Inquietações distópicas na literatura portuguesa contemporânea Um piano para cavalos altos
November 22, 2017 | Autor: C. Valada Becker | Categoria: N/A
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Inquietações distópicas na literatura portuguesa contemporânea Uma análise do romance
Um piano para cavalos altos, de Sandro William Junqueira Caroline Valada Becker
(Doutoranda Teoria da Literatura - PUCRS)
Orientador: Dr. Paulo Ricardo Kralik
As dimensões econômica, política e social são inerentes à utopia/distopia.
COMO ESTUDAMOS TAL CONCEITO? Segundo Teixeira Coelho, no livro O que é utopia (1981, p. 50), podemos utilizar três abordagens:
perspectiva literária (a utopia e a distopia como gêneros narrativos) Eixos, segundo Gregory Claeys (2013, p.8): • • •
“pensamento utópico” “literatura utópica” “busca de comunidades”
perspectiva filosófica
perspectiva política A narrativa utópica particulariza e corrige os mecanismos sociais que regem as relações entre os indivíduos e a coletividade (PAQUOT, 1999, p. 6)
UTOPIA, portanto, implica, na sua forma, preocupações ÉTICA e ESTÉTICA, ou IDEOLÓGICA e LITERÁRIA. “The concept of the semantic mutability characterising the term utopia must warn the reader of the dangers of rigid connotations in the attempts at defining this term.” (p. 632)
O GÊNERO UTOPIA: “in utopia, the elsewhere, the journey, the layout of some city, these simulate society.” (p. 635)
Vita Fortunati, ‘Utopia as a Literary Genre’, in Dictionary of Literary Utopias, ed. by Vita Fortunati and Raymond Trousson
Estratégias narrativas: • UTOPIA: um viajante é levado a uma sociedade utópica e a compara com sua própria sociedade; • DISTOPIA: já começa no terrível mundo (in media res).
(VIERIA, Fátima. “The concept of utopia”. Utopian literature.)
“Uma coisa é certa: a UTOPIA – e isto desde Thomas Morus – não é um futuro, e sim um outro lugar. Na realidade, não trata de imaginar, em um processo prospectivo, um novo mundo, mas de localizá-lo, aqui e agora, no centro mesmo do antigo mundo.” (PAQUOT, 1999, p. 13)
E NA DISTOPIA? “A palavra ‘utopia’ passou a existir com a publicação do pequeno livro de More, em dezembro de 1516. More cunhou-a ao fundir o advérbio grego ou – “não” – ao substantivo tópos – “lugar” –, dando ao composto resultante uma terminação latina.” (LOPES, 2011, p. XV) • U-CRONIA – NÃO TEMPO • U-TOPIA – NÃO-LUGAR • NUSQUAMA – LUGAR NENHUM
UTOPIA Século XVI, com a obra Utopia, de Thomas More “Uma das principais características da utopia como gênero literário é a sua relação com a realidade. Utopistas partem da observação da sociedade em que vivem, percebem os aspectos que precisam ser mudados e passam a imaginar um lugar onde esses problemas foram resolvidos.” (VIEIRA, 2010, p. 8)
DISTOPIA Século XX Projeção negativa, cujas marcas essenciais são o colapso e o caos.
• Distopia são “pesadelos ao invés de idílios” (SZACHI, 1972, p. 111). • Um “mau lugar, lugar da distorção” (COELHO, 1981, p. 45)
“As utopias buscam a emancipação ao visualizar um mundo baseado em ideias novas, negligenciadas ou rejeitadas; as distopias buscam o assombro, ao acentuar tendências contemporâneas que ameaçam a liberdade” (JACOBY, 2007, p. 40). •
Se a utopia enuncia projeções positivas, a distopia, também se relacionando com a sociedade que circunda o autor no momento da criação, tece críticas à sociedade, algo como visões negativas (e verossímeis) dos aspectos políticos e sociais, potencializados na elaboração estética, é claro.
