomes se intensificam, a vontade incessante de fazer qualquer outra coisa que não seja jogar impera, a vontade de se render ao canto da direita é muito sedutora... O tempo está passando e preciso decidir! Olho ao redor da sala onde jogo o jogo e instantaneamente uma cena que está passando na televisão me captura: é uma cena do filme Áta-me (1990)20. Nela, três personagens, dentro de um carro, dirigem por uma estrada deserta e ensolarada, ao mesmo tempo em que decidem como irão levar a vida a partir daquele momento. Após vaticinarem, uma das personagens diz: "bem, vou por um pouquinho de música!". A partir deste momento já não sei mais se estou no filme ou se o filme tornou-se a própria realidade, apenas permito-me [enquanto decido qual caminho pegar] ouvir e cantar, junto com as personagens, a música que toma conta do veículo:

Cuando pierda todas las partidas Cuando duerma con la soledad Cuando se me cierren las salidas Y la noche no me deje en paz Cuando sienta miedo del silencio Cuando cueste mantenerse en pie Cuando se rebelen los recuerdos Y me pongan contra la pared

Resistiré, erguido frente a todo Me volveré de hierro para endurecer la piel Y aunque los vientos de la vida soplen fuerte

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A cena pode ser conferida pelo link . Acesso em: 06 set. 2016

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Soy como el junco que se dobla, Pero siempre sigue en pie

Resistiré, para seguir viviendo Soportaré los golpes y jamás me rendiré Y aunque los sueños se me rompan en pedazos Resistiré, resistiré

Cuando el mundo pierda toda magia Cuando mi enemigo sea yo Cuando me apuñale la nostalgia Y no reconozca ni mi voz Cuando me aminace la locura Cuando en mi moneda salga cruz Cuando el diablo pase la factura Se alguna vez me faltas tu Resistiré Duo Dinâmico, na música "Resistiré" (1988)

Na tentativa de descobrir "quais vozes podem falar dentro desse jogo" decido continuar jogando. Chegar rapidamente ao fim apenas cessará minha curiosidade, mas continuar jogando me manterá no jogo. A minha saída é pela esquerda! Rolam os dados... - - - - - - - - - - - - - - -

[Cena 5/Escrita 3] - Em um cemitério, num dia ensolarado e de uma ventania ensurdecedora, várias mulheres limpam as sepulturas, entre elas está Raimunda, Paula e Sole, respectivamente uma mãe, uma filha e uma tia. Ao fundo ouvimos a canção Las Espigadoras, da opereta La Rosa del Azafrán. Em setembro de 2009, numa entrevista para o periódico cultural Serafina, da Folha de São Paulo, Pedro Almodóvar, quando questionado sobre uma música predileta, responde: "Uma das primeiras canções de que me lembro é uma música que minha mãe e suas amigas cantavam enquanto lavavam roupas no rio. Devia ter uns quatro ou cinco anos naquela época. A canção aparece em 'Volver' e se chama 'Las Espigadoras', da opereta 'La Rosa del Azafrán'". 75

Paula, uma adolescente de quatorze anos, ao observar o cemitério cheio de mulheres cuidando dos seus mortos, fala, curiosamente espantada, para sua mãe e sua tia: "Quantas viúvas têm aqui!". Ao dirigirem-se para o carro Paula questiona: "Mamãe, é verdade que as pessoas vêm arrumar seu próprio túmulo?". Raimunda responde: "Sim, aqui é costume. Se comprar primeiro seu terreninho vão cuidar dele em vida. Como se fosse um chalé.". "Que loucura, tia!", responde Paula. "São costumes!", retribui Sale. Frederic Strauss (2008) questiona Pedro Almodóvar: "Ressuscitar o passado era seu objetivo principal em Volver?". O cineasta responde assim:

Era a própria ideia do filme antes mesmo de eu começar a rodá-lo: redescobrir as sensações do meu passado. Eu não sabia se isso ia acontecer, mas a ideia se tornara uma realidade. Reencontrei em La Mancha [região da Espanha onde o cineasta nasceu] as lembranças que eu deixara lá, como aquela visão do cemitério cheio de mulheres cuidado das sepulturas. Fiquei muito satisfeito com esse primeiro plano do filme (Fig 6) . Vemos as mulheres da aldeia e percebemos que não são figurantes: elas continuam a ser exatamente como as da minha infância. Não há no filme personagem de criança, mas o ponto de vista é o meu quando era pequeno. (STRAUSS, 2008, p.283) [grifo meu]

É a partir desses fragmentos que [re]inicio a etapa mais derradeira dessa excripta.

Figura 6 - Sepulturas no início do filme Volver

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O filme Volver, lançado em 2005, ano que completei quinze anos de idade, aglutina todas as experiências subjetivas em relação às normas de sexualidade e gênero que venho refletindo ao longo dos anos. Não é por acaso que nesse mesmo ano, num épico de guerra familiar e sócio-política, tornei pública a minha orientação sexual e de gênero e, desde então, tenho seguido cada vez mais a reverberar tais posicionamentos identitários. A película almodovariana gira em torno da loucura, dos segredos familiares e das experiências místicas com os mortos e, para além disso, o abuso sexual é também o personagem mais intrigante desse filme. Duas gerações marcadas pela violência do abuso físico e marcadas pela violência do silêncio a que são obrigadas a conviver. Raimunda, a mãe, vivida pela atriz Penélope Cruz, foi violentada pelo seu pai e através desse abuso engravidou de Paula. Paula, vivida pela atriz Yohana Cobo, também é violentada, anos mais tarde, pelo seu pai de criação, Paco (Antonio de La Torre). Mãe, filha, mãe-irmã, um cruzamento sanguíneo que serve de personagem e cenário para as reflexões que venho tecendo. Me permitam, xs estimadxs leitorxs, uma paródia do famoso poema Quadrilha (1930), de Carlos Drummond de Andrade, para dar conta, rapidamente, do enredo do filme:

Raimunda era filha de Irene que era casada com um pai que não é nomeado O sem nome violenta Raimunda que engravida de seu pai que é um abusador Irene, ao descobrir a trama, assassina-o e some da história. Paula era filha-irmã de Raimunda que era casada com Paco Paco violenta Paula que esfaqueia seu abusador, matando-o Irene dá fim ao abusador de Raimunda que dá fim ao abusador de Paula Irene, Raimunda e Paula são personas de Pedro que tinha entrado na história de Ramon. (QuaTrilha, Ramon, 2016)

A cena que mais me interessa aqui é justamente a morte de Paco, abusador de Paula. Ela não é filmada, mas reconstruo-a através dos fragmentos discursivos de Paula. Assistamos, pois: Paula, visivelmente nervosa, aguarda sua mãe Raimunda na parada de ônibus na esquina de casa. Ao descer do coletivo sua mãe questiona: "Há algo de errado?", Paula mantém-se calada e apreensiva. Ao entrarem no vão do prédio onde moram, Raimunda torna a questionar sua filha: "Onde está seu pai?" e Paula, criando

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coragem, diz: "Está na cozinha!". Já dentro de casa Raimunda grita horrorizada ao encarar o corpo ensanguentado e inerte no chão da cozinha (Fig. 7).

