Invalidades Processuais no Código de Processo Civil de 2015

June 15, 2017 | Autor: Eduardo Scarparo | Categoria: Processo Civil, Nulidades, Novo CPC
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Invalidades Processuais no Código de Processo Civil de 2015 1

EDUARDO SCARPARO, Doutor em Direito Processual Civil pela UFRGS. Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UFRGS. Advogado em Porto Alegre (RS).

Resumo: O artigo busca comparar os sistemas de invalidades processuais previstos nas legislações processuais de 1939, 1973 e 2015. Trata sobre as reformas no formalismo processual decorrente do CPC/2015, justificando compreensões acerca da operacionalidade das nulidades processuais, em especial pela ingerência do contraditório e reforço da acepção formal do princípio dispositivo. Palavras-chave: nulidades, cominação, contraditório, atos processuais.

Riassunto : Il testo affronta sistemi di nullità processuali nelle leggi processuali brasiliane dei 1939, 1973 e 2015. Versa sulle riforme nel formalismo processuale derivanti dal nuovo Codice brasiliano, giustificando comprensioni circa la nullità di atti processuali, in particolare circa la interferenza del contraddittorio e circa il rinforzo del significato formale del principio dispositivo . Parole chiave: nullità, comminazione, contraddittorio, atti processuali.

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Sobre o ultrapassado sentido da cominação da nulidade nos diferentes sistemas e seu cotejo com a nova legislação. 3. Participação e contraditório no Novo Código de Processo Civil, considerando especificamente a temática das invalidades processuais. 4. Poderes das partes, do Ministério Público e do juiz. 5. Referências Bibliográficas.

1.

INTRODUÇÃO Não se deparará com grandes novidades o jurista que, conhecedor apenas

do texto do CPC/1973, pretender conhecer os enunciados contidos no Título III, designado “Das Nulidades”, no CPC/2015. Os ajustes realizados, tendo por comparativo o sistema anterior, certamente chamariam mais atenção de gramáticos que de 1

Publicado em: SCARPARO, Eduardo. Invalidades Processuais no Código de Processo Civil de 2015. In: Alexandre Freire; Fredie Didier Jr; Lucas Buril de Macêdo; Ravi Medeiros Peixoto. (Org.). Coleção Novo CPC - Doutrina Selecionada - Parte Geral. 1ed. Salvador: JusPodivum, 2015, v. 1, p. 1143-1158.

processualistas. Assim porque o legislador promoveu quase tão somente a exclusão de vírgulas, a troca de palavras, o ajuste à reforma ortográfica, a substituição de pronomes etc. Todavia, engana-se quem a partir da singela comparação entre o texto desses capítulos dos Códigos de 1973 e de 2015 alardeie não haver significativas mudanças no trato das invalidades processuais com a legislação vindoura. Ocorre que a compreensão desse complexo tema transpassa o respectivo capítulo no Código e se insere umbilicalmente no formalismo processual 2. Busca, portanto, anteparos na significação do papel do processo civil no ordenamento jurídico, na conformação que a lei dá aos direitos fundamentais e na distribuição de poderes entre as partes, terceiros e o juiz. A pouca reforma nas letras do título sobre invalidades não importa insignificância nas considerações sobre a temática tendo em conta o novo diploma processual. Aliás, essa constatação tem também sustentação histórica. Basta rememorar que as três teorias clássicas que nortearam o pensamento e aplicação das invalidades processuais no Brasil após o CPC/1973 foram erigidas ainda sob a vigência do CPC/1939. Galeno Lacerda, em 1953 publicou o conhecido livro “Despacho Saneador” 3

, sendo seguido por José Joaquim Calmon de Passos, em 1959, que escreveu obra para

concorrer à Livre Docência da Cátedra da UFBA, posteriormente editado em livro 4. Igualmente, a tese na temática de Pontes de Miranda já se encontrava bastante assente desde seus comentários ao CPC/1939 5. Dessas

três

sistematizações

decorreram

inúmeras

doutrinas

contemporâneas. Para citar algumas, lembra-se das relevantes obras de Teresa Arruda Alvim Wambier 6 e José Maria Tesheiner 7, bem como da recente trilha a esse caminho por Antônio do Passo Cabral 8 e pelo próprio autor deste texto 9. 2

Formalismo é maior que a simples forma ou que as formalidades, já que engloba não apenas o invólucro do ato, mas a delimitação de poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, a coordenação de sua atividade, a ordenação do procedimento e a organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais, sempre relacionadas com as diretivas axiológicas constitucionais. Por isso, de um lado o formalismo é responsável por dar ordem ao procedimento, e, por outro, atua como garantia de liberdade contra o arbítrio estatal. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010 p. 29. 3 LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. Porto Alegre: Sulina, 1953. 4 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 5 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. 6 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 7 TESHEINER, José Maria. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2000. 8 CABRAL, Antônio do Passo. Nulidades no Processo Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

Fato é que as questões que envolvem as invalidades processuais precisam ser pensadas em um âmbito mais amplo que o do capítulo das invalidades. Por isso, quando o CPC/2015 abre espaços para a edição de negócios jurídicos processuais, determina significações fortes ao contraditório – com a exigência de oitiva prévia das partes para a tomada de qualquer decisão – ou estabelece os fundamentos de cooperação, além de regrar pontualmente esses institutos produz reverberações no formalismo estabelecido que repercutem ativamente no trato das invalidades. Não se poderia ignorar que os sistemas clássicos de Calmon de Passos, Pontes de Miranda e Galeno Lacerda mostravam sensíveis dissintonias com o regime jurídico vigente ao tempo do CPC/1973. A reprodução do texto, em quase sua totalidade, na nova legislação, faz ainda mais evidente a necessidade de superação de paradigmas e a defesa de um modelo sobre invalidades pautado sob a ótica dos direitos fundamentais.

