JORNALISMO E TECNOLOGIAS DIGITAIS x produção, qualidade e participação

June 22, 2017 | Autor: Lilian França | Categoria: Jornalismo Digital, Novos Media, Media e Jornalismo, Jornalismo Online
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JORNALISMO E TECNOLOGIAS DIGITAIS x produção, qualidade e participação

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE REITOR Angelo Roberto Antoniolli VICE-REITOR André Maurício Conceição de Souza EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE COORDENADORA DO PROGRAMA EDITORIAL Messiluce da Rocha Hansen COORDENADOR GRÁFICO Vitor Braga CONSELHO EDITORIAL Adriana Andrade Carvalho Antonio Martins de Oliveira Junior Aurélia Santos Faraoni Ariovaldo Antônio Tadeu Lucas Satie Katagiri

Ubirajara Coelho Neto José Raimundo Galvão Luisa Helena Albertini Pádua Trombeta Mackely Ribeiro Borges Maria Leônia Garcia Costa Carvalho

PROJETO GRÁFICO Alana Gonçalves de Carvalho Martins EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Débora Santos Santana CAPA Jean Carlo da Silva IMAGEM DA CAPA Cristina Pollesel REVISÃO ORTOGRÁFICA Acássia Araújo Barreto

Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos” CEP 49.100-000 – São Cristóvão – SE. Telefone: 2105 – 6922/6923. e-mail: [email protected] www.editora.ufs.br Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita da Editora. Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

JORNALISMO E TECNOLOGIAS DIGITAIS x produção, qualidade e participação

Carlos Eduardo Franciscato Josenildo Luiz Guerra Lilian Cristina Monteiro França Organizadores

São Cristóvão – Sergipe 2015

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE Jornalismo e tecnologias digitais : produção, qualidade e participação / J82j

Carlos Eduardo Franciscato, Josenildo Luiz Guerra, Lilian Cristina Monteiro França, organizadores. – São Cristóvão : Editora UFS, 2015. 204 p. Disponível em: ISBN 978-85-7822-510-0 1. Jornalismo – Inovações tecnológicas. 2. Jornalismo eletrônico. 3. Comunicações digitais. I. Franciscato, Carlos Eduardo. II. Guerra, Josenildo Luiz. III. França, Lilian Cristina Monteiro. CDU 070:004

AGRADECIMENTOS

Ao PPGCOM/UFS, em especial aos professores doutores, Raquel Marques Carriço e Noel Santos Carvalho, pela leitura e elaboração do parecer para a publicação e ao assistente administrativo Danilo Santos Oliveira pelo apoio, gentileza e responsabilidade. À Acássia Barreto pela revisão, compromisso e parceria no fechamento da versão final. À artista plástica Cristina Pollesel por ter autorizado a utilização de sua obra na capa do livro. À POSGRAP/UFS, na pessoa de Marcus Eugênio Oliveira Lima e à Editora da UFS, na pessoa da sua coordenadora, professora doutora Messiluce Hansen, pela oportunidade de publicação deste livro.

SUMÁRIO

Apresentação y 11

JORNALISMO E TECNOLOGIAS DIGITAIS

Parte I y 16

JORNALISMO E TECNOLOGIA

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y

Teorias sociais sobre a tecnologia e os estudos de jornalismo digital Carlos Eduardo Franciscato

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y

Por uma abordagem narrativa do fotojornalismo contemporâneo Greice Schneider

Parte II y 67

JORNALISMO, PRODUÇÃO E QUALIDADE

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y Bases conceituais para um Sistema Informatizado de Gestão da Produção Jornalística com foco na qualidade editorial

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y Qualijor - sistema de gestão da produção jornalística: conceito e testes de funcionalidade para fins de avaliação de qualidade editorial

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Josenildo Luiz Guerra Lucas Santos Vieira

y Modelos de negócios para a internet e o financiamento da indústria jornalística

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Josenildo Luiz Guerra

Lilian Cristina Monteiro França

y Jornalismo e dispositivos móveis: um estudo sobre os aplicativos de notícias do UOL, Estadão e O Globo

Carol Correia Santana Carlos Eduardo Franciscato

Parte III y 160 161

JORNALISMO E PARTICIPAÇÃO y Experiências conversacionais do leitor de notícias no jornalismo digital

180

Eneida Trindade

y O Mídia Ninja como “mídia radical”: um estudo sobre o uso do Facebook durante as manifestações de 2013

Marcela Prado Mendonça Eloy Santos Vieira

y 201

AUTORES y Carlos Eduardo Franciscato y Greice Schneider y Josenildo Luiz Guerra y Lilian Cristina Monteiro França y Eneida Trindade y Eloy Santos Vieira y Marcela Prado Mendonça y Carol Correia Santana y Lucas Santos Vieira

APRESENTAÇÃO Jornalismo e tecnologias digitais

O jornalismo foi uma das atividades profissionais que mais se transformou com a disseminação social das tecnologias digitais. Para citar apenas alguns aspectos, pode-se mencionar a perda do monopólio da produção do conteúdo, que gera disputa por audiência com outros sites e redes sociais que produzem e circulam informação; a interatividade com o leitor, através do recurso de comentários; a alteração nos padrões de narrativa, com a perda da linearidade e a maior autonomia do usuário em construir seu percurso de leitura; a ampliação dos espaços para a divulgação de conteúdo; a reconfiguração dos padrões de produção, com o ritmo ditado pela atualização contínua; a crise do modelo de financiamento, que viu sua principal fonte de renda – a publicidade – migrar para outros espaços do imenso mundo virtual. Todos esses aspectos – e existem outros, muitos outros – impuseram desafios de adaptação da atividade jornalística para fazer aquilo que é o seu objetivo básico, produzir notícias e informar às pessoas; ao mesmo tempo, abriram imensas possibilidades para enriquecer o portfólio de serviços e produtos oferecidos a suas audiências e à sociedade. Desse enredo complexo, resulta um cenário de incertezas para o jornalismo. Não há fórmulas e modelos seguros, livres do risco da obsolescência iminente, e surgem potencialidades inexploradas, que abrem novas perspectivas e caminhos para uma atividade em crise.

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Neste livro, Jornalismo e Tecnologias digitais: produção, qualidade e participação, os autores, em sua maioria, ligados ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe, procuram explorar os desafios do jornalismo nesse momento “de crise”, a partir de diferentes e inovadoras perspectivas. Ora abordando temas e questões pouco exploradas na literatura da área, ora trazendo novos enfoques sobre assuntos já consolidados na agenda de pesquisa do campo. Os autores são vinculados a três grupos de pesquisa da Instituição, Laboratório de Estudos em Jornalismo (Lejor), Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Tecnologia (Nuca) e Comunicação Economia Política e Sociedade (Obscom) e a dois grupos externos: Grupo de Pesquisa em Análise da Fotografia e das Narrativas Visuais e Gráficas (GRAFO/NAVI – UFF) e Grupo de Pesquisa em Poéticas Fotográficas - UFOP. Os trabalhos refletem resultados finais ou parciais dos projetos de pesquisa em andamento no PPGCOM, apresentando um quadro significativo de como o jornalismo e suas relações com as tecnologias digitais têm sido estudados no programa. O livro está dividido em três partes. Na Parte I, Jornalismo e Tecnologia, são desenvolvidas reflexões essencialmente de natureza teórica, a fim de explorar aspectos conceituais implicados nas relações entre as potencialidades eminentemente jornalísticas e as potencialidades tecnológicas. No capítulo que abre o livro, Carlos Eduardo Franciscato, em “Teorias sociais sobre a tecnologia e os estudos de jornalismo digital”, a partir do cruzamento entre abordagens teóricas sobre jornalismo e tecnologia que situem as dimensões sociais de ambos, procura “clarear fatores estruturantes do jornalismo digital, ao demonstrar a configuração sociologicamente perspectivada da tecnologia na composição dessa nova dimensão do jornalismo”.

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x APRESENTAÇÃO

Greice Schneider, no capítulo 2, intitulado “Por uma abordagem narrativa do fotojornalismo contemporâneo”, elabora um breve diagnóstico sobre as muitas crises que as mudanças tecnológicas têm trazido à fotografia e ao fotojornalismo, “à luz do potencial narrativo da imagem fixa”. Dividida em três momentos, sua análise vai apontar alternativas baseadas na “abordagem plural da fotografia, em especial, no agenciamento narrativo entre diversas fotos de diversas fontes”. Na Parte II, Jornalismo, Produção e Qualidade, o enfoque está nas condições tecnológicas que passam a constituir o ambiente no qual o jornalismo se realiza, os impactos e as potencialidades decorrentes, para a gestão das organizações jornalísticas, dos processos de produção e de distribuição dos conteúdos, assim como de sua qualidade. No capítulo 3, “Bases conceituais para um Sistema Informatizado de Gestão da Produção Jornalística com foco na qualidade editorial”, Josenildo Luiz Guerra apresenta os fundamentos teóricos ligados à gestão do conhecimento, à teoria das organizações, a métodos de apoio à decisão e aos processos que levaram ao desenvolvimento de um protótipo de sistema informatizado de gestão da produção jornalística a partir de indicadores de qualidade editorial. O tema é retomado no capítulo 4, “Qualijor - sistema de gestão da produção jornalística: conceito e testes de funcionalidade para fins de avaliação de qualidade editorial”, no qual Josenildo Luiz Guerra e Lucas Santos Vieira expõem os primeiros resultados de testes do Sistema de Gestão da Produção Jornalística (SGPJ), o protótipo de sistema desenvolvido pela equipe, para avaliar o seu desempenho em relação aos recursos que oferece para gestão do conhecimento, apoio à decisão e avaliação de qualidade dos produtos jornalísticos. Lilian Cristina Monteiro França, no capítulo 5, “Modelos de negócios para a internet mais aplicados no financiamento da indústria jornalística”, analisa três opções do setor para financiar a sua atividade – o modelo da “cauda longa”, o paywall e o crowdfunding

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– em função da necessidade de buscar alternativas aos formatos de negócios tradicionais, impactados pela perda da receita publicitária que migrou para outros espaços na internet. Em “Jornalismo e dispositivos móveis: um estudo sobre os aplicativos de notícias do UOL, Estadão e O Globo”, capítulo 6, Carol Correia Santana e Carlos Eduardo Franciscato analisam as características desses novos produtos a partir dos seus “sistemas de organização, navegação, nomeação e busca”. Concluem que funcionalidades intrínsecas ao jornalismo digital, ora são incluídas, ora são limitadas nos aplicativos, e destacam a necessidade de desenvolver formatos que melhor aproveitem as potencialidades desses dispositivos. A terceira e última parte do livro, Jornalismo e Participação, é dedicada a experiências protagonizadas por atores que não teriam o espaço que têm não fosse a disseminação social dos recursos e das tecnologias digitais. Eneida Trindade, no capítulo 7, “Experiências conversacionais do leitor de notícias no jornalismo digital”, propõe “uma reflexão acerca do reposicionamento do leitor em relação às organizações jornalísticas no ambiente do webjornalismo, destacando o caráter interacional desse formato”. Para isso, aborda a experiência conversacional do leitor sob duas perspectivas, como “processo interacional” e como “movimento interativo”, no intuito de compreender as mudanças do reposicionamento do leitor. Em “O Mídia Ninja como “mídia radical”: um estudo sobre o uso do Facebook durante as manifestações de 2013”, capítulo que encerra o livro, Marcela Mendonça Prado e Eloy Santos Vieira analisam como o Mídia Ninja utilizou a sua página no Facebook para a cobertura das manifestações populares no Brasil, ocorridas em 2013, explorando aspectos, como o engajamento (envolvimento da audiência), os principais temas abordados e as localizações as quais os conteúdos se referem.

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x APRESENTAÇÃO

As relações entre jornalismo e tecnologias digitais, nas diferentes e complementares abordagens trazidas no livro, apresentam o esforço empreendido pelos estudos realizados no âmbito PPGCOM, em seus respectivos grupos de pesquisa. Os trabalhos apresentados procuram explorar questões, problemas e alternativas ainda pouco desenvolvidas no campo, com o intuito de oferecer uma contribuição própria, que caracterize as linhas de investigação conduzidas no programa. Carlos Eduardo Franciscato Josenildo Luiz Guerra Lilian Cristina Monteiro França (Organizadores)

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Parte I y JORNALISMO E TECNOLOGIA

TEORIAS SOCIAIS SOBRE A TECNOLOGIA E OS ESTUDOS DE JORNALISMO DIGITAL Carlos Eduardo Franciscato

Introdução Ana Regner (1999, p. 131-2), ao analisar a obra de Ian Hacking, The Social Construction of What (1999), considera pertinente a descrição que o autor faz de três classes de fenômenos que podem ser considerados “socialmente construídos”: os objetos, as ideias e as palavras. É a partir desta identificação e do esforço para caracterizar a perspectiva construcionista que Hacking estabelece relações e diferenças entre as ciências sociais e naturais. Segundo Regner, “... sua análise permite sustentar que algo possa ser tanto ‘real’ como ‘socialmente construído’, sem que para tanto todo objeto seja apenas um ‘constructo social” (REGNER, 1999, pg. 132). A abordagem construcionista como perspectiva teórico-metodológica de análise, ao ser aplicada nos estudos sobre a tecnologia (conforme a nomenclatura “Construção Social da Tecnologia” – SCOT, derivada do expressão em língua inglesa social construction of technology) indica uma linha de trabalho fecunda para superar um clássico distanciamento entre duas tradições: de um lado, a perspectiva das ciências humanas e sociais e, de outro, a abordagem sobre a tecnologia, suas aplicações e seus produtos. Iremos, neste artigo, privilegiar a

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perspectiva construcionista para conduzir nossa reflexão, mas inserida em um conjunto de correntes nas ciências sociais que têm tentado investigar as inter-relações entre fenômenos sociais e tecnológicos. Entendemos que, por este caminho, conseguiremos avançar na formulação de um pensamento que estimule a compreensão das relações entre dois tipos de fenômenos, os quais tipificaríamos com a mesma diferença utilizada anteriormente: o jornalismo, com sua característica eminentemente sociocultural; e a tecnologia, como expressão de uma materialidade e racionalidade técnica. Esta tipificação é, por si, esquemática e artificial, embora parte dos estudos em comunicação e jornalismo tenha transitado predominantemente por uma ou outra vertente para perceber fenômenos experimentados em décadas passadas. No entanto, a condição atual da sociedade, baseada em um paradigma de tecnologia da informação, aponta para uma “penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias” (CASTELLS, 1999, p. 78). As tecnologias de digitalização crescente de dados e produtos simbólicos e de interligação da sociedade em redes de comunicação vêm marcando um novo modelo informacional de estrutura e organização social. Entretanto, não é apenas com o surgimento dessas novas configurações e experiências tecnológicas da sociedade e a sua crescente penetração nas relações e práticas sociais nas últimas décadas que as ciências humanas começaram a se debruçar sobre este fenômeno. Feenberg (2003) lembra que, na Grécia antiga, a reflexão sobre a tecnologia já existia nas origens da filosofia Ocidental: “A filosofia começa interpretando o mundo em termos do fato fundamental de que a humanidade é um tipo de animal que trabalha constantemente para transformar a natureza” (FEENBERG, 2003, p. 2). Esta perspectiva direcionaria a compreensão da filosofia sobre a relação entre homem e tecnologia ao longo dos séculos. Por se tratar hoje de uma dimensão estruturante do jornalismo, a tecnologia (como um conjunto articulado, coerente e complexo