Figura 7 - Raimunda encara o corpo do abusador de sua filha

A partir daí ouvimos o diálogo entre mãe e filha:

Raimunda: O que aconteceu? Paula (chorando, mas com expressão de nojo e raiva): Estava na cozinha, de costas e de repente papai ficou em cima de mim. Estava bêbado! Perguntei, aos gritos, o que estava fazendo e ele disse que não era meu pai. Empurrei e tirei ele de cima de mim, mas se levantou e voltou a me abraçar. Voltei a empurrá-lo. Desabotoou a calça, dizendo que aquilo não era ruim e ele não era meu pai. Abri a gaveta e peguei uma faca e o ameacei, mas só para assustar ele. Me fez pouco caso, disse que eu não seria capaz e se jogou para cima de mim. Raimunda abraça sua filha e ambas choram juntas.

Com folhas de papel Raimunda estanca o sangue do abusador (Fig. 8) e logo em seguida lava a faca utilizada na morte do mesmo (Fig. 9).

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Figura 8 - Folhas de papel estancam o sangue do abusador

Figura 9 - Raimunda lava a faca

Em determinado momento Raimunda fala para Paula: "Volte ao seu quarto, Paula!" e ela responde "Não, quero estar contigo!". Duas gerações se juntam para vingar o abuso sexual que sofreram em vida. Duas gerações que agem ao sabor do tempo na tentativa de confrontar seus algozes. Duas gerações que usam as armas disponíveis para enfrentar o julgo opressor daqueles que lhes tomam seus corpos de assalto e que se beneficiam da cumplicidade dos discursos heteronormativos. Depois de conservar o corpo do abusador de sua filha, por algum punhado de dias num gélido freezer, Raimunda vai às margens de um rio e enterra o eletrodoméstico, com o corpo dentro, em sua margem. Algum tempo depois ao visitar o lugarejo juntamente com sua mãe Irene, sua irmã Sole e sua filha Paula, Raimunda fala: "Esse era o lugar preferido de seu pai: o rio!" e Paula responde, depois de olharem-se cumplicimente: "Gosto que descanse aqui!".

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Vou contar-lhes um detalhe que passa despercebido no filme Fale com ela, mas que será interessante para a minha argumentação a seguir. Permitam-me, digredir, mais uma vez... Benigno, como havia dito axs nobres leitorxs, o personagem abusador da película Fale com ela, conta histórias para Alicia, a abusada, em seu leito. Em determinado momento da película vemos sobre a cabeceira um exemplar do livro La noche del cazador, do autor estadunidense Davis Grubb, publicado em 1953. Essa obra inspirou o filme The night of the hunter (1955), que foi nomeado no Brasil como O Mensageiro do Diabo. De forma rápida, o filme narra a busca do bandido Harry Powell pelo dinheiro de um roubo cometido pelo seu companheiro de cela Ben Harper. Antes de ser preso, Ben Harper escondeu o dinheiro dentro da boneca preferida de sua filha Pearl e fez com que ela e seu irmão John prometessem nunca contar a ninguém a localização do dinheiro roubado, pois ele imaginaria sair logo da prisão e reconstruir a vida ao lado de sua mulher e seus filhos. O que assistimos a partir daí é a busca incessante de Harry, após sair da cadeia, pelo dinheiro do companheiro de cela: ele mata seu companheiro, casa-se com sua viúva, conquista todo o vilarejo com sua performance religiosa, assassina a mãe das crianças e passa a aterrorizá-lxs na tentativa de descobrir o paradeiro do dinheiro. Em determinado momento do filme as crianças fogem do cínico personagem, com a boneca endinheirada, e a caçada tem seu início. Na fuga os irmãos tomam um pequeno barco e fogem pelo rio numa noite estrelada... Vemos aí uma das mais belas cenas do cinema: seguindo a correnteza do rio, John dorme ao luar enquanto Pearl brinca com a boneca e canta uma música que em tradução livre diz: "Era uma vez uma mosquinha bonita que tinha esposa e duas mosquinhas, mas que já não as tem mais"21. A imensidão do rio contrasta com a pequenez do barquinho que segue sem rumo e sob o curso da correnteza. É possível também pensar na própria condição de solidão das crianças frente à imensidão das forças do mundo, mas, para longe de uma atitude de desânimo, ambas navegam seguindo o destino que escolheram pra si, isto é: fugir de alguém que lhes abusam física e psicologicamente. Rios de forças que renascem, rios que nunca secam, rios de perigosos [en]cantos, rios de afogamentos narcísicos, rios de príncipes abandonados, rios de sangue, rios de lágrimas, rios de silêncios, Río Almodóvar, Ramoon River, rios de moscas, rios de freezers... Ações, reações, rioações.

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Cena completa disponível em: . Acesso em: 09 set. 2016.

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Em Fale com ela, a personagem Alicia, mesmo desenganada pelos médicos, reage contra seu abusador ao acordar do coma e, cumprindo o desejo explicitado no autógrafo de Pina Bausch, "vence os obstáculos e começa a dançar"; Em Má educação, Ignácio escreve uma história, como forma de denúncia, inspirada nos anos que passou sobre o julgo dos abusos físicos do padre Manolo e de todas as violências sofridas dentro do colégio católico em que estudou; em Volver, Irene vinga-se do pai e abusador de sua filha Raimunda ao tocar fogo na casa onde ele estava dormindo; já Paula reage contra seu violentador matando-o com facadas em plena cozinha; Raimunda, por sua vez, reage contra seu abusador e contra o abusador de sua filha ao assumir para si a responsabilidade pela morte física e subjetiva de alguém capaz de abusar sexualmente de outro alguém. Não gostaria de forçar e nem dar a entender que estou forçando os argumentos fílmicos na tentativa de encaixar interpretações, mas percebam, poéticxs leitorxs, o abuso sexual, tematizado nos três filmes de Almodóvar usados aqui, produz reações no cenário sócio-político da própria narrativa, ao mesmo tempo em que possibilitam, a nós espectadores, lucubrar outros tantos cenários e mensagens que se aplicam ou aproximam-se da nossa cotidianidade nada cinematográfica. Entre tais cenários e mensagens a "reação ao abuso e ao abusador" aparecem como motes plenamente possíveis. É a partir desse mote que reflito, nessas derradeiras linhas, sobre todo esse processo dissertativo. Naveguemos, juntxs ... 

