Jorge, amado e bem vivo no coração dos jovens

August 20, 2017 | Autor: Susana Ventura | Categoria: Children's and Young Adult Literature, Jorge Amado
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Jorge, amado e bem vivo no coração dos jovens Susana Ramos Ventura Há vários anos acompanho o repertório de literatura exigido para os exames de acesso às universidades públicas de São Paulo. Mais do que isso, a cada ano releio, penso em aproximações e converso com os jovens aspirantes a uma das cobiçadas vagas. No mais das vezes, os alunos estão angustiados, pressionados por demandas de domínio de conteúdo e pela necessidade de escolher, tão cedo, a carreira. Nesse contexto trabalhar o repertório de nove títulos constitui um desafio que enfrento com a aguda impressão de que pode ser a última oportunidade de contato daqueles leitores com um elenco de obras que pode lhes dar (ou não) um retrato da literatura do Brasil como continuum/ renovação/ diálogo com a literatura portuguesa e, por consequência, ajudá-los a pensar, ao longo dos anos, sobre os caminhos do Brasil e a circunstância de ser brasileiro. Durante alguns desses anos, a lista começava por Auto da barca do Inferno¸ de Gil Vicente e terminava na Antologia poética, de Vinícius de Moraes, constituindo Capitães da areia, numa das ‘escalas’ do trajeto que, do início do século XVI até a metade do século XX, possibilitava pensar em muitas questões cruciais da sociedade, cultura e literatura brasileira (sempre em sua perspectiva de ramo da literatura portuguesa). Curiosamente, após o percurso, as paixões se polarizavam, sendo Gil Vicente e Jorge Amado (por vezes acompanhados de Graciliano Ramos) os autores mencionados como sendo aqueles que falavam mais diretamente com aqueles leitores. Mas algo importante precisa ser dito de pronto: a adesão e identificação com a obra amadiana costuma ser imediata e sua compreensão profunda não carece da mediação primeira do professor, tão necessária para introduzir, entusiasmar, conduzir o caminho para as demais obras do repertório. Capitães da areia é amado imediatamente. O diálogo dessa obra com o jovem do século XXI é transparente e sua agilidade, impressionante, mais de setenta anos após sua primeira publicação. O jovem Jorge Amado, que publicou Capitães da areia aos 25 anos para, no mesmo ano de 1937,ver várias de suas obras serem queimadas em praça pública, continua vivo, jovem, compreendido e amado pelos jovens do presente, que se entusiasmam e emocionam na leitura do romance. A chave de entrada na obra não precisa ser dada por ninguém: o jovem leitor entra sozinho nela, que fala com ele e

narra parte da vida que ele vive hoje e que o interessa sobremaneira. Aquelas personagens que se recusam a obedecer a uma ordem repressora - que as expulsa e exclui previamente - conversam de igual para igual com o jovem leitor contemporâneo. O acompanhamento das primeiras páginas do romance - em que se emulam notícias de um jornal onde aparecem justapostos opiniões, cargos, marchas e contramarchas de discursos que se bricolam para dirigir aquela sociedade a tomar o partido da ordem e dos bons costumes contra os bandidos mirins que rejeitam o bom caminho - impacta o leitor de Capitães da areia, que adentra a narrativa já alerta e pleno do desejo de conhecer (e da predisposição de amar) os ‘capitães’. Ao pensarmos na obra do jovem Jorge Amado, vale a pena lembrarmos a opinião lúcida e iluminadora de Ana Maria Machado: Na obra daquele menino que antes dos vinte anos começava a publicar seus romances, havia desde o início um ouvido atento e um olhar agudo, ao lado da solidariedade, sensível à dor do outro. Esses personagens que ele nos traz falam e se comportam igualzinho a nossa gente comum, como ninguém ainda tinha falado e se comportado em nossos romances. Provavelmente, tal feito ajuda a explicar a profunda empatia que ele logo estabelece com seu público, a cumplicidade que se tece de imediato entre autor, personagem e leitor. É uma façanha pioneira da linguagem, como poucos tinham conseguido antes. Com essa intensidade, talvez apenas Lobato (MACHADO, 2006, p. 32).

