Internação compulsória de pessoas que usam substâncias psicoativas no Brasil

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INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE PESSOAS QUE USAM SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS NO BRASIL

Amanda Souza Barbosa Exposição realizada no Seminário “Novos Temas da Bioética”, organizado pela Comissão de Formatura de Direito da Faculdade Dom Pedro II 2015.2 (Salvador/BA), sob a Coordenação Científica da Profa. Me. Patrícia Souza Alves, em 23 de maio de 2015.

1. ESTADO DA ARTE

Neste primeiro momento é importante que se faça breves comentários sobre a política de drogas e sobre a disciplina jurídica da internação compulsória. A política de drogas mundial é tradicionalmente proibicionista. Trata-se de um modelo que aposta na repressão e controle em busca de um mundo “livre de drogas”. Esta política, referida como “guerra às drogas”, foi incorporada pelo Brasil (CASARA, 2013). Nossa constituição equipara o tráfico de drogas a crime hediondo (art. 5º, XLIII), por exemplo. Em relatório publicado em 2011, a Comissão Global de Política sobre Drogas (Global Comission on Drug Policy) concluiu que a guerra contra as drogas fracassou, fazendose urgente uma revisão completa das leis e políticas de controle de drogas nos planos nacional e internacional. Em 2016 haverá uma Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU (UNGASS) a respeito, uma oportunidade histórica para identificação das deficiências da estratégia atual. As políticas repressivas devem ser substituídas por políticas mais humanas e eficazes, baseadas em evidências científicas e nos princípios de saúde pública (COMISSÃO GLOBAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS, 2011). Para Boiteux (2009), pode-se dizer que, no Brasil, convivem dois sistemas: (a) o proibicionismo clássico no que se refere ao tráfico; (b) e um proibicionismo moderado em relação ao usuário de drogas. Por que? A Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) trouxe importante mudança no que diz respeito à penalidade cominada ao porte e plantio de drogas para consumo pessoal. A conduta deixa de estar sujeita a pena restritiva de liberdade, ou seja, houve a despenalização destas condutas, emboram continuem a ser crime. São previstas três penas alternativas (art. 28, I à III § 1º): I - advertência sobre os efeitos das drogas; II prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Observe-se que a internação ou tratamento ambulatorial compulsório não foram inseridos como pena. De acordo com seu artigo 28, § 7º, será facultado ao usuário, preferencialmente, tratamento ambulatorial especializado.

Quando o agente houver cometido crime sob o efeito de substâncias psicoativas ou for dependente químico, o juiz: (a) poderá determinar o seu encaminhamento para tratamento adequado em sentença absolutória imprópria, quando constatado que o agente não tinha capacidade de entender o caráter ilícito da conduta, ou de agir conforme seu entendimento (art. 45); (b) determinará o encaminhamento do agente a tratamento na sentença condenatória, quando constatada a necessidade a partir de laudo médico pericial (art. 47). Embora a Lei de Drogas não mencione expressamente a possibilidade de internação do usuário, a internação compulsória de dependentes químicos é realizada com fulcro na Lei n° 10.216/2001 (Lei Federal de Psiquiatria), diploma normativo que versa sobre o modelo assistencial em saúde mental no Brasil. Quando falamos em internação compulsória imaginamos a situação em que uma pessoa é conduzida, contra a sua vontade, para uma instituição, e ali ficará pelo tempo necessário ao tratamento, correto? Em notícias, na mídia em geral, é a isto que o termo se refere. Porém, na Lei Federal de Psiquiatria, “internação compulsória” designa algo diverso. De acordo com a lei, existem três espécies de internação psiquiátrica: voluntária, involuntária e compulsória: a) voluntária – precedida pelo consentimento do indivíduo; b) involuntária – precedida por pedido de terceiro, na medida em que o indivíduo não apresenta capacidade de se autodeterminar; c) compulsória – determinada pelo Poder Judiciário (art. 6º). Portanto, a rigor, aquela situação que descrevi há pouco pode se dar quando realizadas as internações involuntária ou compulsória. É mais adequado dizer que se trata de uma situação de internação contra a vontade. A internação psiquiátrica está condicionada a laudo médico circunstanciado e se trata de uma medida excepcional. De preferência, as pessoas portadoras de transtorno mental devem ser tratadas em serviços comunitários de saúde mental (art. 2º, parágrafo único, IX), somente podendo ser indicada a internação quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes (art. 4º). Feita essa introdução, passo para um segundo momento desta fala: o papel da internação contra a vontade na atual política de drogas do Brasil.