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5. Cena escrita em rios: Por uma heteroglossia final

[Cena escrita em rios] - Em 20 de março de 2014, numa quinta feira chuvosa na cidade do Salvador, sob a proteção caçadora de Oxóssi e sob o último dia da regência astrológica do meu signo Peixes, adentrei a sala 101 do PAF-3, na UFBA, em Ondina. Sob a batuta do queridíssimo e afetuoso professor José Roberto Severino eu iniciava a etapa mais desafiadora de minha vida acadêmica: o mestrado. Neste primeiro contato, como é praxe em turmas de sala de aula que ainda não se conhecem bem e que passarão longos semestres juntxs, cada pessoa falou sua formação inicial e quais as temáticas que estavam dedicando entusiasmo naquele programa de pós-graduação. Diante de tantas possibilidades que se apresentaram naquela manhã eu fiquei, confesso, desanimado em relação ao meu próprio objeto de pesquisa àquela época. A partir daí, tomado pela indecisão característica dxs piscianxs, mas tomado pela certeza de que essa etapa acadêmica não poderia passar incólume, decidi caçar um novo e mais pessoal objeto de pesquisa que representasse a grandeza desse passo que acabara de dar, totalmente oposto à minha vivência profissional anterior. Ao longo do semestre e me aproximando cada vez mais do meu desorientador Leandro Colling, cheguei àquilo que realmente me desestruturava: cheguei a mim. Refutei um tipo de pesquisa cronológica e metodologicamente estruturada, ao mesmo tempo em que topava o desafio de me expor. Sabia, desde o início, que não seria um processo fácil e muito menos em que medida queria me expor no território, ainda violento, da academia. Ao invés de recortar um objeto possível dentro do espectro das Ciências optei por recortar a minha própria ciência na expectativa de que ela mesma falasse, ela mesma se expressasse, ela mesma tomasse rumo nas águas acadêmicas. Ao abusar tão despretensiosamente das "normas acadêmicas" me surgiu a ideia de transgredi-la. Decidi usar a minha corporalidade e subjetividade para produzir conhecimento a partir de um lugar que, de fato, eu tinha participado. Se o mestrado é em Cultura e Sociedade, como não pensar a minha própria cultura? Como não cultivar outros processos dentro desse terreno escorregadio da cultura? Como se eximir do ato de "culturalizar-si", isto é, produzir, questionar e refletir a cultura a partir de si? Àquela altura não tinha mais escolha: era culturalizar-si ou nada. Ao voltar às margens do rio, sob os acordes dissonantes de Marcos - o meu abusador -, assumo o canto e entôo, tal qual Ignácio, a canção Moon River:

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Moon river... no te olvidaré, yo no me dejaré llevar por el agua, agua turbia del río de la luna que suena al pasar.

Río y luna, dime dónde están, mi dios, el bien y el mal, decid.

Yo quiero saber qué se esconde en la oscuridad y tú lo encontrarás, río y luna... adiós.

Mi luna, ven y alúmbrame, no sé ni dónde estoy, por qué. Oigo el rumor de aguas turbias que me llevan lejos, muy lejos de mí.

Moon river... dime dónde están mi dios, el bien y el mal, decid.

Yo quiero saber qué se esconde en la oscuridad y tú lo encontrarás, Moon river... adiós. Ignácio canta Moon River no filme Má educação (2003)

"O sangue escorreu e dividiu minha testa em dois. Senti que a mesma coisa iria acontecer com minha vida. Que ela seria sempre dividida e nada poderia fazer para evitar". A desesperança que emerge das palavras de Ignácio encontra eco justamente nas violências cotidianas a que as crianças que sofrem abuso sexual são 83

empurradas a conviver. Um mix de vergonha, por ter a sua corporalidade invadida, tomada de si, ao mesmo tempo uma dose brutal de impotência em relação à discursividade do adulto que, mediante violências subjetivas, faz com que o silêncio impere e o medo paralise. No terceiro volume de sua História da sexualidade - o cuidado de si (1985), acompanhamos a genealogia de Michel Foucault dar conta dos processos discursivos que se ocuparam de analisar, revelar, classificar, interrogar e cooptar os mecanismos que se relacionam diretamente com a produção e a reprodução de uma dada moral em torno da sexualidade ou da moral dos prazeres. Nesse sentido, ele cita três movimentos, que se deram ao longo dos séculos e que ajudaram a complexificar o relacionamento entre os indivíduos e as normas do biopoder, centradas, portanto, naquilo que ele nomeou de analítica da sexualidade. Os movimentos são assim descritos:

a atitude individualista, caracterizada pelo valor absoluto que se atribui ao indivíduo em sua singularidade e pelo grau de independência que lhe é atribuído em relação ao grupo ao qual ele pertence ou às instituições das quais ele depende; a valorização da vida privada, ou seja, a importância reconhecida às relações familiares, às normas de atividade doméstica e ao campo do interesses patrimoniais; e, finalmente, a intensidade das relações consigo, isto é, das formas nas quais se é chamado a se tomar a si próprio como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se, corrigirse, purificar-se, e promover a própria salvação. (FOUCAULT, p.48, 1985)

Para o autor não há uma cronologia exata para o desenvolvimento de tais movimentos, isto é, eles se deram ao longo dos séculos e estiveram muitas vezes amalgamados. Acontece que a partir do século XVII e com apogeu no século XIX vemos irromper no cenário político e social toda a potência dos três movimentos, ou melhor, vemos "o desenvolvimento daquilo que se poderia chamar uma 'cultura de si22', na qual foram intensificadas e valorizadas as relações de si para consigo" (FOUCAULT, p.49, 1985). Levando em conta a dinâmica dos protagonismos sociais, as infinitas possibilidades de interpelações promovidas pelas instituições e outrxs indivíduos e, por último, que a temporalidade dos contextos sócio-político são inerentes às nossas formações enquanto indivíduos, Foucault nos diz: "não há idade para se ocupar 22

"Pode-se caracterizar brevemente essa 'cultura de si' pelo fato de que a arte da existência - a techne tou biou sob as suas diferentes formas - nela se encontra dominada pelo princípio segundo o qual é preciso 'ter cuidados consigo'; é esse princípio do cuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu desenvolvimento e organiza sua prática" (FOUCAULT, 1985, p.49)

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consigo" (1985, p.54). Nesse sentido, a que dedicar tempo e atenção, também, a toda uma série de discursos e práticas que permitem o exercício desse cuidado de si:

Esse tempo não é vazio: ele é povoado por exercícios, por tarefas práticas, atividades diversas. Ocupar-se de si não é uma sinecura. Existem cuidados com o corpo, os regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso, a satisfação tão medida quanto possível, das necessidades. Existem as meditações, as leituras, as anotações que se toma sobre livros ou conversações ouvidas, e que mais tarde serão relidas, a rememoração das verdades que já se sabe mas de que convém apropriar-se ainda melhor. [...] em torno dos cuidados consigo toda uma atividade de palavra e de escrita se desenvolveu, na qual se ligam o trabalho de si para consigo e a comunicação com outrem. (FOUCAULT, 1985, p. 56-57)

