Interview with Dr Ricardo Seitenfus [Observatório Político Sul-Americano, 2009] In Portuguese

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Análise de Conjuntura OPSA | n.8, ago. 2009 |

Observatório Político Sul-Americano Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ/UCAM http://observatorio.iuperj.br

Dossiê Haiti Análise de Conjuntura (n.8, ago. 2009) ISSN 1809-8924 Neste número

Não Indiferença e Democracia: A Missão de Paz no Haiti Maria Regina Soares de Lima e Monica Hirst .................................................... 03

Entrevista com Ricardo Seitenfus Danilo Marcondes de Souza Neto ................................................................... 06

Análise de Conjuntura | n.8 | ago. 2009

Dossiê Haiti Análise de Conjuntura (n.8, ago. 2009) ISSN 1809-8924

De acordo com rotina já estabelecida desde 2003, o Conselho de Segurança das Nações Unidas renovará no dia 15 de outubro próximo um novo mandato para MINUSTAH (o 11º). A expectativa é que se mantenha o mesmo enquadramento da missão no âmbito do capítulo VII da Carta da ONU, apesar dos avanços reconhecidos pela comunidade internacional e pelo relatório elaborado pelo próprio enviado especial desta organização baseado no Haiti. A OEA representa atualmente a principal voz multilateral regional presente no processo de estabilização política naquele país e está estreitamente articulada com os países latino-americanos, muito especialmente com o grupo ABC (Argentina, Brasil e Chile). Tendo em vista o envolvimento brasileiro em função do comando militar da Missão e a necessidade de uma discussão ampla do tema no país, elaboramos este "Dossiê Haiti" que contém um artigo de Monica Hirst e Maria Regina Soares de Lima e uma entrevista com Ricardo Seitenfus, representante da OEA no Haiti, realizada por Danilo Marcondes de Souza Neto. Ricardo Senteinfus evidencia na entrevista que ainda são enormes os desafios a serem superados no contexto haitiano nos próximos anos para a consolidação da democracia, a retomada do desenvolvimento e a recuperação plena da soberania. O primeiro passo parece ser a reconfiguração da própria MINUSTAH.

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Não Indiferença e Democracia: A Missão de Paz no Haiti Maria Regina Soares de Lima Professora Titular do IUPERJ/UCAM Coordenadora do OPSA Monica Hirst Professora de Política Internacional da Universidade Di Tella Buenos Aires

As Nações Unidas iniciaram sua 64ª Assembléia Geral em setembro. Como é costume desde sua fundação, o discurso inaugural foi realizado pelo Brasil. Vários assuntos de interesse imediato para nosso país serão debatidos. No caso das atividades do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a agenda de trabalho prevê como um dos temas a serem tratados em 15 de outubro próximo a renovação do mandato da Minustah, sigla que designa a Missão de Paz em operação no Haiti, sob o comando militar do Brasil desde seu início, em fevereiro de 2004. Apesar de já ser considerada um tema habitual nas deliberações do Conselho, a questão é ainda pouco debatida na sociedade brasileira, estando restrita a diplomatas e a especialistas em relações internacionais no meio acadêmico. Além do exercício do comando militar da Missão, nos últimos cinco anos e meio, o país já contribuiu com aproximadamente treze mil homens, que chegam ao Haiti e de lá partem a cada semestre. Em termos percentuais, esse contingente corresponde a cerca de 4,5% das Forças Armadas do país. No conjunto das forças internacionais que integram a Minustah, a participação brasileira corresponde a aproximadamente 18%. Ao lado da dimensão militar propriamente dita, a presença no Haiti está associada a um conjunto de motivações de política externa. Podemos destacar as seguintes: 1) trata-se de uma fonte de reconhecimento internacional que fortalece as credenciais do país no tabuleiro global da política mundial; 2) propicia um relevante campo de articulação intrarregional, especialmente com a Argentina e o Chile, revivendo a marca ABC no âmbito sul-americano; 3) oferece ao Brasil a possibilidade de ser parte

ativa

da

comunidade

de

doadores

da

assistência

internacional

e,

simultaneamente, fortalece sua capacidade de oferta na cooperação Sul-Sul. Da mesma forma, é preciso ter claro, como foi colocado desde os primeiros momentos da decisão tomada pelo governo Lula, que também se impõem razões vinculadas à situação a ser revertida pela ação brasileira a partir da noção de “não

