Investigações sobre a biopolítica I – A Empresa Mundial S/A e o modelo de governança jurídica no pós-Bretton Woods

May 30, 2017 | Autor: Rogério Mattos | Categoria: Frankfurt School (Philosophy), Michel Foucault, Biopolitics, Bretton Woods, Neoliberalismo
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Investigações sobre a biopolítica I – A Empresa Mundial S/A e o modelo de governança jurídica no pós-Bretton Woods

Por Rogério Mattos: [email protected]

A medicina moderna, segundo Foucault, é menos um lugar onde se explora a individualidade do paciente, a relação do médico com o doente, do que uma medicina social, focada primeiramente, no séc. XIX, no controle dos corpos e, com a instituição da psicanálise, do controle interno da família, da disposição dos quartos, da relação entre familiares, etc. Tudo isso adquire ares de ficção científica quando a eugenia se transforma em biopolítica, em controle menos dos corpos mas da produção humana, do individuo visto como uma "unidade-empresa", de um capital humano em que "a competência-máquina de que ele é a renda não pode ser dissociada do indivíduo humano que é seu portador". Chegamos aqui ao mundo da desregulação financeira, do sistema pós-Bretton Woods, do estabelecimento do sistema da dívida nos países do ainda chamado terceiro mundo. É o prelúdio para o advento do Assassino Econômico. Como a biopolítica, que substitui a forma particular da eugenia, assim como a ainda necessidade de parte do controle do Estado sobre os corpos por um meio legal suficiente, onde essas "unidades-empresas", humanas, pudessem trabalhar dentro de um marco amplo de liberalização de mercado, se constituiu como o substituto perfeito do Estado nazista, derrotado na Alemanha, mas que, através da Escola de Frankfurt, dos economistas de Viena, na revista Ordo, são responsáveis hoje pelo liberal-fascismo em escala global. Ensaio como pequena introdução à investigações mais amplas sobre o conceito e biopolítica em Michel Foucault. Foucault, em sua conferência brasileira1, Egito e Londres, o mundo antigo e a ciência moderna, ainda não estavam tão bem polarizados como posteriormente podemos ver em seus estudos. Porém – o que distingue os dois temas – e, com as escusas à imagem de nosso mais ancestral liberal, o conde de Cairu, e de seus modernos congêneres que sempre se acreditam tão “modernos”, o que procuraremos mostrar, ainda que por enquanto de forma bem simplificada (ao menos nessa linhas iniciais), é 1

FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

que “a medicina moderna tem por background uma certa tecnologia do corpo social; que a medicina é uma prática social que somente em um de seus aspectos é individualista e valoriza as relações médico-doente2”. Mas isso na medida em que podemos ir além de Foucault, de em certo modo seguir seus passos ultrapassando-o sem negligenciar o progresso realizado da conferência O Nascimento da Medicina Social até, por exemplo, a Hermenêutica do Sujeito, ou ao livro só imaginado, As Confissões da Carne; enfim, seguindo esse caminho que vai de sua tentativa de diferenciação da “medicina mental” da “medicina orgânica”, até suas duas últimas aulas magnas, O Governo de Si e dos Outros e A Coragem da Verdade, retrabalhar essa hipótese – principalmente se levarmos em conta a individualista concepção liberal –, onde, frente ao mundo grego reconstituído por Foucault diante de nós, temos que

com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é a realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política3.

Agora podemos contrapor a noção de Medizinichepolizei, polícia médica, com a que na língua latina ganhou o nome de therapeúein. Embora os historiadores não tenham se ocupado do problema do nascimento, na Alemanha, de uma ciência do Estado, esta foi a única capaz de organizar através de um corpo de funcionários disponíveis ao aparelho de Estado a justaposição de quase-estados, pseudo-estados, de principados, enfim, dentro do território alemão, visando o aproveitamento das relações de força entre seus vizinhos, assim como o emprego da mão-de-obra disponível na burguesia após a estagnação econômica que sucede a guerra dos 30 anos. Por isso o Estado, em seu sentido moderno, ter se desenvolvido primeiramente na Alemanha, ao invés de em outros países economicamente mais adiantados, como é o caso da França e Inglaterra. O uso de dados estatísticos por parte dos governos data do século XVII, relacionada às práticas mercantilistas de majoração da força produtiva da população e focada nas taxas de natalidade e mortalidade, numa época em que o numerário 2

Idem, p. 79. Idem, p. 80.