2.

SOBRE O ULTRAPASSADO SENTIDO DA COMINAÇÃO DA NULIDADE NOS DIFERENTES SISTEMAS E SEU COTEJO COM A NOVA LEGISLAÇÃO.

As principais questões polêmicas em torno da temática das invalidades processuais condizem tradicionalmente com (1) a distribuição de poderes entre juiz e partes, (2) com as hipóteses de convalidação ou aproveitamento dos atos praticados em desconformidade, (3) com a extensão semântica dada ao tipo e (4) com a relevância de haver ou não cominação da invalidação na lei processual. Conforme se responda a essas indagações, aproximar-se-á mais ou menos dos modelos tradicionalmente defendidos no Brasil, que encontram amparo em Pontes de Miranda, Calmon de Passos ou Galeno Lacerda. Historicamente, no que diz respeito ao tema, a legislação brasileira é herdeira de disposições constantes no Progetto Carnelutti

9

10

e no Codice Vaticano

11

.

SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. 10 Em tradução livre: Progetto Carnelutti. Art. 150. “Mesmo que se uma dada forma seja prescrita em lei sob pena de nulidade, o juiz não pode declarar a nulidade sem requerimento da parte, quando não seja expressamente autorizado a declará-la de ofício. Esse requerimento não pode ser formulado pela parte, que deu causa à nulidade ou que a ele tenha expressa ou tacitamente renunciado”. CARNELUTTI, Francesco. Progetto del Codice di Procedura Civile presentato alla Sottocommisione Reale per la riforma del Codice di Procedura Civile: Parte Prima - Del processo di cognizione. Pádova: CEDAM, 1926, p. 52.

Essas fontes influenciaram notadamente a letra da lei do art. 273 do CPC/1939 que, conjuntamente com seu art. 274, distinguia entre nulidades cominadas e não cominadas nitidamente. Assim sendo, naquele modelo, se a lei processual previsse a expressão “sob pena de nulidade” ou alguma cominação congênere, ter-se-ia a aplicabilidade de um regime jurídico próprio, no qual se teria a prevalência do tipo estabelecido em detrimento de formas de aproveitamento e convalidação. Nesse particular, Pontes de Miranda indicava que a cominação marcava a integridade da norma e, assim, as faziam insuscetíveis de aproveitamento ou sanação 12. Ainda que durante a vigência do CPC/1939 consistente doutrina já apontasse ser o sistema da cominação um retrocesso pouco valioso ao cotidiano forense, no CPC/1973 há inegavelmente a marca do sistema anterior, como se percebe também facilmente na redação dos respectivos arts. 243 e 244. Isso fez com que o pensamento jurídico brasileiro sobre nulidades posterior ao CPC/1973 ou adotasse a cominação como critério relevante

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ou buscasse interpretações generosas (e necessárias) para

desdizer a aplicabilidade do arcaico critério presente na lei 14. O sistema proposto por Calmon de Passos absolutamente ignorava qualquer espécie de tipologia de nulidades, dizendo que a nulidade é um estado do ato, 11

Conforme Barbosa Moreira, a origem imediata está no Codice Vaticano, assim redigido: Art. 150, §3º. Quando a lei prescreve uma determinada forma sob pena de nulidade, a declaração da nulidade não pode ser formulada pela parte que lhe tenha dado causa”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Il Progetto Carnelutti e il Codice di Procedura Civile Brasiliano. In: (Ed.). Temas de Direito Processual Civil. Quinta Série. São Paulo: Saraiva, 1994. p.201-215, p. 205. 12 “No sistema jurídico do Código de Processo Civil há distinção que está à base de sua teoria das nulidades: nulidades cominadas, isto é, nulidades derivadas da incidência de regra jurídica em que se disse, explicitamente, que, ocorrendo a infração da regra jurídica processual, a sanção seria a nulidade; nulidades não-cominadas, isto é, nulidades que resultam da infração de regras jurídicas processuais, mas para as quais não se disse, explicitamente, que a sanção seria a nulidade. Sutileza, dir-se-á. Mas tal sutileza é a expressão de princípio fundamental da teoria das nulidades segundo o Código de Processo Civil. As regras jurídicas sôbre validade ou são, no direito processual brasileiro, dotadas de integridade ou regras jurídicas vulneráveis”. MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 5. 13 Conforme Teresa Arruda Alvim Wambier, exemplificativamente, a cominação autaria como “presunção absoluta de prejuízo”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 159. Igualmente, José Bedaque indicou que a cominação funciona como presunção de prejuízo, mas não absoluta, pois “não há nulidade absoluta decorrente de mera violação à forma. Ela está sempre relacionada à finalidade do ato e ao prejuízo causado pela não observância da forma, mesmo tratando-se de nulidade cominada”. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 440. 14 Como se vê em Tesheiner, a “referência do Código às duas hipóteses de nulidade explica-se (...) como expressa rejeição à tese de que, sendo a nulidade uma sanção, somente poderia ser aplicada nos casos expressos em lei”. TESHEINER, José Maria. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 119. Também nesse sentido, nossa própria interpretação, confessadamente generosa: “Já o art. 244 do Código de Processo Civil deve ser estudado conjuntamente com o art. 154. Caso fosse efetuado o raciocínio a contrario sensu dessas disposições legais, poder-se-ia concluir que as nulidades cominadas não admitem a aplicação do princípio da finalidade. Porém, a interpretação em via contrária nem sempre conduz ao sentido objetivo da norma”. SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 152.

