Inventário do Património Imóvel da Região Autónoma da Madeira - artigo de opinião

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Inventário integral do património imóvel da região: uma missão nas mãos das
autarquias, mas da competência do governo regional



A primeira chamada de atenção significativa para o grave problema da
incúria para com o património edificado na Madeira e Porto Santo foi feita
em 1979 por António Aragão na sua obra preparatória sobre a história da
cidade do Funchal: Para a História do Funchal: pequenos passos da sua
memória, na qual insistiria na reedição (e ampliação) daquela mesma obra,
de 1987: Para a História do Funchal.
Aragão, polivalente homem das artes e das letras, tido hoje como um
dos grandes vultos da história da nossa cultura recente – cuja homenagem
aqui se justifica prestar pelos trabalhos pioneiros que desenvolveu a nível
nacional como o inventário e classificação da urbe funchalense: Estudo de
Prospeção e Defesa da Paisagem Urbana do Funchal, 1966 (publicado em 2013
como Imagens do Funchal Urbano), Inventários Artísticos da Calheta, Ponta
do Sol, Ribeira Brava e Câmara de Lobos (Direção Geral de Monumentos
Nacionais, 1967), Arquitetura Rural da Madeira e Porto Santo (não
publicado, 1987), etc; – ao tratar na imprensa regional dos anos setenta da
delapidação sistemática do "Funchal manuelino" que a capital vinha sofrendo
desde os finais do século XIX, repetia, veementemente, a necessidade de
estudos monográficos multidisciplinares sobre as características
arquitetónicas e as particularidades urbanísticas dos imóveis, dos
conjuntos e dos vestígios arqueológicos não só desta que foi a primeira
cidade no meio do Atlântico, como de todas as outras vilas e localidades da
Madeira e Porto Santo, com vista ao seu conhecimento e salvaguarda enquanto
elementos culturalmente "vivos", porque portadores das mais diversas
afetividades entre as diferentes épocas e gerações, traduzindo todas e cada
uma delas diversas formas de saber e parte, substancial, do próprio devir
histórico insular.
Apesar destes alertas antigos e ainda que outras destacadas figuras
ligadas à investigação e ao ensino da história na região, entre as quais
Rui Carita (historiador e professor catedrático), Vítor Mestre (Arquiteto e
autor de um estudo nesta matéria tutelar: Arquitetura Popular da Madeira),
Nelson Veríssimo (historiador e professor universitário), Élvio Sousa
(arqueólogo, presidente do CEAM e membro fundador da ARCHAIS), João Lizardo
(advogado e investigador, membro fundador da ARCHAIS), Emanuel Gaspar
(professor e autor de A Obra de Raúl Chorão Ramalho no Arquipélago da
Madeira, membro fundador da ARCHAIS), Rui Campos Matos (Arquiteto e autor
de Quintas e Hóteis do Acervo Photographia Museu – "Vicentes") e outros;
tenham mantido vivos "aqui e ali": na historiografia ou no decurso das
respetivas atividades letivas, académicas ou associativas, os ecos do
ativismo em prol da defesa do património cultural e da memória comum
enraizado na obra e no discurso de Aragão; os problemas relacionados com a
valorização e conservação de património histórico não diminuíram, nalguns
casos até se agravaram (ver todos os números da ILHARQ, revista da
Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira) devido à ação
das catástrofes naturais e ao exponencial desenvolvimento da construção
civil, em particular.
Um pouco por toda a ilha os atropelos para com imóveis históricos
foram se sucedendo, não obstante a existência de legislação específica para
regular a conservação do património construído, de acordo com normas
estipuladas pelos padrões de civilização ocidentais; como a Lei de Bases de
Proteção do Património Cultural, (Lei 107/2001, de 8 de setembro) onde se
estabelece, desde o início do presente século, que toda a obra à qual se
atribua "valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade,
raridade, singularidade ou exemplaridade" requer reconhecimento e, por
conseguinte, necessária classificação e efetiva proteção jurídica,
Nesse sentido, a legislação existente aponta como necessário "um
processo que implica a seleção de valores do património cultural" (Carta de
Cracóvia, 2000: Princípios para a Conservação e o Restauro do Património
Construído), isto é, um " levantamento sistemático, atualizado e
tendencialmente exaustivo dos bens culturais existentes" ou inseridos em