Sintetizando a complexidade dessa cultura/cuidado de si, o autor chama atenção: "Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo: ela não constitui um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática social. E isso, em vários sentidos." (FOUCAULT, 1985, p.57). O sentido que nos interessa mais especificamente aqui são os sentidos atribuídos à prática de uma determinada norma de sexualidade e gênero, afinadas com a heteronormatividade analisada por Butler, e que potencializam a abjeção, "grotescabilidade" ou "anormalidade" daquelxs que não seguem tal norma. Foucault, afinado com nossa reflexão, nos alerta: O prazer sexual enquanto substância ética é ainda e sempre uma ordem de força - da força conta a qual é preciso lutar e sobre a qual o sujeito deve assegurar sua dominação; mas nesse jogo da violência, do excesso, da revolta e do combate, o aceno é colocado cada vez mais naturalmente na fraqueza do indivíduo, na fragilidade, na necessidade em que ele se encontra de fugir, de escapar, de se proteger e de se manter abrigado. A moral sexual exige, ainda e sempre, que o indivíduo se sujeite a uma certa arte de viver que define os critérios estéticos e éticos da existência; mas essa arte se refere cada vez mais a princípios universais da natureza ou da razão, aos quais todos devem curvar-se e da mesma maneira, qualquer que seja seu status. (FOUCAULT, 1985, p.72)

É preciso, então, estar atento à letra, à escrita e à cantoria: "Yo quiero saber, qué se esconde en la oscuridad y tú lo encontrarás, río y luna...". Esse caminho, de olhar atento, me coloca cara a cara com outro escrito contemporâneo ao terceiro volume da História da sexualidade: é o texto "A escrita de si" (2006), de autoria também foucaultiana. Nele, empreendendo o mesmo esforço genealógico e refletindo mais detidamente sobre a escrita como uma técnica que pertence ao projeto de 85

cultura/cuidado de si, o autor nos escreve: "Nenhuma técnica, nenhuma aptidão profissional podem adquirir-se sem exercício; também não se pode aprender a viver - a tekne tou biou - sem uma askesis, entendida como um adestramento de si por si mesmo" (FOUCAULT, 2006, 146). Por isso mesmo que, ao decidir voltar à margem do meu rio de memórias, eu sabia que deveria exercitar o próprio exercício da viagem. Na acepção de Guacira Lopes Louro (2004) , x viajante não é aquelx que vai gradativamente "tomando posse de si mesmo", mas, na medida mesmo em que viajam a ideia de desenraizamento, de deslocamento, trânsito, desterritorialização se agregam à própria ideia de viajar. Em resumo:

não há um lugar de chegar, não há destino pré-fixado, o que interessa é o movimento e as mudanças que se dão ao longo do trajeto. [...] os sujeitos podem até voltar ao ponto de partida, mas são, em alguma medida, 'outros' sujeitos, tocados que foram pela viagem. Por certo também há, aqui, formação e transformação, mas num processo que, ao invés de cumulativo e linear, caracteriza-se por constantes desvios e retornos sobre si mesmo, um processo que provoca desarranjos e desajustes, de modo tal que só o movimento é capaz de garantir algum equilíbrio ao viajante. (LOURO, 2004, p.13)

VOLVER é a metáfora mais precisa para dar conta justamente dessa viagem a que me propus fazer. Como palavra ela comporta a ideia do retorno, de uma viagem no tempo passado; de um retorno à infância com olhares de adulto; de uma contação de história que retroage; de uma estória que alimenta a imaginação de infantes e adultos; de uma pergunta que nos desestabiliza na hora mesma em que é proferida: e se? [nesse caso aplicada sempre a uma situação anterior: e se eu fizesse algo? e se eu falasse? e se eu não calasse? e se eu me recusasse? e se...?]. VOLVER, também, refere-se ao título da película almodovariana na qual a própria personagem abusada reage a partir de uma ação lida socialmente como de legítima defesa, portanto, que comporta toda a carga de justiçamento, do olhar benevolente das Leis. VOLVER, não enquanto palavra mas enquanto sonoridade da língua portuguesa, em território brasileiro, nos possibilita, também, uma atitude que se aproxima do ato de ver algo: VOU VER! Aqui, nessas linhas, vou ver o rosto do meu abusador, vou ver a corporalidade dele, vou ver como estive envolvido em sua discursividade abusadora e como estive "em suas mãos", vou ver como as instituições sociais foram cúmplices do abuso que sofri. Vou ver, também, como a minha história, longe de ser inédita, mantém íntima relação com outras tantas 86

histórias de violência infantil. Vou ver os acordes corretos, vou ver o tom, vou ver o som, vou ver o olho do meu abusador, encarando-o, enquanto canto às margens do rio. Em determinado momento do filme Volver, numa festa promovida num restaurante, Paula fala com Raimunda: "Eu nunca a ouvi cantar, mamãe!", ela devolve "Sério mesmo, minha filha? E você gostaria?" e Paula, esperançosa, "Que coisa, claro mamãe!". A partir daí a atriz Penélope Cruz, intérprete de Raimunda, dirige-se aos tocadores de violão na varanda e canta, visivelmente emocionada, a música Volver, da famosa cantora espanhola de flamenco Estrella Morente:

yo adivino el parpadeo de las luces que a lo lejos van marcando mi retorno son las mismas que alumbraron con sus pálidos reflejos hondas horas de dolor

y aunque no quise el regreso siempre se vuelve al primer amor la vieja calle donde el eco dijo tuya es su vida, tuyo es su querer, bajo el burlón mirar de las estrellas que con indiferencia hoy me ven volver

Volver... con la frente marchita las nieves del tiempo platearon mi sien sentir... que es un soplo la vida que veinte años no es nada que febril la mirada errante en la sombra te busca y te nombra 87

vivir... con el alma aferrada a un dulce recuerdo que lloro otra vez

Tengo miedo del encuentro con el pasado que vuelve a enfrentarse con mi vida... Tengo miedo de las noches que pobladas de recuerdos encadenan mi soñar...

Pero el viajero que huye tarde o temprano detiene su andar... Y aunque el olvido, que todo destruye, haya matado mi vieja ilusión, guardo escondida una esperanza humilde que es toda la fortuna de mi corazón Volver... Raimunda, personagem de Penélope Cruz, canta Volver no filme Volver.

O diálogo musical intertextual entre Raimunda e Paula, ambas abusadas e ambas vingadoras do abuso, tornaram a minha viagem deliciosamente reconfortante no momento quando vou ver que a escrita é justamente o meu modo de reagir ao abuso e ao silenciamento social imposto sobre tal violência. "Como elemento de treino de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se encontra em Plutarco, uma função etopoiética: é um operador da transformação da verdade em ethos" (FOUCAULT, 2006, p.147). Mas o ethos que tento produzir aqui nessas linhas nem de longe reafirma, promove ou diz-certa-ação, ao contrário, ela recorta, fatia, produz cortes na coerência e no modus operandi acadêmico: uma espécie de escrita da família dos falconídeos, carcaraniana. Se a cantora "pega, mata e come", aqui eu Volver, fatio e escrevo!

