Jão, o jornalismo e o pseudojornalismo (versão completa, ainda não revisada)

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Jão, o jornalismo e o pseudojornalismo
Rodrigo Contrera
Sexta-feira, passei a madrugada para o sábado no teatro Cemitério de Automóveis, do Marião Bortolotto.
Levei meu note e alguns livros. Fiquei umas horas resolvendo coisas com o note, mas não consegui ler nenhum livro. Na verdade, nem tentei. Nem sabia se queria ficar algo bêbado. Logo eu, falar um negócio desses. Logo eu, que teve um pai com problemas de bebida e que passou boa parte dos últimos anos preocupado com isso. Fato é que aprendi a beber – o que consiste, a meu ver, principalmente em saber quando parar –, descobri que não sou aparentemente tão fraco para a bebida assim como eu imaginava – irei escrever um texto a respeito, bastante esclarecedor a respeito – e às vezes até consigo administrar um certo momento de bebida e de consciência amarfanhada.
Depois que escrevi o que tinha de escrever – dentre outras coisas, uma tradução de um texto da Rossiley Ponzilacqua cujo destino ainda não consegui determinar –, fui lá fora com o pessoal, e vi o Jão Moonshine falando sobre jornalismo e outras coisas – algumas das quais, confesso, não entendi muito bem. Minha imagem no grupo é de um cara intelectualmente ativo e às vezes sinto que o pessoal – não diria especialmente o Jão – me olham como se quisessem saber minha opinião ou como se quisessem, às vezes, minha anuência – e não sei bem por quê, dado que eu sei muito bem minhas limitações e não faço questão de dominar todo assunto – embora muitos me interessem, sim.
O Jão começou falando sobre jornalismo, desancando este "jornalismo" contemporâneo no qual o profissional corta e cola algo que leu aqui e acolá e manda ver, divulgando. Para exemplificar, Jão citou o caso de, por exemplo, um estudante que se proponha a estudar o Tratado de Tordesilhas. Ele disse, o que é necessário fazer, caramba? Silêncio. Ler a porra do tratado, caralho!, respondeu. Mas, segundo ele, o que os estudantes, principalmente aqui no Brasil, fazem é, antes de mais nada, ler artigos SOBRE o tratado, ao invés de O tratado. Ele utilizou a mesma argumentação para meter o pau no chamado "jornalismo" que tanto aparece hoje por aí. O Jão continuou falando sobre uma série de outras coisas, mas ou eu não entendi ou não tinha tanto a ver assim com o tema que ele descrevera antes.
Acontece que o Jão é engenheiro, e que, portanto, apesar de todo seu criticismo – muito a calhar, especialmente para mim –, ele não tem como saber O PORQUÊ da proliferação desse tipo de "jornalismo", que nada tem de jornalismo, e que, dentre outros fatores, vem fazendo com que a profissão passe por uma crise, eu diria, inigualável. EU sou jornalista, porém, e já enfrentei na pele – assim como enfrento – os dilemas que fazem com que o jornalismo em geral recaia nesse tipo de prática – inviável e da qual ninguém pode se beneficiar. Irei me estender um pouco para explicar como é que são as coisas na prática – e, em minha opinião, POR QUE as coisas chegaram a este ponto. Dispensarei argumentações do tipo cultural, ou seja, justificando a situação dizendo que assim seria o Brasil. Não, não creio que isso explique nada, muito menos ajude a pensar o fenômeno, o que é necessário para que, quem sabe, jornalistas em começo de carreira ou que ainda sentem poder fazer alguma coisa possam realmente passar da reflexão à prática.
O Jão, em primeiro lugar, parte do que é mais óbvio (e não poderia ser diferente): a proliferação desmedida de notícias mal-apuradas, a criação de marolas aparentemente informativas por gente que nem de longe tem preparo para lidar com a opinião pública, a ausência de checagem de informações por parte de jornalistas ou supostos especialistas, que entram na onda muitas vezes sem reparar no risco que causam, a falta de formação dos jornalistas vindouros ou dos atuais jornalistas ou supostos especialistas, etc. Note-se: o Jão pode, apenas pela aparência, enganar o desavisado. O Jão, para quem não o conhece, é um sujeito muito alto e forte, com começo de calvície em sua fronte e cabeleira vasta na nuca, que normalmente anda com roupas de motociclista – ele é um deles – e com um comportamento que se distancia bastante daqueles que imaginariam um engenheiro de formação muito sólida, várias vezes convidado a participar de bancas na academia, com inglês perfeito – costuma viajar com frequência aos Estados Unidos –, tradutor bissexto (mas incrivelmente bom) de Bukowski, que anda numa moto inclassificável (não tem marca) construída por ele mesmo a partir do zero. O Jão está bastante longe da imagem de um acadêmico, e para ele a curtição de trabalhar com ciência parece algo somente equiparável a desfrutar um Jack Daniels Gentleman Jack (ele prefere até outros, bem melhores, e de vez em quando aparece com uma versão original sem corante lá no Cemitério de Automóveis, onde ele é costumeiro frequentador).
