Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 2)

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Interpretação jurídica: convencidos, mas equivocados (Parte 2)




Atahualpa Fernandez(




O verdadeiro problema das teorias
hermenêuticas e da argumentação jurídica é que
levam o intérprete a pensar que sabe algo que em
realidade desconhece. E dado que há maneiras
alternativas de interpretar o que encontram na
norma, os intérpretes parecem ser bastante
adictos a encontrar as justificações e
argumentos que lhes convêm para afilar, limar e
alterar seletivamente a mensagem normativa: não
tanto pelo uso indiscriminado, etéreo e vicioso
da festejada "ponderação", mas principalmente
por meio de uma diarréia argumentativa
incessante.





Assim as coisas, pese a explosão de publicações sobre o tema, a
insistência dos manuais e o fervor das ideologias, as teorias hermenêuticas
e da argumentação jurídica são mais uma «metáfora» do que não se compreende
e do que "não se pode falar": o cérebro humano, as relações causais que se
dão no interior do cérebro no ato de interpretar e decidir, e que não têm
que ver com a «verdade» de suas especulações, abstrações ou teorizações[1].
De mais a mais, parece que um dos grandes pecados do desgaste hermenêutico-
metodológico presente no direito está no fato de que não há interpretação
independente do intérprete: toda «decisão» nos chega através do prisma da
interpretação humana. Não só não há decisão sem interpretação, sem o
elemento humano para conferir ou dar um significado à mensagem normativa,
senão que a norma é essencialmente interpretável. E não é que possa ser
interpretada, senão que tem que ser interpretada para cobrar sentido: o bom
uso da norma (princípios e regras) inclui a arte da interpretação e os
cômodos silêncios sobre a psicologia da tomada de decisões somente servem
para ocultar a evidência de que toda interpretação está condenada à
irracionalidade.
E o mais expressivo sintoma desse desafortunado cansaço está
relacionado com a falta de uma profunda revisão do conceito mesmo de
racionalidade, procedente não mais de argumentações ou teorias
hermenêuticas encerradas em circularidades pseudocientíficas como evidência
de exatidão, senão de critérios científicos, em particular dos provenientes
da boa neurociência e das ciências do comportamento e da cognição humana.
Já não se pode entender a racionalidade humana pelos ideais da onisciência,
uma racionalidade ilimitada ou uma imagem de nós mesmos baseada no mítico
"agente racional", apenas influenciado por pequenos e circunstanciais
inconvenientes emocionais. Em nosso cérebro a irracionalidade e a
racionalidade jogam de modo nem sempre discernível e nossa própria
consciência não distingue claramente entre sentimentos e pensamentos.
Pese o muito que se possa desejar interpretar e decidir
objetivamente, nenhuma pessoa é dona absoluta de sua razão, porque os seres
humanos são uma desordenada coleção de "módulos" emocionais que afetam e
alteram de maneira decisiva o entendimento, e cujo acesso imediato,
automático e não consciente a um vasto armazém de memórias é constantemente
utilizado como base de decisão. Temos uns poucos "módulos" para processar a
lógica e a busca racional de objetivos, mas são lentos, energeticamente
custosos e raras vezes empregados (D. Kahneman). A razão sozinha, para o
bem ou para o mal, não basta nem é suficiente para interpretar, justificar,
aplicar ou superar as exigências e imposições de normas, princípios e
valores "sagrados". Por outro lado, as emoções, as intuições morais, os
sentimentos, as memórias, as percepções e as sensações de cada indivíduo
não são "cegas oleadas de afeto", senão peças que outorgam razões para
interpretar e que servem como elementos condicionantes da aplicação do
direito: «el sentimiento [es] un componente integral de la maquinaria de la
razón»; ou existe emoção ou não existe decisão. (A. Damasio)
Ademais, dito seja incidentalmente e de passagem, quando interpretamos
e decidimos não obramos exclusivamente no mundo dos princípios, dos valores
e das normas, senão também, e fundamentalmente, no das situações vitais.
Nossa percepção e sensibilidade do mundo são as de animais. De animais
inteligentes, certo, mas o foco de interesse e a natureza dessa
inteligência são muito limitados. Apesar de nossa inigualável capacidade de
representação para criar fantasias tais como "valores e princípios
jurídicos", "moral universal", "dignidade" ou "justiça", isto não está em
relação direta com o que em nossa vida experimentamos, compreendemos,
elegemos, decidimos e podemos, portanto, pôr em prática – quero dizer, nada
ou muito pouco tem que ver com nossa práxis na vida diária, constantemente
socavada por nossos instintos sociais, nossas emoções e intuições morais.
O que nos permite mover-nos pelo mundo, interpretar e decidir –
inclusive no âmbito do jurídico - não é somente nossa venerada razão. Em
grande medida, nossa forma de resolver problemas práticos e sociais – o que
nos permite dilucidar e razoar – não se baseia na dedução, senão que se
parece mais a um processo de "satisfação de restrição". A generalizada e