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indiferença”. Com essa inovação conceitual, a política externa do governo Lula buscou diferenciar-se da prática da “intervenção humanitária” adicionando à solidariedade ao povo do Haiti a suposição de que o Brasil, como outros países da região, dispõe de maior sensibilidade e experiência para apoiar esse país em seus esforços por lograr melhores condições de paz, desenvolvimento e democracia. A partir de 2006, com a inauguração do governo Préval no Haiti, teve início um processo de estabilidade, paz social, governabilidade e reconstrução econômica que, se bem esteve aquém das expectativas da comunidade internacional, alcançou progressivos avanços. Até 2008, os mandatos da Minustah haviam sido renovados sem maiores alterações na substância de suas respectivas resoluções. A partir deste ano, as resoluções passaram a refletir o reconhecimento de uma nova realidade, com maior capacidade de transformação em todos os campos de atuação da Missão. Apesar desse reconhecimento, o número de contingentes militares e policiais se manteve praticamente o mesmo. Considerando que 2010 será o último ano do governo Préval, talvez fosse oportuno aproveitar a próxima renovação da Minustah para proceder a uma avaliação das condições tendo em vista a redução de seu componente militar. O Brasil ocupa um lugar central nessa reavaliação, já que detém a responsabilidade do comando. A decisão brasileira, em 2004, de comandar a Missão de Paz no Haiti foi considerada, na época, um divisor de águas em relação ao maior compromisso do país para com questões de segurança coletiva. Contudo, a interpretação de nossa diplomacia foi que apenas no que se referia às disposições de segurança da ação da Missão esta poderia ser enquadrada no capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que dispõe sobre o uso da força. Na verdade, desde então, tem sido evidente o esforço das autoridades brasileiras em ressignificar aquela operação a fim de enfatizar seus objetivos de cooperação em face das carências estruturais do país. Em outubro próximo, o Brasil deverá ser eleito para um assento não permanente do Conselho de Segurança, com um mandato de dois anos iniciando-se em janeiro de 2010. Esta será a décima vez que o país atuará como membro não permanente do Conselho, o que reforça sua responsabilidade na matéria. O Brasil tem sido um dos mais incisivos defensores de uma reforma das Nações Unidas, em especial do Conselho

de

Segurança,

visando

aumentar

o

número

de

seus

membros

permanentes. Uma das credenciais brasileiras para essa mudança de status no Conselho consiste em sua contribuição para a ampliação da dimensão do desenvolvimento econômico e social no sistema de segurança coletiva, em particular nas missões de paz da ONU.

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O momento não poderia ser mais propício para o reforço dessas credenciais. Ainda mais quando se considera o sentido positivo de uma reavaliação da configuração da Minustah em conjunto com a comunidade internacional, os países da região com os quais se mantém estreita colaboração no Haiti e a própria sociedade brasileira.

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Entrevista com Ricardo Seitenfus1 Realizada por Danilo Marcondes 2

1. Professor Seitenfus, o senhor é um antigo observador do Haiti, tendo acompanhado o caso haitiano desde 1993 e escrito um dos poucos relatos disponíveis em português sobre a realidade do país3. Qual seria sua análise sobre o Haiti hoje e em relação aos anos 90, considerando as dimensões política e econômica, e levando em consideração os cinco anos de presença da MINUSTAH? E como o senhor destacaria o papel e a contribuição da OEA nesse contexto?

R: Com a queda de Jean-Claude Duvalier (Baby-Doc)

4

em 1986, o Haiti

inicia um período de aprendizagem da democracia representativa. Trata-se de longa transição que conheceu altos e baixos. Uma nova Constituição (atualmente em processo de revisão), foi adotada em 1987 e a eleição democrática do ex-padre salesiano Jean-Bertrand Aristide5, em 16 de 1

Ricardo Seitenfus é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra (1980) e professor titular da Universidade Federal de Santa Maria, atualmente cedido à Organização dos Estados Americanos (OEA). Foi Vice-Presidente da Comissão Jurídica Interamericana (CJI) da OEA e exerceu a função de consultor do Ministério das Relações Exteriores do Brasil para assuntos relacionados ao Haiti. Atualmente, Seintenfus exerce as funções de Representante Especial do Secretário-Geral da OEA e Chefe do Escritório da OEA no Haiti. Para maiores informações sobre o envolvimento do Professor Seitenfus nas questões haitianas, consultar os sítios www.seitenfus.com.br e www.brasilhaiti.com.