3

populacional era fundamental na contabilidade das riquezas das nações. A inovação alemã se dá no sentido em que ultrapassa esse mero cálculo cujo somatório geral tinha de ser positivo, mais nascimentos do que mortes, e passa a observar os diferentes fenômenos epidêmicos ou endêmicos nas diferentes cidades ou regiões do Estado, baseando-se numa observação das taxas de morbidade relatada pelos médicos e pelos registros hospitalares. Paralelamente, deixa-se às universidades e à própria corporação médica a atribuição dos diplomas e a formação acadêmica. “A medicina e o médico são, portanto, o primeiro objeto da normalização. Antes de aplicar a noção de normal ao doente, se começa por aplicá-la ao médico. O médico foi o primeiro indivíduo normalizado na Alemanha4”, enquanto na França, por exemplo, primeiro se normalizou os professores e os canhões. O exemplo francês é discutido exaustivamente por Foucault não só em sua conferência sobre a medicina social, mas em diversos outros trabalhos – em suas aulas principalmente – sempre quando o tema versa sobre as políticas de urbanização, de modernização das cidades e da higiene pública. Daí temos o que é relacionado à chamada “teoria dos miasmas”, da abertura das grandes vias para fazer circular o ar, a questão da vigilância e do confinamento doméstico de toda uma população em períodos de surto epidêmico, a questão da criação da polícia, propriamente falando, não na maneira bem delimitada com a qual a enxergamos atualmente, porém como meio de se fazer valer a razão de Estado, de colocar os desocupados dentro das linhas produtivas da sociedade; a Lei dos Pobres inglesa, criando assistência médica gratuita aos pobres para garantir a saúde dos ricos e garantindo o controle das revoltas urbanas (no clássico caso carioca a normalização gerou o efeito inverso, a Revolta da Vacina), ou seja, tudo aquilo que os franceses colocaram em prática e que os alemães deram o nome de Polizeiwissenschaft, essa ciência da política que só existiu na mesma medida em que era uma ciência da polícia, cujo foco é a população:

Dentre os principais objetos de que essa tecnologia deve se ocupar, a população, na qual os mercantilistas viram um princípio de enriquecimento e na qual todo o mundo reconhece uma peça essencial da força dos Estados. E, para administrar essa população, é necessária, entre outras coisas, uma política de saúde capaz de diminuir a mortalidade infantil, de prevenir epidemias e de fazer baixar a taxa de endemia, de intervir nas condições de vida, para modificá-las e imporlhes normas (quer se trate de alimentação, de hábitat ou de urbanização das cidades) e proporcionar equipamentos médicos 4

Idem.

suficientes. O desenvolvimento a partir da segunda metade do século XVIII do que foi chamado Medezinische Polizei, hygiène publique, social medicine, deve ser inscrito no marco geral de uma “biopolítica”; esta tende a tratar a “população” como um conjunto de seres vivos e coexistentes, que apresentam características biológicas e patológicas específicas. E essa própria “biopolítica” deve ser compreendida a partir de um tema desenvolvido desde o século XVII: a gestão das forças estatais5.

No século XVII podemos ver o que é essa “gestão das forças estatais”, ou seja, a forma como se coloca as instituições, os funcionários, a administração estatal de um modo geral, a favor do controle dos corpos. Posteriormente, coincidindo com a ascensão da psicanálise, a incorporação por parte da família dos conceitos médico-psicanalíticos ainda no século XIX, a teoria do incesto que deu a ascendência moral ao controle físico que os pais exerciam sobre as crianças masturbadoras, a família-empresa, o indivíduo empreendedor, o estado de direito e a emergência da sociedade civil ordoliberal: é nesse horizonte que aparece a Ação Humana, de von Mises, a partir do qual, hoje, se pode traçar uma genealogia do behaviorismo, dos conselheiros políticos de Barack Obama, por exemplo, como também de toda uma concepção moderna de educação liberal – um tipo particular de “empreendedorismo”. O Nascimento da Biopolítica aponta para o fato de que onde essa política se torna mais ostensiva, onde o controle sobre os corpos e a sexualidade se dá de maneira mais efetiva – por isso o termo “biopolítica” é o que se contrapõe a mera “eugenia”, cujo valor como significado formal foi esgotado por Hitler –, através de um meio onde o homo oeconomicus pode produzir livremente. Mas produzir o quê? Simplesmente sua própria satisfação. Ele é consumidor e produtor ao mesmo tempo, por isso pode se falar de uma sociedade feita de unidades-empresa, de capital humano na medida em que a “competência-máquina de que ele é a renda não pode ser dissociada do indivíduo humano que é seu portador6”. Essa problemática atual adquire ares de ficção científica, porque