Ocorre que, como cientista e especialista em ciências exatas (não sei de muitos detalhes, e o Jão é um cara sumamente discreto), o Jão não consegue aguentar inexatidão, incompetência, indisciplina, arrogância, clichês, e tudo o que possa remeter a leviandade com o conhecimento, que é do que ele tira seu sustento e que é aquilo que ele mais preza (essas convicções se estendem à sua visão de mundo mais, digamos, mundana, mas isso é papo para outro artigo). Nesse sentido, o Jão é aquilo que costumamos chamar de leitor qualificado, um cara que não é fácil de enganar, um sujeito que suspeita, com seu radar que poucos têm, de qualquer um que faça uso da razão (ou que suponha fazer uso da razão) para fins outros que não o próprio engrandecimento da ciência e do esclarecimento humano. Claro que isso não torna o Jão um leitor infenso: ele tem suas preferências políticas, seus interditos, seus critérios de distinção do bom e do ruim que não necessariamente remetem à ciência ou à Filosofia que muitos citam – muitas vezes sem saber o que falam (eu mesmo só não falo muita bobagem porque falo pouco – ou sou prudente –, por isso preciso me cuidar). Ou seja, o Jão é falho e idiossincrático como qualquer ser humano, com todas as consequências disso decorrentes, o que, apesar de óbvio, não custa citar.
Mas falemos agora do assunto em si. Ou seja, do jornalismo. Eu sou jornalista. Tenho alguma experiência em jornalismo diário, mais experiência em sites de futebol, e ainda mais vivência e experiência em jornalismo de revistas (há pouco, comecei também a colaborar como jornalista investigativo em um jornal diário da cidade onde moro, Taboão da Serra, onde também sou colaborador como colunista). Sei o que é sair da redação com pautas mal-apuradas, um carro com gasolina ou álcool à vontade, um fotógrafo que como todo ser humano tem suas preferências, coragens e covardias, e motoristas que às vezes só querem mesmo voltar logo para suas casas. Sei também o que é ficar online em sites que precisam ser atualizados a cada segundo e que são consultados por gente que, de longe, pode saber mais do que você jamais imaginaria sobre o assunto sobre o qual você está escrevendo. Além disso, sei o que é trabalhar em revistas técnicas – agrícolas ou da área química –, cujas fontes (e muitas vezes amigos) sabem mais sobre o assunto que você precisa cobrir com a intenção de falar novidades do que você jamais conseguiria passando a vida inteira estudando a respeito. Não é fácil. Já corri risco de morte algumas vezes, com fotógrafo e motorista, em lugares que a maioria das pessoas jamais imaginaria existirem (como repórter de rua), e já passei por situações constrangedoras envolvendo políticos de má índole, chefes que acham que para saber basta clicar algo no Google, colegas que, muitas vezes mais preparados que você, não conseguem contudo entender que certos termos não podem ser usados assim despropositadamente, como se existissem muitos sinônimos no âmbito de determinadas ciências.
As queixas do Jão remetem, porém, a práticas que, embora tenham sido sempre alvo de críticas por parte dos maus profissionais, não têm desculpa. Todo bom profissional sabe que toda informação precisa ser checada, que a ética é muitas vezes fundamental para saber se vale a pena repassar para a frente uma informação que PODE, SIM, render frutos profissionais importantes mas que muitas vezes NÃO VALE A PENA ser divulgada, que certas distinções entre informações díspares muitas vezes requerem consulta a especialistas renomados que, porém, têm também preferências de ordem econômica e política. Navegar em meios que envolvem a disseminação de informações que podem beneficiar ou prejudicar gregos e troianos é muitas vezes, diria quase sempre, altamente arriscado. Já tive um chefe que foi demitido ao ser constatado que levava por fora de empresas que anunciavam na revista em que trabalhávamos (nunca mais ouvi falar dele, pelo jeito isso o queimou para sempre). Já tive chefes que recebiam ameaças de morte por seguranças de prefeitos de partidos na época aparentemente inatacáveis de municípios da Grande São Paulo. Já tive colegas que, ao saberem de informações de alto valor jornalístico, preferiam olhar para o outro lado, amedrontados com as consequências de uma publicação que poderia colocar suas carreiras ou mesmo suas vidas (e famílias) em risco.