determinada circunscrição administrativa.
A própria lei, descendo à terminologia específica, refere que a
"proteção legal dos bens culturais assenta na classificação e na
inventariação" (Artigo nº 61) e acrescenta que os bens inventariados devem
ser, como tal, protegidos, sejam estes materiais, e se tratem de peças de
arte, monumentos, conjuntos ou locais de interesse (categorias que definem
Património Cultural, Convenção da UNESCO de 1972: Proteção do Património
Mundial, Cultural e Natural), sejam imateriais (Recomendação para a
Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore, 1989, UNESCO) e se tratem
de "práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões"
(Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial, 2003).
Contudo, apesar de todas as consagrações jurídicas acima citadas,
relativas à defesa do património histórico e cultural da nação portuguesa,
e apesar das lamentáveis perdas já verificadas; o património imóvel
disperso pelo território da ilha da Madeira, com exceção da lista de
património já classificado e dos inventários temáticos das Casas de Colmo,
da Arquitetura Tradicional (Ponta do Sol, Santana e Calheta, não
publicados) da Arquitetura do Açúcar; e dos inventários gerais do
património imóvel dos concelhos do Porto Santo, Machico, e mais
recentemente, Santa Cruz (projeto em curso); não se encontra devidamente
inventariado, embora previsto nos anteriores programas de governo, uma
situação que não sendo exclusiva da Madeira, no panorama do território
nacional; não deveria se arrastar no tempo, quer pelos fatores de risco
impostos pela pressão demográfica a que se vem assistindo nas últimas
décadas no arquipélago e pela natureza urográfica e climatérica do mesmo
(propícia a catástrofes como os aluviões, os incêndios e as derrocadas);
quer pela importância que o património e a cultura deveriam assumir na
estratégia de desenvolvimento turístico da região (ver Carta Internacional
sobre o Turismo Cultural, ICOMOS, 1999).
Caso a este título exemplar é o da região Autónoma do Açores, cujo
"território cultural" (também seriamente ameaçado pelas catástrofes
naturais) se encontra totalmente coberto por uma carta de património
realizada, nas componentes intelectuais, científicas e técnicas, pelo
Instituto Açoriano de Cultura, mas devidamente financiado pela Direção
Regional da Cultura.
Quanto aos projetos já desenvolvidos pelas autarquias das ilhas da
Madeira e Porto Santo em matéria da salvaguarda da herança arqueológica,
construtiva e arquitetónica (alguns ao dispor do público em suporte
impresso ou em suporte digital) devemos referir que tais estudos, embora
com os limites impostos por uma visão de âmbito local, se afiguram como
sendo respostas conscientes ao protelar, irresponsável, de um projeto de
pesquisa mais alargado, porventura idêntico ao projeto elaborado nos
Açores; que passe por uma plataforma digital (mapas, dicionários,
glossários, fichas de caraterização, etc;), onde o cidadão comum possa
gratuitamente consultar a história e geografia do património construído da
região, convertida igualmente em livro.
O atraso verificado é, saliente-se, fruto de limitações financeiras
que, por razões de incúria ou insensibilidade crónica, têm sido impostas
pelos decisores políticos às entidades responsáveis umas pelas propostas de
inventário e classificação de património localmente representativo: caso
das autarquias (sempre à merce das vicissitudes dos mandatos); outras pela
construção e utilização de uma matriz oficial de inventário de património
imóvel do arquipélago inteiro, ainda em falta: caso dos órgãos do governo
regional; a confiar a uma comissão multidisciplinar de estudos,
independente; composta por consultores de várias aéreas, que envolveria os
esforços financeiros, coordenativos e técnicos de várias entidades
competentes como as Direções Regionais dos Assuntos Culturais e do Turismo,
o Centro de Estudos de História do Atlântico, as referidas autarquias, a
Universidade da Madeira, a ARCHAIS (Associação de Arqueologia e Defesa do
Património da Madeira), entre outros; com vista à criação de um instrumento
de pesquisa, conhecimento, valorização e proteção da identidade cultural e
histórica que o património imóvel da nossa região compreende, como um todo
uno e indivisível.


Higino Faria
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