2

Danilo Marcondes de Souza Neto é mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio e está desenvolvendo dissertação de Mestrado sobre a participação sul-americana no Haiti. A entrevista foi realizada em 1º de outubro de 2009 por e-mail. As considerações aqui expressas são de responsabilidade pessoal do entrevistado e não implicam de forma alguma a Organização dos Estados Americanos.

3

Ver Ricardo Seitenfus. Haiti, a soberania dos ditadores. Porto Alegre: SoLivros, 1994.

4

Jean Claude Duvalier, também conhecido como Baby Doc, sucedeu a seu pai, François Duvalier (Papa Doc) como ditador do Haiti. Baby Doc governou o país de 1971 até 1986, quando se refugiou na França, onde se acredita que vive até hoje. O governo de Baby Doc foi caracterizado pela corrupção e pelo uso dos recursos do Estado haitiano como fortuna pessoal. Após a saída de Aristide do governo em 2004, Baby Doc manifestou interesse em se candidatar à presidência do Haiti nas eleições de 2006, mas acabou desistindo. Em 2007, o presidente haitiano René Préval afirmou que não havia nenhum impedimento para que Baby Doc voltasse ao Haiti se assim desejasse, mas que ele seria submetido a julgamento quando retornasse ao país. Fonte: www.resdal.org .

5

Jean-Bertrand Aristide é um político haitiano e ex-presidente do país. Ex-padre salesiano, durante o sacerdócio, Aristide foi ligado à Teologia da Libertação e a setores progressistas da Igreja Católica no Haiti. Aristide foi eleito presidente nas eleições de 1990, mas só conseguiu governar por sete meses em 1991, antes de ser derrubado por um golpe militar liderado por 6

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dezembro

de

1990,

suscitaram

grandes

esperanças

e

constituíram

momentos marcantes desta caminhada. Contudo, poucos meses após assumir, Aristide foi derrubado por um golpe militar comandado por Raoul Cédras6. Tem início, então, uma crise marcada, entre outros, por 8 intervenções estrangeiras7, que se estende até os dias atuais. Quando estive pela primeira vez no Haiti em 1993, em plena ditadura militar, o país encontrava-se sob embargo promovido pela OEA e pela ONU8. Justamente eu fazia parte de uma pequena Missão destas duas organizações na condição de Observador dos Direitos Humanos.

Raoul Cédras. Em outubro de 1994, Aristide conseguiu retornar ao poder com apoio dos Estados Unidos e, em 1995, estabeleceu por decreto a extinção das Forças Armadas do Haiti, substituídas pela Polícia Nacional Haitiana - PNH. Aristide foi presidente de 1994 até 1996 (quando foi sucedido por René Préval) e exerceu novamente a presidência de fevereiro de 2000 até fevereiro de 2004, quando teria renunciado após a eclosão de uma revolta popular no país. No entanto, Aristide alega ter sido derrubado por um golpe de Estado apoiado pelos governos da França e dos Estados Unidos. Em 1996, Aristide rompeu com seu antigo partido político o Organisation Politique Lavalas - OPL (Lavalas significando “A avalanche” em creole) e fundou o Fanmi Lavalas (Família Lavalas), com o qual se elegeu presidente em 2000 em eleições contestadas e boicotadas pelos partidos de oposição e que tiveram um baixo quórum (o voto não é obrigatório no Haiti). Atualmente, apesar de viver no exílio na África do Sul, Aristide continua sendo uma figura importante na política haitiana e muitos analistas acreditam na possibilidade de um retorno de Aristide ao país. Fonte: www.resdal.org, www.brasilhaiti.org. 6

Raoul Cédras é um ex-militar haitiano que ocupou entre 30 de setembro e 8 outubro de 1991 a presidência da Junta Militar que governou o Haiti, mas que exerceu de fato a presidência do Haiti de 1991 até 1994. Cedras liderou o golpe militar que derrubou o presidente Aristide em 1991. Vive atualmente no Panamá, onde se refugiou após o retorno de Aristide ao poder em 1994. Fonte: www.resdal.org .