2. AMBIGUIDADES NA POLÍTICA DE DROGAS BRASILEIRA

A atual Lei Federal de Psiquiatria é uma das conquistas do movimento da Reforma Psiquiátrica, deflagrado no Brasil na década de 70 a partir da formação do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial – MNLA (MENDES; MENEZES, 2013). Estamos, inclusive, na semana da Luta Antimanicomial. No dia 18 de maio, esta segunda, em muitas cidades brasileiras houve passeatas e reivindicações por uma rede de saúde mental mais forte, pela maior oferta de dispositivos de cuidado não asilares. Explico.

O movimento foi formado a partir da constatação de que a Psiquiatria havia se tornado uma técnica de repressão. Esqueciam-se pessoas por anos em hospícios e manicômios, o que aniquilava a sua autonomia e qualquer possibilidade de desenvolvimento. Tendo como referência os ensinamentos do psiquiatra italiano Franco Baságlia, o objetivo do movimento era e continua sendo o de garantir um tratamento profissional e adequado às pessoas com transtornos psíquicos, consentâneo com o respeito aos seus direitos, em especial os direitos à igualdade, liberdade, integridade e saúde (MENDES; MENEZES, 2013). Dentre os objetivos da Reforma Psiquiátrica, está a “desospitalização” e construção de um novo modelo assistencial restrito ao campo da saúde mental e coletiva (FORTES, 2010). Pela primeira vez, o centro das discussões passa a ser o bem-estar do paciente, em lugar da solução dos problemas sociais gerados pela presença indesejável dos “loucos” no espaço público. Com isto seria possível o resgate de sua cidadania e autonomia (MENDES; MENEZES, 2013). A “Política de Atenção Integral ao Uso de Álcool e outras Drogas” do MS (2004) está em consonância com os princípios da política de saúde mental vigente, a qual tem forte respaldo nos princípios da Reforma Psiquiátrica. Há uma pluralidade de tratamento e formas de acompanhamento: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), o Auxílio de Reabilitação Psicossocial “De volta pra casa”, Consultórios de rua etc. A despeito da existência dessas diretrizes, em termos de políticas públicas para o tratamento da dependência química vê-se um quadro de intensa heterogeneidade: operações de internação forçada, bolsas para quem buscar tratamento voluntariamente, o programa “De Braços Abertos” em SP, são muitos os exemplos. Vejamos com mais detalhes o caso do Programa “Crack, é possível vencer” (2011). Trata-se de iniciativa do governo federal que tem como objetivo prevenir o uso (eixo da prevenção), promover atenção integral ao usuário de crack (eixo do cuidado) e enfrentar o tráfico de drogas (eixo da autoridade) por meio da articulação entre os governos federal, estaduais e municipais. O nome do programa foi alvo de críticas. Para Nery Filho (2011), é um equívoco concentrar a atenção em uma droga específica, ainda mais sendo o álcool e o tabaco as drogas que mais causam danos à população. Para Hart, o nome do programa reforça a “guerra às drogas”, como se o uso dessas substâncias fosse a causa dos problemas sociais e da violência, e não consequência da sistemática negação de direitos (informação verbal)1. Foram feitos altos investimentos em leitos para internação. Em novembro de 2013, foram ofertadas 4 mil vagas através de convênios com comunidades terapêuticas privadas, que somam um investimento de 51 milhões de reais em um ano (MJ..., 2013).

1

Informação coletada em conferência realizada pelo Prof. Dr. Carl Hart, intitulada “Drogas e Sociedade – Superando mitos para a construção de novos paradigmas”, ocorrida no dia 09 de maio de 2014 na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).