De fato, a genética atual mostra muito bem que um número de elementos muito mais considerável do que se podia imaginar até hoje [é] condicionado pelo equipamento genético que recebemos dos nossos ascendentes. Ela possibilita, em particular, estabelecer para um indivíduo dado, qualquer que seja ele, as possibilidades de contrair este ou aquele tipo de doença, numa idade dada, num período dado da vida ou de uma maneira totalmente banal num momento qualquer da 5

Foucault, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2008, p. 494. 6 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 311.

vida. Em outras palavras, um dos interesses atuais da aplicação da genética às populações humanas é possibilitar reconhecer os indivíduos de risco e o tipo de risco que os indivíduos correm ao longo da sua existência. Vocês me dirão: também nesse caso não podemos fazer nada, nossos pais nos fizeram assim. Sim, claro, mas, a partir do momento em que se pode estabelecer quais são os indivíduos de risco e quais os riscos para que a união de indivíduos de risco produza um indivíduo que terá esta ou aquela característica quanto ao risco de que será portador, pode-se perfeitamente imaginar o seguinte: que os bons equipamentos genéticos – isto é, [os] que poderão produzir indivíduos de baixo risco ou cujo grau de risco não será nocivo, nem para eles, nem para os seus, nem para a sociedade –, esses bons equipamentos genéticos vão se tornar certamente uma coisa rara, e na medida em que será uma coisa rara poderão perfeitamente [entrar], e será perfeitamente normal que entrem, em circuitos e cálculos econômicos, isto é, em opções alternativas. Em termos claros, isso quererá dizer que, dado o meu equipamento genético, se eu quiser ter um descendente cujo equipamento genético seja pelo menos tão bom quanto o meu ou tanto quanto possível melhor, terei mesmo assim de encontrar para casar alguém cujo equipamento genético também seja bom. Vocês vêem muito bem como o mecanismo da produção dos indivíduos, a produção de filhos, pode se encaixar em toda uma problemática econômica e social a partir desse problema da raridade de bons equipamentos genéticos. E, se vocês quiserem ter um filho cujo capital humano, entendido simplesmente em termos de elementos inatos e de elementos hereditários, seja revelado, fica claro que será necessário, da parte de vocês, todo um investimento, isto é, ter trabalhado suficientemente, ter renda suficiente, ter uma condição social tal que lhes permitirá tomar por cônjuge, ou por co-produtor desse futuro capital humano, alguém cujo capital também seja importante. Não lhes digo isso, em absoluto, no limite da brincadeira; é simplesmente uma forma de pensar ou uma forma de problemática que está atualmente em estado de emulsão7.

O indivíduo não é mais o súdito da teoria contratualista ou o sujeito da filosofia clássica, ele é um investimento/investidor cujas condições de vida são a renda de um capital. Daí o Estado ser para Foucault apenas uma peripécia do governo ou da governamentalidade. Não lembro em qual curso foi dito isso, mas penso ser importante que a “gestão das forças estatais” através da Medezinische Polizei, da hygiène publique ou da social medicine, da biopolítica de um modo geral, é feita a partir do pós-guerra, considerando o horror ao Estado nas formas brutais que adquiriu na Alemanha, com a pergunta: como instituir um Estado “do zero”, um Estado que ainda não existe e que irá, no futuro, garantir a liberdade econômica ao mesmo tempo em que pode manter sua existência? Daí o nascimento da revista Ordo, do Colóquio Walter Lippman, de como se passa a interpretar a teoria da racionalidade na irracionalidade do capital, de Weber 7

Idem, p. 313-4.