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Dentre as missões anteriores constam a: MICIVIH (International Civilian Mission in Haiti), Resolução da Assembléia Geral 47/208 de abril de 1993; UNMIH (United Nations Mission in Haiti), resolução 940 do Conselho de Segurança de agosto de 1993; UNSMIH ( United Nations Support Mission in Haiti), Resolução 1063 do Conselho de Segurança de junho de 1996; UNTMIH ( United Nations Transition Mission in Haiti), Resolução 1123 do Conselho de Segurança de julho de 1997; MIPONUH ( United Nations Civilian Police Mission in Haiti) , Resolução 1141 do Conselho de Segurança de novembro de 1997; MICAH ( International Civilian Support Mission in Haiti ), Resolução 54/193 da Assembléia Geral de dezembro de 1999 e MIF(Multinational Interim Force), Resolução 1529 do Conselho de Segurança de fevereiro de 2004. 8

Em junho de 1993, por meio da resolução 841, aprovada por unanimidade, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decretou um embargo de armas e combustível ao Haiti. Anteriormente no mesmo mês, o governo dos Estados Unidos já havia decretado um embargo contra indivíduos e instituições que tivessem apoiado o golpe militar e que apoiassem o governo de fato do Haiti. As sanções das Nações Unidas foram suspensas em agosto de 1993, pela resolução 861 do Conselho de Segurança, após a ratificação pelo parlamento haitiano do primeiro-ministro indicado pelo presidente Aristide, Robert Malval, condição imposta pelo Conselho para que as sanções fossem suspensas. Fonte: David Malone, Decision-making in the UN Security Council. The case of Haiti. Oxford, Caledon Press, 1998.

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Como sempre ocorre, o embargo não seletivo provocou graves problemas, atingindo essencialmente a população mais carente. Durante mais de três anos o país viveu um clima de terror e de repressão. Contudo, a vitória do Partido Democrata nos Estados Unidos permitiu o retorno de Aristide em 1994 numa operação militar definida como “invasão consentida”. Após uma certa acalmia política com a conclusão do mandato de Aristide e a eleição de seu braço-direito, René Préval9, para presidente, Aristide retorna ao poder em 2000 em eleições controversas. O segundo mandato de Aristide é marcado pelo que chamo de “maldição do Palácio Nacional” onde seus ocupantes tendem a transformar-se com o exercício do poder. Aristide organiza a violência com milícias paralelas, integradas inclusive por crianças e perde apoio de quase todas as forças que o conduziram ao poder. Finalmente, em 29 de fevereiro de 2004, de forma bastante nebulosa, parte para o exílio. Para impedir que o poder caia nas mãos de ex-militares e de narcotraficantes, uma força internacional (MIF) é constituída às pressas e logo a seguir substituída pela Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH). Após dois anos de Governo Provisório, René Préval vence as eleições de fevereiro de 2006 com larga margem de votos fazendo com que a normalidade democrática retorne ao país. A situação presente é marcada por baixos índices de violência – a violência urbana é menor que nos países da região, inclusive menor que no Brasil – e caracterizada por grande liberdade de opinião e de imprensa. No entanto, permanecem os problemas estruturais que fragilizam o Estado e fazem com que os indicadores sócio-econômicos sejam extremamente preocupantes. Durante muitos anos a questão haitiana não encontrou consenso na OEA. Tal situação impediu uma presença mais ativa da organização continental. Além disso, o imbroglio haitiano foi percebido com sendo uma ameaça à paz e, portanto, conduzido ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU). 9

René Préval é o atual presidente do Haiti, tendo sido eleito nas eleições de fevereiro 2006 pela coligação partidária Fwon Lespwa (“Frente da Esperança” em creole). Préval exerceu anteriormente a presidência do Haiti entre fevereiro de 1996 até fevereiro de 2001 e o cargo de primeiro-ministro entre fevereiro e outubro de 1991 durante a presidência de Aristide. Durante a ditadura de Papa Doc, Préval foi exilado juntamente com sua família, vivendo entre 1970 e 1975 nos Estados Unidos. Após o golpe militar de 1991, Préval se exilou novamente. Com a sua eleição em 1996, Préval se tornou o segundo chefe de Estado democraticamente eleito em todos os dois séculos de história política haitiana. Ao terminar seu mandato em 2001, Préval foi o segundo chefe de Estado haitiano a deixar o poder por conseqüência do término do mandato e não por golpe militar ou morte. Fonte: www.resdal.org .