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de técnicas) vem afetando particularmente a prática jornalística de formas e intensidades diferentes conforme as fases de seu desenvolvimento. Indícios da presença dessa técnica como ferramenta estrutural da atividade em estudos descritivos e reflexivos sobre o jornalismo sinalizam seu aparecimento no mesmo ambiente histórico de formação do jornalismo a partir do século XVII (FRANCISCATO, 2005). Jorge Pedro Souza (2007) localiza, em intelectuais a partir do século XVII, uma abordagem das transformações que a sociedade passou com o surgimento do jornalismo e a necessidade de sua compreensão e crítica como fenômeno e discurso. Beatriz Marocco e Christa Berger (2006; 2008) conseguiram reunir, em dois volumes, um compêndio de textos clássicos de pensadores do início do século XX que fundamentaram uma compreensão teórica sobre o jornalismo. O pensamento acadêmico e sistemático sobre o jornalismo surgiu de forma consistente há mais de um século, a partir de contribuições de diferentes disciplinas científicas. Na sistematização de Löffelholz e Rothenberger, as bases do pensamento sobre jornalismo tem origens multidisciplinares: “A grande quantidade e a heterogeneidade de abordagens teóricas que se desenvolveram devido à relevância crescente da pesquisa em comunicações no mundo inteiro dificultam dar uma visão global dos fundamentos teóricos dos estudos de jornalismo” (LÖFFELHOLZ e ROTHENBERGER, 2011, p. 9-10). Ao mesmo tempo, é possível perceber, na visualização proposta pelos autores, um crescimento das ciências sociais como uma disciplina central na sedimentação de abordagens teóricas sobre o jornalismo, utilizadas para compreender a presença do jornalismo nas formas sócio-político-culturais de organização e gestão de parte da vida pública contemporânea. Em compensação, formulações oriundas, por exemplo, das ciências da linguagem, as quais investigam o jornalismo como discurso e narrativa, estão ausentes no esquema dos

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autores. Em grau semelhante, os pesquisadores evitam cruzar essas disciplinas humanísticas com perspectivas de abordagem tecnológica. Interessa-nos salientar que, com a reconfiguração do jornalismo em consequência da digitalização e das redes de comunicação online, o jornalismo demanda ser pensado com o aporte de novas disciplinas e metodologias (NOCI e PALACIOS, 2008), a fim de dar conta de suas novas dimensões. Com esse contexto tecnológico estruturador das práticas, amplia-se a consolidação de uma nova modalidade de atividade jornalística, a qual denominamos de jornalismo digital, termo simples para incorporar as determinações presentes em outras nomenclaturas: webjornalismo, ciberjornalismo, jornalismo on-line etc. O jornalismo digital tem se constituído em um dos exemplares objetos de estudo por: possuir complexidade do fenômeno; articular disciplinas humanísticas, computacionais e aplicadas; apresentar um diagnóstico mínimo comum sobre as transformações em curso; a especificidade de seus objetos de pesquisa demandar formas específicas de aplicação de metodologias de pesquisa; e estimular o diálogo entre, por um lado, pesquisas de diagnóstico e mapeamento (descritivas) e, por outro, pesquisas de desenvolvimento de processos e produtos (aplicadas). A literatura produzida sobre jornalismo digital nos últimos anos tem descrito como a tecnologia “trouxe mudanças radicais para o jornalismo e as instituições que ele serve” (PAVLIK, 2011, p. 94). Estas mudanças afetam, é claro, não somente o jornalismo, mas as tecnologias que estruturam as redes digitais on-line (incluindo a sua versão mais recente, os dispositivos móveis), que tem se tornado a espinha dorsal das sociedades contemporâneas, conforme Castells (2003). O autor produz uma das mais detalhadas descrições sobre uma mudança tecnológica estrutural da sociedade, que é a formação

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de redes de comunicação1 que reorganizam interações sociais em campos tão diversos quanto a economia, a política e a cultura. Este modelo tem um potencial explicativo para descrever processos comunicacionais abertos e dinâmicos que, ao mesmo tempo, preservam o equilíbrio do sistema, como é o caso das redes de computadores como a internet e o intenso fluxo de dados trocados entre instituições separadas geograficamente (CASTELLS, 1999, p. 498). A constatação dessa presença acentuada da tecnologia reconfigurando o jornalismo traz-nos o desafio de revisitar também as teorias que fundamentam os estudos do campo de pesquisa. Se a tecnologia é um elemento estruturador crescente da atividade jornalística, em que grau essa presença indica a necessidade de rever os modos de pensar o jornalismo? O questionamento indica, então, uma intenção de investigar de que formas as tecnologias contemporâneas de comunicação estão demandando uma reformulação nas teorias que se constituíram no século XX para descrever e interpretar o jornalismo como ele se manifestava nas mídias tradicionais, massivas, unidirecionais, analógicas e diferenciadas entre meios clássicos (jornal, revistas, rádio e televisão). Este movimento não se instaura somente no nível dos quadros teóricos, mas é também uma demanda do objeto de pesquisa. Mais especificamente, o fenômeno das redes digitais, por sua complexidade e multidimensionalidade, é um objeto de estudo que opera no âmbito de “zonas cinzentas entre disciplinas” (MORVILLE e ROSENFELD, 2006, p. 9). Pensar a experiência do jornalismo em redes digitais estimula novas aproximações entre áreas de conhecimento diversas

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“Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta. Concretamente, o que um nó é depende do tipo de redes concretas de que falamos: rede dos fluxos financeiros globais, rede política que governa a União Europeia, rede de tráfico de drogas, rede global da nova mídia” (CASTELLS, 1999, p. 498).

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tanto na compreensão dos fenômenos quanto na indicação de novas formas e experiências possíveis. Acreditamos que as ciências sociais fornecem ferramentas conceituais para dar sustentação a esse movimento analítico de reconsideração do pensamento sobre o jornalismo, cuja atividade está em ampla reconfiguração devido à tecnologia e as redes digitais. Se, nas décadas passadas, as ciências sociais tiveram uma presença dominante na construção do conhecimento acadêmico sobre o jornalismo, principalmente na definição de vários modelos de estudo do jornalismo, optamos por utilizar esse aporte teórico para considerar a tecnologia a partir de seus próprios fundamentos sociais. Ou seja, investigar a tecnologia articulada a fatores e contextos sociais que a configuram. Pretendemos que, com tal abordagem, seja possível compreender a tecnologia não como fenômeno ou fator isolado que intervém em um jornalismo imerso nas teorias sociais e o desfigura teoricamente, mas permitir olhar qualitativamente o grau de combinação e transformação entre a tecnologia (sociologicamente perspectivada) e o jornalismo como fenômeno sociologicamente construído. Portanto, esse artigo busca realizar uma investigação teórica sobre uma bibliografia de referência em jornalismo e tecnologia que situem dimensões sociais de ambos e, a partir destes quadros teóricos, executar um esforço de revisão, sistematização e indicação de formas de aproximação conceitual. Executaremos então a identificação do cruzamento dessas duas bases sociológicas na consideração do jornalismo digital. Neste cruzamento, pretendemos clarear fatores estruturantes do jornalismo digital ao demonstrar a configuração sociologicamente perspectivada da tecnologia na composição dessa nova dimensão do jornalismo.

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As abordagens sociais sobre a tecnologia Estudos nas áreas de ciências humanas e sociais aplicadas têm se dedicado a formular uma definição mais precisa sobre o que consideramos tecnologia e em que grau ela se diferencia qualitativamente das técnicas e do próprio ato humano de produção e dominação técnica da natureza. Mais do que uma definição, a tecnologia demanda uma perspectiva histórica de compreensão, articulada às formas de produção e reprodução do social, percebendo imbricamentos, interações e interdependências. Veraszto et alii (2008, p. 67) identifica a presença de diferentes noções de tecnologia na literatura acadêmica e técnica sobre C&T, o que tem favorecido “uma imagem da evolução tecnológica que mantém o dilema, errôneo, da eficiência interna x interferência externa”. Após realizar um panorama dessas diferentes noções, os autores propõem, como conceito de tecnologia conjunto de saberes inerentes ao desenvolvimento e concepção dos instrumentos (artefatos, sistemas, processos e ambientes) criados pelo homem através da história para satisfazer suas necessidades e requerimentos pessoais e coletivos. O conhecimento tecnológico é o conhecimento de como fazer, saber fazer e improvisar soluções, e não apenas um conhecimento generalizado embasado cientificamente. Para a tecnologia é preciso conhecer aquilo que é necessário para solucionar problemas práticos (saber fazer para quê), e assim, desenvolver artefatos que serão usados, mas sem deixar de lado todo o aspecto sócio-cultural em que o problema está inserido (VERASZTO et alii, 2008, p. 78).

Investigações sociais em ciência e tecnologia têm procurado compreender, sob a perspectiva de disciplinas ou cruzamentos dis-

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ciplinares, a constituição dos processos tecnológicos e suas relações com formas, estruturas, relações e conteúdos simbólicos da sociedade: Três camadas de significado da palavra “tecnologia” podem ser distinguidos (MacKenzie e Wajcman, 1985). Em primeiro lugar, há o nível dos objetos físicos ou artefatos, por exemplo, bicicletas, lâmpadas. Em segundo lugar, “tecnologia” pode referir-se a atividades ou processos, como a produção de aço ou moldagem. Terceiro “tecnologia”, pode referir-se tanto ao que as pessoas sabem quanto ao que elas fazem; um exemplo é o “know-how” para projetar uma bicicleta ou operar um aparelho de ultrassom no serviço de obstetrícia (BIJKER et alii, 1989, p. 3-4)2.

Por se referir a objetos, ideias e a uma aplicabilidade do artefato tecnológico, o seu desenvolvimento e apropriação passam por processos interpretativos socioculturais internos aos grupos sociais e a negociações de interpretação intergrupais. Aspectos como graus de interação, integração e convergência de processos, traços de determinismo e autonomia são trazidos por autores para considerar aproximações entre tecnologia e sociedade. Em um artigo procurando descrever a emergência de um novo ramo de investigação aproximando as ciências sociais da pesquisa tecnológica, denominado The Social Shaping of Technology (SST), Dutton (2012, p. 1) conduz-nos a pensar sobre as formas como a perspectiva de trabalho da pesquisa social pode auxiliar na compreensão das tecnologias digitais, seu desenvolvimento e incorporação social. 2

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Todas as citações literais de textos em inglês foram traduzidas pelo autor deste artigo. No original: “Three layers of meaning of the word “technology” can be distinguished (MacKenzie and Wajcman 1985). First, there is the level of physical objects or artifacts, for example, bicycles, lamps, and Bakelite. Second, “technology” may refer to activities or processes, such as steel making or molding. Third, “technology” can refer to what people know as well as what they do; an example is the “know-how” that goes into designing a bicycle or operating an ultrasound device in the obstetrics clinic. In practice the technologies dealt with in this collection cover all three aspects, and often it is not sensible to separate them further.”

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Um ponto inicial é o reconhecimento de que esses estudos fornecem um contexto social para a interpretação dos dados. Outra constatação é que a tecnologia é, em si, um sistema técnico e social. Tal perspectiva lembra-nos a compreensão de Castells (1999, p. 25) de que a sociedade e a tecnologia se relacionam em um ‘complexo padrão interativo’ em que uma dimensão não determina a outra. O seu esforço analítico busca perceber sociedade e tecnologia não como duas dimensões com processos e ações independentes, mas a tecnologia como elemento estruturante da sociedade: “a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas”. Dutton (2012) traz-nos uma visão panorâmica sobre a diversidade de abordagens em pesquisa social que se debruçam sobre a digitalização social e suas contribuições para a compreensão desse fenômeno. Reconhece que esta diversidade expressa a característica de que os cientistas sociais não são unificados em torno de uma estrutura conceitual única para descrever uma multiplicidade de fatores que moldam o desenvolvimento, implementação, utilização e os impactos das tecnologias digitais. Mas é também sintoma da presença de um número crescente de cientistas sociais, de diferentes tradições teóricas, concentrados neste objeto, o que reforça, para o autor, uma necessidade de tratamento interdisciplinar, além do foco da investigação social. Rice e Fuller (2013) fizeram um detalhado diagnóstico das pesquisas em ciências sociais no estudo da comunicação e da internet, com base em cerca de 400 artigos publicados em revistas internacionais no período de 2000-2009. Os autores localizaram temas recorrentes na análise dos fenômenos sociais afetados pelas tecnologias digitais, os quais concentraram questões consideradas centrais pelos investigadores, como a interatividade, participação, comunidade, redes sociais, cruzamento de fronteiras e exclusão di-

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gital, entre outros. As teorias associadas a essas pesquisas oscilavam de uma análise das relações comunicacionais na internet em uma perspectiva interpessoal até uma abordagem dos efeitos midiáticos; e de um foco sobre os processos sociais mais amplos (democratização, engajamento, movimentos sociais etc) até os trabalhos sobre características da mídia. Seus estudos, no entanto, se concentraram na identificação dessas recorrências, em vez de tentar compreender os cruzamentos e novas formulações das ciências sociais desenvolvidas na investigação das tecnologias digitais. Dutton (2012) detém-se mais especificamente nessas novas formulações, sistematizando, a partir de um quadro de modelos sociais de estudo do fenômeno digital nas últimas décadas, o que poderia ser caracterizado como uma “virada sociológica” para a pesquisa digital. Em sua maioria, são trabalhos que vêm ganhando fôlego teórico a partir da penetrabilidade e dos efeitos da tecnologia como fenômeno social e das leituras decorrentes desta expansão, particularmente em reação a perspectivas sustentadas em um um determinismo tecnológico. A seguir, indicaremos quatro concentrações teóricas, procurando estabelecer relações com estudos sobre o jornalismo no cenário das tecnologias digitais.

