Intervenções Urbanas Disruptivas no Fim da Ditadura

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29/06/2016

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INTERVENÇÕES URBANAS DISRUPTIVAS NO FIM DA DITADURA por patrícia morales bertucci A prática espacial de uma sociedade secreta seu espaço; ela o põe e o supõe, numa interação dialética: ela o produz lenta e seguramente, dominando-o e dele se apropriando. 1 Henri Lefebvre Durante a madrugada de 15 de julho de 1980, alguns jovens reuniramse para intervir plasticamente no túnel que faz a ligação das avenidas Paulista e Dr. Arnaldo. Com mais de 100 metros de plástico polietileno vermelho, eles foram costurando-o entre os vazios superiores do túnel e o piso de baixo, formando uma grande escultura lúdica. Entretanto, a instalação permaneceu ali apenas por algumas horas, até a chegada dos policiais e da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), e o fluxo cotidiano de automóveis retomou a paisagem “normal” logo pela manhã. O grupo, que já previa a efemeridade da sua instalação, fez denúncias “anônimas” aos meios de comunicação e acabou por ocupar e apropriar-se tanto do espaço da cidade quanto das mídias de massa - a Rede Globo (16 de julho, 1980) e os jornais Folha de São Paulo (20 de julho, 1980) e O Estado de São Paulo (15 de julho, 1980) - num momento de grande importância política, quando a ditadura militar caminhava para o seu fim.

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INTERVERSÃO VI, 3Nós3, São Paulo, 1980 (arquivo Mario Ramiro/3Nós3)

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Aquele túnel não foi escolhido pelos artistas por acaso, ele era um conhecido ponto de encontro dos pichadores e, portanto, um lugar de resistência para a arte urbana independente. Vale apontar que as intervenções artísticas continuam acontecendo no local até os dias de hoje: o túnel é totalmente ocupado com os painéis dos grafiteiros e também pela sobreposição dos pichos. A intervenção descrita acima, Interversão VI (1980), foi organizada pelo coletivo de arte independente 3Nós3, que surgiu dentro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e atuou de 1979 até 1982, formado por Mario Ramiro, Hudinilson Junior e Rafael França. Eles subverteram tanto aquele espaço quanto outros, em oposição ao uso funcionalista e tecnocrático que o governo militar impôs à cidade. [...] a ideia de colocar 300 metros de plástico na Avenida Paulista, sem autorização da polícia ou da prefeitura, mostra exatamente a ocupação de um espaço que estava se distendendo. Um espaço que deixou a compressão da ditadura e começa a ter uma “distensão”, como se fala em política, e é exatamente nessa distensão que a gente vai trabalhar. 2 Mario Ramiro A ditadura militar teve início em primeiro de abril de 1964, após o presidente João Goulart ser deposto. O governo militar ficou durante 21 anos no poder e implantou diretrizes adversas e violentas, entre elas, os Atos Institucionais - o AI-5 (1968-1978) foi o último e mais duro, com a substituição da Constituição de 1946 pela de 1967 e a dissolução do Congresso Nacional. Durante esse período, o espaço da cidade de São Paulo refletiu, como um espelho, a violência do regime, pelas grandes obras de engenharia e infraestrutura urbana que priorizavam as rodovias para automóveis. Significativamente, é entre os anos de 1969 e 1973 que foram construídas as seguintes vias: as avenidas 23 de Maio e Radial Leste, a Ligação Leste-Oeste (Minhocão, Praça Roosevelt e Viaduto Jaceguai), as alças e viadutos sobre o Parque D. Pedro II, as Marginais dos rios Tietê e Pinheiros, as obras do metrô Sé, com a revitalização da praça homônima, e o parcialmente implantado projeto Nova Paulista.

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Praça Roosevelt em obras, revista Manchete 1970