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A OEA participa ativamente na organização das eleições, no programa de Registro

Civil

(que

objetiva

dotar

os

haitianos

de

documento

de

identificação) e nos projetos de proteção dos Direitos Humanos.

2. Considerando o estado de fragilidade em que o Haiti se encontra hoje, como a comunidade internacional, isto é, sistema ONU, OEA, países contribuintes de tropas para a MINUSTAH, países doadores, sociedade civil internacional, podem contribuir para o fortalecimento da democracia haitiana e da soberania local?

R: Não é possível estabilizar um país com deficiências gritantes unicamente com a presença de tropas estrangeiras. Caso não sejam realizados, concomitantemente, operações de desenvolvimento objetivando a criação de empregos formais, programas de conteúdo social, recuperação da infraestrutura e a urgente reconstrução do tecido estatal, estaremos “arando no mar”. Os indicadores sócio-econômicos do Haiti – agravados por três furacões em 2008 – são os piores das Américas e um dos piores do mundo. O Haiti necessita de cérebros, tecnologia, investimentos e uma atenção especial à agricultura, sobretudo familiar e de subsistência. Os desafios institucionais – essencialmente a reforma do sistema judiciário – são inadiáveis. A formação de uma Polícia Nacional Haitiana (PNH) – as Forças Armadas foram abolidas em 1995 – dotada de espírito republicano, nãoviolenta, respeitadora dos Direitos Humanos e do Estado de Direito, constituem condição sine qua non para a recuperação da soberania nacional e para a partida das tropas estrangeiras. Para que vingue a democracia no país é indispensável, em primeiro lugar, a assinatura de um Pacto de Liberdades e de Garantias Democráticas fazendo com que a luta pelo poder se enquadre dentro de parâmetros democráticos pré-estabelecidos (alternância no poder, Estado de Direito, liberdade política,

etc.).

Além

disso,

essa

democracia

não

pode

contentar-se

unicamente com o aparato – imprescindível embora insuficiente – de eleições livres, transparentes, inclusivas e de liberdades públicas. É necessário que seja também um instrumento eficaz, com preocupações sociais para lutar contra os imensos desequilíbrios que marcam o país.

3. Como a MINUSTAH tem contribuído para promover as demandas da população local? De que forma essas demandas se relacionam com as

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demandas do governo haitiano e da própria comunidade internacional? Como a população local avalia esses cinco anos de MINUSTAH?

R: A MINUSTAH é uma operação de paz que se enquadra nos princípios do Cap. VII da Carta das Nações Unidas10. Sua essência é exclusivamente securitária e, acessoriamente, encarrega-se de temas conexos. Portanto, não se trata de uma operação que busca o desenvolvimento sócioeconômico e que tenha uma atuação multifacetada. Calculo que 90% dos gastos do sistema das Nações Unidas no Haiti giram em torno da segurança. Não se pode imaginar que uma missão assim constituída possa ser transformada em algo para o qual ela não foi concebida. Essa é a força e ao mesmo tempo a fraqueza da MINUSTAH: força porque conseguiu impor um alto nível de segurança; fraqueza porque não está em condições para enfrentar

os

problemas

estruturais

do

país,

dos

quais

resultam

a

insegurança e a instabilidade política. Portanto, após cinco anos no Haiti, é chegado o momento de fazer um balanço e traçar metas multidimensionais para o futuro. Creio que estamos justamente neste momento de transição para um modelo mais complexo e menos securitário. Há crescente demanda da opinião pública, partidos políticos e sociedade civil para uma revisão do papel da MINUSTAH, inclusive vozes solicitando a saída das tropas. Como o nacionalismo constitui elemento fundacional importante, progressivamente aumenta o eco a estas vozes.