Observe-se que há muita exitação no papel desempanhado pelas comunidades terapêuticas nesse tocante. Para Pitta (2011), são instituições que insistem na lógica de enclausuramento e, portanto, estão entre as instituições asilo-manicomiais que a Reforma Psiquiátrica almeja substituir progressivamente por ações em rede na Atenção Básica. São necessárias, também, ações intersetoriais de inclusão social no trabalho, escola, esportes e cultura, produzindo-se chances de protagonismo social para que as drogas deixem de ocupar um espaço no projeto de vida dos usuários. De acordo com o balanço do programa, disponível no sítio eletrônico, desde quando foi implantado em dezembro de 2011, foram disponibilizadas 7.541 vagas em comunidades terapêuticas, em face de 800 leitos em enfermarias especializadas. No mesmo período, apenas 59 CAPS AD – 24 h foram instalados (BRASIL, 2014). Há, aqui, uma clara inversão de prioridades, que contraria as diretrizes do MS. As ações que privilegiam a internação involuntária e/ou compulsória tem sido alvo de críticas por parte de organismos internacionais. Por meio de nota técnica, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) declarou que a adoção da internação involuntária ou compulsória como estratégia central para o tratamento da dependência química é inadequada e ineficaz, pois estas medidas são extremas e somente podem ser aplicadas em situações de crise, quando a pessoa ofereça alto risco para si ou terceiros. Além disso, suas condições e duração devem contar com amparo legal e sua indicação deve ser devidamente justificada. Do contrário, se estará indo no sentido contrário ao conhecimento científico até então produzido nesta seara (OPAS, 2013).

3. MODELOS DE POSICIONAMENTO

Essa heterogeneidade das políticas públicas reflete muito bem a pluralidade de posicionamentos a respeito da (in)adequação da internação contra a vontade como forma de tratamento. Em 2014, a Câmara dos Deputados lançou uma enquete sobre a internação compulsória de dependentes de drogas. A pergunta é: “Você concorda com a internação compulsória de dependentes e usuários de drogas e bebidas alcoólicas pelo prazo necessário para o tratamento integral (PL 3.167/12)?”. O projeto de lei sinalizado é de autoria do Deputado Pastor Marco Feliciano. Ele acrescenta disposições ao artigo 28 da Lei de Drogas, o qual versa sobre o crime de porte de drogas ilícitas para consumo pessoal. Como uma quarta pena a ser cominada, é introduzida a internação compulsória para tratamento e desintoxicação, em instituição apropriada, pelo prazo considerado necessário para o tratamento integral. A internação poderia ser requerida por membro da família, responsável legal ou autoridade pública competente. Há duas opções de resposta: (a) “Sim, pois se trata de um problema de saúde e de segurança pública e são necessárias ações mais firmes das autoridades”; (b) “Não, porque isso fere o direito à liberdade e repete práticas semelhantes já superadas,