Tais obras técnicas e estéreis apareciam publicamente, por ironia — como a da Praça Roosevelt, na imagem acima, publicada na revista Manchete — como se estivessem investidas de humanidade. A sociedade burguesa moderna desenvolveu meios de produção e de troca gigantescos, “como o feiticeiro incapaz de controlar os poderes 3 ocultos que desencadeou com suas fórmulas mágicas” , ou seja, assumiu a barbárie de um planejamento baseado em estratégias massivas de maximização dos lucros em nome da modernidade, mas com características precisas: homogeneidade-fragmentaçãohierarquização. Para o filósofo Henri Lefebvre, uma curiosa lógica predomina nesse tipo de planejamento: ele se vincula ilusoriamente à uniformização e oculta, sob sua homogeneidade, as relações “reais” e 4 os conflitos. Em contraposição a essa lógica funcional e tecnocrática das obras da ditadura, o grupo 3Nós3 inverteu e interrompeu o fluxo de carros em avenidas, pontes e túneis, mesmo que durante um curto espaço de tempo, com suas intervenções de grande porte com plástico polietileno. Na intervenção urbana 27.4/3 (1982), o grupo dispôs paralelamente quatro tiras de polietileno vermelho no gramado entre as faixas da Avenida 23 de Maio, próximo ao Viaduto D. Paulina. O plástico foi retirado no dia seguinte pelos moradores da Vila de Itororó, que os reutilizaram em suas casas. Naquela época, a vila passava por um processo de degradação, que a construção da avenida sobre o antigo Riacho Itororó agravou. A vila é um conjunto eclético e singular, http://www.mariantonia.prceu.usp.br/celeuma/?q=revista/5/interven%C3%A7%C3%B5es­urbanas­disruptivas­no­fim­da­ditadura

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construído entre 1922 e 1929, e o rio que passava rente ao imóvel celeuma 5 públicas que existiam dentro dela. servia às piscinas



27.4/3, 3Nós3, São Paulo, 1982 (arquivo Mario Ramiro/3Nós3)

Em Arco 10 (1981), eles instalaram, em diagonal, cem metros de plástico polietileno amarelo embaixo do viaduto da Avenida Dr. Arnaldo. A ação foi retirada pela CET logo pela manhã, e causou bastante confusão aos motoristas que estavam dirigindo-se ao trabalho.

Arco 10, 3Nós3, São Paulo, 1981 (arquivo Mario Ramiro/3Nós3) http://www.mariantonia.prceu.usp.br/celeuma/?q=revista/5/interven%C3%A7%C3%B5es­urbanas­disruptivas­no­fim­da­ditadura

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Em Conecção (1981), o grupo estendeu uma longa faixa de polietileno

celeuma 5 das avenidas Dr. Arnaldo, Rebouças e Pacaembu, vermelho na ligação



entre o respiradouro do túnel do metrô e a grama. A palavra “conecção” foi um neologismo criado por eles, significando a “ação de conectar”.

Conecção, 3Nós3, São Paulo, 1981 - (imagem do arquivo de Mario Ramiro/3Nós3)

Além do 3Nós3, outros coletivos de arte realizaram intervenções urbanas na virada da década de 1970 para a de 1980, entre eles Viajou Sem Passaporte, Manga Rosa, Atelier Mãe Janaína, GEXTU, d’Magrelos e outros. Os trabalhadores e os estudantes também http://www.mariantonia.prceu.usp.br/celeuma/?q=revista/5/interven%C3%A7%C3%B5es­urbanas­disruptivas­no­fim­da­ditadura

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voltaram para as ruas em manifestações políticas e festas populares.

celeuma 5 tal agitação social como um sintoma da Pode-se considerar



“retomada” dos espaços públicos graças à progressiva perda de popularidade dos miltares no Brasil. Entretanto, a transição política para a democracia só se efetivou em 15 de março de 1985, com José Sarney no cargo de presidente. Nesse contexto, os coletivos de arte independente misturaram diversas linguagens em busca de um “outro modo” de entender e fazer política, através de expressões livres, capazes de incluir a arte nos novos comportamentos fora dos padrões de coerência, nos discursos contestadores, da crítica militante e dos programas estéticos. Assim, trocaram as salas de espetáculos pelas ruas, as editoras pelos mimeógrafos ou a tipografia, as grandes gravadoras musicais por produções caseiras com equipamentos considerados obsoletos, e formaram associações livres e cooperativas: “ser parte daquela comunidade implicava não só participar de processos de criação 5 coletiva, mas compartilhar e conviver” . Apesar de colaborarem entre si, cada coletivo utilizava diferentes procedimentos para agir na cidade. Por exemplo, ao contrário do viés contextual das ações do 3Nós3, o Viajou Sem Passaporte estava interessado em ações inter-relacionais, capazes de incitar um diálogo físico e/ou verbal entre os performers e os transeuntes, como na sequência de intervenções chamadas de trajetórias. A Trajetória da Árvore (março de 1979) aconteceu na Praça Dom José Gaspar, em torno de uma árvore próxima à Biblioteca Municipal, no centro de São Paulo, e teve o seguinte roteiro: a cada minuto um integrante do grupo saia de uma esquina, caminhava normalmente pela calçada, fazia uma volta em torno da árvore escolhida e continuava seu caminho até desaparecer na Avenida São Luís. Dez pessoas participaram, sendo que algumas ficaram incógnitas no bar, tirando fotos e colhendo as impressões dos transeuntes.