que depende da decretação do juiz a partir da constatação da atipicidade e do prejuízo. Evidentemente nesse sistema não há lugar para distinção entre nulidades cominadas ou não cominadas

15

. Aliás, quando se trabalhou com maior ênfase sobre essa teoria

elogiou-se no sistema de Calmon de Passos, sua aptidão para criar “uma relação teleológica entre os atos praticados e os fins do processo, dando flexibilidade às exigências de tipo e fazendo interagir além do binômio ‘perfeição-eficácia’ o exame ‘meio-fim’”

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. Disso se nota com clareza que na linha de pensamento do saudoso

processualista pouco importava a cominação, o que mereceu os devidos aplausos para a evolução na teoria das nulidades. A irrelevância da cominação é também percebida no modelo estabelecido por Galeno Lacerda. Sua classificação não leva esse critério em conta para definição das espécies de invalidades, nem das consequências atribuíveis aos atos defeituosos. Bastaria atentar à finalidade da norma e à sua natureza, para alcançar as categorias de nulidades absolutas, nulidades relativas e anulabilidades

17

. Ainda que esse sistema

estivesse organizado a partir de um pressuposto de abstração e idealismo – o mesmo pressuposto que permite pensar em cominações relevantes –, é bastante claro que se dissociava a noção de invalidade das cominações realizadas na lei 18. A doutrina sobre a temática mais recente, aqui exemplificada pelo pensamento de Antônio do Passo Cabral, aponta igualmente sobre a impropriedade do critério cominatório:

“A técnica de enumerar as causas de nulidade ou elencar vícios dos atos jurídicos é falha e peca por pensar o legislador poder esgotar o rol de tipos defesos. Com isso, além de não exaurir o tema, o legislador causa variados inconvenientes: primeiramente, petrifica o sistema, dando por nulos muitos atos processuais, ainda que atinjam suas finalidades; de outro lado, peca por omissão, ao permitir que atos inidôneos tenham eficácia quando não cominada a nulidade. Além disso, reduz-se enormemente a participação do juiz, limitado a proceder, ‘em voz alta’, à leitura da lei” 19.

Assim sendo, embora fosse desejável e esperado que o CPC/2015 se desgarrasse definitivamente do critério da cominação, considerando que a doutrina já o 15

PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 107. 16 SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 158. 17 LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. Porto Alegre: Sulina, 1953, p. 68-75. 18 Para nossa exposição e crítica relativamente a essa teoria, com maior aprofundamento, ver: SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 161-168. 19 CABRAL, Antônio do Passo. Nulidades no Processo Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 75.

superara há longa data, a nova legislação repete em muito a redação dos códigos anteriores. O CPC/1973, à primeira vista, parecia acolher a dicotomia entre as nulidades cominadas (art. 243) e as nulidades não cominadas (art. 244), o que foi custosa e progressivamente superado pela doutrina e jurisprudência. Ao invés de romper explicitamente com o modelo, o novo diploma o tomou por texto base e apenas riscou da redação do novo art. 277 – equivalente ao então art. 244 do CPC/1973 – a expressão “sem cominação de nulidade”. Facilitando a compreensão da evolução dos textos legislativos, atente-se à seguinte tabela comparativa:

CPC/1939

CPC/1973

CPC/2015

Art. 273. Quando a lei prescrever determinada forma, sem a cominação de nulidade, o juiz deverá considerar válido o ato: I – se, praticado por outra forma, tiver atingido o seu fim; II – se a nulidade fôr arguida por quem lhe tiver dado causa; III – se a nulidade não fôr arguida pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição do ato

Art. 243. Quando a lei prescrever determinada forma, sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que Ihe deu causa. Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, Ihe alcançar a finalidade

Art. 276. Quando a lei prescrever determinada forma sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa. Art. 277. Quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.

No caso, se a transição entre o CPC/1939 e o CPC/1973 foi mais sensível, embora não tenha abalado as estruturas do capítulo, quando comparados os textos do CPC/1973 e do CPC/2015 percebe-se que houve quase tão somente a simples reprodução de um no outro. A única nota diferencial estrutural do título das nulidades no CPC/2015 está no art. 277 que não mais menciona a expressão “sem cominação de nulidade” prevista no art. 244 do CPC/1973. Essa singela supressão permite felizmente afirmar que a nova legislação se afasta um pouco mais do modelo da cominação – a doutrina, anos a frente, já o fez há longa data –. Assim, com a nova legislação não mais será necessário interpretar tão generosamente a lei processual, ainda que a mantença da expressão “sob pena de nulidade” no art. 276 demande que o intérprete conveniente e deliberadamente a esqueça ou não lhe dê qualquer significado relevante quando da respectiva aplicação. Afinal, assim proceder será indispensável para que a compreensão do sistema de invalidades processuais ocorra na perspectiva valorativa que o atual estágio de desenvolvimento do pensamento jurídico processual exige do tema.