“Ouvido atento”, “olhar agudo”, “solidariedade”, sensibilidade para com a dor alheia – o elenco de características da escrita do jovem Jorge Amado tão bem colocado por Ana Maria Machado, parece combinar muito bem com a juventude que, ao longo dos anos, vem se emocionando com Capitães da areia. Normalmente plenos de sonho, sensíveis e com força para mudar as coisas, os jovens leitores acompanham a trama e costumam comentar emocionados as trajetórias dos vários capitães. Ali temos a vida da infância abandonada descrita com as cores de uma paleta variada. Emocionando sempre, Jorge Amado nos apresenta o mundo cindido entre marginais e bem nascidos, entre pobres e ricos. A ordem estabelecida, repressora e cruel – espelhando a do Estado Novo – massacra os órfãos e os filhos dos bolsões da miséria baiana, empurrando-os para as ruas e para os escombros de moradias onde se refugiam. As trajetórias de muitos deles convergem para o trapiche abandonado, cidade de meninos sob o comando de Pedro Bala, o chefe do bando, menino heroico que deve seu apelido à bala que matou seu pai. Belo, indômito, honrado, Pedro Bala provará seu valor durante a narrativa, em

cenas inesquecíveis para seus leitores, como aquelas passadas na prisão - duras provas para o herói, que se afirma contra a injustiça, a corrupção e a crueldade. Bem trabalhadas estão as tensões entre as trajetórias individuais e o coletivo representado pelo grupo. Será a solidariedade ao grupo que moverá Sem-pernas a abrir mão de sua felicidade individual, mesmo que depois sucumba diante da angústia da própria existência sem saída. A várias outras personagens são oferecidas oportunidades de vida plena que passam ao largo do conflito individual/coletivo: Pirulito, com sua vocação religiosa, encontra na fé sua saída; Volta-Seca, aficionado por Lampião e seu bando, une-se ao cangaceiro e se torna um fora-da-lei; Pedro Bala se tornará líder sindical; João José, o “professor”, passará de leitor da comunidade de meninos a artista plástico de projeção internacional. Chama a atenção o ecletismo de Jorge Amado nessa escolha de trajetórias em que a fé, a luta e o labor artístico se equiparam e equilibram: todas essas saídas são boas e legítimas, todos os que as escolhem são dignos e honrados. A vocação de cada um desses menino, manifestada ainda na infância, os carrega para a redenção. Muitos, no entanto, são os que perecem: Sem-pernas, pelo suicídio, Dora, levada pela doença; e vários outros enveredam pela malandragem e pelo crime. No mais das vezes, como no restante da obra amadiana, recebem todos a bênção de seu criador e compõem uma galeria de tipos inesquecíveis, plenos de humanidade e doçura em suas relações pessoais. Em Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de 1992, Jorge nos diz: “Sei [...], de ciência certa, existir nas páginas que escrevi, nas criaturas que criei, algo imperecível: o sopro de vida do povo brasileiro. Não carrego vaidade, presunção, e sim, orgulho.”(AMADO, 2012, p. 305, itálicos indicados pelo autor). O “povo brasileiro” que comparece às páginas de Capitães da areia tem cor e raça bem definidos: são mulatos, negros, loiros, amarelos, brancos. A questão da “raça” é especificamente bem marcada nessa obra de Amado. Pedro Bala é branco (mais do que isso, loiro), bem como Dora (neta de italiano misturado com mulata), e são eles os protagonistas e casal central/mítico. O melhor amigo de Pedro Bala, seu guardião, é João Grande: negro, “capoeirista” e de grande coração; Pirulito, envolto via de regra em transe místico, é amarelo; Boa-Vida, o homossexual que se tornará malandro, é um “mulato troncudo e feio”, sendo seu parceiro sexual, o Gato, futuro explorador de mulheres, um tipo “alvo e rosado”. Especialmente João Grande, o braço direito de Pedro