reconfortante ideia de que "sempre" é possível fazer com que nossas
interpretações, razoamentos, justificações e decisões avancem cumprindo
(exclusivamente) os protocolos, métodos ou critérios da estrutura formal da
razão pura ou da lógica formal (que prescinde ou elimina as emoções) é uma
ridiculez.
Os métodos, sejam quais forem, se dirigem às faculdades racionais dos
homens. Mas, por muito corretos que uns métodos sejam (suponhamos que sim)
desde o ponto de vista intelectual, isto não basta para presumir ou afirmar
que serão adequados àqueles indivíduos (à vida emocional e em geral à
personalidade ou ao caráter) que estão chamados a aplicar esses métodos. De
fato, para que determinados métodos sejam seguidos tem que dar-se ao menos
uma das duas condições seguintes: (i) ou que o conhecimento e a prática
metódicos sirvam também para promover determinadas crenças e/ou fins
fundeados na vida emocional do sujeito em questão, e que este seja
consciente disso; (ii) ou que, em todo caso, esses métodos não se oponham a
ditas crenças e/ou fins se não é para favorecer outros que o próprio
sujeito considere igualmente importantes. Em qualquer dos dois casos, a
vida emocional do intérprete dispõe, em última instância, de uma espécie de
"veto" sobre o pensamento metódico.
A resolução de problemas e conflitos jurídicos é um assunto prático
que ocorre no interior da mente, no qual muitos fatores interagem, competem
e restringem a decisão que estabelece o cérebro. Algumas restrições se
priorizam sobre as demais; alguns fatores serão conscientes, outros não;
alguns podem ser expressados, outros não. Por norma geral, a tomada de
decisão é um assunto de restrições e satisfações, e quando se desenvolve
bem, quando os métodos coincidem com as crenças e/ou objetivos do sujeito,
podemos afirmar que prevaleceu a racionalidade. (P. Churchland)
Desde esta perspectiva, as modernas teorias hermenêuticas, de
interpretação e de argumentação jurídica não nos informam absolutamente
nada sobre o "equipamento mental" que dispomos para levar a cabo a tarefa
de interpretar e decidir. Simplesmente:
(i) silenciam (cínica e descaradamente) sobre a circunstância de que,
como seres humanos normais, tudo o que pensamos ou experimentamos resulta
da estrutura e do funcionamento de nosso cérebro, e que toda "información
que se toma, cómo se transforma, y cómo afecta las decisiones del organismo
(es decir, la forma en que el organismo percibe, interpreta y decide), todo
depende de la organización innata del organismo"(S. Pinker);
(ii) pecam com gravidade ao ignorar ou relegar a um segundo plano a
influência concreta dos múltiplos fatores (inconscientes e irracionais,
inatos e adquiridos) que intervêm no ato de interpretar/decidir,
construídas que estão a partir de premissas alheias a qualquer escrutínio
empírico-científico minimamente sério, carentes da menor autoconsciência
com respeito à realidade neuronal que nos constitui e dos problemas
filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da
ação intencional humana;
(iii) descuidam da evidência de que qualquer conduta humana, toda
experiência humana, incluída a própria experiência hermenêutica, tem um
"substrato" neurobiológico, e que, como tal, em tema de atividade
interpretativa, é necessário perguntar-se acerca da relevância e utilidade
que os métodos jurídicos podem ter sobre a desejada racionalidade,
objetividade e neutralidade dos intérpretes autorizados - uma vez que
estas, se existem, não são mais que a conclusão de um processo
incessantemente influenciado por mecanismos inconscientes que condicionam,
mais do que imaginamos, nossa maneira de pensar, interpretar, razoar e
decidir; e
iv) ao renunciar uma maior e estreita aproximação com as teorias e
investigações que se desenvolvem em outros âmbitos do conhecimento
científico, não somente não oferecem mecanismos que permitam analisar
adequadamente nossas capacidades, debilidades e limitações ao levar a cabo
as operações de compreensão, interpretação e decisão jurídica, como
tampouco proporcionam qualquer modelo empiricamente consistente e
contrastável para avaliar os resultados e impactos dos argumentos que
servem de fundamento para suas teorias no que se refere às nossas intuições
e emoções morais (tanto as culturalmente formadas como, em particular, as
de raiz biológica).
Dito de outro modo, já não é legítimo nem digno negar, à vista das
provas existentes, que toda interpretação consiste em eleições sobre
distintas possibilidades que tem lugar de algum modo no cérebro do
intérprete, em uma mente que sempre está "llena de remembranzas
irrevocables y de pensamientos impensables, que toman parte en todos sus
juicios como fuerzas que no se pueden destruir" (O. W. Homes). Uma
evidência que, por si só, já seria suficiente para recomendar que as
interpretações e decisões deveriam levar sempre a seguinte advertência: "Os
pontos de vista expressados não são necessariamente os da racionalidade a
que dou culto".

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
[1]https://www.researchgate.net/publication/280096511_Interpretao_Deciso_e_R
epresentaes_Cerebrais_Hermenutica_Ingnua_%28Parte_1%29
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