3. PARTICIPAÇÃO E CIVIL, CONSIDERANDO PROCESSUAIS.

CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO ESPECIFICAMENTE A TEMÁTICA DAS INVALIDADES

O CPC/2015 inova decisivamente na disciplina legislativa acerca do contraditório. O papel privilegiado da participação no procedimento significa necessariamente a valorização das partes, afetando o fundamento para a legitimação das decisões. Sobre o ponto, é interessante apontar que tanto o CPC/1939 quanto o CPC/1973 foram cunhados sob período de restrição de garantias e direitos fundamentais, na história do Brasil. O primeiro foi decretado ao tempo do Estado Novo de Getúlio Vargas e o segundo sancionado pelo governo do Gen. Emílio Médici. Ditos períodos históricos foram marcados pela repressão a liberdades individuais, pela censura e pelo autoritarismo. Não significa isso que a legislação processual civil teve aplicação e interpretação antidemocrática ao longo de toda a sua vigência, mas é inegável que a estruturação de legitimação das decisões não se permeava na participação livre, mas sim na autoridade. A ideologia política intervinha na compreensão dos papeis dos agentes do Estado, também lançando diretivas sobre a lei processual. Em outras palavras, o que dava suporte à decisão era o fato de ser tomada pelo juiz. As partes eram ouvidas, mas não necessariamente sobre todos os tópicos (v.g. matérias que juiz conhece de ofício), nem era necessário que seus fundamentos fossem considerados quando da prolação da decisão. Sobre o ponto lembra-se a conhecida e reiteradamente aplicada jurisprudência dos tribunais acerca de negativa jurisdicional e cabimento de embargos declaratórios 20.

20

Para fins de exemplificar, transcreve-se ementa escolhida aleatoriamente, diante de milhares de julgamentos no mesmo sentido: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ALEGADA CONTRADIÇÃO NO ARESTO QUE ENTENDE POR AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO E, AO MESMO TEMPO, REJEITA A VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 535, II, CPC. NÃO CARACTERIZAÇÃO. 1. Prevê o art. 535 do CPC a possibilidade de manejo dos embargos de declaração para apontar omissão, contradição ou obscuridade na sentença ou acórdão não se prestando este recurso, portanto, para rediscutir a matéria apreciada. 2. É possível que o Tribunal a quo manifeste-se sobre todas as questões colocadas à sua apreciação, decidindo a lide em sua integralidade sem, contudo, manifestar-se sobre todos os dispositivos legais apontados pela parte então recorrente. Sabe-se que é pacífico nesta Corte o entendimento de que não está o juiz obrigado a examinar, um a um, os pretensos fundamentos das partes, nem todas as alegações que produzem; o importante é que indique o fundamento de sua conclusão, que lhe apoiou a convicção no decidir. 3. Embargos de declaração rejeitados. (EDcl no AgRg no REsp 895.753/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 15/05/2009).

Muito diferentes são as regras previstas no CPC/2015, editado em período

de

consolidação

democrática

na

história

brasileira.

As

exigências

constitucionais de participação e cidadania, no exercício de todos os poderes estatais, balizou a construção do no diploma e isso reflete em sua tratativa sobre fundamentação (art. 489, §1º

21

), sobre o papel do contraditório e sobre o critério de legitimação das

decisões. Note-se que o art. 7º do CPC/2015

22

estabelece ao juiz o dever de zelar pelo

efetivo contraditório, sendo que a lei exige a participação para a tomada de decisão (art. 9º 23), independentemente se a matéria pode ou não ser conhecida de ofício (art. 10 24). Nesse ponto, convém questionar de que maneira essa ingerência contribui à compreensão da temática das invalidades processuais. Para tanto, primeiramente é necessário entender o papel que o valor participação ocupa no processo civil hodierno, bem como sobre a função representada pelo contraditório nesse esquema. A partir disso, permitir-se-á indicar um dos fundamentos valorativos de se redistribuir poderes entre juiz e partes no trato das invalidades. No processo atuam não só o juiz, mas também as partes, além de terceiros, interessados ou não no resultado da contenda, como serventuários, peritos, testemunhas e intervenientes. Tanto por isso, já se definiu a natureza do processo como um procedimento em contraditório, aspecto que, na linha de Fazzallari, conduz a sua condição de “autêntico instrumento de vida democrática”

25

. A esse respeito, convém

lembrar que a indicação da cidadania como fundamento da República Brasileira, logo

21

CPC/2015. Art. 489, § 1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. § 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé. 22 CPC/2015. Art. 7º. É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório. 23 CPC/2015. Art. 9º. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 309, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 700. 24 CPC/2015. Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. 25 FAZZALARI, Elio. Procedimento (Teoria Generale). In: (Ed.). Enciclopedia del Diritto. Milano: Giuffrè, v.XXXV, 1986. , p. 820.