O papel da escrita é construir, com tudo que a leitura constituiu, um 'corpo' (quicquid lectione collectum est, stilus redigat in corpus). E,

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este corpo, há que entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas sim - de acordo com a metáfora tantas vezes evocada da digestão como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fêz (sic) sua a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida 'em forças e em sangue' (in vires, in sanguinem). Ela transforma-se, no próprio escritor, num princípio de ação relacional. (FOUCAULT, 2006, p.152)

Não à toa a faca usada por Paula para dar fim ao seu abusador (Fig. 9) é a mesma faca utilizada no preparo do alimento (Fig. 10) da festa em que Raimunda, acompanhada por Ramon, por Paula, por Alicia, por Ignácio e por todas as corporalidades que foram abusadas, canta: ... Pero el viajero que huye tarde o temprano detiene su andar... Y aunque el olvido, que todo destruye, haya matado mi vieja ilusión, guardo escondida una esperanza humilde que es toda la fortuna de mi corazón Volver...

Figura 10 - Raimunda usa a mesma faca que matou o abusador para preparar o alimento

O viajante que antes fugia, hoje detém o seu fugir. Ao fatiar os temperos dissertativos o viajante-cozinheiro tenta produzir novos alimentos, novos pratos, novas formas de comer, novas formas de escrever com os ingredientes disponíveis. Numa

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espécie de mexidão23 gastronômico tento utilizar a minha corporalidade e minha subjetividade para fazer com que outrxs tantxs também reflitam sobre as violências cotidianamente produzidas e reproduzidas pela heteronorma. Se para Foucault o papel da escrita é produzir um corpo atento às normas de doutrinação, é inegável que, ao reescrever o abuso sexual sofrido pelo Ramon infante, estou me afinando com a prática cartográfica nos explicitada nos termos de Suely Rolnik (2014). Isto é, ao cartografar as paisagens das subjetividades infantis, pratico três ações: a ação de desejar, a ação de produzir vida[S] e a ação de fazer política. Vou ver uma produção violenta sobre os corpos infantis e suas subjetividades, utilizo minha dissertação-revólver para matar subjetiva e discursivamente os abusos, ao mesmo tempo em que trago à vida todas as vozes que foram silenciadas [pelo abuso e pela heternorma]: faço-as falar, faço-as denunciar seus abusadores, faço-as viajar em seus próprios rios. Por último, e aqui pra mim é a atitude mais importante desse trabalho, luto, politicamente, para denunciar os discursos sociais que colocam a criança abusada em dois, e únicos papéis sociais possíveis, o do algoz [pelo qual devemos nutrir medo e vigilância] e o da vítima [pelo qual devemos nutrir piedade, cuidado e tratamento]. Luto, politicamente, para empreender um movimento de desregulação do abuso sexual, luto em prol do nãosilenciamento. Dessa forma, como expressei anteriormente, cartografo as paisagens psicossociais de uma infância violentada, buscando traçar itinerários possíveis para a ressignificação do adoecimento psíquico de tais subjetividades violentadas. Escrevo um relato de mim mesmo, mas escrevo, também, afetado por uma série de normatizações e interpelações que foram contemporâneas à criança que fui. Não significa apenas viajar à margem do rio e cantar alucinadamente, significa preocupar-se com os acordes, com o repertório, com os músicos que me acompanharão e com a platéia. A platéia, última instância desse espetáculo, é o componente principal dessa performance. Como diz/canta Maria Bethânia: "Sem ela não se anda. Ela é a menina dos olhos de Oxum,

23

Mexidão é uma receita típica de muitos lares brasileiros que nada mais é do que a utilização de vários

ingredientes das sobras de pratos dos dias anteriores na confecção de um novo prato. É muito comum após as festas natalinas o mexidão feito com os ingredientes das sobras do peru, do arroz com passas etc. A internet está recheada de receitas de mexidão. Como bom baiano sugiro o "Mexidão Doido Baiano", receita disponível em: < http://goo.gl/gY4rU8>. Acesso em 12 set. 2016.

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flecha que mira o sol. Oyá de mim!"24. Daí que inspirado por Judith Butler (2015) faço um relato de mim mesmo, performo a minha própria violência para uma platéia interessada [ou não], canto solo, em dueto, em coro, canto com outrxs corpos, canto com outras vozes. Ouço o canto da Iara25, mas longe de encantar-me, convido-a para cantar junto.

Quando o 'eu' busca fazer um relato de si mesmo, pode começar consigo, mas descobrirá que esse 'si mesmo' já está implicado numa temporalidade social que excede suas próprias capacidades de narração; na verdade, quando o 'eu' busca fazer um relato de si mesmo sem deixar de incluir as condições de seu próprio surgimento, devo, por necessidade, tornar-se um teórico social. A razão disso é que o 'eu' não tem história própria que não seja também a história de uma relação - ou conjunto de relações - para com um conjunto de normas [corporalidades e subjetividades - grifo meu]. (BUTLER, 2015, p.18)

Novamente, num dueto com Maria Bethânia, parodio a canção e, juntxs, reagimos contra os abusos sexuais, contra as normas silenciadoras de nossos corpos e subjetividades dissidentes: Eu posso engolir vocês, só pra cuspir depois Minha fome é matéria que você não alcança. Desde o leite do peito de minha mãe, até o sem fim dos versos, que brotam do poeta em toda poesia sob a luz da lua que deita na palma da inspiração de Caymmi. Quando choro, se choro, é pra regar o capim que alimenta a vida, [escrevendo] eu refaço as nascentes que você secou. Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal e sortilégio. Eu ando de cara pra o vento na chuva, e quero me molhar. [...] Sou como a haste fina, que qualquer brisa verga, nenhuma espada corta Não mexe comigo, eu não ando só. Música "Carta de Amor", presente no mesmo DVD citado na nota 23. 24

Na canção "A Dona do Raio e do Vento", faixa 4 do Ato 1 do DVD "Carta de Amor" (2013).

25

"A Iara é uma personagem do folclore brasileiro. Ela é uma linda sereia que vive no rio Amazonas, sua

pele é morena, possui cabelos longos, negros e olhos castanhos. A Iara costuma tomar banho nos rios e cantar uma melodia irresistível, desta forma os homens que a veem não conseguem resistir aos seus desejos e pulam dentro do rio. Ela tem o poder de cegar quem a admira e levar para o fundo do rio qualquer

homem com

o

qual ela

desejar

se

casar."

