Inscrições do Tempo na Imagem: de índices e narrativas

May 26, 2017 | Autor: Benjamim Picado | Categoria: Visual Semiotics, Photography Theory, Narrative Theory, Indexicality
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Inscrições do Tempo na Imagem: de índices e narrativas

Benjamim Picado
Departamento de Estudos de Mídia, PPGCOM – Universidade Federal Fluminense

Agradecimentos e contextualização da exposição no quadro de uma
pesquisa em que se coligam a compreensão das imagens como fontes de
experiência estética, em vários de seus níveis (imersão sensorial,
mobilização de quadros atencionais e afetivos de engajamento, fonte de
testemunho vicário, dentre outros);
Introduzir a exposição, através de exemplos dos universos visuais do
fotojornalismo que apontam de algum modo para o problema da aparição
do tempo nas imagens, especialmente aquelas de matriz fotográfica, ao
mesmo tempo em que estes auxiliam a problematizar certos supostos da
relação entre imagem e discursividade.



1. Dispositivo Fotográfico, Indexicalidade, Transparência :

Consideremos, então, esta tese mais forte sobre uma essencial
característica de indexicalidade, definida como traço constitutivo da
significação fotográfica: é bastante certo que ninguém a formulou
primeiramente com mais franqueza e candura, assim como com a aparência de
conter um "sistema", do que Phillipe Dubois, nesta obra originalmente
editada na Bélgica, em 1983 e depois, numa versão francesa (acrescida de
quatro ensaios suplementares), em 1990 - sempre referida por tantos de nós
como demarcadora de algumas das grandes viragens conceituais na reflexão
sobre a fotografia, a saber, O Ato Fotográfico; já mencionamos, ao menos em
seus resultados mais conhecidos, todo o percurso pelo qual este pensador
escalonou e valorizou as etapas históricas nas quais a reflexão sobre a
fotografia experimentou um certa obsessão com respeito às modalidades do
realismo que pareceriam propriamente adventícias da fotografia.

"O ponto de partida é portanto a natureza técnica do processo
fotográfico, o princípio elementar da impressão luminosa regida pelas
leis da física e da química. Em primeiro lugar, o traço, a marca, o
depósito (...). Em termos tipológicos, isso significa que a fotografia
aparenta-se com a categorias de 'signos', em que encontramos igualmente
a fumaça (indício de fogo), a sombra (indício de uma presença), a
cicatriz (marca de um ferimento) a ruína (traço do que havia ali), o
sintoma (sinal de uma doença), a marca de passos, etc. Todos esses
sinais têm em comum o fato 'de serem realmente afetados por seu objeto'
(Peirce, 2.248), de manter com ele 'uma relação de conexão física'
(3.361). Nisso, diferenciam-se radicalmente dos ícones (que se
definem apenas por uma relação de semelhança) e dos símbolos (que, como
as palavras da língua, definem seu objeto por uma convenção geral)."
(DUBOIS, 1998: 50)


Outra referência fundamental, neste contexto, é a obra de Jean-Marie
Schaeffer, A Imagem Precária: nascida num contexto similar ao das idéias de
Dubois (ela foi publicada originalmente na França em 1987), sua linha de
argumentação avança mais densamente nas implicações filosóficas da
identificação da fotografia com o status semiótico da indexicalidade –
introduzindo, por isto mesmo, variantes da discussão que eram
tradicionalmente desconsideradas nesta linhagem de textos sobre uma suposta
"natureza" fotográfica; em primeiro lugar, ele dissocia a questão da
ontologia do fotográfico das problematizações sobre o status da "imagem"
fotográfica - o que, ao menos em princípio, facilitaria consideravelmente a
compreensão sobre o modo de abordar a suposta especificidade indexical da
fotografia (já que esta, sendo da ordem de uma arché, invocaria
necessariamente a consideração do lugar mais próprio dos dispositivos
fotográficos). Não por acaso, as primeiras frases do primeiro capítulo do
livro anunciam o que parece ser o programa geral de uma ta valorização da
origem da significação fotográfica:


"Para começar, proponho colocar provisoriamente entre parênteses a
noção de 'imagem fotográfica' e partir da descrição do dispositivo
fotográfico. Pelo menos duas razões me parecem justificar tal decisão.
A primeira é totalmente banal: a imagem fotográfica é, em sua
especificidade, a resultante de um uso do dispositivo fotográfico em
sua totalidade. Resulta daí que a própria identidade da imagem só pode
ser captada partindo de sua gênese. A segunda razão é de ordem
heurística: as atuais idéias sobre a noção de 'imagem' pressupõem que
ela poderia apenas ser a reprodução de uma visão (esta última
precedendo-a do ponto de vista lógico). Ora, tal concepção impede que
se capte a especificidade da imagem fotográfica, ligada ao fato de que
ela é sempre o registro de um traço físico-químico." (SCHAEFFER, 1990:
11)

Em ambos os casos, contudo, o problema central não é apenas a identificação
da fotografia com os índices (não se tenta pensar o essencial da fotografia
exclusivamente a partir de seus produtos ou de suas imagens, o que talvez
conferisseo mérito de uma "abordagem pragmática" da imagem), mas também com
o caráter originário do dispositivo fotográfico, como fundamento mesmo
deste compromisso existencial de suas formas visuais: nos interessa
examinar estas questões partindo de uma avaliação sobre até que ponto a
categoria dos signos indexicais precisaria ter sido assim tratada (ao menos
no caso da fotografia), na estrita decorrência lógica - e, em ultima
instância, ontológica - da caracterização de dispositivos tecnológicos de
gênese de formas visuais.

Numa brevíssima nota final de A imagem Precária, Jean-Marie Schaeffer nos
dá notícia da descoberta recente que houvera feito - no momento em que
entregava as provas do livro a seu editor - de um artigo de Kendall Walton,
"Transparent Pictures: on the nature of photographic realism", publicado na
revista Critical Inquiry: tomando conhecimento deste texto, ele manifesta
sua admiração face ao que considerava ser uma feliz coincidência de
propósitos entre as duas linhas de argumentação (não necessariamente
símiles na abordagem), no que respeitava a preocupação original com a
natureza mesma do fenômeno fotográfico.

"No momento de entregar as provas deste livro, acabo de ler um artigo
de Kendall T. Walton, 'Transparent Pictures: on the nature of
photographic realism' (Critical Inquiry, numero 11, dezembro de 1984,
páginas 246-277), com o qual estou praticamente de acordo em tudo. Por
vezes coincidimos até em pontos de detalhe: como a utilização da
distinção griceana entre significado natural e não-natural e,
inclusive, coincidência improvável mas ainda assim certa, em
referencia ao monstro do Lago Ness para ilustrar a especificidade da
imagem fotográfica (a argumentação de Walton, não obstante, difere da
minha)." (SCHAEFFER, 1990: 161)

Por outro lado, é evidente que o texto de Walton busca interrogar sobre
algo de próprio, ainda que não exclusivo, no modo de a fotografia colocar-
se na discussão sobre o status do realismo, no campo das imagens, não sendo
esta a razão pela qual ele suscita a lembrança de Schaeffer: em certa
medida, Walton exercita de maneira mais plena a "pragmática" da imagem
intentada, mas de algum modo frustrada em Schaeffer, pelo fato de que o
último a define em razão da valorização da arché fotográfica – do caráter
de "impressão fotônica" que define o modo de funcionamento dos aparatos
tecnológicos da fotografia. Em Walton, por outro lado, o problema do
realismo é, de algum modo, deslocado dessa filogênese da imagem para o da
relação (mais genuinamente pragmática) entre imagens e sistemas de crença.
É no aspecto de instaurar uma modalidade de "transparência" da
representação que Walton enxerga uma resposta à questão sobre "O que há de
especial na fotografia?".

"Nossa teoria precisa, de qualquer maneira, de um termo que se aplique
simultaneamente a meu 'ver' meu bisavô quando olho para sua fotografia
e meu ver meu pai quando o tenho diante de mim. O que é importante é
que reconheçamos uma comunidade fundamental entre os dois casos, um
tipo natural simples ao qual ambos pertencem. Poderíamos dizer que eu
percebo meu bisavô mas não o vejo, reconhecendo um modo de percepção
('ver-através-fotografias') distinto da visão – se a idéia de que eu
percebo meu bisavô é tomada a sério. Ou poder-se-ia fazer esse mesmo
ponto de uma outra maneira. Eu prefiro a formulação mais ousada: o
espectador de fotografias vê, literalmente, a cena que foi
fotografada." (WALTON, 1984: 252)

Ainda assim, o que é mais decisivo na formulação de Walton não concerne
tanto a uma ontologia do fotográfico quanto a uma certa fenomenologia da
experiência de seus produtos. No que respeita a origem destas idéias, o
problema da transparência atribuída às fotografias só se torna claro, no
contexto de uma certa antropologia da experiência ficcional, que é
eventualmente enunciada em seu texto, como um certo motivo de suas questões
sobre a natureza da fotografia. Nestes termos, a riqueza de suas idéias
sobre o dispositivo não constituem (como certamente é o caso das escolas
francófonas das teorias da fotografia) uma justificativa para legitimar o
status da indexicalidade, como regime de significação exclusivamente
próprio às imagens fotográficas.