no primeiro artigo da Constituição, determina consequências na seara processual. Assim é porque a sua imperiosidade não só se afirma nas relações político-eleitorais, mas também é exigência sobre as atividades democráticas estatais, dentre as quais está o processo 26. O vínculo entre contraditório e democracia é umbilical. Por determinar a participação no exercício do poder soberano, o contraditório é instrumento indispensável do Estado Democrático do Direito “na medida em que permite às partes a efetiva participação na formação do provimento jurisdicional”

27

. Não se efetivando,

portanto, com a simples citação, mas sim com a faculdade real do litigante de participar para provar, argumentar, esclarecer e convencer

28

. Assim, pensa-se o “direito ao

contraditório como sendo um direito a influenciar efetivamente o juízo sobre as questões da causa” 29. Ao tema das invalidades, a influência do valor participação é determinante nas suas relações com o desenvolver dialético da atividade jurisdicional, apontando ao princípio do contraditório. Ademais, a participação no processo – e não o direito de as partes o acompanharem prostradas – pressupõe a aptidão para escolher e influenciar, ou seja, o reconhecimento de valor sobre as vontades das partes e de poderes sobre o procedimento. No tema das invalidades, isso repercute na redescoberta da causa e da vontade do ato processual, bem como na necessidade de se delimitar poderes de iniciativa para a decretação das invalidades. Antônio do Passo Cabral, em importante e recente estudo sobre invalidades processuais, sustentou, entre outras considerações, que o aspecto determinante para se considerar relevante o desvio do tipo é o contraditório-influência. Assim, sustentou que “quando o defeito impedir a plena consecução do contraditório influência, o juiz poderá considerar como normativamente relevante a atipicidade, pronunciando a nulidade do ato” 30. A tese de Antônio do Passo Cabral acerca das invalidades processuais – 26

“A participação no processo e pelo processo já não pode ser visualizada apenas como instrumento funcional de democratização ou realizadora do direito material e processual, mas como dimensão intrinsecamente complementadora e integradora dessas mesmas esferas”. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: (Ed.). Do formalismo no processo civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.260-274, p. 270. 27 LUMMERTZ, Henry Gonçalves. O princípio do contraditório no processo civil e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: Alvaro de Oliveira (Ed.). Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004. , p. 48. 28 PASSOS, José Joaquim Calmon de. O devido processo legal e o duplo grau de jurisdição. Revista da Ajuris, v. 25, p. 130-144, 1982, p. 133. 29 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 91. 30 CABRAL, Antônio do Passo. Nulidades no Processo Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 283.

Teoria Comunicativa das Nulidades – centra-se nas repercussões do contraditório sobre o procedimento. Corretamente argumenta que há comunicatividade dinâmica entre os atos ao longo do procedimento, de modo que as atuações ocorridas no seu início influenciarão sobremaneira o desenvolvimento ulterior. Igualmente as projeções que as partes e o juiz realizam impactam o desenrolar do processo que é compreendido como um instrumento essencialmente destinado ao diálogo e à participação na tomada de decisão. Assim sendo, vê-se que o dinamismo do contraditório marca o procedimento, razão pela qual o autor elege esse direito fundamental como critério essencial para suportar sua teoria: “a atipicidade somente será relevante se interferir nas possibilidades que têm os litigantes de condicionar a decisão; se atingir as oportunidades que decorrem do contraditório, de demonstrar o acerto de seus argumentos” 31. Compreende-se que apesar da inegável valia na pioneira tese de associar a face dinâmica do contraditório à temática das nulidades, nesse ponto, a teoria limita indevidamente o exame da atipicidade. Basta constatar que existem atos que não interferem diretamente no direito de influenciar a decisão e que, ainda assim, podem e devem ensejar exames de validade 32. Apresenta-se uma questão e um exemplo singelo, afora outros indicados anteriormente

33

, para expor a crítica: exatamente no quê a expropriação do bem

penhorado por preço vil interfere nas oportunidades do contraditório de demonstrar o acerto de seus argumentos e de influenciar o juízo? Ora, as associações que efetivamente podem ser realizadas entre a invalidade da arrematação e o direito ao contraditório em sentido forte somente aparecem com algum esforço e inegavelmente de modo indireto. Certo, no entanto, que a Teoria Comunicativa das Nulidades é um pensamento contemporâneo sobre invalidades de grande utilidade e valor em seu âmbito de incidência. Com as disposições do CPC/2015 sobre o contraditório esse sentir ganha ainda mais razão. Apesar disso, é insuficiente para tratar de todas as questões que envolvem o tema das nulidades processuais. Convém apontar, também, que o valor participação, mediante o princípio do contraditório, afirma-se não somente na constatação de invalidades por sua ofensa, mas no próprio proceder para a decretação da nulidade processual e consequências de