Estudos dos atores e das interações no desenvolvimento de tecnologias Os processos de produção tecnológica nas sociedades modernas têm sido conduzidos, predominantemente, em organizações racionalizadas, o que tem motivado a utilização de uma perspectiva institucionalista para compreender as ações inovativas. Mas é necessário lembrar que a ‘instituição social’ é, na verdade, um clássico objeto das ciências sociais, atravessando perspectivas teóricas e manifestações

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concretas. Peter Berger esboça algumas características básicas de uma instituição: realidade externa (fora do indivíduo); objetividade; poder coercivo; autoridade moral; e historicidade (1987, p 70-75). O sentido central de instituição na Sociologia, conforme Jepperson (1991, p. 143-149), é o de um procedimento organizado e estável que constitui as regras da sociedade, externas à consciência dos indivíduos (1991, p. 143-149). O autor faz uma distinção entre o termo instituição enquanto uma ordem ou padrão social que alcançou um certo estado ou propriedade e o termo institucionalização, que denotaria o processo de obtenção desta ordem, entendendo então que uma instituição é um padrão social que revela um particular processo de reprodução (1991, p. 145). Propõe então existirem três ‘suportes’ do processo de institucionalização: 1) as organizações formais, mais usualmente usadas como objeto de análise; 2) regimes de regras e sanções com algum sistema central de autoridade, mas sem o suporte das organizações formais; 3) a cultura, referida aqui como aquelas regras, procedimentos e metas sem vínculos a organizações formais ou monitoramento e sanção por alguma ‘autoridade central’ (1991, p. 150). Esta perspectiva geral se aplica à compreensão das instituições jornalísticas. A manifestação concreta das instituições jornalísticas expressa-se em modelos organizacionais em que ao menos dois tipos de relações são perceptíveis: 1) relações sociais geradas e estabelecidas em ambientes internos à organização (por meio de padrões de rotinização, burocratização e hierarquização) e externos a ela (como um ator coletivo com competências e finalidades reconhecidas e legitimadas socialmente); 2) por relações econômicas, em que a organização jornalística se torna gestora de uma vocação industrial voltada para o atendimento de demandas de mercado a partir da produção de uma forma específica de produto, a notícia. Consideramos, portanto, que a organização jornalística é hoje tanto um espaço de interação quanto um modo padronizado de ação social individual ou coletiva.

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Entretanto, é esta vocação industrial atrelada ao modelo organizacional de jornalismo que está sendo posta em xeque pelo novo ambiente tecnológico das redes digitais. É possível perceber uma perda crescente de centralidade da organização jornalística industrial nas interações comunicacionais contemporâneas. O modelo de produção e negócios montado em torno desta matriz industrial vem demandando uma reestruturação ampla, devido principalmente a uma perda de receita e rentabilidade. Os movimentos de constituição de novos modelos de jornalismo no ambiente das redes digitais indicam a necessidade de novas formas de produção (integração/convergência nas Redações visando a mudar formas de apuração e edição), de comercialização (paywall, micropagamentos, assinaturas digitais etc) e de circulação via compartilhamento em redes sociais digitais. Um diagnóstico desta transformação está no documento ‘Post-Industrial Journalism’, relatório produzido pela Columbia Journalism School – Tow Center for Digital Journalism. Entretanto, o deslocamento que as redes sociais vem impondo ao modelo organizacional e industrial de jornalismo afeta esta atividade em diferentes escalas. Vale salientar que as tecnologias digitais aumentam uma possibilidade de penetrabilidade do leitor/ usuário na organização jornalística. Melhor dizendo: retomam, em novos padrões, uma condição de participação já caracterizada no desenvolvimento de tecnologias para a atividade midiática em geral. Embora o padrão industrial estabelecido nos séculos XIX e XX tenha levado para o interior das organizações capitalistas o desenvolvimento tecnológico aplicado à produção, a geração de tecnologias não se restringe a esta dimensão organizacional. Sawhney e Lee (2005) identificaram a presença de novos atores sociais, não vinculados a organizações das indústrias de mídia, no desenvolvimento de tecnologias comunicacionais, não foram apenas os atores do setor produtivo

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(sejam privados ou estatais) que desenvolveram e definiram modelos de inovação nas indústrias das mídias. Analisando dois processos inovativos comunicacionais (o desenvolvimento do rádio como meio de comunicação no início do século XX e da internet nos últimos anos), Sawhney e Lee (2005, p. 395) localizaram a participação de pessoas comuns (“amadores” e “entusiastas”), distanciados geograficamente e sem vínculo direto às grandes organizações de mídia ou estruturas monolíticas de produção, mas conectados em uma comunidade de usuários e desenvolvedores. Tal estudo é oportuno, entre outras coisas, por ter se dedicado a investigar dois casos com significativa distância temporal, indicando que o surgimento desta “comunidade de usuários da tecnologia” não é restrito a apenas um caso isolado (como às vezes é atribuído à internet), mas ao próprio processo de desenvolvimento e apropriação social da tecnologia. Os autores utilizaram o termo “arenas of innovation” para definir esta interação continuada entre amadores num ambiente provisório, colaborativo e comunicacional de trocas de experiências, erros e êxitos na busca de inovações tecnológicas. De forma mais sistemática, os dois autores caracterizam as “arenas da inovação”: a) por ter uma subestrutura física constituída de uma multiplicidade de participantes, dispersos espacialmente, e o próprio objeto que gera o interesse pela participação é aquele que os conecta à comunidade; e b) por ter uma subestrutura social em que as experiências são motivadas por interesses de diversão ou curiosidade e não por ganho comercial; assim, as barreiras de entrada na comunidade são baixas e há um espírito de abertura e camaradagem que facilita o desenvolvimento de ideias dentro da comunidade. Estas considerações são fecundas ao campo do jornalismo, dado o processo de transformação por que a atividade vem passando nos últimos anos com as redes telemáticas (Pavlik, 2001). Se, por um lado, o processo envolve a atuação dos grandes conglomerados de

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mídia desenvolvendo inovações tecnológicas e redefinindo modelos de “jornalismo de referência”, por outro a multiplicidade de novas práticas e comunidades virtuais (os blogs jornalísticos são bons exemplos deste processo) indicam formas de criação tanto tecnológicas quanto inovações sociais, desafiando rotinas e papéis sociais já definidos ao jornalismo. Isto gera, conforme Sassen (2002), um desafio adicional à comunidade científica, particularmente aqueles pesquisadores do campo das ciências humanas e sociais aplicadas, que possuem uma autoridade socialmente constituída para formular, sistematizar, descrever e analisar processos sociais. O que significa um desafio à academia na construção de conhecimentos em interação com o setor produtivo: “O desafio para a sociologia não é tanto a negar o peso da tecnologia, mas sim desenvolver categorias analíticas que nos permitem captar as imbricações complexas da tecnologia e da sociedade”3 (SASSEN, 2002, p. 365).

A Teoria Ator-Rede nos estudos das interações homem-computador Esta teoria surgiu nos estudos de ciência e tecnologia na década de 1980 com o objetivo de mapear as redes de todos os atores centrais envolvidos em uma atividade (DUTTON, 2012, p. 12). Dentre estes atores podem estar seres humanos ou objetos diversos, como os computadores, contanto que exerçam um papel de constituir associações. Há uma perspectiva analítica de observar as associações como modos de manifestação e ação social, e as redes se tornam bases sobre as quais se constroem múltiplas formas de conexão. O olhar é estimulado

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No original: “The challenge for sociology is not so much to deny the weight of technology, but rather to develop analytic categories that allow us to capture the complex imbrications of technology and society.”

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a observar esta condição de mobilidade dos atores (humanos e não-humanos), a perceber a circulação e as associações momentâneas. Na avaliação de Lemos (2013), A questão principal proposta pela TAR às ciências sociais como um todo é, a meu ver, dedicar atenção à dinâmica da formação das associações, aos movimentos dos agenciamentos, à distribuição da ação entre atores diversos, humanos e não-humanos, a partir de uma simetria generalizada. Ela é uma sociologia da mobilidade (LEMOS, 2013, p. 37).

Um ponto desafiador desta abordagem é a aceitação de que “coisas” (termo com estatuto de ator) possam também fazer parte desta rede de relações, como por exemplo as interações. Assim, as ações de interatividade que se estabelecem quando uma pessoa opera um computador integram esse corpus de relações, e ambos (ser humano e máquina) são componentes dessas redes porque executam trocas diversas. É previsível então que tal deslocamento do lugar das interações para fora das organizações enrijecidas afeta uma compreensão clássica de jornalismo constituída no seio de organizações produtivas, caracterizadas por sua visão homogênea de público, por uma unidirecionalidade na fala do produtor e na baixa possibilidade de interação entre o produtor, o meio de comunicação e seu público. Mesmo os mídias clássicos (jornal, revista, rádio e televisão) têm sua solidez invadida aos poucos por atores que desafiam o discurso jornalístico, que se associam em redes dinâmicas, com laços frouxos e em contínua renovação, em ambientes virtuais em que a legitimidade da mídia (e do jornalista) como falantes autorizados se mistura a falas diversas de atores comuns e agentes inteligentes. Lemos localiza, nos estudos da Teoria Ator-Rede, uma indicação para pensar o jornalismo fora de situações cristalizadas de defesa e manutenção de valores jornalísticos. Ou seja, em vez de o jornalismo

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apegar-se a princípios intocáveis pela experiência histórica, a teoria vê a possibilidade de os valores serem produzidos “por uma composição por parte do mediador da matéria jornalística como uma rede de proposições que aspira a ser recebida como verdadeira, e que é, portanto, instaurada” (LEMOS, 2013, p. 83).

Perspectivas críticas às apropriações sociais das tecnologias digitais Rice e Fuller (2013, p. 363-6) reconhecem que uma das principais perspectivas das ciências sociais no estudo da comunicação e da internet é o viés crítico em relação às transformações tecnológicas contemporâneas, a partir da constatação das relações econômicas e políticas que perpassam as estruturas e são conduzidas por interesses e movimentos de concentração, desigualdade e exclusão social. Um conjunto significativo de artigos encontrados pelos autores reforça a preocupação dos pesquisadores sociais sobre as implicações globais das novas tecnologias da comunicação. Mesmo que a digitalização traga mudanças transversais a todos os processos produtivos comunicacionais, esses estudos apontam para a necessidade da compreensão de formas de concentração e preservação de poder. Bolano (2006, p. 71) assinala que a digitalização tem um poder reestruturador da comunicação e da cultura, “ao permitir um movimento complexo de convergência, que desestabiliza mercados consolidados, contestando posições hegemônicas”. Entretanto, ele não se direciona necessariamente para uma maior democratização dos meios de comunicação, mantendo um movimento tendencial de aumentar a concentração midiática, agora ampliada pela capacidade de multimidialidade e da expansividade das formas de convergência. A lógica da produção capitalista presente na indústria jornalística não se altera, o que abrange também a exploração sobre um tipo particular de trabalho intelectual,

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constata Bolaño, qual seja: a atividade do jornalista de produzir um relato sobre os fatos do mundo. Portanto, as perspectivas críticas direcionam sua análise acentuando processos de trabalho: Há uma forte flexibilização do trabalho e uma tendência ao apagamento das fronteiras entre as especialidades jornalísticas, com o repórter exercendo, por exemplo, a função de fotógrafo. As atividades próprias do jornalista vão-se, assim, de um modo geral, esvaziando, sendo simplificadas, enquanto outras, antes ligadas a áreas como a informática, ganham relevância e passam a fazer parte das ferramentas intelectuais que o jornalista é obrigado a dominar. O resultado é um amplo processo de desqualificação e re-qualificação, em detrimento do instrumental crítico, anteriormente vinculado à formação desses profissionais (BOLAÑO, 2006, p. 71).

Dutton (2012) reconhece que transformações centrais dos sistemas de mídia com as tecnologias digitais não alteram condições como a concentração de capital em grandes empresas de mídia dominando as plataformas de produção e circulação na internet. Estudos elaborados no seio de uma perspectiva de economia política crítica, constituída no ambiente dos estudos sociais, detêm-se, na internet, sobre fatores já presentes nas teorias sociais.

As teorias construcionistas nos estudos sobre tecnologia e jornalismo A perspectiva da Construção Social da Tecnologia (SCOT Social Construction of Technology) surge como um enfoque com a intenção de considerar o desenvolvimento tecnológico articulado a condicionantes sociais. Sua origem remonta à sociologia da ciência na forma como considera os fatores sociais relacionados à produção de conhecimento científico. Se, nos primeiros trabalhos, a sociologia

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da ciência dedicava-se a estudar os cientistas como atores sociais, suas instituições, normas, modelos de trabalho e profissionalização, bem como as estruturas sociais de suporte, em um segundo momento o próprio conhecimento gerado (teorias, experimentos, metodologias) é considerado socialmente construído. Isto é, explicações para a geração, aceitação e rejeição de teses são buscados no domínio do mundo social, resultantes de toda uma série de “knowledge cultures” (PINCH e BIJKER, 1989, p. 18-19). Os dois autores citam Barnes (1982) para considerar que ciência e tecnologia são culturas socialmente construídas. Ao aplicar o construtivismo ao estudo das ciências, esforçam-se por rejeitar a tese de que “a ciência descobre, a tecnologia aplica”, noção esta que tenderia a valorizar a eficiência da tecnologia frente ao caráter investigativo e explicativo das ciências, particularmente daquelas interpretativas como a sociologia. Nesta perspectiva, são considerados aspectos como a participação de grupos sociais relevantes na definição de usos e funções dos artefatos tecnológicos, gerando soluções diferenciadas para a aplicação dessas tecnologias, bem como diferenciadas situações de conflito entre requisitos técnicos demandados por grupos sociais, incluindo valores sociais particulares (PINCH e BIJKER, 1989, p. 35). A perspectiva da construção social da tecnologia opera com determinadas categorias analíticas: a) Flexibilidade interpretativa (“interpretative flexibility”): já que os artefatos tecnológicos são socialmente construídos, há uma flexibilidade na interpretação de seus usos, funções e necessidades pelos grupos sociais, pois são produtos de negociações intergrupais (KLEIN e KLEINMAN, 2002, p. 29); b) Fechamento e estabilização (“Closure and Stabilization”): quando determinada tecnologia tem seu uso estabilizado em consequência de superação de controvérsias por meio de recursos retóricos (como a divulgação de inovações) ou redefinição das questões que motivam o desenvolvimento tecnológico; c) Contexto mais amplo (“Wider

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Context”): a situação sociocultural e política de um grupo social forma suas normas e valores, que por sua vez influenciam o significado dado a um artefato tecnológico. Assim, os estudos em construção social da tecnologia podem oferecer um modelo descritivo que parece operacionalizar a relação entre tecnologia e um meio ambiente amplo (PINCH e BIJKER, 1989, p. 46). Klein e Kleinman (2002, p. 29-30) veem dificuldades na capacidade desta perspectiva teórica em revelar os elementos de fundo nas interações grupais, como as relações existentes, as regras que comandam essas interações e os fatores que contribuem para diferenças nas relações de poder. Os autores utilizam o termo “quadro tecnológico” (“Technological frame”) para caracterizar a existência de uma interpretação comum sobre uma tecnologia junto aos membros de uma comunidade.