Acontece que os fenômenos criticados pelo Jão vão muito além (sendo que deles eu soube após começar este artigo). Transcrevo aqui umas posições que ele me deu por facebook há pouco, que ele pelo jeito não teve como expressar naquela nossa conversa na saída do Cemitério de Automóveis:
O que eu tava falando era como o Brasil tem "especialistas" em tudo... o cara escreve num jornal e já vira "vossa excelência"... e não leram nada, não estudaram nada... só copiam discursos e clichês que ele leu de outra pessoa que escreveu tb em um jornal.... igual "correspondente internacional": um cara que acorda às 14h, pega 2 ou 3 noticinhas do NY Times, manda pra redação no Brasil e tá feito o trabalho.
Aqui nego fala pela bunda: Drauzio Varella, Gregorio Duvivier... o prestígio que deram pra essas duas bestas quadradas mostra que o Brasil é um país seriamente doente.
O Brasil é um país que despreza o conhecimento.... se vc tem conhecimento, vc é "pedante"... então o sujeito quando escreve alguma coisa ele não se atina em fazer pesquisa em fonte primária... ele pega o que já fizeram sobre o assunto e faz uma salada e coloca o nome dele lá...
Estudar é uma coisa pra vida inteira... sempre vai ter mais coisa pra estudar do que tempo de vida nosso... mas a gente vai atrás, e lê, e estuda, e compara... tem que ler "os 2 lados": o que vc concorda e o que vc não concorda... isso enche o saco, né? Então o cara deixa outra pessoa ter esse trabalho e ele pega o crédito como se ele realmente tivesse estudado.
E o Brasil é pior ainda: quanto mais ignorante o sujeito é, mais ares de autoridade ele tem, com mais propriedade ele abre a boca...
E aqui (facebook) o cara fala o óbvio, já vem um e compartilha e fala "gênio".
O cara fala que a merda fede, e já vem outro e compartilha: "com a palavra".
Reparem que o Jão não ficou, agora, restrito àquilo que eu havia citado dele, no papo à entrada do teatro do Marião e sócios. O Jão pega pesado, e, daquilo que retiramos dessas suas diatribes (uso este termo distanciando-o da terminologia propriamente filosófica, relativa mais aos cínicos antigos do que às pessoas comuns, em conversas comuns), percebemos que ele 1) ataca os chamados "especialistas" (que disso não têm, pelo que ele diz, nada), simples jornalistas sem formação específica (ou profissionais de outras áreas que enveredaram pelo ambiente da formação da opinião pública) que se entronizam como autoridades em áreas que, venhamos e convenhamos, não lhes dizem respeito, 2) despreza o poder, enquanto formadores de opinião pública, de "personalidades" que não sabem nada demais, 3) lamenta a falta de importância que o Brasil dá ao conhecimento e desqualifica os estratagemas de supostos acadêmicos que utilizam de subterfúgios para aparecerem mais do que para realmente pesquisarem e divulgarem conhecimento, e finalmente 4) acha ridícula a mania, neste tempos de internet, que as pessoas em geral assumem de divulgar coisas que nada têm de interessantes, levantando a bola de gente, em última instância, medíocre, que posa de algo que ela não é.
Tantos tópicos abordados pelo Jão em suas críticas mereceriam uma discussão séria e aprofundada. Para pegar os tópicos mais óbvios.