31

Ibid., p. 286. SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 170-173. 33 “Alguns atos processuais não poderiam ser contemplados nessa teoria, como o vício na penhora, o erro no valor da causa, a prova ilícita, a condução por juiz não natural, a incompetência absoluta, a invalidade de hasta pública, entre tantos outros exemplos que se poderia cogitar. Basta que o desvio não tenha por fundamento normativo direto o princípio do contraditório”. Ibid., p. 173. 32

sua constituição. Tal análise decorre da confirmação de diversos aspectos: o desvio do tipo, o alcance ou não da finalidade da norma, a ocorrência ou não de prejuízo, a ocorrência ou não das formas extraordinárias de aproveitamento

34

. Deve-se determinar

a extensão da invalidade sobre os efeitos, a aptidão potencial para convalidação, a relevância da atuação das partes, entre tantos outros fatores de significativa complexidade, por isso, mesmo antes da edição do CPC/2015, já se defendia que “antes da decretação de qualquer invalidade processual, tem o órgão jurisdicional de colher a impressão das partes a propósito da relevância da infração” 35. Esse entendimento faz-se ainda mais claro na medida em que se incorpora a lógica valorativa ao raciocínio processual (CPC/2015, art. 1º), impondo uma constante reaproximação entre a estruturação do processo e o campo dos valores. Afinal, a constatação sobre o alcance da finalidade e do prejuízo deve se dar com diálogo 36, subsumindo a norma constante nos arts. 9º e 10 do CPC/2015.

4.

PODERES DAS PARTES, DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DO JUIZ.

A redação do Título III no Código de Processo Civil de 2015 não é substancialmente diferente daquela constante no Capítulo V, do Título V, da legislação anterior. Em termos de novidade, afora ajustes gramaticais ou muito pontuais, houve o acréscimo de um parágrafo ao art. 279 – correspondente ao art. 246 do CPC/1973 –. O texto legal regulamenta a nulidade de atos por ausência de intimação e intervenção do Ministério Público, prevendo no novo diploma que competirá ao membro do parquet se manifestar acerca da existência ou não de prejuízo.

34

CPC/1973

CPC/2015

Art. 246. É nulo o processo, quando o Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir.

Art. 279. É nulo o processo quando o membro do Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir.

Parágrafo único. Se o processo tiver corrido, sem conhecimento do Ministério Público, o juiz o anulará a partir do momento em que o órgão devia ter sido intimado.

§ 1º Se o processo tiver tramitado sem conhecimento do membro do Ministério Público, o juiz invalidará os atos praticados a partir do momento em que ele deveria ter sido intimado.

Ditos elementos, em pormenores, consistem na esquematização proposta em tese acerca do tema. Ibid., p. 180-233. 35 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 121. 36 Ibid., p. 121.

§ 2º A nulidade só pode ser decretada após a intimação do Ministério Público, que se manifestará sobre a existência ou a inexistência de prejuízo.

Bem é verdade que a doutrina oscilava acerca da nulidade dos atos – e não necessariamente de todo o processo – quando não intimado o Ministério Público. Ora afirmava necessariamente nulos os atos subsequentes

37

, ora atestava que seria

necessária a ponderação do interesse atingido em face da norma motivadora da participação do parquet

38

. Nesse ponto, a jurisprudência do Superior Tribunal de

Justiça seguiu a última tese 39. A questão colocada pela doutrina originalmente envolvia a aptidão de aplicação das formas de aproveitamento quando cominada a nulidade pela lei – dado que consta cominação no art. 246 do CPC/1973 – e a necessária superação da Teoria da Cominação, encampada textualmente no art. 243 e, especialmente, no art. 244 do CPC/1973. Aqueles que ultrapassavam essa barreira necessitavam de um critério para permitir a ocorrência de prejuízo, atribuindo a competência de declará-lo existente ou não ao juiz. Esse ponto foi muito bem resolvido no CPC/2015, que optou por destinar ao Ministério Público a legitimação para indicar a ocorrência ou não de prejuízo pela ausência de sua intimação tempestiva. O acréscimo do §2º ao texto transplantado do art. 246 do CPC/1973 indica que a iniciativa para decretação da invalidade depende, na verdade, de atuação do participante no processo que resta incumbido da defesa daquele interesse jurídico. Quem melhor que o próprio Ministério Público para responder sobre a ocorrência ou não de prejuízo? Ao retirar do juiz o poder de dizer se há ou não prejuízo pela ausência de intimação do parquet e atribuindo-o ao representante do Ministério Público, o CPC/2015 indica que a decretação da invalidade depende de especial iniciativa das partes juridicamente interessadas, pela afetação do prejuízo. 37

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Nulidade Processual e Instrumentalidade do Processo. Revista de Processo, v. 60, p. 31-43, 1990. 38 THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 41ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 264. SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. Vol. I. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 296. 39 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - ECA. ADOÇÃO. INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AUDIÊNCIA. ART. 166 DA LEI 8.069/90. FIM SOCIAL DA LEI. INTERESSE DO MENOR PRESERVADO. DIREITO AO CONVÍVIO FAMILIAR. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. NULIDADE INEXISTENTE. Não se declara nulidade por falta de audiência do Ministério Público se - a teor do acórdão recorrido - o interesse do menor foi preservado e o fim social do ECA foi atingido. O Art. 166 da Lei 8.069/90 deve ser interpretado à luz do Art. 6º da mesma lei. (REsp 847.597/SC, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/03/2008, DJe 01/04/2008).

