João no desejo: adicção e narrativa em Berkeley em Bellagio

May 28, 2017 | Autor: Carlisson Oliveira | Categoria: Psicanálise, Crítica literária, João Gilberto Noll
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José Lins do Rego e a epopeia rural do Nordeste – Anais do III CONALI | ISBN 978-85-7320-078-2

| MESA REDONDA | DO SEXO À PALAVRA: EXPLORAÇÕES LITERÁRIAS E PSICANALÍTICAS

JOÃO NO DESEJO: ADICÇÃO E NARRATIVA EM BERKELEY EM BELLAGIO1 Carlisson Morais de Oliveira UFPB Hermano de França Rodrigues UFPB Eu era Berkeley em Bellagio, o bispo e filósofo irlandês em retiro pisando em folhas secas, me afastando da janela atrás da qual um pianista moderno e uma mulher vestida de outrora talvez ensaiassem alguma ópera, talvez chamada “Fantasia quase sonata depois de uma leitura de Dance”, em honra sim de Liszt, que aqui vivera uma paixão férvida, enquanto eu caminhava com cuidado, temendo escorregar no limo da umidade, ouvindo Cosima quem sabe a cantar em seu leito de morte qual a Dama das Camélias… (…) Eu era Berkeley, o célebre filósofo sensualista que acreditava, dizem, que a subsistência das coisas dependeria da qualidade da percepção e não da feitiçaria da linguagem — e qual a percepção eu poderia ter de mim mesmo naquele vão noturno que quase me engole num repente? Quem me responde, e já, se o fato de eu estar aqui andando em plena madrugada me confere alguma garantia de que eu não seja um outro que de fato sou, um estrangeiro de mim mesmo entre norte-americanos (embora pisando em solo italiano)? Sou alguém que se desloca para me manter fixo? E os passos me conduzem para o estúdio pegado ao quarto ou às lisonjas mútuas reinantes na Fundação — hein?, não fiz umas perguntas, tchê? Sei que vejo Cosima espantosamente pálida em seu leite de morte, toda transparente, toda irreal, quem sabe inexistente… Voltei à villa. (NOLL, 2003, p. 36-37, negritos nossos).

O romance Berkeley em Bellagio é extremamente condensado e isso é uma dificuldade aà compreensão do entrelaçamento de temas do romance. Esperamos que a apresentação a seguir mostre como o desejo é o organizador deste romance. O romance tem uma extensão relativamente pequena, com menos de cem páginas, mas mesmo para esse tamanho é impressionante como a obra nos mantém tensionados do início ao fim. O texto em um único parágrafo; a falta de clareza entre cena, memórias e devaneios; e uma escrita memorialista que transborda ansiedade fazem-nos sentir a velocidade da narrativa, fazem-nos viver a angústia do narrador. Esta condensação também toma forma nos elementos estruturais da narrativa. Temos pouca ação, personagens e espaço. O tempo, ou melhor, a percepção do tempo é o

Este trabalho é o desenvolvimento de parte de uma apresentação na disciplina “Literatura e psicanálise: aproximações epistemológicas”, ministrada pelo Professor Hermano de França Rodrigues no PPGL-UFPB. Gostaríamos de agradecer a José Diego Cirne Santos pelas ideias e discussões que melhoraram este trabalho e a José Eider Madeiros por sua tradução. 1