Disponível

em:

. Acesso em 12 set. 2016

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"Escrever é pois, 'mostrar-se', dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro" (FOUCAULT, 2006, p.156). Quando escrevo uma espécie de justiça é cumprida, tenho a nítida sensação de conseguir falar, uma liberdade ansiada há muito, mas que pela incidência dos poderes heteronormativos, foi adiada até quase acreditar que não existiria mais possibilidades de reação. Ao final de tudo revelo, axs caríssimxs leitorxs que me acompanharam durante essa viagem, que é possível sim empreender um outro tipo de ação que não seja produtora e reprodutora de violências, contra as subjetividades e corporalidades que são cotidianamente subalternizadas ou, como sintetiza Butler (2015):

Não há criação de si (poiesis) fora de um modo de subjetivação (assujettisement) e, portanto, não há criação de si fora das normas que orquestram as formas possíveis que o sujeito deve assumir. A prática da crítica, então, expõe os limites do esquema histórico das coisas, o horizonte epistemológico e ontológico dentro do qual os sujeitos podem surgir. Criar-se de tal modo a expor esses limites é precisamente se envolver numa estética de si-mesmo que mantém uma relação crítica com as normas existentes. (BUTLER, 2015, p.29)

Por isso, tal qual a canção "Divino Maravilhoso", de Caetano Veloso e cantada por Gal Costa:

Atenção Tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso Atenção para o refrão É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte Atenção para a estrofe e pro refrão

Daí que:

Uma operação crítica não pode acontecer sem essa dimensão reflexiva. Pôr em questão um regime de verdade, quando é o regime que governa a subjetivação, é pôr em questão a verdade de mim mesma e, com efeito, minha capacidade de dizer a verdade sobre mim mesma, de fazer um relato de mim mesma. Desse modo, se questiono o regime de verdade, questiono também o regime pelo qual se atribuem o ser e minha própria condição ontológica. (BUTLER, 2015, p.35).

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Por todas essas linhas eu volto a perguntar: quem pode falar dentro desses cenários de abuso e violência? Se xs nobres leitorxs já estiverem cansadxs certamente a resposta [única] recai sobre as personagens da família nuclear burguesa, sobre as disciplinas médico-patologizantes, sobre as teorias subjetivas que mitologizam e aprisionam o inconsciente, sobre a academia promotora de uma produtividade fordista e desprovida de emotividade, todas elas produzem e reproduzem a heteronorma sob qual os nossos corpos, nossos gêneros, nossas sexualidades e nossas violências são todas naturalizáveis e nunca passíveis de bem-estar, luto e reconhecimento. Por outro lado, se vocês, leitorxs de meus rios, assumirem de antemão que "as normas pelas quais eu reconheço o outro ou a mim mesma não são só minhas", certamente "o horizonte normativo no qual eu vejo o outro e, com efeito, no qual o outro me vê, me escuta, me conhece e me reconhece também é alvo de uma abertura crítica" (BUTLER, 2015, p.37). Nesse sentido, a multiplicidade e a diferença potencializam as vozes, o volume das multidões queer (PRECIADO, 2011) são aumentados e o medidor de decibéis pifam pois não conseguem catalogá-lo e encaixá-lo em escalas. Então a resposta para a pergunta "quem pode falar dentro desses cenários de abuso e violência?" é infinita... Falam Ramons, Pinas, Alicias, Raimundas, Ignácios, Paulas, Penélopes, Pedros, Marias... Falam encantados, santos, orixás, ventos, rios, mares... Falam os abusos, falam os silêncios, falam os infantes... Falam as facas, falam os livros, falam as bebidas alcoólicas, falam a maconha, falam a cocaína, falam o coquetel... Falamos, violentados, em múltiplas línguas, em múltiplos filmes, em múltiplos encontros. No final de tudo continuamos a Falar com ela.

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FILMOGRÁFICAS ÁTA-ME (¡Átame!). Escrita e Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Augustín Almodóvar. Intérpretes: Victoria Abril, Antonio Banderas, Loles León, Julieta Serrano, Rossy de Palma, Franscisco Rabal. Música: Ennio Morricone. Espanha: El Deseo, 1990. 1 DVD (101MIN), LETTERBOX, COLOR. Produzido por El Deseo.

FALE COM ELA (Hable com ella). Escrita e Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Augustín Almodóvar. Intérpretes: Javier Cámara, Dario Grandinetti, Rosario Flores, Leonor Watling, Caetano Veloso e outros. Música: Alberto Iglesias. Espanha: El Deseo, 2002. 1 DVD (112MIN), LETTERBOX, COLOR. Produzido por El Deseo.

MÁ EDUCAÇÃO (La mala educación). Escrita e Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Augustín Almodóvar. Intérpretes: Gael García Bernal; Fele Martínez; Daniel Giménez Cacho; Lluis Homar; Francisco Boira; Javier Cámara e outros. Editor: José Salcedo. Música: Alberto Iglesias. Espanha: El Deseo, 2003. 1 DVD (105MIN), LETTERBOX, COLOR. Produzido por El Deseo.

VOLVER. Escrita e Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Esther García. Intérpretes: Penélope Cruz; Carmen Maura; Lola Dueñas; Blanca Portillo; Yohanna Cobo e Chus Lampreave. Montagem: José Salcedo. Música: Alberto Iglesias. Profutor Executivo: Augustín Almodóvar. Espanha:

El

Deseo,

2005.

1

DVD

(121MIN),

WIDESCREEN

ANAMÓRFICO,

COLOR. Produzido por El Deseo.

O MENSAGEIRO DO DIABO (The Night of Hunter). Direção: Charles Laughton. Intérpretes: Robert Mitchum; Shelley Winters; Billy Chapin; Sally Jane Bruce; Lillian Gish e outros . EUA: 1955. (92MIN), BLACK AND WHITE.

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MUSICAIS E POEMÁRIAS

"A Dona do Raio e do Vento" e "Carta de Amor" (Maria Bethânia) "Piuí abacaxi" (Trem da Alegria) "Moon River" (Pedro José Sanchez Martinez) "Resistiré" (Duo Dinâmico) "Volver" (Penélope Cruz/Estrella Morente) "Divino Maravilhoso" (Gal Costa) "Vermelho" (Fafá de Belém) "Arrastran el cadáver" (Alberto Iglesias) "Procelária", de Sophia de Mello Breynner Andresen "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade

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APÊNDICE A - INCURSÃO LITERÁRIA

...Tudo é garantido Após a rosa vermelhar Tudo é garantido Após o sol vermelhecer... Fafá de Belém, na música "Vermelho".

Sugestão de trilha sonora: Arrastran el cadáver - Alberto Iglesias Modo de reprodução: Repeat Aviso: Nessas contínuas e malfadadas linhas, jazem fragmentos de estórias estuprados pelos tons mais vermelhos e abjetos dos sangues de história. Pensados como o mais saboroso dos vinhos, a cada gole garganta abaixo, cinismo, desejos inconfessáveis, hipocrisia e violência matam a nossa mais entediante sede de narrativas felizes. Querendo e podendo, siga! Mas lembrem-se, verdade e mentira é algo que não faz sentido algum a partir de agora, apesar de elas serem, sempre, escolhas suas... Crendo ou duvidando: VOLVER A ESTE AVISO!