Aqui, portanto, oculta a olhos eventualmente desatentos, resta definido um dos pontos mais controversos acerca das nulidades processuais: tem-se a sustentação de uma distribuição de poderes de iniciativa e controle sobre as invalidades processuais coordenada pela aferição do interesse atingido pelo prejuízo. O titular da legitimidade para a defesa do interesse atingido é também aquele legitimado para a iniciativa ao conhecimento e decretação da invalidade. Justamente, em duas oportunidades, se defendeu esse critério de legitimidade para decretação das invalidades processuais 40. Sobre o tema, a importante tese de distribuição de poderes para a decretação de invalidades tem apontamento decisivo na doutrina nacional pela pena de Galeno Lacerda. Ainda sob o raciocínio abstrato, distinguiu normas que tutelam interesse privado daquelas condizentes com o interesse público. As primeiras, se dispositivas, demandariam requerimento da parte para conhecimento do juiz; as segundas seriam conhecidas de ofício 41. Sabe-se, também, que a doutrina de Galeno Lacerda, por restar, imbuída de tão marcante abstração e idealismo não resistiu em sua aplicação ao peso dos casos concretos, mas é inegável que atribuição de poderes às partes relativamente a atos processuais e sua não concentração exclusiva nas mãos do juiz trata-se de relevantíssimo avanço 42. Discorda-se nesse ponto da doutrina de Calmon de Passos, para qual a iniciativa da parte seria irrelevante, uma vez que restaria subjacente a todos os atos processuais o interesse público de maneira prevalente. Assim porque, como propunha o jurista baiano, o tipo não asseguraria interesses privados contra o arbítrio estatal. No direito público isso se daria apenas para “aqueles setores ou aquelas situações em que a tipicidade se reveste de caráter de garantia individual, a exemplo do que ocorre no direito penal e em boa parte do direito tributário” 43, mas não no direito processual. A tese cobriu de interesse público todas as normas processuais, o que significa que o magistrado é responsável por fiscalizar o cumprimento de todos os tipos, assumindo poderes para decretação de ofício de qualquer nulidade. No caso, a teoria se 40

SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. Também, em SCARPARO, Eduardo. Os Poderes de Iniciativa Legítima para Decretação de Invalidades Processuais. In: MITIDIERO (Ed.). Processo CIvil: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. São Paulo: Atlas, 2012. p.110-131. 41 LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. Porto Alegre: Sulina, 1953, p. 72-73. 42 Para exposição e apreciação crítica, com pormenores, da doutrina de Galeno Lacerda, ver SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 161-168. 43 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 32.

sustentaria somente se não fosse reconhecida qualquer relevância jurídica à vontade privada e à autonomia das partes no relativo aos atos processuais. A suposta irrelevância da vontade na formação do ato processual tem por objetivo permitir uma enorme simplificação ao processo. Na linha afirmada por Redenti, “se a cada ato do procedimento fosse realizada uma indagação acerca da correspondência dos efeitos à intenção e acerca da formação da vontade interior, o processo não caminharia mais”

44

. Assim, a conveniência de limitar o âmbito cognitivo

dos atos processuais levou a doutrina a exigir maior rigor quanto à forma – fenômeno chamado de hipertrofia da forma –, relegando para exame em demanda própria eventuais vícios sobre a vontade

45

. Inclusive, a temática desenvolveu-se a ponto de

afirmar-se que os atos processuais seriam, na verdade, atos-fatos

46

. A crítica a essa tese

se mantém e ganha novo vigor com a nova legislação. Compreende-se que a vontade afastada reproduz uma prevalência da percepção pública sobre os atos, inviabilizando poderes às partes e determinando-se uma concentração na figura do juiz. Contudo, negar valor processual à causa e à vontade, além de incompatível com o processo constitucional e democraticamente construído, significa também ignorar uma série de fenômenos inegavelmente processuais e relevantes há longa data, como o justo motivo, a litigância de má-fé e o erro material 47. A suposta irrelevância da vontade, além de dotar o juiz de poderes absolutos quanto ao desenvolver do processo, importa obscurecer a face formal do princípio dispositivo. Aqui, as inovações do CPC/2015 vão ao encontro do que se julga adequado, visto que faz notável a aceitabilidade da categoria de negócios jurídicos processuais. E, diga-se o que se bem pretender, mas para haver negócio jurídico 44

REDENTI, Enrico. Profili pratici del Diritto Processuale Civile. 2ª ed. Milão: Giuffrè, 1939, p. 499501. 45 “Se por um lado, não se pode excluir da consistência do ato jurídico praticado no processo o seu caráter volitivo, por outro, pode-se restringir o exame de validade dos atos no âmbito endoprocessual, limitando a análise apenas às questões pertinentes à regularidade do ato considerado como parte integrante do procedimento. Salvo exceção prevista na lei processual, a causa subjetiva e a vontade de seus atos não devem ser analisadas no próprio processo, mas em demanda própria, nos termos da lei civil. Há, assim, um diferimento da impugnação da validade fundada no conteúdo subjetivo (vontade e causa subjetiva) dos atos processuais. Em alguns casos, essa análise é postergada ou para uma ação rescisória, no caso de ser o ato atacado uma sentença de mérito (art. 485), ou para uma ação anulatória, na forma do art. 486 do Código de Processo Civil”. SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 59. 46 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 186. 47 SILVA, Paula Costa e. Acto e Processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 316 e ss. Também trabalhamos essas questões, em especial a pertinência de reconhecer a existência e a relevância da causa e da vontade nos atos processuais em SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 47-60.