Combinando jornalismo e tecnologia a partir das perspectivas construcionistas As transformações tecnológicas vêm possibilitando repensar características estruturais do jornalismo, indicando uma definição ampliada da atividade jornalística em redes digitais. Faremos a seguir um esforço de diálogo interdisciplinar entre duas perspectivas teóricas que, embora pareçam ter uma base comum (o construtivismo), foram geradas a partir de problemas e objetos concebidos como específicos: de um lado, os processos e produtos jornalísticos operados ao relatar os fatos do mundo jornalisticamente relevantes para a sociedade; de outro, a tecnologia como conjunto de saberes responsáveis pelo desenvolvimento de instrumentos de ação técnica sobre o mundo, conforme o tratamento dado pela perspectiva da construção social da tecnologia.

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Flexibilidade interpretativa A ‘flexibilidade interpretativa’ a que se referem Klein e Kleinman (2002, p. 29) ressalta o fato de os produtos tecnológicos serem socialmente construídos, o que indica o surgimento de formas diversas de interpretar as características, modos e aplicabilidade destes artefatos em consequência da presença de grupos sociais diversos e da negociação (ou competição) entre eles. Uma das premissas da flexibilidade interpretativa é de que o projeto tecnológico é um processo aberto, que pode produzir resultados diferentes dependendo das circunstâncias sociais do seu desenvolvimento. Todo o processo histórico de desenvolvimento do jornalismo se deu com base em fatores tecnológicos conduzindo formas e estruturas de produção, sendo possível perceber, já no seu início nos séculos XVII e XVIII, modos específicos de apropriação social das novas técnicas de impressão, possibilitando a criação de publicações impressas que falassem do cotidiano e se distanciassem do padrão do livro. Passo a passo, esta leitura do fator tecnológico no desenvolvimento do jornalismo poderia ser contextualizada em ambientes e interações sociais que lhe atribuem um sentido de utilidade e valor. A aplicabilidade desta forma interpretativa de considerar a tecnologia tem, um linhas gerais, resultados equivalentes se considerarmos o desenvolvimento de tecnologias digitais no interior do jornalismo e das formas como elas são socialmente condicionadas. Diferentes comunidades interpretativas (dos jornalistas ou dos cientistas) são responsáveis por relativizar, condicionar e direcionar a interpretação dos fenômenos. Utilizar a categoria da ‘flexibilidade interpretativa’ auxilia um deslocamento do olhar, que não deixa de considerar a materialidade do fenômeno tecnológico, mas remete a interpretação do pesquisador para a observação de interações sociais, como por exemplo as comunidades e grupos que desenvolvem e dão sentido de utilidade

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a determinada tecnologia. Porque, sob a perspectiva construtivista, não é só a tecnologia que é socialmente construída, mas também os fenômenos em que ela está inserida, no caso específico o próprio jornalismo, assim como o olhar do pesquisador na interpretação desse conjunto de fenômenos. Os artefatos tecnológicos são os objetos e as ideias sobre sua natureza e uso, cujas definições passam por processos interpretativos socioculturais internos aos grupos sociais e a negociações de interpretação intergrupais.

Fechamento e estabilização A construção de quadros interpretativos para fenômenos sociais é um processo inerente à investigação científica. Estes quadros são seletivos, pois indicam formas de reconhecimento de problemas de pesquisa e de sua resolução, e são também resultantes de consensos entre cientistas. Kuhn (2009) utilizou o termo ‘paradigma’ para explicar a atuação de uma comunidade de cientistas comprometidos com movimentos de construção de consensos e sua consolidação como “ciência normal” (2009, p. 29) e, ao mesmo tempo, o surgimento de “crises” desta verdade baseada neste procedimento de validação do conhecimento, seguindo-se a construção de novos consensos. Kuhn caracteriza um paradigma como um conjunto de pressupostos que proporcionam os fundamentos para a produção do conhecimento científico, na forma de leis, teorias e técnicas para aplicação e instrumentalização da produção de conhecimento que sejam aceitos e partilhados pela comunidade científica. Em outras palavras, são “realizações científicas universalmente conhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (2009, p.13). A perspectiva da construção social da tecnologia utiliza a categoria “fechamento e estabilização” com certa semelhança à ideia

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de paradigma. Os artefatos tecnológicos, observados do ponto-de-vista dos processos sociais, adquirem movimentos de estabilização, por exemplo, nas noções de utilidade e de funcionalidade que uma tecnologia adquire, como base em entendimentos tácitos e superação de controvérsias entre membros de um grupo ou entre grupos. Pinch e Bijker (1989, p. 46) salientam que o fechamento e estabilização de sentidos para o uso de um artefato tecnológico não são elementos ‘naturais’ ou ‘dados’, mas socialmente construído em relações grupais. O uso de tecnologias no jornalismo serve como expressão destes movimentos de estabilização. Os modos de produzir jornalismo são cercados por técnicas sobre o fazer (como apurar, entrevistar, redigir, editar etc), os quais são condicionados por estruturas (tecnológicas, entre outras) que estabelecem as formas e limites da produção. O jornalista, ao se inserir no ambiente da atividade jornalística, se depara com três dimensões construídas socialmente que tendem ao fechamento e à estabilização: a) há um conjunto de disposições sociais que são gradativa e seletivamente incorporados pelo jornalista ao frequentar determinados espaços sociais; b) há uma atuação conjuntural de agentes externos ou internos à organização jornalística estabelecendo, delimitando, impondo processos seletivos e formas de tratamento do material noticioso; c) há uma margem de autonomia do jornalista ao definir procedimentos práticos e formas de construção deste recorte factual. Ocorre, então, que uma das leituras possíveis dos processos de fechamento e estabilização dentro da atividade jornalística está em reconhecer, por um lado, esta dimensão construída socialmente, com a presença de múltiplos atores com suas margens de sedimentação e de autonomia na definição de usos e apropriações tecnológicas. Por outro lado, tais processos podem ser explicados nas formas como Bourdieu (1983, 1996) aplica a noção de habitus como “sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcio-

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nar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações” (1983, p. 61). A tecnologia pode ser considerada como uma “disposição durável” que surge a partir das estruturas objetivas da sociedade, definindo condições sociais de produção das práticas (jornalísticas inclusive), mas possível de ser reinventada em um processo dialético entre esse habitus e uma determinada situação.

Contexto social ampliado e grupos sociais relevantes Considerar o contexto social ampliado de qualquer fenômeno é condição para executar uma análise social qualificada. Isto porque fenômenos específicos como o jornalismo digital resultam da combinação de duas grandes tendências históricas: a formação da instituição jornalística e as bases tecnológicas que levaram à constituição das tecnologias digitais. No termo “jornalismo digital” é possível vislumbrar que sua construção indica uma raiz “jornalismo” qualificada por atributos das tecnologias digitais. É perceptível que a instituição jornalística é, em sua natureza, atravessada por processos sociais amplos e históricos que constituem os princípios organizativos de uma sociedade, tais como a construção e transmissão da cultura, as relações econômicas (o mercado como regulador da circulação), as formas de ação política e as transformações tecnológicas. Ao mesmo tempo, situada em contextos espaço-temporais concretos, a instituição jornalística está entranhada no ambiente em que atua, o qual limita certas possibilidades de sua atividade concreta. A perspectiva da construção social da tecnologia permite ampliar a leitura da interrelação entre esses elementos. Primeiro, porque nos oferece uma melhor compreensão das formas de atuação e relação entre grupos sociais organizados ou dispersos na afirmação ou contestação a determinada inovação tecnológica. Dois modelos

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opostos de organização social são constatáveis: um tipo organizado em torno do capital e da produção, ao qual se vinculam tanto os grupos dirigentes quanto os trabalhadores, embora estes tenham um relativo grau de autonomia na definição de identidades, práticas e valores; outro, formado por usuários, consumidores ou amadores. Assim, a apropriação tecnológica contida em produtos ocorre diferentemente conforme interesses dominantes dos autores envolvidos. Klein e Kleinman (2002, p. 42) reconhecem que, no desenvolvimento de tecnologias voltadas para a produção industrial, deve-se considerar o grau de organização dos atores para identificar sua influência sobre as definições de uso e apropriação tecnológicos. Em casos em que os trabalhadores são fracamente organizados, os desenvolvimentos tecnológicos são determinados pelos capitalistas; naqueles casos em que há uma classe trabalhadora organizada e o Estado atua na política econômica e industrial, o desenvolvimento tecnológico provavelmente seja o resultado de negociação. Klein e Kleinman (2002, p. 32) argumentam que alguns grupos sociais relevantes na definição de padrões tecnológicos podem ser excluídos da participação e sua ausência passar despercebida. As ausências são, segundo os autores, resultantes de estruturas sociais e de poder que condicionam ou limitam a participação. É tradicional, nos estudos de mídia, investigar as relações de poder que perpassam os processos de produção jornalística, principalmente ao se constituir como indústria produzindo informação para vastos públicos a partir do século XIX. O poder, neste caso, é tanto expressão de uma estrutura constituída em torno de uma lógica capitalista como também engendra estruturas e estabelece modos de produção. É importante perceber que, no jornalismo, três diferentes atores participam de todo o ciclo: os jornalistas, como grupo mais visível e que dá identidade (profissional inclusive) à atividade; os proprietários dos meios de produção e, portanto, também dos

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principais artefatos tecnológicos aplicados; o público, que demanda a informação e utiliza os dispositivos por meio dos quais ela circula. Entender o grau de participação do jornalista no desenvolvimento de tecnologias para a atividade exige reconhecer essa parcela de autonomia na constituição das suas práticas. Serve como ilustração a adoção do uso do telefone como ferramenta de trabalho do jornalista no início do século XX: inicialmente, o telefone foi visto com desconfiança pelos jornalistas, pois poucas fontes de informação tinham aparelhos, e os repórteres acreditavam obter melhores entrevistas em contato face-a-face. Usar telefones era também entendido como uma forma de frouxidão e preguiça dos repórteres ao não quererem se deslocar aos locais de entrevista e apuração. Esta cultura da desconfiança e da preguiça foi se modificando particularmente com a contribuição que o telefone trouxe para o controle do tempo: repórteres em horários de fechamento de edições começaram a usar o novo recurso para enviar relatos, para as redações, sobre fatos a partir dos locais em que se encontravam (FEDLER, 2000, p. 143). Assim, o jornalismo, ao se constituir como profissão, cria uma comunidade capaz de apreciar e se manifestar sobre o desenvolvimento de suas técnicas (apuração, redação, edição) e as apropriações tecnológicas. Os públicos, ao serem investidos na condição de consumidores de informação, reagem indicando preferências por tipos e formas de uso dos dispositivos que carregarão as notícias. Isto, obviamente, não desloca o centro do poder constituído pela propriedade dos meios de produção na dimensão industrial do jornalismo, mas indica processos sutis de assimilação e demanda negociações entre os grupos sociais envolvidos.

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Quadros tecnológicos Klein e Kleinman (2002, p. 29-30) utilizam o termo “quadro tecnológico” (“Technological frame”) para se referir à existência de uma interpretação comum desenvolvida por membros de uma comunidade a respeito das características e usos de um artefato tecnológico. Os autores lêem em Bijker (1995) que a noção de quadro tecnológico ajusta-se a de uma interpretação cognitiva de objetivos, problemas-chaves, teorias correntes, regras fundamentais, procedimentos de verificação e teste e artefatos tecnológicos exemplares que auxiliam a estruturar formas de um grupo social pensar sobre esses problemas. Em outras palavras, em torno de um artefato tecnológico constrói-se uma forma de concebê-lo e pensá-lo, a qual é indutora de formas de interpretação para outras pessoas ou grupos sociais. Este processo se dá à semelhança da noção de “quadro interpretativo” do mundo utilizada nos estudos construtivistas, particularmente naqueles desenvolvidos nas pesquisas em jornalismo. Nestes, a noção de enquadramento para a análise do texto noticioso tem, como ponto comum, tratar-se de conjuntos de princípios (concepções) internalizados pelo indivíduo em sua interação com o social que oferecem ao indivíduo orientações para o seu agir. Todd Gitlin define os enquadramentos noticiosos como “padrões persistentes de cognição, interpretação, apresentação, seleção, ênfase e exclusão, através dos quais aqueles que trabalham os símbolos organizam habitualmente o discurso, tanto verbal como visual” (1980, p. 7). Há também autores que buscam definir um enquadramento utilizando a metáfora de uma ‘moldura’ ou ‘janela’. Ao analisar as características constitutivas do “quadro da notícia”, Tuchman sublinha que os “quadros produzem e às vezes limitam o significado. Para voltar à analogia da notícia como o quadro de uma janela, as características da janela, seu tamanho e composição, limitam o que pode ser visto” (1983, p. 223).

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Ao operar um “quadro tecnológico”, está-se, de forma semelhante, indicando sentidos, formas de uso e valorações para cada artefato tecnológico. É um processo interpretativo, socialmente construído e estabelecido como princípio lógico e cognitivo daquela tecnologia. Deve-se considerar, no entanto, que quadros interpretativos de mundo podem ter sido formados por grupos sociais anteriormente ao surgimento de determinada tecnologia, condicionando a construção de “quadros tecnológicos” ou mesmo desafiando compreensões que lhe sejam impostas. Klein e Kleinman (2002, p. 31) exemplificam como a apropriação dos automóveis por usuárias mulheres na primeira metade do século XX motivou um redesenho desses artefatos tecnológicos, projetados para uso masculino, o que demonstra como uma questão de gênero (fator eminentemente social) pode enfrentar um quadro tecnológico estabelecido por um produtor. Aqui, há um desafio que nos permite pensar sobre a primazia dos quadros tecnológicos: mesmo que expressem lógicas sistêmicas, mecânicas ou computacionais, elas brotam de interações entre atores, sejam internos às organizações produtivas, sejam nas interações com atores externos ao campo da produção, os quais, no entanto, conformam e dão sentido aos artefatos (criam ao seu modo quadros tecnológicos). Tais reflexões são promissoras para pensar as relações entre jornalismo e tecnologia para além de leituras deterministas ou na dicotomia sociedade-tecnologia. Para isso, é preciso, à semelhança da contribuição dos estudos construtivistas para o jornalismo, “desconstruir” noções pré-concebidas (“quadros tecnológicos”) sobre apropriações e usos da tecnologia e colocá-las sob as lentes interpretativas das ciências humanas para considerar os elementos sociais que as configuram. Conforme Klein e Kleinman (2002, p. 40), é necessário buscar quadros tecnológicos não em estruturas ou sistemas, mas em “elementos culturais com

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ressonâncias históricas na sociedade em geral ou, pelo menos, ressonância entre os atores localizados em posições sociais semelhantes”4.