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Trajetória da Árvore, São Paulo, 1978 (arquivo Viajou Sem Passaporte)

Trajetória da Árvore, São Paulo, 1978 (arquivo Viajou Sem Passaporte)

Na Trajetória do Curativo (abril de 1979), o grupo definiu uma linha de ônibus e dividiu-se: cada um dos oito integrantes ficou em um ponto diferente, todos com um curativo no olho esquerdo. Logo após o ônibus ter começado o seu trajeto, o primeiro integrante do grupo entrou no veículo, passou a roleta e desceu no próximo ponto. Enquanto isso, o segundo integrante subiu no ônibus. Fazia parte do roteiro ter duas pessoas do grupo dentro do ônibus, uma com curativo no olho e outra para observar as reações dos passageiros, que diziam frases como: “Isso daí deve ter sido organizado, né? (Se é que alguém se organiza para fazer esse tipo de coisa)”. No último ponto da trajetória um deles ficou com um cartaz nas mãos, onde estava escrito: 6 “Trajetória do Curativo, assinado Viajou Sem Passaporte”.

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Trajetória do Curativo, São Paulo, 1978 (arquivo Viajou Sem Passaporte)

Trajetória do Curativo, São Paulo, 1978 (arquivo Viajou Sem Passaporte)

Na Trajetória do Paletó (maio de 1979), o procedimento foi o mesmo, com uma diferença, o objeto escolhido: um paletó ao invés do curativo. Sendo assim, no primeiro ponto um deles entrou no ônibus, sentou-se com um paletó nas mãos; no próximo ponto, o segundo entrou e sentou na frente do anterior; o primeiro entregou a roupa ao segundo dizendo: “o senhor poderia segurar o meu paletó?” e desceu do ônibus. E assim repetidamente, até que, no oitavo ponto de ônibus, o paletó foi finalmente entregue para um passageiro. No paletó estava http://www.mariantonia.prceu.usp.br/celeuma/?q=revista/5/interven%C3%A7%C3%B5es­urbanas­disruptivas­no­fim­da­ditadura

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escrito “Trajetória do Paletó”, e junto havia um pedido de retorno com o

celeuma endereço onde5ele deveria ser entregue, mas a peça de roupa nunca foi



devolvida. O Viajou Sem Passaporte surgiu antes do 3Nós3, em maio de 1978, e teve intensa atuação até 1982, sendo composto por oito estudantes das áreas de artes cênicas, cinema, música e jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo: Beatriz Caldano, Celso Santiago, Carlos Alberto Gordon, Luiz Sergio Ragnole Silva (Raghy), Marli de Souza, Márcia Meirelles, Marilda Carvalho e Roberto Mello. Desde o princípio, eles buscavam instaurar crises na normalidade, por meio da experimentação de novas possibilidades criativas, que fugissem não apenas do controle do regime militar, mas do próprio controle que os artistas em geral pretendem ter sobre suas criações. Naquele momento, a arte seguia as mais variadas preocupações estéticas e políticas — desde a “racional”, relacionada ao teatro político strictu sensu, até os vanguardismos estéticos de herança dadaísta, considerados “irracionais” pela crítica. Os coletivos 7 independentes faziam parte da chamada “linha irracional” , assim como o Teatro Oficina e os pós-tropicalistas — que recusavam o engajamento populista dos anos 1960 e instauraram um novo clima político. Sua produção cultural privilegiava a “intervenção múltipla sob a forma de resistências setorizadas, abandonando o projeto 8 globalizante de tomada de poder”. Portanto, as práticas do Viajou Sem Passaporte e do 3Nós3 destinavam-se precisamente a minar a autoridade da razão em busca de uma transformação de atitude ao mesmo tempo afirmativa e rebelde. 9

Suas intervenções tinham um viés “disruptivo” , eram atos de ruptura em busca de “desvios momentâneos”, decisivos e reveladores da totalidade de possibilidades contidas na existência diária. Considero tais fissuras possíveis, pois assim como Marcel Duchamp, também creio que “a arte desemboca em regiões que nem o tempo nem o 10 espaço dominam” , como um buraco negro. Desse modo, ela pode ser capaz de nos levar a outras dimensões e, quem sabe, a outro cotidiano, na contramão das noções de produtividade e eficácia, no qual haja o prazer antissistêmico, e não mais atividades humanas anestesiadas pela alienação.

TELA ANTERIOR

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PASOLINI: CORPO CONTRA CONSUMO, CORPO CONSUMIDO*

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