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único elemento em excesso; afinal de contas, no dizer do narrador, será que algum dia deram-lhe “uma imersão no tempo” (NOLL, 2003, p. 52). O narrador e também protagonista é João, um escritor brasileiro de Porto Alegre que foi professor convidado na Universidade da Califórnia em Berkeley e depois foi escritor residente numa fundação americana em Bellagio, Itália. Além dele, temos Léo, namorado de João, e Maria, uma professora, a única mulher com quem ele teve um caso na vida. Esses são os únicos personagens recorrentes na narrativa, todos os outros só aparecem de forma localizada. Apesar da narrativa memorialista e das indefinições citadas, conseguimos perceber que o romance possui três partes. A primeira, que dura mais ou menos as primeiras dez páginas, consiste de um único passeio do narrador-protagonista, João, pelo campus da Universidade de Califórnia em Berkeley. Nesse passeio, o narrador encontra Maria. Apesar da diminuta ação, conhecemos um pouco do passado do narrador, experiências contemporâneas ao passeio (como com os alunos) e situações que acontecerem após aquela cena (como os futuros amores de ambos). A segunda parte é a maior e a principal do romance com cerca de setenta páginas. A ação acontece em Bellagio, basicamente constituída de passeios nos bosques, nos salões e algumas cenas na fundação, seja no apartamento ou no porão. Nesta parte, o personagem encontra-se com vários outros pesquisadores e funcionários da fundação. A terceira e última parte é constituída pelas vinte últimas páginas do romance, incluindo a viagem de Bellagio para Porto Alegre, as cenas na casa de Léo e o passeio final para o acampamento de refugiados. Deste breve sumário, podemos perceber que o romance alterna cenas estáticas e em movimento, e todas carregadas de memórias que suspende os limites destas próprias cenas. Igualmente importante é perceber que cada parte do romance possui uma forma própria, expressando o estado psicológico do narrador. A primeira é majoritariamente narrada em terceira pessoa, uma tentativa de abordagem mais objetiva. A segunda já é marcada pela primeira pessoa, onde a angústia do narrador fica mais clara. A terceira é mais reflexiva, mais organizada e lenta. Agora vamos tentar entender o que fez com a narrativa mudasse desse modo. A condensação traz, além de outras consequências, uma maior presença da ambiguidade, já que temos pouco material para o esclarecimento das incerteza. Duas 271

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ambiguidades importantes deste romance estão presentes no trecho que abre este trabalho. A mais importante é o próprio título. O título “Berkeley em Bellagio” pode ser lido como uma expressão da confusão de espaço causada pela memória, uma indicação da presença das experiências do narrador na universidade nas experiências na fundação. Ou seja, como a angústia do narrador funde experiências distintas em uma única memória. Além dessa leitura, outra que se impõe é a referência ao filósofo George Berkeley (1685-1753). Antes de seguirmos, quero reforçar que estas ambiguidades são insolúveis, ou seja, a justificação desta segunda não anula a primeira. O autor do romance, o escritor João Gilberto Noll, afirmou em uma entrevista: “O narrador, em certo momento, ele se considera Berkeley, o bispo, mas bispo é o artista plástico Arthur Bispo do Rosário, considerado louco. Sente-se Berkeley, caminhando pelos campos de Bellagio.” (NOLL, 2012). Essa afirmação levou parte da crítica a simplesmente descartar a referência ao filósofo. Acreditamos que o texto literário não permite este descarte e consideramos importante para compreendermos o personagem o porquê ele se sentia como o filósofo. Para nós, no momento inicial da narrativa, ele compartilha com o filósofo a sua visão sobre a linguagem. Essa visão era, inclusive, a sua poética como escritor. Para demonstrar isso, vamos conhecer um pouco das ideias do filósofo. O famoso princípio de Berkeley é “esse est percipi”, ser é ser percebido. Berkeley foi um idealista. Ele sustentou que os objetos ordinários são apenas coleções de idéias, as quais são dependentes-da-mente. Berkeley foi um imaterialista. Ele sustentou que não existem substâncias materiais. Existem apenas substâncias mentais finitas e uma substância mental infinita, ou seja, Deus. (FLAGE, 2016, p. 10).

O tema do corpo (o material) está presente em toda obra. O narrador tem a sensação de que nunca “teve um corpo definido”, que é “uma sombra”. Não é à toa que ele sente-se Berkeley, que chegou a posição extrema do imaterialismo. Outro tema recorrente no romance é a questão da linguagem, bem tratada na crítica. Neste texto gostaríamos de mostrar como a concepção da linguagem do narrador é semelhante a defendida por Berkeley. Na Introdução aos Princípios do conhecimento humano, Berkeley lamenta a dúvida e a incerteza encontradas na discussões filosóficas (Intro. §§1-3), e tenta descobrir aqueles princípios que desviaram a filosofia do senso comum e da intuição (PHK §4). Ele encontra a origem do ceticismo na teoria das idéias abstratas, a qual critica. (FLAGE, 2016, p. 7).