Considerações finais Ao desenvolvermos uma discussão teórica com base em uma bibliografia de referência sobre os estudos sociais da tecnologia e executarmos uma análise das transformações do jornalismo em um cenário crescentemente reconfigurado pelas tecnologias digitais, buscamos estimular um cruzamento entre duas fundamentações de estudo. Dentre os objetivos deste movimento está o de apresentar fatores estruturantes do jornalismo digital com base no arcabouço teórico-metodológico de correntes das teorias sociais sobre a tecnologia. Fizemos uma leitura indicando quatro diferentes perspectivas pelas quais as teorias sociais tratam essa relação: perspectiva institucionalista, associativa, crítica e construtivista. Optamos por explorar a última, na medida em que tem estimulado um duplo movimento de “desvelamento” ou “desconstrução” de determinações de estruturas ou sistemas na definição de noções e quadros interpretativos sobre a tecnologia. As instituições jornalísticas, ao alimentarem cotidianamente a sociedade com um fluxo noticioso sobre o mundo, constroem, reforçam e modificam processos sociais e culturais. Com a penetrabilidade crescente das tecnologias digitais em todas as fases da atividade jornalística, o esforço teórico deste trabalho foi o de tensionar o argumento tecnológico a partir de uma leitura que permita localizar, com mais propriedade, lógicas sociais condicionando e dando suporte ao desenvolvimento dessas inovações. Pela variedade de perspectivas trazidas, foi possível indicar que, por um lado, as inovações tecnológicas têm estado predomi4

No original: “…cultural elements with historical resonances in the society at large or at least resonance among similarly socially located actors”.

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nantemente dependentes de grandes capitais, o que coloca os grandes conglomerados empresariais e seus atores institucionais como protagonistas. Os jornalistas, como atores instituintes da atividade e da identidade profissional, atuam em tensão com essas estruturas, construindo situações de confronto, negociação ou apropriações singulares das ferramentas tecnológicas desenvolvidas previamente ou no ambiente das indústrias midiáticas. Por outro lado, as novas experiências de comunicação e as novas práticas jornalísticas, inundadas por um ambiente tecnológico de web 2.0 que integrou a estes sistemas uma cultura de colaboração e compartilhamento e sua expansão em redes sociais digitais, abrem novos espaços e reforçam a importância de atores não institucionais no desenvolvimento de processos inovativos. Neste aspecto, a leitura do fenômeno tecnológico sob uma perspectiva sócio-histórica traz chaves interpretativas ricas para compreender novas formas de interações sociedade-tecnologia em suas possibilidades disruptivas e criativas – chaves estas que podem ser promissoras para construir um pensamento mais denso e complexo sobre o jornalismo no cenário das tecnologias digitais.

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Parte 1 y x TEORIAS SOCIAIS SOBRE A TECNOLOGIA E OS ESTUDOS DE JORNALISMO DIGITAL

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Sumário y

POR UMA ABORDAGEM NARRATIVA DO FOTOJORNALISMO CONTEMPORÂNEO Greice Schneider

Introdução O presente artigo elabora um breve diagnóstico das recorrentes crises que as mudanças tecnológicas têm trazido à fotografia (e, consequentemente, ao fotojornalismo), à luz do potencial narrativo da imagem fixa. Um primeiro momento centra-se nas mudanças do próprio discurso ontológico da imagem fotográfica e no pacto de confiança da fotografia enquanto documento. Um segundo momento ocupa-se ibe a insistência nas imagens únicas e no mito do instante decisivo. E, por fim, um terceiro momento aborda como essas duas crises afetam diretamente as rotinas produtivas nas redações. Algumas das alternativas para essa crise encontram-se justamente na abordagem plural da fotografia. Em especial, no agenciamento narrativo entre fotos de fontes diversas.

Para além das crises Como de costume, a emergência das novas tecnologias e a consequente mudança de paradigmas de produção, circulação e recepção foram seguidas por um panorama alarmista, de “crise”, e mesmo a morte do fotojornalismo foi proclamada (LAVOIE, 2007; DAVIES

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2010; RITCHIN 2010). Tal panorama de instabilidade traz à tona um discurso de lamento pelo suposto enfraquecimento do aspecto indicial da fotografia, uma vez que seu valor documental, do “isso foi”, e a conexão físico-química com o referente - até então considerada como condição de possibilidade da própria fotografia5 - é suprimida da equação. O fato de o dispositivo fotográfico implicar uma conexão física com o referente traz como consequência um deslumbramento excessivo com a capacidade de registro fotográfico, que vai desmoronar com o advento do digital. A noção de rastro luminoso, que para muitos e por tanto tempo serviu como suporte ontológico para delimitar as fronteiras da fotografia, é substituída por um “registro sem rastro” criado pelos “sistemas de síntese digital fotorrealistas” (FONTCUBERTA, 2010, p. 15). Esta mudança na captação da imagem provoca, portanto, um colapso de um certo modo, até então dominante, de conceber a fotografia enquanto documento (ROUILLÉ, 2010). Alguns autores questionam a própria possibilidade de manutenção do termo, sugerindo uma era do “pós-fotográfico” (MITCHELL, 1994; MANOVICH, 1995). Essa obsessão pelo protagonismo das mudanças tecnológicas enquanto definidoras da imagem fotográfica, no entanto, pode ofuscar questões mais profundas, dos próprios regimes de percepção. Tamanho alvoroço com a perda da autenticidade da fotografia digital pressupõe uma crença historicamente construída na transparência científica da fotografia analógica, algo que, apesar de muito ques-

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Tais anseios ontológicos, via de regra, procuraram aporte na automaticidade fotográfica. Desenhou-se o que podemos chamar de uma “teoria do dispositivo”, que indicava na coligação automática e necessária do signo fotográfico com seu objeto a essência própria da fotografia. A história das teorias da fotografia, especialmente no seu início, percorreu um trajeto uniforme, homogêneo, cuja questão, quase que em uníssono, resumia-se a essa busca da natureza própria da nova técnica e cuja solução sempre foi investigada no aspecto de registro da fotografia, no fato dela ser emanação de algo que já foi (BAZIN, 1991; AUMONT, 1993; BARTHES, 1990). Mais recentemente, tal hegemonia dos argumentos do dispositivo tem sido relativizada e questionada (ELKINS, 2007; PICADO, 2011, 2014).

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tionado, permaneceu dominante em vários discursos e contratos de leitura, inclusive no fotojornalismo. Não causa surpresa, portanto, que o impacto das novas tecnologias e os temores diante da manipulação digital tragam à tona uma onda de ceticismo e desconfiança ao fotojornalismo. Mas será que essa incredulidade deve necessariamente ser tomada como algo negativo?6 Para além de uma ênfase nas mudanças no dispositivo automático de gravação de imagens, é indispensável avaliar como esse cenário afeta a esfera da recepção, colocando em xeque um velho pacto de leitura, calcado em uma pressuposta objetividade: ao invés de lamentar a perda de uma suposta autenticidade da fotografia e tentar resgatar o traço físico na qual ela costumava ser definida, faz-se urgente repensar os termos da reconfiguração histórica entre observador e modos de representação. Para que isso aconteça, é preciso, antes de mais nada, partir do pressuposto de que a própria visão é algo construído historicamente e o observador está “inscrito em um sistema de convenções e restrições (CRARY, 2012, p. 15). O que há de novo aqui não se localiza na condição oferecida por um dispositivo de visualização, mas no modo como sua ocorrência reflete o movimento, mais profundo, das transformações históricas nos modos de sentir e de perceber, em variáveis de interpretação que escapam, assim, à suposição de que tais mudanças são condicionadas pelo mero advento e a contínua transformação das técnicas fotográficas (PICADO, 2014, p. 16).

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A faceta positiva dessa erosão de confiança no fotojornalismo é apontada como um de seus melhores filtros (ELLIS, 2011) Esse tipo de ceticismo, segundo o diretor de fotografia da agência Associated Press, Santiago Lyon, pode ter um efeito negativo sobre o jornalismo como um todo: ser cético diante de uma foto é um pequeno passo para ser cético em relação a uma organização de notícias inteiro, o que poderia comprometer a missão do jornalismo. Ele recomenda abordar cada fotografia com o mesmo ceticismo com que se aborda cada história. (ELLIS, 2011)

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A pergunta deve ser, então, deslocada. Não se trata, portanto, da autenticidade da fotografia enquanto documento, mas da percepção de autenticidade, do modo como aprendemos a lê-las. Ou seja, ao invés de concentrar a discussão em qualidades intrínsecas às fotos, parece fazer mais sentido chamar em causa seu contexto de publicação, como o regime de credibilidade dos veículos. Uma das marcas que sempre funcionaram como argumento legitimador da fotografia é justamente a ilusão, a impressão de realismo como aproximação do caráter testemunhal7. No caso do fotojornalismo tradicional, tenta-se disfarçar a presença do fotógrafo, apagar as marcas de sua autoria e investir na suposta transparência das imagens. A relação de autenticidade dependeria do sucesso em forjar essa de falta de mediação. O vetor se inverteu: os critérios de percepção de autenticidade se afastam daqueles do profissionalismo estetizado. A própria fotografia sintética - criada artificialmente - é percebida como mais realista do que fotografias tradicionais (MANOVICH, 1995). A valorização da qualidade da fotografia profissional, da nitidez da imagem é afetada por uma desconfiança diante das possibilidades de manipulação digital, que investem no artifício, na nitidez, no excesso de perfeição, hoje lido como distante, fabricado, pouco autêntico. A autenticidade provém justamente das marcas visíveis do testemunho, encontradas na crueza, pouca nitidez, intimidade e amadorismo das imagens (que podem, por sua vez, também ser simuladas posteriormente). É justamente a subjetividade dos não profissionais, como lembra Ritchin (2013), seu envolvimento transparente e a falta de incentivo financeiro que funcionam como sintomas de autenticidade e não intervenção. Enquanto isso, o fotojornalista tradicional é tomado como um intruso, um agente exterior, cujas imagens precisam

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Schaeffer (1996), ao classificar a imagem fotográfica como ícone-indicial, relaciona justamente o aspecto documental à ilusão de realismo.

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penetrar no campo de ação de um público mais amplo das mídias sociais, ao invés de emergir a partir dele (o que explicaria o interesse recente de profissionais usando aparelhos celulares, ao invés de câmeras sofisticadas para cobertura de grandes eventos) (RITCHIN, 2013, p. 39). As imagens mais cruas, de primeira e de segunda pessoa, encontradas nas mídias sociais referindo-se ao ‘eu’ (o fotógrafo) e ‘nós’ (os amigos, família e comunidade) são vistas como, pelo menos, tão autênticas quanto as fotografias mais esteticamente harmoniosas, de terceira pessoa, indiretas, feitas por profissionais jornalísticos. Profissionais devem não somente produzir imagens que se encaixam às necessidades de publicações - que têm seus próprios estilos particulares e visões de mundo - mas também tentar esconder, em sua maior parte, as suas próprias reações pessoais para as situações que experimentam (RITCHIN, 2013, p. 10).

Além do ceticismo causado pelo enfraquecimento do pacto de autenticidade e testemunho (tão caros ao fotojornalismo), a própria sobrecarga de circulação de imagens também provoca uma fadiga emocional com a consolidação de convenções do fotojornalismo e reencenação de ícones. Figuras recorrentes do repertório visual, como o sofrimento, os clichês de guerra, e o apelo emocional sofrem desgaste por excesso (LAVOIE, 2007). O impacto, antes alcançado por revelar ao mundo tragédias através de imagens muitas vezes chocantes, é minimizado pela monotonia da repetição dos mesmos bordões, anestesiando o público. A fotografia de guerra, por exemplo, antes o gênero por excelência do fotojornalismo, tornou-se “um espetáculo previsível”: “As imagens parecem estar muito mais homogêneas e, como resultado, demandam menos escrutínio”. Um dos problemas encontra-se justamente no excesso de estilização (RITCHIN, 2014, p. 140).

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Esse processo de homogeneização da imagem é ainda anterior à fotografia digital8. O que há de novo não é propriamente o caráter automático do dispositivo, mas o aumento estrondoso de circulação de imagens e consequente alfabetização visual do público, que passa a reconhecer e dominar as estratégias de construção do discurso, aumentando essa sensação de saturação e desconfiança. A crise do fotojornalismo é, portanto, também uma “crise dos usos” da fotografia jornalística, muitas vezes transformada em objeto de culto, em “imagem-monumento” (LAVOIE, 2010). A dispersão do polo de produção e a sobrecarga na oferta de imagens, por sua vez, ocasionam também desgastes na cadeia produtiva e no modelo de negócios jornalístico e a precarização da profissão do fotojornalista (DULTRA e ROSSONI, 2012). A substituição do modelo um-todos pelo todos-todos afeta diretamente a profissão do fotojornalismo como a entendemos, causando demissões em massa, flexibilização dos contratos de trabalho, intensificação do trabalho de edição e exigência de polivalência. A competição desleal com o fotojornalista-cidadão (barateamento de custos) leva a um cenário alarmante, “uma brutal queda do poder de negociação dos fotógrafos dentro das dinâmicas dos jornais, por espaço de trabalho” (SILVA JR., 2013).

Fotografia e narrativa Apesar do cenário dramático descrito acima, há algo de profundamente libertador nessa ruptura com a conexão físico-química, que oferece outras vias de pensar e fazer fotojornalismo. O desaparecimento de várias práticas e valores consolidados em um período determinado da (não tão longa) história do fotojornalismo - como a 8

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Susan Sontag, por exemplo, já identificava processo de esgotamento e anestesia por excesso muito antes do surgimento da fotografia digital (SONTAG, 2004).

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busca pelo instante decisivo e a foto única (scoop), a valorização da imagem sem retoques e o culto ao fotógrafo-autor - podem, em um primeiro momento, ser tomados como indícios de decadência. Mas, como em toda crise, essas transformações devem ser vistas não como um atestado de óbito, mas como sintoma de uma mudança de paradigma que pode mesmo ser entendido como uma oportunidade para o renascimento do formato (RITCHIN, 2010). Uma das alternativas para repensar o fotojornalismo reside na valorização da narratividade e na pluralidade de imagens. É necessário discutir o agenciamento narrativo de fotos – para além da foto única do instante decisivo, acolhendo (e não demonizando) a multiplicidade de imagens, a diversidade das fontes, e sua articulação com os meios de comunicação em tempos de convergência.