como a internação de doentes mentais em manicômios”. Dos 30.811 votos recebidos, 59,74% aderiu à primeira opção e 40,26% à segunda (dados de maio de 2015). Nos comentários à enquete, apareceram outros tantos elementos, que vão além do simples “sim” ou “não”. A partir destes comentários e do levantamento bibliográfico realizado, é possível delinear três modelos discursivos a respeito da (in)adequação da internação contra a vontade como forma de tratamento da dependência química. São eles: (a) modelo de aprovação ampla da internação contra a vontade; (b) modelo de aprovação restrita a situações excepcionais; (c) e modelo de reprovação à medida. No modelo de aprovação ampla, entende-se que a internação involuntária e compulsória é algo absolutamente necessário. Del-Campo (2012) declarou: “Talvez a única medida verdadeiramente séria que se poderia inicialmente adotar para corrigir o triste quadro que hoje vivemos em relação aos dependentes químicos no país”. Assim entende por considerar a dependência química uma doença incapacitante, que compromete as faculdades cognitivas da pessoa, tornando-a incapaz de reagir ao vício. Ela seria capaz de cometer delitos para ter acesso à substância, representando um perigo à sociedade. Capez (2011) refere que, uma vez viciado, sem controle sobre o seu desejo de consumir as drogas, o sujeito acabaria por se tornar um delinquente. Diante disso, o autor entende que a internação contra a vontade é um meio idôneo para afastar o usuário do ambiente nocivo e deletério em que vive. A internação é um importante instrumento de reabilitação, já que na rua a pessoa jamais poderia se libertar “da escravidão do vício”. As drogas produzem alterações cognitivas que retiram o livre arbítrio, de modo que “o dependente necessita de socorro, não de uma consulta à sua opinião”. O modelo de aprovação restrita é o da Lei Federal de Psiquiatria. A internação somente pode ser indicada quando os meios extra-hospitalares de tratamento se mostrarem insuficientes. Diversas instituições apoiam essa linha: o CFP, Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População de Rua e de Catadores de Material Reciclável (CNDDH). Amarante (2013) advoga por investimentos na rede de serviços ambulatoriais e pela possibilidade de internação de pessoas em situações de crise nos CAPSad 24 horas, sem recorrer ao modelo de internação integral, involuntária e de longa duração. Acredita ser o tratamento voluntário mais eficaz, pois possibilita a criação de um vínculo e de uma relação de confiança entre o paciente e o profissional da saúde. A internação somente se justifica em casos graves, e deve ter por finalidade a desintoxicação do organismo. Feito isso, a pessoa deve ser acompanhada voluntariamente pela rede de serviços ambulatoriais. Para que haja efeitos, deve haver um projeto terapêutico individual. As internações devem ser realizadas prioritariamente nos CAPS, que seguem a lógica do acolhimento integral, e nos hospitais gerais, de forma articulada com a rede (BRASIL, 2004). Em guia de práticas para o tratamento da dependência de crack, o CFM (2014?) orienta que os psiquiatras devem indicar a internação para desintoxicação, que dura

cerca de 7 a 14 dias, enquanto medida inicial. Em seguida, o paciente deverá ter acesso à rede de tratamento ambulatorial e a processos integrados de tratamento. Nessa linha foi concebido o enunciado interpretativo nº 1 aprovado na I Jornada de Direito da Saúde, realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2014: nas demandas por internação de pacientes psiquiátricos e/ou com problemas relacionados a drogas, não se recomenda a determinação da internação psiquiátrica a priori, tendose em vista o risco de institucionalização de pacientes por longos períodos. Há, ainda, um terceiro posicionamento, que reprova a internação contra a vontade. Em artigo sobre o assunto, Lemos (2013, p. 336) concluiu: “[...] a internação compulsória não deve ser exceção, nem regra. Ela simplesmente não pode ser.” O autor analisou os principais argumentos declarados por aqueles que admitem a internação compulsória de forma ampla ou restrita. Um dos argumentos é o de defesa social, de manter a sociedade segura do perigo que os dependentes químicos representam por seu estado de descontrole. Este argumento é rejeitado pelos seguintes motivos: a) esta justificativa é a mesma que ampara a política criminal de “guerra às drogas”, a qual tem promovido estigmatização e violência institucional; b) o risco abstrato de condutas nocivas por parte do dependente não justifica a sua privação de liberdade; c) há evidências históricas de que a lógica repressiva é ineficaz na redução do uso de entorpecentes (LEMOS, 2013). Lemos (2013) identificou que as ações que privilegiam a internação forçada são resposta à nova Lei de Drogas. Uma vez despenalizado o porte para consumo pessoal, não se poderia admitir que a liberdade do usuário seja privada por via administrativa quando a própria lei penal rejeita essa medida. O Direito Penal é a ultima ratio do ordenamento jurídico, reservado às condutas mais nocivas à sociedade. Se a própria lei penal indica que tal conduta não merece privação de liberdade, esta não pode ser engendrada por outro ramo do Direito. O apoio à internação compulsória com base na suposta proteção do usuário também não se sustentaria. A história demonstra que a medicalização forçada serve a práticas higienistas, a políticas de segregação social contra as classes menos favorecidas. Além disso, a internação compulsória não é eficaz na redução do uso de drogas, havendo outras formas de tratamento que promovem a autonomia do paciente (LEMOS, 2013). Por detrás do apoio à internação forçada estariam interesses neoliberais, de gestão das desigualdades sociais e controle social, que demandam por uma política emergencial de contenção física dessas populações por conta dos grandes eventos esportivos que se aproximam, a exemplo das Olimpíadas em 2016 (LEMOS, 2013). Para Castilho (2012), tratamento compulsório é sinônimo de violência, de segregação sem o devido processo legal. Significaria a negação da liberdade, ou ainda da própria condição para o exercício da liberdade na medida em que é negada a própria capacidade de discernimento e tomada de decisões por parte do usuário-dependente como decorrência do uso de drogas em si mesmo. Albuquerque (2012) destaca que