A ação humana cria a UTOPIA – intervenção “[…] esta terra não foi sempre uma ilha. Chamava-se antigamente Abraxa e se ligava ao Continente; Utopus apoderou-se dela, e deulhe seu nome. Este conquistador teve bastante gênio para humanizar uma população grosseira e selvagem […]. Desde que a vitória o fez dono deste país, mandou cortar um istmo de quinze mil passos no lado em que está ligado ao continente: e a terra de Abraxa tornou-se, assim, a ilha da Utopia” (MORUS, 2011, p. 69-70)
“O paraíso perdido”, de Grefory Claeys (In: Utopia: a história de uma ideia)
“No final do século XIX, ficou claro que a industrialização causava aumento de poluição e degradação da vida urbana, em especial dos pobres. Uma resposta foi o renascimento do imaginário apocalíptico, antes associado quase exclusivamente à religião, principalmente ao cristianismo. A fantasia do imenso e crescente poder científico e tecnológico – que segue sendo o principal tema da ficção científica moderna, o maior subgênero do utopismo –, a partir de meados do século XIX, produz uma sensação desesperadora de incapacidade de conter os excessos de invenção. Máquinas tornam-se mais complexas, mas seus usos diabólicos deixam as guerras mais destrutivas. Utopia e distopia andam cada vez mais lado a lado” (p. 207)
Parafraseando as ideias de Gregory Claeys apresentadas no texto “The origens of dystopia: Wells, Huxley and Orwell”, nas distopias clássicas são recorrentes estas características: um estado monolítico e totalitário que exige obediência de seus cidadãos, individualismo e avanços científicos e tecnológicos para garantir o sistema do controle social.
Na distopia, é possível retratar visões negativas e viáveis (factível e verossímil) de desenvolvimento político e social, em um molde ficcional.
A imaginação distópica, para Baccollini e Moylan, representa, na ficção, as preocupações éticas e políticas dos escritores, sugerindo os contornos de um tempo histórico e social; dessa forma, a arte “avisaria” aos receptores os potenciais problemas do mundo.
Segundo Carlos Eduardo Ornelas Berriel, “a utopia clássica se desenvolve construindo um hiato (insanável) entre a História real e o espaço reservado para as projeções utópicas; a descoberta de um país distante, até então ignorado (como no enredo de Morus, Campanella e outros) se tornou símbolo de uma fratura não apenas geográfica, mas, sobretudo histórica”;
DISTOPIA como CONTINUIDADE AMPLIAÇÃO
UTOPIA como FRATURA HIATO
“a distopia busca colocar-se em continuidade com o processo histórico, ampliando e formalizando as tendências negativas operantes no presente que, se não forem obstruídas, podem conduzir, quase fatalmente, às sociedades perversas (a própria distopia). […] na distopia a realidade não apenas é assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências negativas, desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material para a edificação da estrutura de um mundo grotesco.”
Editorial da MORUS – Utopia e Renascimento 2, 2005, p. 4-10.
PROPOSTA HISTORIOGRÁFICA
Dark horizons: science fiction and t he dystopian imagination, de Rafaella Baccolini e Tom Moylan
Séc. XX: formas clássicas de distopismo. Exemplos: 1984, Admirável mundo novo Década de 60 e 70: utopias críticas. Ecologia, Feminismo e New-Left Exemplos: Marge Piercy, Ursula Le Guin, Joanna Rus Década de 80: movimento cyberpunk. Exemplo: “Blade Runner” Pós-década de 90: distopias críticas (um gênero híbrido, mistura de tendências) Exemplo: Margaret Atwood
CATEGORIAS DE ANÁLISE Dissipado nos romances contemporâneos do século XXI, o leitor encontra categorias relativas à distopia do século XX, como o APARELHO POLÍTICO OPRESSOR, o PESSIMISMO, a AUSÊNCIA DE ALTERNATIVAS para os sujeitos sociais, a tendência – no âmbito da forma narrativa – à ALEGORIA e, como grande tendência, surge o MEIO AMBIENTE EM COLAPSO
UM PIANO PARA CAVALOS ALTOS, de Sandro William Junqueira “Não tardou que o vento da notícia corresse pela Cidade. […] Para a população da Cidade fazia sentido este excitado entusiasmo pela desgraça acontecida. Há uma dezena de anos que não se ouvia falar de assuntos da Floresta. […] Apesar do medo inerente ao salivar a notícia, havia nalguns corações uma nova zona de alegria, entusiasmo. Este inesperado acontecimento era o começo de uma nova paisagem. Uma porta aberta para novas trevas.” (p. 17)
NÃO TEMPO E NÃO LUGAR