Numa manhã mormacenta de derradeiros segundos de verão soteropolitano um corte cirurgicamente preciso e gélido trazia ao mundo o mais desejado dos bebês daquele casal recém matrimoniado. "Um machão!", orgulhava-se o pai, sempre com o exame de ultrassonografia em mãos para provar a todos a masculinidade falicamente avantajada daquele ser que acabara de impor-se ao mundo real pelo mais insuportável dos berros já ouvidos naquele hospital, que, não por acaso ou misticamente (caso queiram xs avisadxs leitorxs), tinha a sua alcunha de Hospital Espanhol da Bahia. O vermelho vida, do sangue que tingia a sua pele nua, despelada e imaculada, faria inveja ao mais rubro dos filmes de Pedro Almodóvar. Os caminhos do candomblé ventilaram, em muitos momentos da vida deste bebê escarlate, que os cursos tempestuosos de ambos se cruzariam anos mais tarde, o do cineasta das cores e de Jamón Ganador Madruga, personagem principal desta estória que vos apresento hoje. Jamón Ganador Madruga, o quarto neto da linhagem dos Ganador Madruga foi, de fato, a coisinha mais esperada daqueles tempos difíceis. Ele escolheu chegar num momento em que a metáfora da esperança imperava, pois, depois dos assassinos anos de 100

chumbo da ditadura brasileira, que se estendeu até cinco anos antes de sua chegada, os nascimentos eram os acontecimentos mais afetuosamente arejados para um povo enclausurado em ideologias. É claro que os episódios felizes não apagam por completo toda a atmosfera triste de uma época, mas pelo menos servem para diluir ou afastar as cortinas de fumaça que insistem em nos deixar descrentes disso que chamamos de humanidade. Atuam como uma espécie de marco positivo, de sublimação inconsciente! Os pormenores da infância de Jamón não conseguem entreter o mais aplicado dos leitores, isso porque as únicas e mais emocionantes aventuras se resumiam às brincadeiras de rua, iniciadas nas primeiras horas da manhã, intercalada com uma pequena pausa para o almoço em família e tendo o seu último, suado e ofegante suspiro, rigorosamente às seis horas da tarde, quando a beata vizinha, de devoção ritualística, escancarava os acordes mais cândidos e bucólicos da Ave Maria naquela intransponível estação de rádio. Narrar as subjetividades de uma criança nascida na década de 1990 é uma tarefa um tanto quanto curiosa. Isso porque tal década está situada num lugar muito estranho, numa época sem sabor, digamos assim. Explico: ela está entre o peso político de um governo ditatorial, carregado de feridas e sensações de um lado e o alvorecer do século vinte e um, com suas revoluções tecnológicas e discursos apocalípticos do outro, ou seja, os anos noventa funcionaram como uma espécie de período transitório, de um nãolugar, de uma hiato brusco entre os corpos e as máquinas. Daí que os filhos dessa chamada Geração Z quase sempre rendem bons roteiros, pois ao fugirem do lugar comum qualquer coisa pode ser interessante. Nesse caminho, a história de Jamón Ganador Madruga ganha outro suspiro e nos apresenta um devir-abuso, um devirressignificação... Mas aí já estamos adiantando bastante nosso complicado enredo. Vamos com calma! A saga almodovariana desse Ganador Madruga, de quarta geração, tem início no oco eco de uma casa, ainda presente nos classificados do jornal para ser alugada, pertencente ao seu vizinho Sátiros Erectus, um moreno homem, de idade quase adulta, que sabia, de fato, utilizar seu repertório falante para conseguir seus objetivos. Diga-se de passagem, tais habilidades discursivas poderiam passar despercebidas, pois a beleza dos traços estéticos, milimetricamente programados pela natureza, faziam daquele homem a definição perfeita do falo, nos escritos psicanalíticos clássicos e contemporâneos. A paleta de cor que tingia sua melaninada pele contrastava em antípoda com o alvo albíneo das suas partes baixas, obtidas através de uma relação 101

íntima e fiel com o sol bronzeante das peladas nas praias da Barra. Sua musculatura, nada avantajada, era dividida tal qual a proporção açucarada das colméias de abelha, tudo estava no seu devido lugar, nem em demasia nem em pouquidão. Aquele seu rosto fotográfico, de certo, não teria descanso nesses tempos celebritáticos... Quando sorria, um sorriso que sempre tentava esconder-se em sua beleza, ao mesmo tempo que seus olhos se apertavam, numa espécie de movimento involuntário, mecânico, tudo e todos ao seu redor entregavam-se à sua galante ação, nada estava à salvo de Erectus. Nem mesmo Ganador! Naquela casa vazia Jamón foi apresentado ao desejo sexual pela primeira vez. É mister destacar que na sua infantilóide idade o desejo gozoso se resumia à brincadeiras de rua, presentes de natal e objetos de clara conotação brincante. Nem em seus sonhos mais carnais aquela criança poderia desconfiar que o pênis daquele vizinhoamigo e galante homenzarrão lhe acompanhariam como um irmão siamês, pelo resto de sua vida. ... Erectus, aproveitando-se da confiança que a família de Ganador lhe conferia, levou o garoto para a solidão daquela casa e a partir daquele dia suas mais luxuriosas fantasias eram testadas naquele pequeno corpo. Jamón, que não sabia o significado que aquelas ações assumiam no corpo julgador da sociedade, interpretou-as como mais uma nova modalidade de brincadeiras e distrações de ordem infantil. Por isso é tão complexo pensar os processos de violência... Nem todas as interpretações dividem-se, apenas, entre o providencialmente bom ou o insuportavelmente mau, há gradações que nem mesmo a mais apurada teoria psi consegue dar conta satisfatoriamente, mas essas reflexões deixaremos, ironicamente, para Xs acadêmicXs. A abordagem inicial de Sátiros, como quem analisa o terreno para um bote mais preciso, intencionou testar o nível de confiança que Jamón lhe conferia (como um mecanismo de proteção posterior), ao mesmo tempo em que lhe apresentou a primeira lição no tutorial de um abusador fálico: "Esse é xxxx, o seu brinquedinho mais amigo e especial!" (onde "xxxx" deve ser substituído pelo apelido mais cândido e pessoal possível, nesses tipos de relação). Com o passar do tempo as lições eram apresentadas com um nível maior de complexidade, tendo sempre o brinquedinho-xxxx de Sátiros como a massa de modelar daquele aprendizado: apresentação, toque com as mãos, toque com os pés, movimentos de subida e descida com as mãos em ritmo lento, movimentos de subida e descida com as mãos em ritmo acelerado, toque com os lábios, toque com os lábios e língua, movimentos de sucção gustativa, movimentos de sucção seguidos de líquido, exploração traseira com as mãos, exploração traseira com língua, exploração 102