4. Um dos aspectos que diferencia a MINUSTAH das intervenções anteriores da ONU

é

uma

forte

presença

sul-americana.

Quais

as

vantagens

da

contribuição dos países sul-americanos e os desafios que esses Estados precisam superar no seu envolvimento na missão?

R: Efetivamente a presença sul-americana constitui o grande diferencial na atual crise, embora o sistema onusiano tenda a enquadrá-la em parâmetros universais. O fato que os países da região contribuintes com tropas abriguem algumas características sociais que encontram no terreno de operações faz com que a atuação militar – através, por exemplo, das ações cívico-sociais – tenha facilitado o contato com a população civil. A melhor prova consiste no contraste entre as nacionalidades de capacetes azuis 10

Uma missão de paz com mandato baseado no capítulo VII da carta ONU é autorizada a utilizar todos os meios necessários (incluindo o uso da força) para, entre outras tarefas, proteger a população civil e funcionários da ONU e evitar que atores armados violem os acordos de paz vigentes. 10

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vitimados, o que tende a demonstrar o acerto da estratégia aplicada. O desafio essencial a ser superado pelos soldados da região é de natureza psicológica, isto é: eles estão conscientes que a verdadeira guerra no Haiti é contra a miséria (dirigi uma pesquisa na qual transparece que 90% dos militares brasileiros consideram que a pobreza constitui o principal problema do país). No entanto, sua função é empunhar armas. Do ponto de vista logístico, os militares brasileiros prepararam um importante sistema de transporte, comunicação, equipamentos, formação de pessoal, sustentado unicamente na capacidade nacional. Trata-se, portanto, de uma experiência inédita, pois real, para nossas Forças Armadas.

5. Os países sul-americanos tem se destacado por buscar uma presença no Haiti dentro e fora do âmbito da MINUSTAH, valorizando também aspectos não-militares como a cooperação venezuelana por meio da ALBA e a ênfase brasileira no soft power em seu relacionamento com a população local, com a utilização do futebol e a criação de um centro de estudos brasileiros. Qual a importância dessa presença fora da MINUSTAH, e como os dois tipos de presença se relacionam?

R: Sem mencionar o caso dos três países com tradição de cooperação no Haiti (Canadá, Estados Unidos e França), há alguns países latino-americanos que possuem experiência de cooperação em campos bem definidos (Cuba na saúde; Venezuela com petróleo e projetos urbanos). Os demais são o que chamo de “novos cristãos” em seu interesse pelo Haiti. É o caso do Grupo ABC (Argentina, Brasil e Chile). Estes países entenderam que a exclusiva presença militar pode resolver uma das conseqüências, mas não se ataca as raízes do mal haitiano. Trata-se de projetos sociais na área da segurança alimentar, meio ambiente, saúde, cultura, etc. Muitas vezes os projetos são vinculados a presença de tropas do respectivo país na sua área de aplicação. Por outro lado, são projetos adaptados as demandas locais embora dotados de recursos financeiros limitados. Colocam-se duas questões: por um lado, qual será o futuro destes projetos quando da futura partida da MINUSTAH? E por outro, como resolver as limitações orçamentárias para multiplicar estes projetos? Surgem então, além da cooperação Sul/Sul cujo exemplo marcante é o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) 11, os projetos triangulares Norte/Sul.

11

Em dezembro de 2006, um projeto orçado em U$550 mil e financiado pelo Fundo IBAS no Haiti recebeu o Prêmio Parceria Sul-Sul (South-South Partnership Awards), na categoria 11

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6. Um segundo aspecto a ser destacado é o fato de que, em alguns países sulamericanos que possuem contingentes no Haiti, determinados movimentos sociais têm se mostrado contrários a essa presença e à própria existência da MINUSTAH. Esses movimentos, inclusive, têm se articulado com outros de natureza semelhante no Haiti. Na sua opinião, porque a presença no Haiti mobilizou esses movimentos sociais e de que forma os governos dos países que enviam tropas podem responder às demandas desses movimentos?