Primeiro, o 1. Nós sabemos, pesquisando um pouco a respeito, de que forma os chamados especialistas encontram seu lugar no mercado. Para pegar o mais óbvio, o Drauzio Varella. Todos sabem que ele só se tornou aquilo em que se tornou por ter transformado, em relato jornalístico, suas visitas ao complexo do Carandiru, que renderam um livro lançado em 1999. Ou seja, ele simplesmente fez jornalismo quando lutava para ser especialista em alguma coisa. Foram, em última instância, seus méritos enquanto comunicador que lhe renderam destaque na opinião pública em geral – e espaço nos grandes meios, em tantos que se torna difícil elencar. Já o Gregorio Divivier, o que é? Um humorista. Algo de mal nisso? Não, claro. Mas hoje ele é bem mais do que isso, ao menos pela mídia tradicional: uma espécie de referência, um cara com os holofotes a ele voltados, que pode, ao menos aparentemente, opinar sobre o que quiser sem necessariamente ter um código de ética ou algo mais profundo em termos de conhecimento a resguardá-lo. Nada além disso, um humorista. Pois nós sabemos que é assim que funciona. Por algum motivo qualquer, num determinado momento, um ou outro meio escolhe um sujeito qualquer, oriundo de meio aparentemente adequado, e o entroniza como autoridade no âmbito da opinião pública em geral. Claro, sociologicamente falando, não há aparentemente nada de mau nisso, dado que a sociedade não se comporta – nem, creio, tenha alguma vez se comportado –, na seleção dos jornalistas de destaque, ou dos formadores de opinião passíveis de serem seguidos, por critérios focados, mais ou menos, em mérito ou notável conhecimento.
Por outro lado, todos sabem – ou alguns, pelo menos – que em outros países, como os Estados Unidos ou a Inglaterra, por exemplo, os articulistas que se tornam referência nos grandes ou não tão grandes meios são quase sempre oriundos de universidades de elite, realmente de primeiro nível, como Cambridge ou Oxford (para ficar na Inglaterra), que penam, por toda a vida, para serem considerados bons o suficiente para ocuparem algum lugar de destaque nesse âmbito de conhecimento e de formação de opinião e de conhecimento. Não basta, nesses lugares, que o chefe de plantão vá com a cara deles para criar-lhes espaço adequado para crescimento e destaque. No meu caso, por exemplo, que nada tem de importante, mas que pode servir como esclarecimento, eu fui entronizado como referência numa revista de química simplesmente porque minha chefe ia com a minha cara. Não é adequado, mas eu também não tive nada a fazer. Ocorre que, restringindo-me ao meu caso, eu tentei, de forma sobremaneira insistente, em ter formação devida na área, mas nunca tive qualquer incentivo nesse sentido, nunca a empresa quis me dar condições extra de aprendizado, nunca recebi um tostão pelo tempo que dispensei em conhecer o que merecia conhecimento aprofundado. Tudo foi, e sempre deve ser, apenas resultado de dedicação pessoal, inteiramente pessoal. Num determinado momento, acabei cansando – embora venha a retornar ao mercado, agora por dedicação inteiramente pessoal, nesse mesmo mercado, e mesmo em outro ainda mais amplo (acumulei biografia considerável a respeito para com o tempo poder me dedicar novamente a essa área). Isso sem contar, ainda referindo-me aos interditos que enfrentei todo o tempo em que trabalhei na revista, o interdito de não poder trabalhar, na prática, com os produtos químicos sobre os quais escrevia, por haver desconfiança de eu aferir vantagens indevidas com isso. Era lamentável, afinal o que eu queria era conhecer mais, mas fazer o quê? Fim do meu caso particular. Claro que muito mais poderia ser dito a respeito.
Agora, o item 2. Realmente, essas pretensas autoridades que o Jão cita, com bastante e indisfarçável desprezo, assumem, neste país de ignorantes, um peso desmedido em questão de formar a opinião pública em geral. Note-se, por exemplo, o destaque que esses sujeitos auferem, no dia a dia, por grandes, médios e pequenos meios. Eles muitas vezes, inclusive, não disfarçam a posição diante dos mais diversos públicos, e só Deus deve saber quantas vantagens indevidas devem obter de seus "cargos". Se eu, trabalhando em pequenos meios, sempre fui sobejamente abordado pelas grandes empresas que eu consultava, que lutavam por minha "simpatia" (algumas sempre quiseram vantagens), imaginem vocês nos meios de maior importância nesse país de dimensões continentais e grana a rodo rolando solta. É aquele negócio: às vezes dá até algum receio pensar realmente em como as coisas acontecem, a roda pequena. Mas a paulada do Jão tem endereço mais definido: o destaque e poder indevidos a gente que não tem nada a resguardá-los, em termos de conhecimento ou história. A gente poderia argumentar quanto a critérios mais adequados, ou mesmo a justificar a situação reinante assumindo que o Brasil não passa, no fundo, de um país de semianalfabetos. Mas isso seria, em última instância, tentar tapar o sol com a peneira, que é justamente aquilo que o Jão realmente não gostaria que acontecesse. Então, a situação é essa. Não posso deixar de notar que, ao menos pelo depoimento do próprio Jão em outra ocasião, um requisito fundamental para quem quer distinguir o joio do trigo parece, em última instância, ser a coragem de tomar decisões aparentemente injustas para resguardar o conhecimento e a busca pelo conhecimento. Refiro-me, no caso, à decisão do Jão de dar zero a um pretendente a mestrado numa banca de qualificação de universidade com base na óbvia incapacidade do candidato de escrever corretamente. Na hora em que o Jão comentou o caso, fiquei meio estupidificado, pois aparentemente esse tipo de decisão parece haver sido extrema. Mas, venhamos e convenhamos, e se todos assumissem posturas assim? Acaso não teríamos mais segurança quanto à qualidade dos sujeitos com títulos por aí se, em qualquer instituição, as coisas não fossem feitas dessa forma? Pois é.