traseira com xxxx... E a educação sexual seguiu por entre os anos sem que nenhum familiar de Jamón percebesse aquela situação. Erectus, com a sua lábia peculiar e seus jogos de intimidação, deixava o pequeno Madruga sempre em situação de medo, vigilância e timidez constante. Tais relações se prolongaram até, aproximadamente, os oito anos de idade de Jamón e teriam se perpetuado caso a família de Sátiros não tivesse se mudado daquele aprazível e provinciano bairro na capital baiana. A participação do professor sexualis e de seu amado brinquedo, na infância de Jamón, foi interrompida bruscamente por essa mudança geográfica, apesar de seu espectro nunca deixá-lo em paz. Dizem as más (e boas) línguas que o processo de identificação de Ganador, com aquele belo exemplar de felino faminto, foi tão grande que a vida do violentado presuntinho tornou-se inteiramente sexualis. Uma espécie de vida científica em prol das descobertas proporcionadas pelo ato de desejar, pelo ato de transgredir, pelo ato de besuntar-se em líquidos... Uma espécie de método científico em busca do melhor e mais insaciável prazer. E assim, após um período de latência que se findou com o começo da adolescência, Jamón Ganador Madruga aceitou, sem muita reserva, a sua "natureza" desejosamente sexual e atirou-se no mundo em busca do melhor gozo. Já na adolescência, mantendo-se fiel à sua obstinada gozolândia, Jamón fez do seu sobrenome o espaço-tempo mais habitável: madrugou-se em infinitos dias! As ruas vazias e silenciosas, os becos mais escuros, as oportunidades oferecidas pelo anonimato das madrugadas horas, eram o palco para os seus mais lancinantes prazeres. Qualquer terapeuta que se disponibilizasse à escuta daquele defumado parma seria unânime em seu diagnóstico: "Hipersexualidade! Derivada de um contato precoce e forte com a experiência desejante e sexual. Vulgarmente chamada de ninfomania, quando a paciente em questão é mulher ou satiríase, quando o paciente em questão é homem!" [blá-bláblá...] Pobre ciência! Apreciadora de rótulos, mas desdenhadora de conteúdos. "Foda-se o seu diagnóstico! Eu quero os meus caminhos.", diria o madrugado boy. Em uma de suas saídas noturnas Jamón deu-se conta do tamanho de suas transgressões! A princípio, por estar entorpecido pela busca insaciável do prazer, não refletiu a grandiosidade que o ato sexual assumia em sua vida, mas, depois da absurda descarga orgasmática, envolveu-se em culpa cristã ao moralizar seus atos. O episódio que desencadeou tal percepção pode muito bem passar como um simples conto erótico nesses sites de putaria que infestam a internet, mas algo de diferente era vivenciado por aquele apresuntado viscoso em uma rua do centro da cidade. Na ânsia de sexo, Ganador 103

saiu pelas ruas em ritmados passos. Seus olhos, como o mais poderoso dos radares ou a mais apurada visão de uma ave, varria todas as possibilidades geográficas que estavam ao alcance de seu corpo (janelas acessas, carros estacionados, um ou outro transeunte a vagar pelas ruas, funcionários de órgãos públicos que trabalhavam na calmaria das noites silenciosas, meliantes que buscavam oportunidades financeiras sob o olhar da madrugada, funcionários policialescos de prédios burgueses... tudo era oportunidade para uma foda). Até que uma situação chamou sua atenção! Um morador de rua, com algumas tralhas apoiada no chão ao seu lado, deleitava-se em frente a um muro de uma rua abandonada fazendo a sua necessidade urinativa. Pela quantidade de líquido que aquele indivíduo espirrava nos tijolos cheios de limo daquela mureta, Madruga inferenciou que o álcool tinha feito companhia àquele ser desde a mais inicial hora do dia. Observando-o de longe Jámon não deixou de notar uma certa semelhança com aquele antigo vizinho que lhe apresentara as mais luxuriosas brincadeiras em sua tenra idade. Por um breve momento a marca de sunga em contraste com o bronzeado daquele corpo, a proporção áurea daquela musculatura, o sorriso com olho apertado e aquele pênis milimetricamente adornado por um sem número de veias lhe tomou a visão... O start fantasioso tinha sido dado! Naquele morador de rua foi despejada toda a carga memorialística daquela experiência infantil... Tomado pelo furor espermático Madruga não pestanejou, pôs-se ao lado daquele indivíduo e simulou uma mijada. A anatomia não deixava que aquela simulação mijística continuasse, isso por que o pau do presuntinho estava mais duro que pedra! Ao perceber a intenção daquele rapaz o inquilino da rua sorriu descaradamente e apontou o seu pau, já também duro, na direção do mentiroso mijão e ali mesmo, naquela deserta rua, as mais luxuriosas fantasias daquele presunto se concretizaram... Vejam vocês, nobres leitorxs, que coisa mais escabrosa! Onde já se viu FODER COM FANTASIAS? Onde já se viu FUDER COM FANTASMAS? Após esse fatídico episódio Ganador decidiu que não seria mais refém daquele que em outros tempos usou seu infantilóide corpanzil... Decidiu que seus caminhos não seriam atravessados por fantasmas e nem por construções discursivas e fantásticas... Decidiu que não poderia ser gozo pleno se sua fantasia estava em outro lugar... Decidiu que o corpo (o seu e dxs outrxs) é real e não é formado pela ideia de um Outro... Decidiu que sua vivência do passado foi violenta... Decidiu que seu corpo, tal qual ele fazia com xs outrxs, hoje, foi também utilizado por Erectus numa relação grosseiramente violenta... Decidiu que aquele homem foi o único culpado por aquele 104

abuso... Decidiu não mais vitimizar-se por aquele abuso... Decidiu agir... Decidiu matar fantasias... Decidiu vingar-se! Jámon, mimetizando um tigrinho carn[E]valesco, pôs-se à caça daquele seu antigo vizinho. Ligações, contato com amizades já perdidas no tempo, buscas nas redes sociais, pistas e mais pistas colocaram o passado e o presente cara a cara. Em uma tarde qualquer de mormacento verão, Ganador e Sátirus se encontraram. O primeiro sabia quem era aquele que estava em sua frente, mas o segundo (como que passando por cima de toda a lembrança e violência que causou à infância de uma criança) nem mesmo soube de quem se tratava. Após algumas cervejinhas e papos de clara conotação fuderística dirigiram-se à casa de Erectus. Na cama daquele antigo homenzarrão o plano vingativo de Ganador foi posto em prática. Depois de seduzi-lo com seu personagem infantil, criado especialmente para aquela ocasião, amarrou as mãos e pés do abusador nas extremidades da cama, tapoulhe a boca e finalizou aquele ABUSO há anos realizado.

Vermelho... Vermelho... Vermelho... Vermelho... Vermelho...

[Nenhuma culpa] [Raiva afiada] [Desejo solto] [Alma lavada] [Torneira ligada]

[Nenhum abuso] [Faca lavada] [Desejo ressignificado] [Nenhuma fantasia]

[Faca afiada] [Nenhum remorso] [Devir-abuso]

[Desejo livre] [Presunto podre]

[Ganador]

Não necessariamente nessa ordem... Volver!

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