Para além do instante decisivo Uma das maneiras possíveis de descrever o objeto do fotojornalismo é como uma “síntese visual” da notícia (SILVA JR, QUEIROGA, 2011). Por muito tempo, essa ideia de síntese esteve atrelada à valorização da imagem única, do instante decisivo, capaz de traduzir visualmente um evento noticioso, possivelmente remetendo a um começo, meio, fim. Porém, apesar de ser muito comum designar certos fotojornalistas como “contadores de histórias”, teoricamente parece existir alguma resistência de se considerar a possibilidade de a imagem fixa ser dotada de narratividade. O que se chama de narrativa visual costuma trazer em causa obras cuja leitura depende da sequência, do tempo de leitura linear, como o cinema, os quadrinhos, as fotonovelas e dificilmente a fotografia. A aparente ausência do tempo como dimensão de desdobramento das ações e o efeito de imediaticidade que se dá na percepção de imagens fixas parecem pôr em xeque a análise da fotografia enquanto texto narrativo, pois

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o que se dá, aqui, é um desequilíbrio entre abordagens dedicadas ao tempo e dedicadas ao espaço (LISSOVSKY, 2000; BAETENS, 1998). Para resolver esse problema, partir-se-á do princípio pragmático de que a temporalidade na fotografia não é uma propriedade intrínseca aos materiais, mas instituída através de regimes de percepção. A experiência temporal da fotografia é instaurada pelo agenciamento narrativo feito na recepção e instruído pela(s) própria(s) foto(s) e seus contextos de publicação e circulação. O problema da representação do instante começou a ser tratado ainda no início do século XVIII, com o escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing, no Laoconte, obra marcada pela distinção clássica entre artes do espaço e artes do tempo. Ao tratar das limitações da representação do movimento na pintura, o autor parte do princípio de que existe um determinado instante – a que dá o nome de instante “pregnante” – que é capaz de exprimir a essência do acontecimento, contendo virtualmente todo o curso de uma ação, remetendo assim a um antes e a um depois (LESSING, 1998). Seria uma espécie de mônada, uma estrutura temporal que contém, virtualmente, passado, presente e futuro (lembrando a definição de narrativa em Ricoeur). A escolha de qual instante representar levaria em conta o clímax da ação: é a partir do ápice do movimento que o espectador tem condições de reconhecer o que sucedeu antes e como o acontecimento desdobrar-se-á. Dessa forma, o instante “pregnante” (ou instante fecundo, ou instante climático) permite conceber toda uma estrutura narrativa condensada em uma imagem única. A invenção da fotografia foi importante por revisar o conceito de instante pregnante de Lessing e adaptá-lo ao novo tipo de imagem que estava surgindo, e que trazia uma relação um pouco diferente com o tempo, especialmente no modo de capturar esse instante. A percepção dessa nova relação retardou-se um pouco por conta da demanda de um longo tempo de exposição e a consequente necessidade

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da pose. Mas, progressivamente, a velocidade de captação aumentou, permitindo experiências esclarecedoras com relação ao movimento, como a de Muybridge, em 18779. “Foi a partir dessa possibilidade de retenção de um instante qualquer que se percebeu que os supostos instantes figurados pela pintura tinham sido inteiramente reconstruídos” (AUMONT, 1993. p. 233). É interessante contrapor a reação de espanto causada pela experiência de Muybridge com a posterior naturalização do movimento congelado. O fato de, nos dias de hoje, não haver mais surpresa diante do instante capturado não implica que a percepção do mundo funcione da mesma maneira que a fotográfica, mas que nossos hábitos perceptivos (sedimentados na cultura) já nos ensinaram como lidar com esse tipo de imagem (pode-se falar aqui em “alfabetismo fotográfico”). Com a redução do tempo de exposição na fotografia, o momento decisivo passou a ser cada vez mais festejado e a servir como um dos modelos a serem seguidos. A crescente automatização das câmeras contribuiu para esse ideal de fotografia no qual “toda a espessura temporal que cerca o momento da tomada é como que anulada ou esvaziada de sua substância” (BAETENS, 1998, p. 232). Mesmo quando se definiu o instante pregnante como um momento no qual o antes e o depois estão implícitos, sempre se tratou esse ponto climático como um instante congelado no tempo. “A fotografia logo tornou-se a arte e a técnica da tomada isolada, da imagem única, do congelamento de um instante temporal curto, deslocado do antes e do depois do fluxo do tempo” (BAETENS, 1998, p. 232). Jacques Rancière nota que, “na virada dos anos 1920/1930 principalmente, o destino da fotografia como arte ligou-se à sua vo-

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O fotógrafo conseguiu capturar diversos instantâneos do galope de um cavalo, decompondo todo o movimento do animal e percebeu-se que nenhuma fase da ação reproduzida nas fotografias correspondia ao que era tradicionalmente representado na pintura (com os cavalos planando, sem nenhuma das patas tocando o solo).

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cação de registrar qualquer acontecimento insignificante, de conferir a aura da história ao comum da vida e imprimir a marca do cotidiano aos grandes acontecimentos históricos” (RANCIÈRE, 2003, p. 12). O que se entende por ‘instante decisivo’? Aparentemente é o encontro de certa capacidade técnica com um sonho. Tal capacidade técnica é sem dúvida herdeira da norma pictórica clássica, esperava-se que o pintor, sobretudo o pintor especializado em temas históricos, registrasse o ‘momento pregnante’ da ação, aquele no qual o sentido se esclarecia e a índole das personagens se afirmava. O sonho é o dos tempos românticos: deter o instante que passa, fixar o brilho fugidio dos momentos felizes, de uma felicidade íntima, oposta às ações espetaculares representadas pelos pintores acadêmicos (RANCIÈRE, 2003, p.12).

O instante pregnante é, na verdade, um instante produzido, e só pode ser obtido lançando-se mão de convenções pictóricas (mesmo que através de critérios de escolha posteriores ao golpe de corte, uma vez que muitas vezes o fotógrafo mal sabe o que está efetivamente fixando na câmera). “O instante pregnante de fato é uma noção de natureza plenamente estética, que não corresponde a nenhuma realidade fisiológica (...). Representar um acontecimento por um ‘instante’ só é possível buscando apoio (...) nas codificações semânticas dos gestos, das posturas, de toda a encenação” (AUMONT, 1993, p. 232). Desse modo, o instante pregnante na representação não é um fato dado, mas construído. Uma vez que a imagem não se manifesta através de um fluxo temporal, o tempo é representado convencionalmente, através de códigos. A imagem, através de determinadas convenções, indica movimento exigindo uma atividade de preenchimento do leitor, que constrói o que vem antes e depois. A partir do nosso repertório de experiência prévia (tradição) e das pistas oferecidas pelo texto visual

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sobre o que se sucedeu e o que está para acontecer, configuramos o mundo da representação e entendemos a narrativa. Como em um jogo de tentativas e erros, somos convocados a preencher as lacunas de uma determinada forma e tecemos hipóteses que se confirmam ou não a partir do jogo proposto pela imagem. Essas instruções de leitura, presentes nas imagens, se manifestam levando em conta esquemas já sedimentados pela cultura. “A fotografia não possui, em si mesma, qualidades temporais e, se exprime um sentido de desdobramento mítico (de história), é porque certamente somos capazes de complementar estes elementos, no nível de nossa atividade imaginadora” (PICADO, 2003). Picado (2003) fala assim de uma dimensão pragmática da recepção da fotografia. Apesar de não possuir intrinsecamente uma dimensão temporal, as fotografias podem ser agenciadas numa dimensão temporal. Independentemente da característica fixa dessas imagens, o regime de compreensão que está em jogo instaura um valor narrativo. Ao adotar a concepção romântica de Lessing (1998) para a fotografia, é preciso ressaltar que nem todas as ações possuem um clímax definido. Que não é possível, em todos os casos, detectar uma organização da narrativa contendo um ponto climático. Ainda assim, a possibilidade de fixação de qualquer instante no fluxo do tempo não desviou a fotografia da perseguição daquele determinado instante decisivo. Continua havendo uma aparente tentativa de vinculação da praxis fotográfica aos moldes da tradição pictórica.

Considerações finais: pensando imagens no plural A crença no poder e eficácia da imagem única, portanto, parece ter, por muito tempo, assombrado as expectativas do gênero fotojornalístico, reforçando a falsa ideia de que uma fotografia eficiente pode superar a legenda e a história e negligenciando o poder dos sistemas

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comunicativos onde ela está inserida, suas estruturas características e seus modos de endereçamento (GELDER, WESTGEWEEST, 2011). Ao invés de reproduzir essa mitologia do instante decisivo e avaliar apenas casos excepcionais e descontextualizados, o que aqui se propõe é justamente analisar as condições de produção da narrativa visual, dentro do seus contextos de publicação, sem perder de vista as diversas formas de articulação de conteúdo visual com outros componentes da mídia (GUNTHERT, 2013). Ao adotar o conceito de narrativa para investigar o fotojornalismo, é preciso pensar as imagens no plural, para além do paradigma do scoop e da foto única, em uma abordagem interdisciplinar, que inclua não somente problemas específicos da fotografia e do jornalismo contemporâneos, mas também se beneficie de avanços de debates cotidianos, discutidos no campo da teoria da narrativa visual, especialmente no agenciamento de histórias em hibridização das mídias (RYAN, 2004). O debate acerca da lógica de interação entre imagens e o conjunto de recursos retóricos envolvidos nas narrativas fotográficas levanta duas comparações históricas inescapáveis: a primeira é fruto de um contraste com uma tradição jornalística que privilegia a imagem única, a lógica do scoop e do instante decisivo (SOUZA, 2000). A segunda dá-se por analogia com a tradição do ensaio fotográfico paralelo que, por sua vez, pode ser desmembrado em três fatores (CAPLE, KNOX, 2012). Em um primeiro momento, assoma a questão da autoria e da presença pressuposta do fotógrafo como autor do ensaio. O ensaio fotográfico dos “anos dourados” do fotojornalismo apregoava um culto à figura do “autor”, responsável por todas as etapas de produção. Nas galerias online, a autoria muitas vezes é coletiva e/ou institucional, as imagens podem vir de diversas fontes (fotógrafos profissionais ou não, diferentes agências, freelancers, fotojornalista-cidadão, arquivos, câmeras de segurança) e formatos (fotografia, ilustrações, infográ-

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ficos, quadrinhos) (SILVA JR., QUEIROGA, 2011). A derrocada do paradigma realista, aliada à multiplicidade de fontes e excesso de imagens, traz também desafios de ordem prática nas rotinas produtivas do jornalista, demandando “um reposicionamento de práticas, que agregue e filtre a enxurrada de imagens em que estamos imersos” (SILVA JR., 2013). Além disso, há a necessidade de uma estrutura retórica de contextualização e hierarquização, que minimize a polissemia da imagem e distinga a galeria como um “texto” orgânico e sequencial e não um simples amontoado de imagens agrupadas por tema (como por exemplo, imagens do dia). Esse arranjo narrativo é, na maior parte dos casos, pós-fotográfico e necessariamente afetaria a reivindicação por uma suposta neutralidade documental (cujo estatuto já ameaçado pela perda da indexicalidade do digital, discutida anteriormente). Num terceiro momento, deve-se levar em consideração a relação com outras gramáticas, especialmente o texto (legenda ou narração), mas também musical, gráfica, fílmica, por exemplo. Essa discursividade visual é imposta não apenas por uma ordenação, mas por um hibridismo com outros modos. Nesse cenário, na era digital, o poder do fotógrafo foi transferido para o editor de imagens (BATE, 2001), cuja presença autoral muitas vezes é propositalmente apagada pela publicação. A figura do curador, que checa a veracidade e contextualiza o fluxo de imagens, funcionaria como uma espécie de metafotógrafo, relativizando a própria noção de autoria (que, de qualquer sorte, é também conceito moderno e em crise). O fotojornalismo atual se constitui como um conjunto de práticas expandido, onde não só o estatuto da singularidade do fotógrafo como agregador de um certo conjunto de competências é posto em questão, como o mesmo passa a ser não somente um fotógrafo, mas um analista e construtor de sistemas que integra

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as tecnologias fotográficas com as digitais, em um mundo que é totalmente binário no que diz respeito à produção, tratamento e circulação de imagens (SILVA JR., 2008, p. 8).

O percurso acima enquadra-se justamente nessa tendência em superar o conceito estanque de fotojornalismo e adotar o campo expandido do “jornalismo visual” (RITCHIN, 2010), no qual fotografias são tomadas no plural, e dividem espaço com outras gramáticas visuais, sonoras, textuais etc, em ambientes multi/hipermidiáticos (SILVA JR., QUEIROGA, 2010). Um dos desafios que se desenham nesse novo jornalismo visual é justamente o de acolher novas estratégias de articulação entre discursos híbridos, não em regime de redundância, mas de suplementaridade. A predominância de abordagens monolíticas, como se viu, fez com que questões como a interação da imagem com outras mídias e os diversos contextos de circulação da imagem mesma fossem, por longo tempo, subestimadas e negligenciadas. O que se propõe é justamente contribuir com a efervescente discussão desses novos desafios desenhados por um novo modo de conceber o jornalismo visual.

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Parte 1 y x POR UMA ABORDAGEM NARRATIVA DO FOTOJORNALISMO CONTEMPORÂNEO

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Sumário y

Parte II y JORNALISMO, PRODUÇÃO E QUALIDADE

BASES CONCEITUAIS PARA UM SISTEMA INFORMATIZADO DE GESTÃO DA PRODUÇÃO JORNALÍSTICA COM FOCO NA QUALIDADE EDITORIAL Josenildo Luiz Guerra

Introdução As pesquisas realizadas por nosso grupo de pesquisa, ao longo dos últimos anos, não foram focadas na área de tecnologia. Nem a tinham como objetivo. Mas, a partir de um determinando momento, a tecnologia ou, mais especificamente, a ideia de sistemas informatizados para a gestão de processos jornalísticos, especialmente orientados à produção de indicadores de qualidade editorial, se mostrou tão necessária a ponto de se constituir num ponto de convergência de nossos esforços. Em síntese, o diagnóstico que orienta nossos estudos aponta para as limitações de natureza processual que afetam a capacidade das organizações jornalísticas em produzir conteúdos noticiosos mais qualificados, entendendo-se por isso basicamente maior pluralidade, maior relevância, maior diversidade de assuntos e maior segurança das informações publicadas. Ou seja, tais requisitos de qualidade editorial são, muitas vezes, prejudicados em função de processos de produção jornalística ineficazes.

x ASES CONCEITUAIS PARA UM SISTEMA INFORMATIZADO DE GESTÃO DA PRODUÇÃO JORNALÍSTICA COM FOCO NA QUALIDADE EDITORIAL

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Os estudos do newsmaking demonstram fartamente como as rotinas produtivas dos jornais são voltadas para a produtividade dos canais de apuração, nos quais predominam fontes oficiais e os fatos promovidos por tais fontes, que relega outros atores sociais e fatos situados às margens desses canais a papel secundário na cobertura (Gans, 1980; Altheide, 1976, Roscho, 1975). Esse diagnóstico, ainda válido para as grandes empresas jornalísticas, não obstante as transformações tecnológicas que alteraram a dinâmica de produção de conteúdo no mundo contemporâneo, destaca especial atenção aos processos de produção que têm sido objeto de preocupação em nossas investigações. O interesse pelos processos de produção anda a par e passo com a preocupação sobre os produtos gerados por esses processos. Por isso, o desafio que se desenhou para nossas pesquisas foi o de vincular os critérios e metodologias de avaliação de qualidade editorial de produtos, já em alguma medida aplicados em pesquisas anteriores, aos processos de produção. Se o diagnóstico eventualmente negativo de notícias ou de coberturas ainda em fase de produção puder ser identificado, há meios para que a equipe do jornal possa promover as correções de rota antes de o material ser publicado. A forma para operacionalizar essa ideia foi através de um sistema informatizado de gestão do processo jornalístico que pudesse permitir a estruturação do fluxo de produção, condicionado a parâmetros de desempenho editorial. Como resultado, foi desenvolvido o protótipo do Sistema de Gestão da Produção Jornalística (SGPJ), em parceria com uma equipe de Ciência da Computação1, que teve em 2010 uma primeira versão contendo funcionalidades básicas. Atualmente, após sucessivos aperfeiçoamentos, o protótipo permite

1

Essa equipe é sempre liderada pela Profa. Débora Maria Coelho Nascimento (Departamento de Computação - UFS), que reúne e orienta estudantes de Ciência da Computação interessados no projeto.