R: Creio tratar-se de preocupação legítima. Nenhum país e nenhuma sociedade se apraz com a presença de tropas estrangeiras em solo pátrio. Como brasileiro e ora respondendo pela OEA no Haiti, não perco de vista o horizonte que espero próximo no qual o único país ocupado militarmente das Américas poderá recuperar sua plena soberania e auto-determinar-se. Não se pode conviver indefinidamente com a atual situação. A qualidade de uma missão de paz é inversamente proporcional ao tempo de sua duração. Contudo, não se trata de fixar desde já uma data para a partida da MINUSTAH. O que importa são as condições nas quais acontecerá a recuperação da independência do Haiti. Para isso trabalho incessantemente com a preocupação que o entardecer desta oitava intervenção estrangeira não seja o anúncio do amanhecer da nona intervenção. Para tanto é indispensável alcançar as metas sumariamente indicadas anteriormente.

7. Ainda dentro do aspecto sul-americano da missão, podemos observar algumas iniciativas regionais relacionadas direta ou indiretamente com o tema do Haiti, como o mecanismo 2x 912, a Alcopaz

13

e até mesmo o

Aliança Sul-Sul (South-South Alliance), concedido pelas Nações Unidas. O projeto envolvia coleta e reciclagem de lixo na favela de Carrefour Feuilles na capital Porto Príncipe. Fonte: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2006/12/19/materia.2006-12-19.4247279618/view 12 O mecanismo 2x9, criado em fevereiro de 2007, é um mecanismo de coordenação políticodiplomática entre os países latino-americanos em relação à MINUSTAH e ao processo de reconstrução do Haiti. Atualmente nele estão envolvidos Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai. O mecanismo envolve a realização de reuniões periódicos na qual participam os vice-ministros de defesa e os vice-ministros das relações exteriores dos países citados. O mecanismo evoluiu de um formato inicial 2x3 no qual participavam apenas os vice-ministros de defesa e vice-chanceleres de Argentina, Brasil e Chile, e que posteriormente evoluiu para um mecanismo 2x4 com a incorporação do Uruguai em maio de 2005. O Panamá, apesar de não ter tropas no Haiti, participou das reuniões do mecanismo em 2007, quando ocupou um assento não-permanente no Conselho de Segurança da ONU. Alguns representantes do governo haitiano, da MINUSTAH, da OEA e de agências do sistema ONU, como Unicef e PNUD também tem participado de reuniões do mecanismo. Fonte: www.haitiargentina.org , www.resdal.org . 12

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Conselho Sul-Americano de Defesa14, que também pretende promover o envolvimento dos Estados sul-americanos em operações de paz. Qual a importância desses esforços nesse momento atual? É

possível pensar em

uma atuação semelhante em outros casos que não apenas o Haiti? Qual deve ser o papel desempenhado pelo Brasil em relação a essas iniciativas e a esforços futuros?

R: Existe uma contradição flagrante – entre tantas outras – no sistema internacional de prevenção e de solução de conflitos. O palco, os atores e as vítimas da maioria dos conflitos no pós-Segunda Guerra Mundial situam-se ao Sul do hemisfério ao passo que os meios legais, políticos, financeiros e militares de solução e prevenção dos conflitos situam-se ao Norte. A atual configuração do Conselho de Segurança das Nações Unidas reflete este disparate. O máximo que os Estados do Sul conseguem é fornecer os capacetes azuis para as 18 operações de paz (mais de 90% deles proveem de Estados do Sul). Nestas condições é importante continuar colaborando com o sistema universal de prevenção e solução de conflitos e, ao mesmo tempo, buscar formas regionais e autônomas eficazes. Creio que este seria o caminho apropriado para os acertos regionais na área de segurança.