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Berkeley era contra a abstração, acreditava que este procedimento levava ao erro. Ao atacar a abstração, Berkeley sabia que também atacava certas características da linguagem. Em sua principal obra filosófica, a que foi referenciada na citação anterior, ele faz a seguinte ressalva para o uso inevitável da linguagem: Portanto, uma vez que as palavras podem impor-se ao entendimento, sejam quais forem as ideias que eu considere, esforçar-me-ei para empregá-las em sua pureza e simplicidade, afastando do meu pensamento, o mais que puder, os nomes estritamente ligados a elas pelo uso prolongado e constante. (BERKELEY, 2010, p. 53-54).

Compare agora com esses dois trechos do romance, dois momentos de reflexão do narrador sobre seu ofício de escritor: que mundialização é essa que não arruma um jeito de acabar com as línguas em troca de uma comunicação imediata, sem intermediação fonética, ou seja, pura expressão virtual? (NOLL, p. 27) mesmo sendo escritor, ouvia mais música do que abria livros; de uns tempos pra cá, não queria mais saber de romances, novelas, contos, muito embora os escrevesse. Quando sentia agora a necessidade da palavra, ia direto a algum poema. Pare ele, a poesia era o verbo em estado musical (NOLL, p. 32)

Aqui também vemos como a identificação com o filósofo é forte acerca do tema da linguagem. Na primeira e segunda parte do romance, esta é a concepção defendida conscientemente pelo narrador. Diferente do que pensa o narrador, a linguagem não é pura objetividade, ao contrário, pode ser cheia de ambiguidades. Quando o narrador diz “Eu sou Berkeley em Bellagio”, não há nenhuma ambiguidade. Mas quando o autor destaca este trecho e coloca-o no título do romance, aí a linguagem mostra toda sua riqueza. Quando o narrador quer controlar a linguagem, simplesmente não consegue escrever, um problema que ele não consegue resolver na primeira e segunda parte do romance. No texto de abertura temos outra ambiguidade: o momento que o narrador chama Berkeley de sensualista. Já sabemos que o filósofo dava primazia à percepção, ou seja, aos sentidos. Na verdade, Berkeley tem vários trabalhos sobre os sentidos, incluindo a Nova teoria da visão. Nesse sentido, podíamos entender “sensual”, a raiz de sensualista, como sinônimo de “sentido”. Mas, igualmente como acontece com o título do romance, também relacionado com sexualidade. Para fazer esta ponte, vamos recorrer novamente a Berkeley. A citação seguinte faz parte de um livro, escrito na forma de diálogos, que o filósofo — e também bispo da 273

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Igreja Anglicana — escreveu para defender a fé cristã. Neste diálogo, o personagem Euphranor é o porta-voz de Berkeley. 16. Lys. Mas por que precisamos recorrer ao julgamento de outros homens em um caso já tão elucidado? Apelo a seu coração, consulte-o, e então diga-me se o prazer sensível não é a virtude do homem. Euph. Eu, de minha parte, tenho com frequência pensado esses tais prazeres como da mais alta estima dos sensualistas, até de serem a mais nobre virtude, o que parece duvidoso, diante do todo, se eles eram algo bom de todo modo, algo mais que a mera remoção da dor. Não são nossos desejos os mais desconfortáveis de nossos apetites? Lys. Eles os são. Euph. Acaso o prazer sensual não consiste em satisfazê-los? Lys. Exato. Euph. Mas os anseios são tediosos, a satisfação momentânea. É ou não assim? Lys. É sim; mas daí então? Euph. Então, pois, deve-se perceber que o prazer sensual é nada mais que uma breve libertação de uma dor prolongada. Uma longa estrada de mal-estar que leva a um ponto do prazer, que termina em asco ou remorso." (Tradução de Eider Madeiros. Texto original e respectiva referência no rodapé).2