Ora, o caso das fotografias suscita toda uma outra ordem do ver,
independentemente dos regimes aos quais a imagem fotográfica está
submetida: para Walton, o "ver-através" se define como um tipo de
experiência própria à fotografia, pela qual (mesmo em seu caráter
documental ou jornalístico) ela é capaz de suscitar um certo tipo de
imersão existencial ou sensorial, com respeito aos motivos visuais
propostos. Em termos, o que caracteriza a estrutura da visão própria às
fotografias se relaciona com um certo modo no qual a crença que assumimos
na origem causal da imagem passa a orientar um certo modo que temos de
percebê-la e, até mesmo, valorizá-la.

2. Da Indexicalidade como Operador Narrativo na Imagem:

A subscrição das imagens fotográficas à categoria da "indexicalidade"
provoca ramificações de discussões sobre o alcance da ortodoxia semiótica
(especialmente aquela derivada dos escritos de Peirce) que não caberia
discutir aqui – muito embora, possa-se antecipar que ela comporta
importantes considerações criticas sobre a arquitetura peirceana dos
signos: nos interessa aqui avaliar particularmente o quanto essa recepção
das imagens fotográficas enquanto "índices" acaba por restringir essa
especial classe de signos enquanto mera contigüidade entre a materialidade
visual do signo e sua origem nos seus respectivos objetos. Em tal contexto,
portanto, a fotografia é caracterizada de um tal modo em que se torna
difícil definir as especificidades dos exemplos que ilustram os signos
indexicais.

"O ponto de partida é portanto a natureza técnica do processo
fotográfico, o princípio elementar da impressão luminosa regida pelas
leis da física e da química. Em primeiro lugar, o traço, a marca, o
depósito (...). Em termos tipológicos, isso significa que a fotografia
aparenta-se com a categorias de 'signos', em que encontramos igualmente
a fumaça (indício de fogo), a sombra (indício de uma presença), a
cicatriz (marca de um ferimento) a ruína (traço do que havia ali), o
sintoma (sinal de uma doença), a marca de passos, etc. Todos esses
sinais têm em comum o fato 'de serem realmente afetados por seu objeto'
(Peirce, 2.248), de manter com ele 'uma relação de conexão física'
(3.361). Nisso, diferenciam-se radicalmente dos ícones (que se
definem apenas por uma relação de semelhança) e dos símbolos (que, como
as palavras da língua, definem seu objeto por uma convenção geral)."
(DUBOIS, 1998: 50)

Por conseqüência, há pouca consideração sobre a historicidade mesma da
idéia acerca do "índice", como contida na admissão da imanência indexical
da fotografia - tanto no contexto das teorias lógicas, quanto em suas
aplicações práticas na fotografia: elas não são, portanto, correlativas a
um exame sobre a natureza e funcionamento índices, tomadas como categorias
do pensamento ou até mesmo como modelos epistemológico de conjecturas (um
"paradigma indiciário"), característica não apenas da lógica das ciências,
mas de práticas clínicas e detetivescas – ilustradas por um célebre
historiador das idéias como constituindo o modelo "epistemológico" da
atividade do caçador.

"O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados
aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade completa e não
experimentável diretamente. Pode-se acrescentar que esses dados são
sempre dispostos pelo observador de modo tal a dar lugar a uma
seqüência narrativa, cuja formulação mais simples poderia ser 'alguém
passou por lá'. Talvez a própria idéia de narração (distinta do
sortilégio, do esconjuro ou da invocação) tenha nascido pela primeira
vez numa sociedade de caçadores, a partir da experiência da decifração
de pistas (...). O caçador teria sido o primeiro a 'narrar uma
história' porque era o único capaz de ler, nas pistas mudas (mas não
imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos."
(GINZBURG, 1990: 152).
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