a reprodução do mito de que o “viciado” é alguém que não sabe o que quer legitima intervenções violentas, travestindo-se o autoritarismo de salvacionismo. O Estado, ao internar uma pessoa e a forçá-la ao isolamento poderá estar repetindo uma realidade psíquica de abandono já vivenciada no passado. Uma vez postergado o momento da promoção de maior autonomia, aumentam as chances de recaída e a indústria de internações é retroalimentada indefinidamente. A autora aponta ainda que a Lei nº. 10.216/2001 não tutela a questão suficientemente. O fosso entre norma e realidade prejudica a excepcionalidade atribuída à internação. Não seria possível provar a insuficiência dos meios extra-hospitalares de tratamento se o Estado ainda não implantou a rede de atendimento aberto suficientemente (ALBUQUERQUE, 2012).

4. AUTONOMIA BIOÉTICA

Observem essa máxima: “As pessoas que usam substâncias psicoativas de forma abusiva são incapazes de tomar decisões sobre a própria saúde”. Parece bastante óbvia, não é? Esta é a principal justificativa para o protagonismo da internação contra a vontade em determinadas políticas. O Código Civil termina por reforçar essa crença ao prever, entre os relativamente incapazes, “os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido” (art. 4º, II do CC), devido à presunção de que estes têm um discernimento limitado para gerir seus próprios interesses. Contudo, não se descarta o enquadramento de uma pessoa que usa substâncias psicoativas no art. 3º, incisos II do CC, disposições que determinam serem absolutamente incapazes “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”. Presume-se que as pessoas têm condições de zelar por seus próprios interesses, sejam eles patrimoniais ou existenciais. Quando esta presunção não se confirma (artigos 3º e 4º do CC), estar-se-á diante de um incapaz, fazendo-se necessário que um terceiro passe a administrar a vida e o patrimônio daquele que não consegue fazêlo (FERRAZ; LEITE, 2012). Ouso dizer que, em relação ao dependente químico, essa presunção de capacidade não existe, tamanha a certeza de que são pessoas que não são capazes de agir racionalmente e reger sua própria vida e interesses. No campo da Bioética, há diversas críticas a respeito da teoria das incapacidades do CC. Pithan, Bernardes e Pires Filho (2005), apontam que os critérios jurídicos são insuficientes para estabelecer quem pode decidir o que é melhor para a sua saúde. A análise da autonomia na bioética é mais complexa do que a mera noção legalista de capacidade de fato. Sugerem o estabelecimento de critérios que deverão prevalecer quando contrapostas estas duas perspectivas. Muitas vezes os profissionais da saúde irão se deparar com pacientes legalmente capazes, mas que, por se encontrarem em condições de especial vulnerabilidade, estarão mais suscetíveis a sofrer danos e sem capacidade real de decidir o melhor