Bala é constantemente referido como “negro” na narrativa. Além disso, seu ponto forte é exatamente a força física, e no mais, é descrito como pouco inteligente, sem habilidade para planejar golpes ou compreender a leitura à qual Professor se dedica. Sua cabeça “doí” se tem que pensar... E isso dá o que pensar hoje: esta divisão de personagens em que o casal protagonista é formado por rapaz e moça loiros (ela mestiça “mas” de cabelo “muito loiro”), o melhor amigo do protagonista é negro (e pouco inteligente), o homossexual ativo é um “mulato troncudo e feio”, enquanto o passivo é “alvo e rosado”. Se a ninguém em sã consciência poderia ocorrer ser Jorge Amado racista, é preciso procurar no espírito do tempo e das narrativas possivelmente lidas pelo criador Jorge Amado como se dava a qualificação/ descrição racial. O próprio repertório pedido nos exames de acesso ao vestibular de anos recentes traz, para comparação em sala de aula, O cortiço, de Aluísio Azevedo, um escritor antecessor de Jorge Amado. E naquele romance aparece também a descrição bem marcada das personagens, divididas em: brancos (portugueses de um lado, brasileiros de outro), negros e - perdição das perdições - mulatos (Rita Baiana é mulata). Perdido (aparentemente) o determinismo que norteava o naturalista O cortiço, resta, no entanto, em produções bem posteriores, como Capitães da areia, a divisão entre ‘mocinhos’ loiros e coadjuvantes morenos...e a suspeita continua presente quando o mestiço entra em cena. Os jovens leitores de Capitães da areia dificilmente trazem a questão racial para as discussões em sala de aula, mas, uma vez alertados para sua existência, fazem contribuições interessantes, pensam no repertório que estão analisando, comparam, e, via de regra concluem, favoravelmente a Amado, que o escritor, naquele momento, estava preso também a esquemas narrativos e sociais que lhe passavam despercebidos. Bom exercício crítico, de comparação a modelos prévios e observação de romances publicados em décadas posteriores à de trinta, com laçadas firmes para o presente dos anos 2000. Nos debates em torno de Capitães da areia as questões contemporâneas de racismo no Brasil são discutidas e os argumentos costumam ser instigantes e enriquecedores. Jorge Amado segue amado e vivo no coração dos jovens de hoje. Profundamente humano sempre, Jorge Amado em Capitães da areia continua a apaixonar e provocar discussões. Gostaria de terminar citando o próprio Jorge, uma vez mais em Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, em declaração tão bela quanto reveladora do que realmente importava para o escritor:

Onde quer que eu chegue, nas comarcas do mundo, províncias e metrópoles, vilarejos, encontro mesa posta e escuto uma palavra amiga. Alguém me diz: “Li teu livro, companheiro, ri e chorei, me comovi. Tereza Batista mudou minha vida. Pedro Archanjo me ensinou o pensamento livre, a pensar por minha cabeça, aprendi com Quincas a não ser o outro e, sim, eu próprio, com o comandante Vasco Moscoso de Aragão troquei o medíocre pelo sonho, aprendi o amor com Gabriela e dona Flor dele me deu a medida exata: mais poderoso do que a morte. És escritor porque eu existo, teu leitor: chorei e ri, me emocionei ao ler teu livro”. Onde quer que eu chegue tenho mesa posta e alguém me diz uma palavra amiga. Esse o prêmio, a razão e o compromisso. (AMADO, 2012, p. 289, itálicos indicados pelo autor)

Bibliografia: AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das letras, 2008. AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. São Paulo: Companhia das letras, 2012. MACHADO, Ana Maria. Romântico, sedutor e anarquista: como e porque ler Jorge Amado hoje. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

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