Agora, o item 3. Não cheguei a completar a pós-graduação (em duas áreas), mas conheço muito bem o meio para entender o que o Jão tá dizendo sobre os costumes e práticas no meio acadêmico em geral. Eu mesmo nem posso falar tanto assim (com respeito ao mérito do que ele diz) em minha defesa, dado que até agora não publiquei nada, nada mesmo, mas sei muito bem que para fazer sucesso na área, como em diversas outras, a prática mais corriqueira é, sim, a de publicar o máximo possível sem colocar os dedos nas feridas – ou seja, publicando artigos que no fundo não fedem nem cheiram – e aproveitar a situação específica para utilizar o conhecimento ou a audácia alheias para brilhar por conta própria. Lembro-me, por exemplo, de que na minha iniciação científica o professor em questão não dava orientação alguma quanto àquilo que deveria ser pesquisado – nem COMO deveria ser pesquisado –, assim como não deu nenhum retorno quanto ao trabalho feito – como se o iniciante científico fosse meramente uma mão de obra barata, desqualificada, sem a intenção de seguir no ramo. Eu me senti um bosta na hora. Mas fui tocando. Por outro lado, vi colegas brilharem dando uma de equilibristas, sem mexerem com nada que poderia ser colocado em risco – e sabemos que TUDO no âmbito do conhecimento PODE, sim, ser colocado em questão ou mesmo risco. Sabemos também que o verdadeiro pesquisador e cientista é aquele que coloca TUDO sempre em questão, que não aceita conhecimento dogmático de qualquer tipo, que OUSA questionar aquilo que muitos não consideram adequado questionar. Mas, quem é que, no Brasil, costuma, contudo, brilhar? O intelectual médio, aquele que JAMAIS se compromete, que JAMAIS ousa questionar os antigos mestres ou professores, que JAMAIS ousa entrar em discussões cabeludas tendo em vista APENAS o conhecimento, a integridade do que é discutido, o mérito da questão. O panorama intelectual brasileiro é, por outro lado, prenhe de casos de intelectuais de primeiro nível que, por terem sido realmente questionadores e rigorosos, foram mantidos em geladeiras de diversos tipos, e que – quando muito – foram reconhecidos post-mortem. Muitos desses intelectuais, sabemos todos, jamais sairão do ostracismo em que o próprio ambiente acadêmico os colocou. E isso simplesmente porque eles fizeram o que era esperado de suas atribuições – realizar um trabalho intelectual sério. As histórias de Mário Pedrosa, Milton Santos, Dante Moreira Leite, só para citar alguns do ramo das ciências humanas (Pedrosa era físico, desculpem), não me deixam mentir. Por outro lado, contrariamente àquilo que eles mesmos poderiam querer post-mortem, esses e outros casos são muitas vezes defendidos incondicionalmente por gente que os entroniza como cadáveres insepultos e inatacáveis. Ou seja, esses caras, que na época deram ótimo testemunho de integridade intelectual, muitas vezes tornam-se inatacáveis contrariamente às suas próprias vontades – que, claro, não podem ser confirmadas. É típico. Quem ousaria falar mal (digo, falar com propriedade, não falar mal, propriamente) de um Nelson Rodrigues? Ou de um Sérgio Buarque de Hollanda? Ou mesmo de medalhões estrangeiros? Eu entendo o que o Jão comenta. Vivemos num país de covardes eruditos e sábios mendicantes, no qual a ordem é galgar escadas sem saber andar, propriamente. E quem sabe andar costuma ser atacado de forma inapelável, como se fizesse algo realmente indevido. Andar é, claro, neste contexto, simplesmente pensar. Raciocinar.