PERSONAGENS SEM NOME
“O Governo, sempre zeloso, desta vez não conseguira pisar o rastilho da comunicação para desmetir a ameaça. De facto, um jovem militar fora vítima de um ataque insólito no interior da Floresta. E a estranheza da morte incomodou a chefia: custava reconhecer a fraqueza do braço bélico quando este se aventurava para longe das imediações do Muro e entrava na natureza. Na Torre Governamental, o Ministro Calvo, ao ser informado, dera um murro na mesa.” (p. 19)
CAPÍTULOS COM “DITADOS DO MINISTRO CALVO”
ORGANIZAÇÃO SOCIAL Apresentação da sociedade distópica: primeira parte do romance, chamada “SONATA DE INVERNO”
• “A implosão das igrejas é outro passo certo dado em direção a um estado social que não desperdiça.” (p. 29) • “O trabalho de um Governo que quer governar com coragem e seriedade deve assentar no controlo do medo.” (p. 40)
MÚSICA: “O Diretor encaminha-se até à estante. […] Liga o rádio. A estação governamental emite uma sonata para piano. […] a persuasão, como a música, é arte.” (p. 45)
Música OFICIAL: “E que música permitiremos nós dar a todas as cabeças silvestres e corações toscos que nesta cidade abundam, para que não lhes cresça na boca a espuma da baba raivosa?” (p. 98) “Este governo vai legislar a música.” (p. 224) O filho do Diretor toca: “O Filho está amarrado ao piano. Tem oito anos e olheiras de adulto […]. Liago de pulsos e tornozelos ao piano, como um doente à máquina que lhe segura a vida, o Filho repete até à perfeição um compasso […]” (p. 83)
COLAPSO DA NATUREZA Tendência in media res das narrativas distópicas
“Na Cidade a fome não mostrava as cáries. Mas também, como se pode calcular o grau da fome? Que escala usamos para medir a carência? Os quilos do apetite ou os gramas da má nutrição? Antes, não havia abundância: desde o Grande Desastre, a carne era monopólio do Governo; o peixe rareava, o mar era longe. […] A comida, ainda que racionada, chegava ao estômago de todos. Apenas aos habitantes da Zona Sul – militares de alta chefia, e principalmente, aos membros do Governo – era permitido acesso à nutrição da fruta fresca do lombo, iogurtes, e claro está, empadas.” (p. 119)
“O Grande Desastre dizimara mais de dois terços da população. Derrubara edifícios, leis e cabeças até ali consideradas bastante sólidas. Obrigando os sobreviventes – os insolentes do aleatório – ao confronto com o que sobra da gastronomia da destruição: pó. O Diretor tinha nove anos e ainda sonhos quando o pai lhe pegou na mão, minutos após o acidente, e o levou em passeio pelas curvas dos destroços como a um jardim de plantas e árvores raras.” (p. 150)
DIZ O FILHO DO DIRETOR: “O Muro protege-nos dos lobos. E a Fábrica dá-nos empadas. Só que a Mãe não nos deixa comer muitas empadas.” (p. 326)
MÚSICA “Após o Grande Desastre, quem reconstruiu esta Cidade? Nós! Quem deu a todos tectos sólidos? O mínimo conforto? Quem criou milhares de postos de trabalho? Nós! [...] A quem eles devem tudo isto? A este Partido! [...] A besta continua a falar. O burburinho malévolo. O ruído de fundo. Pois eu digo-vos: deixai-a falar, a besta. Deixai-a ladrar. Uivar se lhe apetecer. O nosso Governo e este Partido não cederão a esses uivos pretensiosos; não cederemos naquilo que acreditamos ser a conduta certa de uma política construída para o bem comum! E mais: a arquitetura, o método, a organização, a desinfecção e os militares são os instrumentos da nossa orquestra! São a música deste Partido e deste Governo, para uma clara aprendizagem da canção certa por parte do povo!”(p. 166)
ESTRUTURA NARRATIVA: Divisão em capítulos chamados “GYMNOPÉDIE”, três composições de Erik Satie. “As melodias usam dissonâncias deliberadas mas amenas contra a harmonia” https://www.youtube.com/watch?v=0koaxjHP5Q8
TÍTULO DO ROMANCE “O cavalo está vivo, tem luz nos olhos, sangue nos músculos.” (p. 33) “O Operário vem pelo pavimento. Vê alguns transeuntes, sapatos cansados, cavalos altos. Armas a brilhar em mãos militares.” (p. 109) “O incêndio comia no edifício [...]. Mas um cavalo não perde a elegância. [...] Até que, pouco depois, quando já se ouvia em fundo o acelerado de botas de militares, as rédeas soltaram-se em direção ao Muro [...] escapando ao começo do desastre.” (p. 339)
NO MESMO ESPAÇO EM QUE AS PESSOAS SÃO CREMADAS, A COMIDA É PREPARADA:
TENDÊNCIA ALEGÓRICA Alimentar-se da morte do outro (ou realmente do corpo humano?)