(o que separa os austríacos da Escola de Frankfurt, apesar de partirem de pressupostos similares, ou seja, weberianos), da emergência do ensaio Crise das Ciências Européias, de Husserl, como texto fundador, pois “assim como para Husserl uma estrutura formal não se oferece à intuição sem um certo número de condições, assim também a concorrência como lógica econômica essencial só aparecerá e só produzirá seus efeitos sob certo número de condições cuidadosa e artificialmente preparadas” (FOUCAULT, 2008b, p. 163-4). Governa-se para o mercado, ao invés de se governar por causa do mercado. Por causa do mercado, na época da “razão de Estado”, do Absolutismo, deixava-se um espaço onde as trocas comerciais poderiam ocorrer sem a interferência do soberano. Esse é o laissez-faire clássico. Segue o problema neoliberal, intrigante como “uma boa novela”, para seguir o dito de Foucault: “qual vai ser o tipo de delimitação, ou antes, qual vai ser, no que concerne à arte de governar, o efeito desse princípio geral de que o mercado é aquilo que, no fim das contas, é preciso produzir no governo?8”.Segue a resposta, Law and Order, o slogan dos neocons, ou seja, “o Estado nunca intervirá na ordem econômica a não ser na forma de lei, e é no interior dessa lei, se efetivamente o poder público se limitar a essas intervenções legais, que poderá aparecer algo que é uma ordem econômica, que será ao mesmo tempo o efeito e o princípio da sua própria regulação9”. Daí a questão da arbitragem, da intervenção judiciária extremamente vinculada a esse sistema-empresa, a uma Empresa Mundial S.A., que se organizou no mundo durante o século XX e que, numa pesquisa mais aprofundada, data de antes das grandes guerras, pouco antes da crise de 29. Na verdade, provoca esses eventos e depois se sofistica – biopolítica – no pós-guerra, tendo sua maior vitória com o bloqueio da ascensão de lideranças significativas na Europa e nos EUA, o que leva à desregulação total da economia com o fim da lei Glass-Steagall, de Roosevelt, assim como pela livre flutuação cambial com o fim do acordo original de Bretton Woods, pelo governo Nixon. O tão criticado projeto do Mercosul, críticas originárias de quem compara esse projeto com o suposto avanço europeu com a União Européia, não considera um dado óbvio, o de que a UE é um sistema de união política via união monetária preconizada por outros tratados internacionais, mais exatamente falando, no caso sul-americano, a ALCA. Esta vem divergir da idéia de um Mercosul, de uma Unasul, suprimindo as barreiras comerciais num primeiro momento e logo após dolarizando a economia do sub8 9

Idem, p. 165. Idem, p. 239.

continente, processo acelerado pelas reformas monetárias neoliberais da década de 1990. Esse tipo de projeto político é o que levou os países banhados pelo Atlântico Norte a ainda hoje verem-se continuamente em hostilidade com grandes países como China e Rússia, prefigurando uma confrontação termonuclear cujo poder destrutivo faz Hiroshima e Nagasaki pertencerem à idade das pedras das confabulações sobre o Fim dos Tempos. E isso é relacionado ao tipo de “capitalismo financeiro” (um termo que nas configurações atuais ou até mesmo em sua origem como conceito, é insuficiente para dar contar do sistema “anglo-veneziano”, oligárquico, que existe agora) que prevaleceu com a criação do grupo Inter-Alfa após o processo de descolonização no pós-guerra e que impede um eficaz sistema de cooperação com o Oriente, de um modo geral, como previam os projetos de Gabriel Hanotaux e Seguei Witte na virada dos séculos XIX e XX, da construção de um eixo Berlim-Bagdá e de uma ferrovia trans-siberiana que chegaria até Paris. Essa é a falácia da “vitória” alcançada com a queda do muro de Berlim e que nos faz viver num sistema tanto ou mais perigoso do que no período em que, com Bertrand Russel, se defendia o MAD (Mutual Assurance Destruction) como forma de controle populacional (o bombardeamento de tempos em tempos com armas atômicas da URSS pelos EUA e vice-versa). A chamada “doutrina utópica da OTAN”, na qual um só ataque termonuclear bastaria para aniquilar o oponente, é utópica no sentido em que desconsidera a capacidade do “inimigo” responder quase que simultaneamente ao ataque fulminante, o que levaria a civilização a uma crise gigantesca, ou seja, o exato oposto de uma “crise existencialista” ao estilo de Husserl ou da psicanálise de um modo geral.

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