Aqui a ambiguidade mostra uma divergência entre o narrador e o filósofo. Berkeley defende veementemente a doutrina cristã sobre a sexualidade e com esse diálogo podemos fazer um contraste com o que o narrador pensa e faz sobre isso. Se ele se identifica com Berkeley sobre a linguagem, acontece o contrário sobre a sexualidade. O trecho a seguir encontra-se no meio da segunda parte do romance, e como tal, no meio do livro. Este trecho é um divisor de águas no romance e por isso faz-se necessário a sua citação completa. Além disso, o tema da religião, da morte e do desejo aparecem combinados aqui de forma única; e são estes temas que iremos discutir agora. Eu dizia que a noite anterior não se cumprira toda ainda, mas é urgente que tal se faça agora, de imediato, para toda a gente que me ouviu, me ouve, me ouvirá no relato que periga até se esfarinhar, sei lá — para todos poderem sentir que a vida noturna sempre se refaz, faz frio, não quero mais o anseio por um amante, o que quero mesmo é voltar ao cemitério dos monges medievais no porão da “Catedral” da Fundação Americana, capela do século XI — a Death Chapel como chamam aqui — pegar a minha lanterna, verificar se a pilha agüenta até a eternidade, tentar ser um deles, sim, e agora. Vou passando o foco pelas pinturas restauradas pela Fundação, passando pelas paredes anciãs desse porão; passo bem devagar diante de cada sepultura sem nenhum relevo, 16. Lys. But why need we have recourse to the judgement of other men in so plain case? I appeal to your own breast, consult that, and then say if sensible pleasure be not the chief good of man. / Euph. I, for my part, have often thought those pleasures which are highest in the esteem of sensualists, so far from being the chiefest good, that it seemed doubtful, upon the whole, whether they were any good at all, any more than the mere removal of pain. Are not our wants our appetites uneasy? / Lys. They are. / Euph. Doth not sensual pleasure consist in satisfying them? _/ Lys. It doth. / Euph. But the cravings are tedious, the satisfaction momentary. Is it not so? / Lys. It is; but what then? / Euph. Why then it should seem that sensual pleasure is but a short deliverance from long pain. A long avenue of uneasiness leads to a point of pleasure, which ends in disgust or remorse. (BERKELEY, 1901, p. 96-97) 2

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apenas encimadas por já pálidas pinturas de crânios, abaixo dois ossos cruzados em xis, não sei se de fêmures, antebraços, sei que ali não quero mais ninguém; deito no chão frio, a lanterna contra um nome desses mortos, não consigo ler, não importa, o que é um nome? e por que preciso dessa liturgia do avesso se não tenho ministério? — é, não represento nada; mas, por outro lado, por que a Fundação americana teria mais direitos do que eu na intimidade com esses ossos seculares, o que é o capital entre a aspereza fóssil onde imagino estar tocando aquém dessas paredes que não me metem medo, nada?; para que acumular tanto dinheiro se ninguém precisa dele nem de nada, sou apenas um escritor pretérito, me amanso, não quero criticar nada nem ninguém, sou sombra, nada mais me assusta, provoca minha ira, meu descontentamento. (NOLL, 2003, p. 49-50, negritos nossos)

Este trecho é o clímax da relação entre o narrador e o seu desejo, no qual vemos, pela primeira vez, o narrador dizer um “não” para o seu desejo. Para termos uma noção mais precisa da importância deste ato, precisamos perceber a relação do narrador com o seu desejo ao longo do romance. Logo na primeira página, o narrador constrói uma bela imagem desta relação: “um fluido indeciso, de repente inundado-o todo, sumindo de repente, sempre escorregando de sua própria mão que pretendia por vezes segui-lo, tocá-lo, fechá-lo entre os dedos — prendê-lo na boca… E ele então sorvia novamente, recomeçava o jogo” (NOLL, 2003, p. 9-10). Esse jogo ininterrupto e sem fim se materializava na sequência ininterrupta e sem fim de parceiros sexuais do narrador. Através de suas memórias e narrações, vemos como ele passa de um parceiro a outro sem pausa, preso ao “desejo incalculável por todos os homens e por aquela única mulher” (NOLL, 2003, p. 51). Essa obsessão provoca muita dor, além de o impedir de retornar ao homem que nunca esqueceu, Léo. Poderíamos, a partir de Susan Sontag, ligar a presença dessa obsessão a presença contínua da morte durante o romance. Afinal de contas, essa obsessão é mortífera: o tema da pornografia não é, em última instância, o sexo, mas a morte. Não pretende dizer que toda obra pornográfica fale, de forma aberta ou velada, da morte. Somente as obras que enfrentam essa inflexão específica e mais aguda dos temas da luxúria, do “obsceno”, é que o fazem. É para as gratificações da morte, sucedendo e ultrapassando as de Eros, que toda busca verdadeiramente obscena se dirige. (SONTAG, 2015, p. 70)