para si. Essa análise é individual e deve levar em conta a decisão a ser tomada em concreto (PITHAN; BERNARDES; PIRES FILHO, 2005). Os dispositivos ora analisados não foram desenhados com vistas à avaliação da aptidão para exercício de direitos existenciais, mas sim de conferir estabilidade ao tráfego de negócios jurídicos. Daí a necessidade de uma releitura, em consonância ao processo de reunificação do Direito Civil em torno de valores eminentemente existenciais após a promulgação da CRFB/88 (SARMENTO, 2008). A dogmática jurídica continua trabalhando com a precisão e a justeza dos enunciados normativos liberais, com a busca por padrões de certeza. Embora tenha uma finalidade protetiva, isto termina por inviabilizar o exercício de direitos humanos e da personalidade. Pode-se dizer que o sistema jurídico permanece enrijecido e incapaz de se adaptar às transformações e demandas sociais deste viés (SCHIOCCHET, 2010, 2013). Afinal, é possível que um dependente químico tome decisões racionais sobre sua saúde? Vou compartilhar com vocês o resultado de duas pesquisas que indicam que sim, é possível. A primeira delas foi realizada por Carl Hart (2013), neurocientista da Universidade de Columbia. Todos os participantes da pesquisa eram usuários regulares de crack e foram mantidos em uma enfermaria por duas a três semanas, sob constante vigilância. No início de cada dia, os participantes eram vendados e fumavam a dose da substância oferecida no dia (as quantidades variavam e também havia a substituição por placebo), bem como ver e segurar os vales de dinheiro ou de mercadoria que seriam oferecidos à eles mais tarde, juntamente com uma nova dose da substância. Ao longo do dia, eram realizadas cinco sessões de escolha. Inicialmente, quando eram oferecidas grandes doses de crack, esta era a opção escolhida, o que parece ratificar a ideia de que a dependência sempre faz com que as pessoas coloquem a droga em primeiro lugar. Contudo, quando as doses oferecidas foram reduzidas, muitos participantes escolheram pelo vale, ao menos, duas das cinco vezes em que lhes era requerida a tomada de decisão. Isso contrariou a expectativa de que qualquer dose da droga seria mais atraente (HART, 2013). Portanto, mesmo diante da chance real de consumir a substância psicoativa, as pessoas são capazes de fazer escolhas racionais. Os participantes refletiram sobre a dose disponível, sobre a possibilidade de acumular uma soma em dinheiro. Se o primeiro contato com a droga produzisse necessariamente um desejo tão irresistível, qualquer dose oferecida não teria sido negada no momento da escolha (HART, 2013). Os resultados foram alvo de críticas. Afirmou-se que os usuários apenas optavam pelo dinheiro para comprar mais crack quando findo o período da pesquisa. Porém, Hart (2013) destaca que essa conclusão infirma a própria ideia convencional de que as pessoas são incapazes de resistir à susbtância. Outros desacreditaram a condição de dependentes químicos das pessoas selecionadas para o estudo. De acordo com o neurocientista, as pessoas que participaram da pesquisa gastavam 280 dólares por semana, em média, com a aquisição de crack, tinham uma vida instável, poucos ou inexistentes laços familiares.

Esta é uma prova importante de que dependentes químicos podem, sim, ser capazes de agir racionalmente. E quando essa decisão é sobre a própria saúde? De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) sobre o perfil dos usuários de crack e/ou similares no Brasil, tem-se que 78,9% dos usuários desejam receber tratamento. Ao mesmo tempo, há um baixo acesso aos equipamentos disponíveis. O CAPSad foi o serviço mais procurado, ainda que por apenas 6,3% dos usuários, nos trinta dias que antecederam a pesquisa. No universo dos equipamentos de atenção em regime residencial ou internação, as Comunidades Terapêuticas foram as mais acessadas (4,2%). Ao serem perguntados sobre o que consideram importante, foi referido o acesso aos serviços de saúde e de assistência social, como distribuição de alimentos e apoio para conseguir emprego. Dentre as correntes da Bioética, identificou-se que a Bioética de Proteção pode oferecer contribuições importantes, pois ela se propõe a lidar com situações de vulneração social não só na relação médico-paciente, mas em termos de saúde pública (SCHRAMM, 2012). De acordo com essa linha, o estado de vulneração pede ações de empoderamento do sujeito, ou seja, amplificar as vozes dos grupos alijados do poder de decisão, inserindo-os socialmente (GARRAFA, 2005). Nesse sentido, parece-me que isolar uma pessoa do convívio social não é a melhor forma. Isso me faz concordar com Busse (2013) e outros autores: insistir em políticas públicas de internação involuntária ou compulsória é desnecessário e inadequado. Esse tipo de ação somente alimenta o mercado manicomial, que agora tem nos usuários de drogas o seu novo alvo. O foco deve se voltar para o fortalecimento da RAPS – rede de atenção psicossocial, nos dispositivos de cuidado extra-hospitalares, na humanização do cuidado com essa população tão vulnerável.

REFERÊNCIAS

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