Finalmente, o item 4. É interessante e por outro lado quase obviamente ululante o que o Jão afirma sobre a mania de entronização de falsos sábios nesta época em que obras imortais estão ao alcance dos dedos – embora para desfrutá-las seja necessário lê-las, algo que quase ninguém assume como interessante. Fato é que o saber verdadeiro, e o conhecimento árduo, e a prática da ciência árdua, tornaram-se démodés. Todo mundo hoje parece querer saber, mas no fundo apenas PARECE QUERER. Ficou chique ler coisas difíceis por aí, e mais chique ainda posar de sábio, falando obviedades rasteiras; ocorre que isso só acontece assim porque NINGUÉM (ou quase ninguém) assume para si a tarefa de realmente querer saber. O Jão, que acaba de receber uma versão incompleta deste artigo, que está no fim, admite, por exemplo, que ainda estuda livros de seu primeiro ano de engenharia; isso, ninguém considera interessante admitir, por exemplo. O que todo mundo parece querer, no fundo, é brilhar, independentemente de ter reais méritos para isso. E pior, como o próprio Jão destaca, a mediocridade parece nivelar, em todo lugar, por baixo, em que a grande galera que não estuda (nem, no fundo, quer estudar) chama de sábios aqueles que no fundo, não sabem nada – ou (para não sermos totalmente injustos) quase nada. Por outro lado, amigos nossos, que deveriam conhecer-nos bem, ou pelo menos entender nossa VERDADEIRA E SINCERA vontade de conhecer, parecem não entender por que é que valorizamos TANTO escrever coisas como este artigo, em que, após mais de 4 mil palavras, tento desancar uma prática tão disseminada por aí, que é o falso jornalismo, o pseudojornalismo, e em que aproveito a oportunidade para desmascarar o oportunismo, a má-fé, a cara-de-pau de gente que posa de sábia, quando na verdade não assume que, no fundo, apenas faz uso de senso comum para brilhar nas costas de gente que realmente estudou e que é usada por não saber o que se faz em seu nome – refiro-me aos grandes sábios de outrora e mesmo de hoje. Por exemplo, como não qualificar como arrogante, segundo a "ética" corrente, um Mário Bunge, físico e filósofo da ciência e mesmo filósofo argentino cujo único pecado é realmente pensar por conta própria, independentemente do juízo de medalhões que são citados ad infinitum por especialistas que, sem tanto culhão, preferem abaixar a crista e virarem comentadores por opção? Pois é.
Este foi o segundo artigo de grandes dimensões que escrevi este fim de semana tentando deixar claras algumas questões e conquistas assumidas nos últimos meses. O primeiro foi sobre um "ensaio" que tive com crianças no meu prédio, do qual já várias pessoas gostaram. Esse artigo visa servir de subsídio para um artigo, ainda maior, com o qual pretendo justificar e fornecer base ao meu trabalho com o meu grupo de teatro. Já este artigo, sobre essas observações do Jão, tem outro foco, que é o de, por meio de observações críticas e ácidas desse cara que admiro não de hoje, dar uma contextualizada nessa mediocrização do saber que vemos, dia a dia, dia a dia, nesta época histórica em que (quase) tudo está à nossa disposição. O Jão é um cara realmente insuspeito para eu tomar como referência, principalmente porque, NA MINHA OPINIÃO, ele ainda mantém uma saudável indignação contra a mediocridade, independentemente de quem seja atingido por ela. Mas ele tem um bom senso incomum, também. Sabe distinguir má fé de incapacidade e, por outro lado, dar valor à boa vontade. Isso, para um profissional da estirpe dele, parece ser ainda mais raro, nos dias de hoje. Congratulo-me em ser um admirador desse cara. Este é apenas um fruto dessa admiração. Uma admiração pessoal e principalmente profissional. E o mundo prova: é só de admiração em admiração, de amizade em amizade realmente verdadeiras, que uma pessoa, uma reputação, uma obra são construídas – quando essas admiração e amizade têm bases sólidas, que escapam a elas mas que lhes dão estofo e relevância com o fim dos tempos.

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