O narrador busca a morte, quer ser como um morto: sem desejo. Nessa linha de pensamento de Sontag e percebendo como a angústia de lidar com o seu desejo é o que organiza o romance, podemos compreendê-lo como pornográfico e como isso é relacionado com a morte. E mais, ainda se apoiando em Sontag, também podemos compreender a presença do discurso religioso: 275

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Não é de admirar, assim, que as formas novas ou radicalmente renovadas da imaginação total, que surgiram no século XIX (em especial aquelas do artista, do erotômano, do revolucionário de esquerda e do louco), tenham ofuscado de maneira crônica o prestígio do vocabulário religioso. E as experiências totais, de que existem muito tipos, tendem com frequência a ser apreendidas somente como revivescências ou traduções da imaginação religiosa. A busca de um novo modo de discurso, no nível mais sério, ardente e entusiástico, evitando a encapsulação religiosa, é uma das tarefas primordiais do pensamento futuro. (SONTAG, 2015, p. 79)

O narrador, que provavelmente estudou em um colégio de padres (“Por que era ele esse emissário de um mundo que os discursos dos padres condenavam ao silêncio sepulcral?” (NOLL, 2003, p. 23)), constrói inúmeras imagens relacionando estes vários temas ao longo do romance. Como Aquiles Brainier bem apontou acerca de outra cena: Nesse sentido, prazer sexual, êxtase religioso e prazer estético aparecem associados pelo escritor como experiências interconectadas. Quando recebe o sêmen de outro em sua boca, o narrador experimenta materialmente o significado da comunhão cristã: união, através da ingestão, com o corpo do outro. (Tradução nossa, original no rodapé).3

Ainda mais interessante é como ele subverte o discurso religioso para a construção do discurso pornográfico. O narrador chama o processo de colocar limites ao seu desejo de “liturgia do avesso”; dito de outra forma, ele usa os termos religiosos, os seus rituais, para realizar o seu contrário: ao invés da repressão do desejo — como faz Berkeley e a doutrina cristã — o narrador busca um modo de lidar com o seu desejo. Nesse sentido, é importante vermos as obsessões como criações dos indivíduos, ou nos termos de Joyce McDougall, soluções sexuais: Apesar das graves restrições e da compulsividade a que muitos inovadores sexuais estão sujeitos e apesar da imensa angústia e dos fatores capazes de ameaçar a vida que algumas vezes acompanham as práticas adictivas e neosexuais, temos de admitir que, por meio dessas tentativas de cura de si mesmos e desses objetivos de reparação de si mesmos, os impulsos destrutivos de Tânatos são agrilhoados, à medida que Eros triunfa sobre a morte. (MCDOUGALL, p. 230)

A partir deste momento na narrativa, várias mudanças acontecem. O narrador volta a sentir o seu corpo: “Sei que com toda a certeza de que estou de novo no meu corpo e e que ele dói, dói tudo o que tinha pra doer” (NOLL, 2003, p. 63). A reflexão predomina na terceira parte do romance e, com isso, a narrativa torna-se mais lenta, In this way, sexual bliss, religious ecstasy and aesthetic pleasure appear to be associated by the writer as interconnected experiences. When receiving the semen of the other in his mouth, the narrator can materially experience the significance of the Christian communion: union, through ingestion, with the body of the other. (BRAINIER, 2006, p. 222). 3