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avaliar os requisitos de segurança da informação, relevância, pluralidade e diversidade de conteúdo. Obviamente, todo este trabalho ainda se encontra em fase experimental, em que se busca tanto aprimorar as metodologias de avaliação de qualidade embarcadas no sistema quanto os recursos de operação do software em si. O objetivo deste artigo, entretanto, não é o de detalhar o SGPJ, mas o de apresentar o percurso teórico que levou ao sistema como uma solução para o problema da avaliação de qualidade dos produtos e, por consequência, da necessidade de envolver os processos jornalísticos nesta reflexão. Para tanto, iremos partir de uma apresentação do conceito de sistemas de informação, para, na sequência, apresentar cinco grupos de fundamentos que ajudaram na estruturação e no contínuo desenvolvimento do SGPJ: `` Fundamentos sobre qualidade, que definem os requisitos e indicadores necessários à avaliação de produtos, os quais, sendo introduzidos no processo, auxiliam na produção de diagnósticos e se convertem em importantes instrumentos de gestão editorial; ``

Fundamentos organizacionais, pois os processos de produção são parte do funcionamento de uma organização, cuja dinâmica de gestão e operação é importante levar em conta, pois constitui o ambiente no qual todos os demais fatores interagem;

``

Fundamentos processuais, relativos à definição de processo em si e de seus elementos, a partir do que se torna possível entender e prospectar variáveis para a sistematização de novos processos;

``

Fundamentos em gestão do conhecimento, pois uma organização jornalística processa dados e informações a partir de vários jornalistas, tornando essencial estratégias para sistematizar e organizar o conhecimento desses vários indivíduos, de forma a se construir um patrimônio de saber organizacional;

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``

Fundamentos em métodos de apoio à decisão, afinal, em uma organização jornalística, tomam-se decisões em todas as etapas de produção, sendo necessário oferecer meios mais sofisticados aos seus profissionais para se decidir entre as melhores opções disponíveis.

Esse conjunto de temas, muito estudado nas áreas de administração e engenharia de produção, pode dar uma grande contribuição às pesquisas em jornalismo no que diz respeito à reestruturação de seus processos produtivos e no ganho da qualidade editorial que eles podem proporcionar.

Sistemas de Informação Os sistemas de informação são instrumentos essenciais a qualquer negócio atualmente, em virtude da difusão do uso de computadores e das redes de comunicação por eles tornadas possíveis. Tanto que é comum se falar, hoje em dia, que não existe sentido em computadores “fora das redes de comunicação”, uma espécie de “máquina de datilografar moderna”. Computador só faz sentido se conectado a redes que permitam a seus usuários o acesso a variados tipos de informação, disponíveis nos mais diversos bancos de dados. Nesse sentido, elas acabam por desempenhar importantes papeis nas organizações, dos quais alguns se destacam, tais como: suporte para os processos e operações; suporte na tomada de decisões de seus funcionários e gerentes; e suporte em suas estratégias na busca de vantagem competitiva (O’BRIEN, 2010, p. 18). Um sistema de informação “é um conjunto organizado de pessoas, hardware, software, redes de comunicação e recursos de dados que coleta, transforma e dissemina informações em uma organização”. As pessoas têm recorrido aos sistemas “para se comunicar, utilizando […] uma diversidade de dispositivos físicos (hardware), instruções e

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procedimentos de processamento de informação (software), canais de comunicação (redes) e dados armazenados (recursos de dados) ” (O’BRIEN, 2010, p. 6). O autor destaca que um sistema não existe “no vácuo”. Isto é, funciona em um “ambiente que contém outros sistemas. Se um sistema for um dos componentes de um sistema maior, ele é um subsistema e o sistema maior é seu ambiente” (O’BRIEN, 2010, p. 8). Essa característica é importante para destacar que um sistema de informação deve estar devidamente situado no ambiente organizacional. Um sistema “em si” pode ser inútil se desvinculado de um processo de produção e do ambiente organizacional que o acolhe. Se não houver tal acoplamento, o sistema pode não contribuir com o desempenho organizacional de forma satisfatória. Um sistema de informação contém cinco principais recursos: pessoas, hardware, software, dados e redes. Os recursos humanos são as pessoas necessárias para a operação dos sistemas. Podem ser usuários finais, aqueles que utilizam os sistemas ou a informação que eles produzem, e os especialistas em Sistema de Informação (SI), aqueles encarregados de seu desenvolvimento. No caso dos usuários, grande parte deles são os chamados “trabalhadores do conhecimento”, aqueles que “gastam a maior parte de seu tempo se comunicando, colaborando em equipes e grupos de trabalho e criando, utilizando e distribuindo informações” (O’BRIEN, 2010, p. 11). Vê-se que, nesse caso, o jornalista tem um perfil altamente identificado como os usuários típicos dos sistemas de informação. Os recursos de hardware “compreende todos os dispositivos físicos e equipamentos utilizados no processamento da informação” (O’BRIEN, 2010, p. 11). Envolve tanto máquinas como mídias. Os recursos de softwares dizem respeito aos “conjuntos de instruções de processamento de informação” (O’BRIEN, 2010, p.12). Nesse conceito genérico, estão o conjunto de instruções operacionais, chamados de

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programas (tanto os de sistema quando os aplicativos2), quanto os procedimentos, “instruções operacionais para as pessoas que utilizam um sistema de informação” (O’BRIEN, 2010, p. 12). Os recursos de dados são um “valioso recurso organizacional”. Podem ser organizados em dois grupos: 1) “base de dados que guarda dados processados e organizados”; e 2) “bases de conhecimento que guardam conhecimento em uma multiplicidade de formas, como fatos, regras e exemplos ilustrativos sobre práticas de negócios bem-sucedidos”. O último tipo dos recursos, mas não menos importantes, são os recursos de rede, como internet, intranet e extranets, “essenciais ao sucesso de operações de todos os tipos de organizações e de seus sistemas de informação computadorizados” (O’BRIEN, 2010, p. 12 e 13). Por fim, os sistemas realizam cinco atividades básicas: entrada de recursos de dados, que representam a alimentação do sistema, através do registro de dados; processamento, que organiza, analisa e manipula dados, convertendo-os em informações para o usuário; saída, que é a informação transmitida e colocada à disposição para o usuário final; armazenamento, a guarda de registros sobre as operações realizadas; e o controle, atividade através da qual se monitora o desempenho do sistema através da produção de feedbacks (O’BRIEN, 2010, p. 16). O uso de sistemas de informação para a gestão da produção jornalística constitui, em virtude das características e funcionalidades expostas, importante ferramenta para armazenamento, avaliação, tratamento e comunicação das informações disponíveis. Para tanto, é fundamental que suas partes, pessoas, hardware, software, redes de comunicação e recursos de dados, estejam devidamente articuladas entre si, e todas articuladas com os propósitos de ação organizacional definidos em sua estratégia. 2

Softwares de sistema são um programa de sistema operacional, que controla e apoia as operações de um sistema de computador. Já softwares aplicativos são programas que processam diretamente para uso particular por usuários finais (Ver O’BRIEN, 2010, p. 12).

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Por isso, o sistema deve estar ajustado aos processos de produção da organização, isto é, o ambiente virtual criado pelo sistema para processar as atividades da equipe jornalística deve representar a lógica do trabalho jornalístico operada na organização. Entretanto, se o sistema introduzir elementos inovadores no processo, como é o caso do SGPJ, estruturado em função dos indicadores de qualidade editorial, há que se implementar, por um lado, o devido trabalho de familiarização entre o sistema e os processos próprios da organização e, por outro, a necessária mudança da cultura organizacional, a fim de ajustá-la a processos de produção mais eficientes e eficazes.

Fundamentos da gestão da qualidade3 O compromisso com a qualidade figura como ponto central em discursos de várias organizações, jornalísticas ou não. Segundo Slack, Chambers e Johnston (2007, p. 549), “jornais de negócios e revistas de gerenciamento são dominados por artigos sobre qualidade. Parece que temos vivido uma ‘revolução de qualidade’”. A causa para tanta atenção decorre, segundo os autores, de uma crescente consciência de que: […] bens e serviços de alta qualidade podem dar a uma organização uma considerável vantagem competitiva. Boa qualidade reduz custos de retrabalho, refugo e devoluções e, mais importante, boa qualidade gera consumidores satisfeitos. Alguns gerentes de produção acreditam que, a longo prazo, a qualidade é o mais importante fator singular que afeta o desempenho de uma organização em relação aos seus concorrentes (SLACK; CHAMBERS; JOHNSTON, 2007, p. 549).

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O tema está desenvolvido em maior profundidade em outros trabalhos (Cf. GUERRA, 2008, 2010a, 2010b, 2010c).

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A qualidade é um recurso organizacional de vinculação entre a esfera da produção de bens e serviços e a esfera do consumo desses bens e serviços. Em relação aos produtores, a incorporação efetiva da gestão da qualidade e sua implementação trazem vantagens competitivas para a organização, que podem colocá-la na liderança do segmento em que atua. O retorno pretendido pode vir na melhoria da imagem organizacional projetada publicamente e no aumento dos ganhos materiais e simbólicos decorrentes da condição alcançada. A discussão sobre a qualidade no âmbito do jornalismo acaba por apresentar duas sérias limitações: a) não há demonstração de resultados, com dados de aferição obtidos por métodos claros e confiáveis; b) em consequência, nem sempre é reconhecida objetivamente pelos demais atores da área como válida. Essas duas limitações nos remetem a três desafios que podemos identificar junto à comunidade científica de pesquisadores em jornalismo, aos gestores organizacionais, aos profissionais dos meios de comunicação e à sociedade: a) desenvolver métodos claros e confiáveis para a avaliação de desempenho do trabalho e de qualidade dos produtos jornalísticos; b) obter parâmetros consensuais acerca das melhores práticas e dos valores que devem reger o negócio; c) produzir pesquisas geradoras de inovação tanto de métodos de avaliação quanto de produção jornalística, capazes de atender a exigências cada vez maiores – espera-se – de qualidade (medida e verificada) para produtos jornalísticos. O desenvolvimento de sistemas como o SGPJ se inclui nesse terceiro desafio, embora não consiga se concretizar efetivamente sem que os dois desafios anteriores sejam enfrentados e vencidos, mesmo que parcialmente. Segundo a norma ABNT NBR ISO 9000:2005, qualidade é o “grau no qual um conjunto de características inerentes satisfaz a requisitos”, sendo requisito a “necessidade ou expectativa [em relação a um produto ou serviço] que é expressa, geralmente, de forma implícita ou explícita”. Em suma, o conceito de qualidade pressupõe

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uma comparação entre características apresentadas pelos produtos e os requisitos: a) necessários para o seu funcionamento e b) esperados pelos usuários. Quanto mais próximas as características estiverem dos requisitos, maior a qualidade. No âmbito da atividade jornalística, são quatros as expectativas básicas da audiência em relação à notícia com que temos trabalhado em nossas pesquisas: verdade, relevância, pluralidade e diversidade. Sem entrar no mérito teórico de cada um, que não é o escopo deste artigo, é possível reconhecer neles demandas importantes da sociedade em relação ao trabalho da imprensa. Esses quatro parâmetros, para serem efetivamente considerados dentro de uma visão da qualidade, precisam ser estruturados em três conceitos que, juntos, permitem efetivamente um processo de avaliação de qualidade: requisitos, indicadores e padrão. Onde: `` Requisitos: expressam a necessidade ou a expectativa em relação a um produto, geralmente, de forma implícita ou explícita. ``

Indicador: é o mecanismo de medição do grau de conformidade do produto ao requisito4.

``

Padrão: é referência que indica o nível esperado de conformidade e de não conformidade entre o objeto da avaliação e os requisitos pretendidos5.

Tais requisitos, indicadores e padrões foram incorporados ao sistema desenvolvido, de modo que cada notícia que entra no processo jornalístico, na etapa de triagem, por exemplo, exige que o jornalista

4 Indicadores “são importantes ferramentas de gestão que fornecem um valor de referência a partir do qual se pode estabelecer uma comparação entre as metas planejadas e o desempenho alcançado” (PAIXÃO apud MIRANDA, DIAMANTINO e SOUZA, 2009, p. 68). 5 “Todos os indicadores de qualidade, em seus níveis de abrangência, precisam ter padrões de comparação. Os padrões podem ser resultados de benchmarking ou metas da organização. Dessa forma, estes podem ser utilizados pela organização para o controle e a melhoria, que pode ser tanto reativa quanto proativa” (MARTINS apud MIRANDA, DIAMANTINO e SOUZA, 2009, p. 68).

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responsável sinalize quais os atributos de relevância, de pluralidade, de diversidade e de segurança da informação nela identificados. Sem entrar no mérito de como isso é feito, por ser irrelevante neste momento, o resultado prático é que esta matéria terá vinculado a si um conjunto de informações, no sistema, sobre como o jornalista responsável avaliou sua relevância, sua segurança, a pluralidade e a diversidade do conteúdo, ora considerando dados específicos sobre a matéria, ora considerando o conjunto das matérias produzidas ou em produção. A marcação dos indicadores de qualidade é uma regra do sistema, que vai gerar um conjunto de indicadores editoriais para a organização. Esse volume de dados alimenta a produção de um conhecimento que a organização produz acerca do seu trabalho, através do processo de gestão do conhecimento (tópico 5), e se constitui em importante recurso de apoio à decisão editorial (tópico 6).