“Os cheiros da morte e das empadas casam-se naquele local, mais do que noutra parte da Cidade, numa estranha e repugnante combinação. O Operário olha pra cima. As suas chaminés – dois canos apontados à parede de Deus – continuam a cuspir rolos ininterruptos de fumo: a seda fina e amarela, oriunda dos fornos da pastelaria; a lã grossa e preta dos fornos de cremação. Ao encontrar a liberdade do ar gelado, aqueles indícios de alimentação e morte unem-se num só novelo que se cola às nuvens permanentes, engrossando o cinzento.” (p. 113)
PREOCUPAÇÕES DA CRIANÇA “Ele diz-me que algumas [empadas] são feitas da nossa carne.” (p. 170)
DIÁRIO DA CRIADA “Antes de vir embora, abrimos o livro sagrado e lemos algumas passagens. Para limparmos a culpa de termos comido empadas.” (p. 307) “Tenho medo do que vem aí. O Patrão já tem a caixa. Abri a arca frigorífica, só pra espreitar. Meu Deus! Rezo.” (p. 309)
“Se não conseguimos matar os lobos que uivam, ao menos emudecemos a ovelha que bale. Esta ovelha que balia e desassossegava o restante rebanho, segundo o Ministro Calvo, era um homem singular a quem muitos reconheciam um talento místico ou psíquico. E esse talento começava a dar-lhe uma notoriedade que importunava. Fazia nervos a quem mandava. Esse operário era dotado da capacidade de sonhar com aquilo que ainda não acontecera. […] Era aquele a quem chamavam Mensageiro.” (p. 20)
CONTROLE POR MEIO DO MEDO
DISCURSO DO MENSAGEIRO (palavras enunciadas por Ele em um sonho): TENDÊNCIA ALEGÓRICA Os humanos digladiando na sociedade
“Os lobos vão chegar e conhecer e fazer o homem ímpio e beber o sangue do homem ímpio. […] Os lobos não são os lobos. Os lobos são aqueles que vos rodeiam como cordeiros de hálito sensual. [...] Os lobos são os que, por trás das fachadas coloridas e vestes limpas, defecam e urinam onde se deitam, e convivem com os próprios excrementos” (p. 24)
LOBO como imagem da resistência:
“Ouviram-se vários disparos seguidos de uma explosão. Os gritos semelhantes a uivos.” (p. 338)
SIGNOS UTÓPICOS Na segunda parte do romance, chamada “CONCERTO DE VERÃO”
A (RE)AÇÃO DAS PERSONAGENS DIANTE DA IMOBILIDADE SOCIAL: ações do Mensageiro, da Prostituta, do Operário e da Criada. “O Operário olha com asco aquela alegria efémera. Diz: Aqueles sorrisos vão cair. Ainda não aconteceu, é certo, mas vai acontecer. Em breve, o corvo vai gralhar. Baixa a persiana. Fecha a janela.” (p. 279) SONHOS: “É nisto que a Ruiva acredita e é com isto que sonha: acordar uma manhã sem observar pó deitado na mesa de cabeceira, espreguiçar-se de uma janela de onde possa avistar o longe.” (p. 233)
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