8. Considerando que o Conselho de Segurança discutirá nos próximos dias a possibilidade de renovação do mandato da MINUSTAH (que expirará em 15

13

A sigla Alcopaz se refere à Associação Latino-Americana de Centros de Treinamento para Operações de Paz. A associação foi uma iniciativa argentina (o país da região com o mais antigo centro de treinamento para operações de paz) que recebeu apoio dos demais países da região e foi criada em agosto de 2008 em Buenos Aires. Atualmente participam da Alcopaz como membros-fundadores os centros de treinamento da Argentina, Brasil, Chile, Equador, Guatemala, Peru e Uruguai. A associação tem como seus objetivos adotar uma posição comum dos países da região frente à International Association for Peace Training Centers ( IAPTC), compartilhar as lições aprendidas da experiência na MINUSTAH e promover o intercâmbio de instrutores entre os centros. Para maiores informações consultar o sítio oficial da associação: www.alcopaz.org . 14

O Conselho Sul-Americano de Defesa faz parte da União Sul-Americana de Nações (Unasul). A proposta de criação do Conselho foi uma iniciativa brasileira apresentada em abril de 2008 e tem como um de seus objetivos articular uma posição comum entre os países sul-americanos a respeito de operações de paz e crises humanitárias, promover o intercâmbio de experiências entre os Estados na área de operações de paz e crises, assim como a realização de exercícios militares que simulem crises humanitárias. Da mesma forma que a Alcopaz, a iniciativa de criação parte do reconhecimento do sucesso da experiência sul-americana na MINUSTAH. A proposta de criação do Conselho foi inicialmente rejeitada pela Colômbia, que apenas concordou em participar em julho de 2008. A criação do Conselho foi estabelecida durante a reunião de presidentes da Unasul na Costa do Sauípe (Brasil) em dezembro de 2008. 13

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de outubro próximo), como o senhor avalia a pertinência e as implicações dessa renovação?

R: Parece haver consenso sobre a necessidade de renovação por 12 meses do mandato da MINUSTAH. Concordo com a decisão, pois ela decorre, entre outras, de uma demanda do governo haitiano. Todavia sugeri que houvesse adaptações já que a situação atual é bastante distinta da de 2004. A começar pela questão securitária: deveríamos colocar ênfase especial na formação da Polícia Nacional Haitiana e na progressiva substituição da presença estrangeira por policiais haitianos. Além disso, é necessário uma atenção particular para os programas sociais. É moralmente inaceitável que a comunidade internacional gaste aproximadamente US$ 600 milhões anualmente com a MINUSTAH ao mesmo tempo em que parte ponderável do povo haitiano sofre privações.

9. Ainda nesse sentido, de que forma o mandato atual pode ser ajustado para lidar com as necessidades haitianas nas questões de segurança, direitos humanos, fortalecimento do Estado e desenvolvimento? E até quando o senhor considera que esse mandato deva ser prolongado para atingir tais objetivos?

R: Creio que os desafios do Haiti são complexos e não podem resumir-se a questões securitárias. Enquanto a comunidade internacional não tomar a devida consciência da natureza do desafio, ela corre o risco de repetir os erros do passado. Com relação a estes desafios, defendo que a OEA – organização não militar, voltada ao diálogo e ao desenvolvimento – juntamente com outras organizações do sistema interamericano (BID, OPS, etc) deveria paulatinamente receber atribuições que atualmente pertencem ao sistema das Nações Unidas. A crise haitiana, antes de ser um problema de alcance universal, é um desafio para os haitianos e para o continente. Reitero que a data de expiração do mandato importa menos do que as condições para que o Haiti prescinda de forças militares estrangeiras em seu solo. Contudo, imagino que o próximo mandato será renovado por 12 meses e provavelmente se estenderá no mínimo até março de 2011.

10. Por fim, qual é o papel nas negociações a respeito do mandato dos países que contribuem com tropas para a missão, principalmente no que diz

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respeito ao Brasil e a outros países sul-americanos e aos membros permanentes que possuem interesse na questão do Haiti?

R: Como fornecedores de 58% das tropas da MINUSTAH os países sulamericanos participam das negociações sobre o mandato. No entanto, as vozes mais fortes pertencem aos Membros Permanentes do Conselho de Segurança e aos países financiadores das operações de paz, cujo orçamento anual total alcança US$ 8 bilhões de dólares e decorre de contribuições obrigatórias. Por sinal, a atual situação do Haiti se enquadraria melhor nos programas da Comissão de Consolidação da Paz das Nações Unidas. No entanto, o Governo haitiano recusa essa transferência, pois os recursos financeiros

desta

Comissão

são

voluntários

e

muito

aquém

das

necessidades.

Porto Principe, 1º de outubro de 2009.

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