processual é pressuposto reconhecer-se espaço para deliberação e vontade das partes sobre os atos do processo. Não se trata tão somente de poderem as partes convencionar sobre a competência relativa, a suspensão do processo, ou ônus da prova, como se verificava no CPC/1973 nos arts. 114, 265, II, e 333, parágrafo único, mas sob a regência do CPC/2015 podem as partes “estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo” (CPC/2015 art. 189). A nova legislação valoriza o papel das partes, reconstruindo valor ao princípio dispositivo em sentido formal, bem como alcança ao interessado a iniciativa para a decretação da invalidade processual. A participação é alçada a condição base da compreensão do formalismo e isso conduz à necessária divisão de poderes no âmbito das invalidades processuais. A consideração da causa e da vontade como inerente ao ato processual – são dois de seus componentes – produz maior relevância da atuação das partes, inclusive para fins de determinar a iniciativa legítima para decretação das nulidades. O modelo previsto na regulamentação pertinente à nulidade de atos nos quais não há participação do Ministério Público confirma e ratifica esse enfrentamento. O mesmo vale às partes.

“Claro que o interesse preponderante na norma abstrata é de dificílima ou até impossível apuração, sem as especificidades do caso concreto. Porém, o sistema de invalidades processuais brasileiro dá grande valia à existência de prejuízo para a apuração da invalidade, havendo, aí, não só um elemento necessário à decretação, mas um verdadeiro componente do suporte fático do estado de invalidade (não aproveitamento). (...) O problema dos poderes de atuação para conhecer as invalidades processuais diz respeito diretamente ao interesse jurídico atingido pela violação do tipo” 48.

Afinal, se a ação e a defesa são exercidas ao longo do procedimento

49

,a

indispensabilidade de um legítimo interesse vinculado concretamente ao prejuízo mostra-se inegavelmente pertinente para traçar poderes de iniciativa. Como se exige 48

SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 201-202. 49 Se os atos são ligados pelo vínculo do procedimento em razão de uma sequencia lógica, “de modo que cada um pressupõe o presente (ou os precedentes) e é um pressuposto do seguinte (ou seguintes)”, a própria noção de ação processual pode ser considerada uma posição subjetiva complexa de evolução porogressiva, contendo, portanto, uma série de poderes, faculdades, deveres, ônus e direitos em sentido estrito, atribuídos pelo ordenamento ao autor ao longo do desenvolvimento do processo. ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 70.

legítimo interesse para exercer a ação e a defesa no início do processo, o mesmo se dá ao longo de todos os atos e desenvolvimentos do procedimento. Assim tanto que se exige interesse para recorrer e a concretude do prejuízo para determinar o poder de iniciativa para a decretação de invalidades. Questões todas correlacionadas ao exercício da ação e da defesa, que dão dinamicidade ao processo. No mais, a renovação de estudos e pensamentos acerca de temas primordiais do processo com o advento do CPC/2015 reforça as hipóteses de indispensabilidade da constatação concreta do prejuízo e da inviabilidade de aproveitamento do ato para a decretação da invalidade, perfazendo-se a possibilidade de decretação mediante: (a) a atipicidade, (b) a legítima iniciativa e (c) o não aproveitamento. Por fim, após decretada a invalidade, zela-se também por plena condições de sua reversão, mediante o uso de técnicas de convalidação, ou o exame das sistemáticas de contenção e extensão das invalidades processuais 50.

5.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do Formalismo no Processo Civil. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. ______. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: (Ed.). Do formalismo no processo civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.260-274. ______. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2007. ______. Nulidade Processual e Instrumentalidade do Processo. Revista de Processo, v. 60, p. 31-43, 1990. CABRAL, Antônio do Passo. Nulidades no Processo Moderno. Forense, 2009.

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50

A respeito da sistematização ora referida, com os aprofundamentos e explicitações que se exigem para sua defesa, ver SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 180-234.

LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. Porto Alegre: Sulina, 1953. LUMMERTZ, Henry Gonçalves. O princípio do contraditório no processo civil e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: ALVARO DE OLIVEIRA, C. A. (Ed.). Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004. MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Il Progetto Carnelutti e il Codice di Procedura Civile Brasiliano. In: (Ed.). Temas de Direito Processual Civil. Quinta Série. São Paulo: Saraiva, 1994. p.201-215. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002. ______. O devido processo legal e o duplo grau de jurisdição. Revista da Ajuris, v. 25, p. 130-144, 1982. REDENTI, Enrico. Profili pratici del Diritto Processuale Civile. Giuffrè, 1939.

2ª ed. Milão:

SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. Vol. I. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. ______. Os Poderes de Iniciativa Legítima para Decretação de Invalidades Processuais. In: MITIDIERO, D. A., GUILHERME RIZZO (Ed.). Processo CIvil: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. São Paulo: Atlas, 2012. p.110-131. SILVA, Paula Costa e. Acto e Processo: o dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. TESHEINER, José Maria. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2000. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 41ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

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