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com transições entre mais clara entre cena e memórias. Na verdade, na última parte, quase não há mais memórias. Ele consegue, pela primeira vez, no romance, planejar o seu futuro. Colocando limites na obsessão, ele consegue sua “imersão no tempo”. E junto ao aumento da reflexão, ele consegue voltar a escrever. Além de tudo isso, ele consegue voltar para aquele que ele nunca esqueceu. Já bem próximo ao final do livro, o narrador chega a seguinte conclusão: “Eu e Léo, porém, começávamos a compreender que o desejo em demasia enfraquece, paralisa, e que o melhor mesmo era a paciência, preparar o dia seguinte sem pensar nele como um esposo que necessariamente nos dará mais do que pedimos.” (NOLL, 2003, p. 95) Após esses comentários, podemos entender a cena que faz a transição entre a segunda e terceira parte. No momento em que está deixando o prédio da fundação a caminho do aeroporto, o narrador vê o ragazzo que ele recusou na mesma cena do porão, logo após o trecho que citamos: “O tesão reflorescia? Eu não era mais o fantasma de Berkeley que o vento frio de noites idas me assoprara? O fantasma de Berkeley estava mesmo era lá dentro, prisioneiro na “Catedral” da Fundação já vazia de scholars.” (NOLL, 2003, p. 78). Sua identificação com Berkeley representava a tentativa de racionalizar a sua obsessão. Ele buscava um modo de entender-se, mas não conseguia dessa forma. A sua solução foi encontrada no porão, não enterrando a si mesmo junto aos monges, mas enterrando um projeto racional de controle do desejo; e, ao contrário do controle, aceitou o seu desejo. REFERÊNCIAS BERKELEY, George. Pleasure mistaken [Alciphron]. In: The Works of George Berkeley. v. II. By A. C. Fraser. Oxford: Clarendon Press, 1901. p. 96-97. ______. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. In: Obras filosóficas. Tradução, apresentação e notas Jaimir Conte. São Paulo: Ed. UNESP, 2010. BRAINIER, Aquiles. Body, Corporeal Perception and Aesthetic Experience in the Work of João Gilberto Noll. Thesis. 260 f. 2006. King’s College. University of London. FLAGE, Daniel. George Berkeley. Tradução de Jaimir Conte. Disponível em: . Acesso em: 20 de jun 2016. MCDOUGALL, Joyce. As múltiplas faces de Eros: uma exploração psicoanalítica da sexualidade humana. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 277

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NOLL, João Gilberto. Berkeley em Bellagio. São Paulo: Francis, 2003. ______. O avesso do conhecimento (Depoimento). Correio Brasiliense. 10 de novembro de 2012. Disponível no site do autor. SONTAG, Susan. A imaginação pornográfica. In: A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ANAIS

Maria do Socorro Silva de Aragão Paulo Aldemir Delfino Lopes [Organizadores]

João Pessoa 2016

COORDENAÇÃO GERAL Profa. Dra. Maria do Socorro Silva de Aragão – UFPB/UFC/APL Profa. Dra. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa – PPGL/UFPB Prof. Dr. Damião Ramos Cavalcante – APL/FCJA Profa. Dra. Neide Medeiros Santos – UFPB/ALANE-PB/UBE-PB/AFLAP Profa. Especialista Ana Isabel de Souza Leão Andrade – ALANE-PB/UBE-PB Profa. Dra. Ivone Tavares de Lucena – UFPB

COMISSÃO CIENTÍFICA Profa. Dra. Maria Elias Soares – UFC Profa. Dra. Sônia Maria van Dijck Lima – UFPB Profa. Dra. Josete Marinho de Lucena – UFPB

EQUIPE DE TRABALHO Profa. Dra. Maria do Socorro Silva de Aragão Profa. Dra. Neide Medeiros Santos Profa. Esp. Ana Isabel de Souza Leão Andrade Profa. Dra. Ivone Tavares de Lucena Profa. Dra. Socorro de Fátima Pacífico Barbosa Profa. Dra. Josete Marinho de Lucena Profa. Dra. Marinalva Freire da Silva Profa. Dra. Fernanda Barbosa de Lima Prof. Dr. Jailto Luiz Filho Prof. MS. Paulo Aldemir Delfino Lopes Profa. MS. Clécia Maria Nóbrega Marinho João Paulo Rocha

Todos os textos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

Capa / Diagramação: Paulo Aldemir Delfino Lopes [email protected]

E86 José Lins do Rego e a epopeia rural do Nordeste – Anais do III Congresso Nacional de Literatura: - III CONALI. / ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de; LOPES, Paulo Aldemir Delfino (Orgs.). João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora Ltda., 2016. 1427p. ISBN: 978-85-7320-078-2 Literatura Brasileira –Rego, José Lins do. CDU: 869.0

Impresso no Brasil – Feito o Depósito Legal

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