Fundamentos organizacionais6 Uma organização é uma estrutura complexa. Segundo Chiavenato (2007), as organizações “são unidades sociais (agrupamentos humanos), intencionalmente construídas e reconstruídas, com o fim de atingir objetivos específicos”. Isso significa que as organizações são “propositada e planejadamente construídas e elaboradas para atingir determinados objetivos e também são reconstruídas e reelaboradas, ou seja, reestruturadas e redefinidas, conforme os objetivos são atingidos ou conforme se descobrem meios melhores para atingi-los com menor custo, menor esforço e menor tempo” (CHIAVENATO, 2007, p. 33). No caso de organizações jornalísticas, por exemplo, se há a percepção de que seus processos de produção têm apresentado limitações quanto aos requisitos esperados de qualidade, um dos 6

O tema foi desenvolvido em maior profundidade em outros trabalhos (Cf. GUERRA, 2008, 2010a, 2010b e 2010c).

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caminhos é repensar a forma como esses processos estão concebidos e são realizados. Toda organização dispõe de recursos de que ela necessita e pode dispor para alcançar seus objetivos. Os recursos são os “meios empregados para possibilitar as ações e operações da empresa e proporcionar eficiência e eficácia no alcance dos resultados desejados” (CHIAVENATO, 2007, p. 59). Os recursos das organizações podem ser classificados em cinco grupos: recursos físicos e materiais; recursos financeiros; recursos humanos; recursos mercadológicos e recursos administrativos (CHIAVENATO, 2007, p. 60-61). Esse conjunto de meios, a depender da fartura ou da escassez em uma organização, pode potencializar ou limitar sua capacidade de ação. É possível existir diversos níveis de ação dentro de uma organização. Cada qual, segundo Chiavenato (2007), desenvolve diferentes enfoques quando considerados em relação aos objetivos organizacionais, a partir de sua própria racionalidade. “A racionalidade é o imperativo de todas as atividades administrativas de uma empresa e é o que a leva a uma infinidade de comportamentos diferentes para alcançar os seus objetivos” (CHIAVENATO, 2007, p. 43). Está relacionada aos meios e métodos empregados para se atingir os objetivos. Entretanto, a racionalidade atravessa múltiplas funções dentro da organização, como a produção, a de desenvolvimento de produtos, a de marketing & vendas, a contábil-financeira e a de recursos humanos. Disso resulta o desafio de tentar conciliar as diferentes racionalidades próprias de cada função, como a do setor financeiro, querendo elevar os lucros, e o do setor de produção, exigindo investimentos para melhorar a qualidade de um determinado produto. No jornalismo, tem-se o dilema clássico entre o setor comercial, interessado em ampliar as vendas, e a redação, preocupada em não ceder a apelos fáceis, preservando a seriedade jornalística.

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Uma das formas de se tentar enquadrar os conflitos de racionalidade, a fim de garantir uma atuação coesa da organização, é a sua divisão em níveis estratégico, intermediário e operacional. No nível estratégico, definem-se as grandes linhas de ação que devem nortear a organização. A partir daí, são divididas responsabilidades entre os vários setores (financeiro, produção, etc.), cabendo a cada uma identificar e cumprir suas ações na direção proposta pelo nível estratégico. Tais definições serão efetivamente implementadas através do nível operacional, nível no qual as atividades são efetivamente realizadas, sob as diretrizes e orientações dos níveis intermediários e estratégicos. A ênfase do sistema informatizado de que estamos tratando é a dos processos jornalísticos strictu senso, movida pela racionalidade da “função produção”, apresentada por Slack, Chambers e Jhonston (2007) como a “responsável por satisfazer às solicitações de consumidores por meio da produção e entrega de produtos e serviços” (2007, p. 32). Os autores destacam ainda que o setor responsável pela produção deve ser capaz de responder a duas questões: 1) qual papel se espera que ela desempenhe dentro da organização? e 2) quais os objetivos de desempenho específicos utilizados pela organização para avaliar a contribuição da produção em suas aspirações estratégicas? (SLACK, CHAMBERS e JHONSTON, 2007, p. 63). Toda função produção opera um processo de transformação, o uso de recursos para mudar o estado ou condição de algo para produzir resultados, ou saídas (SLACK, CHAMBERS e JHONSTON, 2007, p. 36). Em se tratando de um processo jornalístico, por exemplo, a transformação se dá na obtenção de uma informação ou dado bruto disponível no ambiente social para a sua apresentação na forma de notícia, em cujo processo houve uma agregação de “valor” relativo à veracidade da informação (por meio de procedimentos de apuração e checagem), à relevância (por meio de avaliações sobre a adequação às expectativas da audiência), a apresentação (sintetizada e tornada

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mais atraente através das atividades de edição), entre outros inúmeros benefícios conseguidos em relação à informação ou dado bruto que lhe serviu de matéria-prima. Toda produção, portanto, opera um processo de transformação. Toda organização, em consequência, que gerencia necessariamente sua produção, gerencia o processo de transformação que caracteriza o seu negócio. Entretanto, o faz a partir dos recursos disponíveis que têm. Nesse sentido, todo processo operado por uma organização tem características muito peculiares em função da forma como cada organização dispõe dos meios para implementar sua produção. Não é diferente para organizações jornalísticas.

Fundamentos em gestão dos processos A produção envolve “um conjunto de recursos de input usado para transformar algo ou para ser transformado em outputs de bens e serviços” (SLACK, CHAMBERS e JHONSTON, 2007, p. 36). Todo processo, portanto, opera a partir de entradas, submetidas a uma transformação, que resultam em saídas, produtos gerados pela atividade de transformação aplicada sobre os recursos de entrada. Os recursos de entrada podem ser de dois tipos: recursos de entrada transformados, aqueles que são processados, convertidos em alguma coisa final, na forma de saída; recursos de entrada de transformação, aqueles que agem sobre os recursos transformados, como as pessoas, os equipamentos, etc. (SLACK, CHAMBERNS e JHONSTON, 2007, p. 37). Os recursos transformados são um composto de materiais, informações e consumidores. Uma fábrica de sapatos processa essencialmente materiais, couro, borracha, cola, recursos de entrada que saem na forma final de sapato. Um hospital processa pessoas, que entram enfermas e saem, espera-se, curadas (SLACK, CHAMBERNS e JHONSTON, 2007, p. 38). Uma organização jornalística processa

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essencialmente informação, sobre uma declaração de fonte, sobre um fato ocorrido, sobre um documento que, tratados jornalisticamente, vão sair na forma de notícia. Os recursos de entrada de transformação, aqueles que agem sobre as entradas a serem transformadas, são subdivididos em dois grupos: instalações e funcionários. Em instalações estão prédios, equipamentos e a tecnologia empregada no processo de produção. Em funcionários, estão todos aqueles que planejam, administram e operam o processo de transformação, em todos os níveis organizacionais. O processo tem uma hierarquia, a partir de como suas partes podem ser logicamente organizadas e fisicamente estruturadas (OLIVEIRA, 2006, p. 158). Essa hierarquia contribui para facilitar a compreensão do conjunto de atividades e pessoas envolvidas na elaboração e implementação do processo. O processo é então organizado em níveis que podem ser assim classificados: macroprocesso, considerando a descrição mais geral da operação; processo, um nível departamentalizado dentro do macroprocesso; subprocesso, que representa atividades desempenhadas dentro do processo; e microprocesso, uma tarefa executada dentro da atividade. São várias as formas de expressar tais níveis, entretanto, o importante é perceber o objetivo de esquadrinhar e organizar o macroprocesso, a descrição global da operação, em níveis menores e consequentemente melhores sistematizados e gerenciados. Ao subdividir o macroprocesso em processos, são criadas as figuras do “fornecedor interno” e do “consumidor interno”, que representam os que recebem e fornecem inputs e outputs em qualquer processo. O processo de transformação é formado por etapas, nas quais seus agentes participam, ora como fornecedores internos, entregando parte do trabalho total que corresponde à sua responsabilidade para outro grupo, ora participam como clientes internos, recebendo de alguém uma parte do trabalho a qual deverão dar prosseguimento

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(SLACK, CHAMBERNS e JHONSTON, 2007, p. 44). Em uma organização jornalística, a equipe de pauta é fornecedora interna da equipe de reportagem, que é fornecedora interna da equipe de editores. Dito de outra forma, a equipe de editores é cliente interna da equipe de reportagem, que é cliente interna da equipe de pauta. O desafio na gestão de um processo é a manutenção da visão de conjunto do macroprocesso, apesar das divisões em processos, a fim de garantir a coesão do trabalho dos diferentes grupos encarregados de tocar a operação. Segundo o Plano Nacional da Qualidade (apud OLIVEIRA, 2007, p. 163), a abordagem de processos tem as seguintes justificativas: o conhecimento do cliente de cada processo e suas necessidades, a fim de agregar valor ao produto; a identificação e a análise de processos levam ao melhor entendimento de como funciona a organização; permite a definição adequada de responsabilidades, o uso eficiente de recursos, a prevenção e solução de problemas; a eliminação de atividades redundantes. A gestão da produção, concebida como a realização de um macroprocesso de transformação de entradas em saídas, dividida em processos, atividades e tarefas, envolve a compreensão de um fluxo de informações que atravessa todo o ciclo de produção, em diferentes momentos, por diferentes atores. Dada a natureza do processo jornalístico, que processa dados e informações, a utilização de sistemas informatizados é altamente apropriada para o seu gerenciamento. Se tais sistemas foram adequadamente implementados, podem gerar ganhos tanto em termos de ampliação do conhecimento organizacional quanto em métodos de apoio à decisão.

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Fundamentos em gestão do conhecimento O uso de sistemas de informação torna-se uma poderosa ferramenta para potencializar o esforço de uma área de estudos, a gestão do conhecimento: A gestão do conhecimento tornou-se, assim, um dos maiores usos estratégicos da tecnologia da informação. Muitas empresas estão montando sistemas de gestão do conhecimento para administrar a aprendizagem organizacional e seu know-how. O objetivo dos sistemas de gestão do conhecimento é ajudar os trabalhadores do conhecimento a criar, organizar e disponibilizar conhecimento importante dos negócios, sempre e onde ele for necessário em uma organização (O’BRIEN, 2010, p. 60).

“Os sistemas de gestão do conhecimento facilitam a aprendizagem organizacional e a criação do conhecimento”, por isso, são projetados para fornecer feedback com rapidez aos trabalhadores, encorajar alterações de comportamento e estimular melhorias de desempenho. Assim, “enquanto o processo de aprendizagem organizacional continua e sua base de conhecimento se expande, a empresa geradora de conhecimento trabalha para integrar seu conhecimento em seus serviços, produtos e processos” (O’BRIEN, 2010, p. 60). A incorporação de uma mentalidade de gestão do conhecimento em organizações jornalísticas torna-se fundamental para um negócio em que a informação e o conhecimento são a sua essência. A gestão do conhecimento se refere à criação, explicitação e disseminação de conhecimentos no âmbito organizacional (ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p. 6). Ela pode ser vista como um “conjunto de atividades que busca desenvolver e controlar todo tipo de conhecimento em uma organização, visando à utilização na consecução de seus objetivos” (MORESI apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p. 6). Com isso, além de apenas armazenar e processar

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dados, uma organização pode desenvolver a capacidade também de gerar conhecimentos. O conhecimento é uma criação pessoal, feita por indivíduos. Entretanto, cada vez mais, esses indivíduos estão apoiados em estruturas organizacionais capazes de oferecer condições adequadas para que o gênio individual floresça, inclusive, com a aglutinação de pessoas e de esforços. Assim, constata-se que a “dinâmica da criação do conhecimento organizacional é um processo em espiral, que começa no nível individual e vai subindo, ampliando comunidades de interação que cruzam fronteiras entre seções, departamentos, divisões e organizações (NONAKA e TAKEUCHI apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.7). A passagem do conhecimento individual para o organizacional se realiza através da conversão contínua do “conhecimento tácito” em “conhecimento explícito” e vice-versa. Conhecimento tácito é o conhecimento pessoal, específico ao contexto, difícil de ser formulado e comunicado. Envolve modelos mentais que estabelecem e manipulam analogias. Seus elementos técnicos podem ser exemplificados como o know-how concreto, técnicas e habilidades que permitem ao indivíduo o saber-fazer dirigido à ação. Já o conhecimento explícito é um conhecimento declarativo, transmissível em linguagem formal e sistemática, que permite ao indivíduo o saber (entender e compreender) sobre determinados fatos e eventos, mas não lhe permite agir (NONAKA e TAKEUCHI apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.7). O conhecimento é criado e expandido por meio da interação social entre essas modalidades, em processo conhecido como conversão do conhecimento, que se dá de quatro modos: socialização, explicitação, combinação e internalização. Na socialização, a conversão de conhecimento tácito de um indivíduo é convertida para tácito de outro indivíduo, por meio de compartilhamento de experiências,

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através da observação, imitação e prática7. Na explicitação, se dá o processo de articulação do conhecimento tácito em conhecimento explícito, sendo um dos processos que deve merecer alto grau de valoração, pois disponibiliza para um grupo de indivíduos o saber gerado por uma pessoa ou um grupo delas (NONAKA e TAKEUCHI apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.10)8. No uso de um sistema como o exemplificado neste artigo, sempre que um jornalista marcar um indicador de qualidade sobre uma matéria, ele está tornando explícito o seu conhecimento tácito sobre ela. Por meio da combinação, dá-se o processo de sistematização de conceitos em um sistema de conhecimento. Aqui, são conhecimentos explícitos gerando novos conhecimentos explícitos. A troca e combinação de conhecimentos por meio de documentos, reuniões, conversas telefônicas ou redes de comunicação computadorizadas caracterizam esse modo de conversão. Quando os vários jornalistas explicitam seus conhecimentos tácitos por meio do sistema, cria-se um ambiente de troca, que pode levar a processos sistematizadores desses saberes, através da combinação. Na internalização, ocorre a incorporação do conhecimento explícito em conhecimento tácito. A verbalização e diagramação do conhecimento sob a forma de documentos, manuais ou histórias orais são fundamentais para essa conversão de conhecimento. A documentação tem importante papel na internalização das experiências nos indivíduos. Ler ou ouvir histórias de sucesso leva alguns membros da organização a sentir o realismo das questões, tornando possível que experiências passadas se transformem em modelo mental tácito (NONAKA e TAKEUCHI apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.11).

7

Exemplo clássico é mostrado pelo estudo de Breed (1993), “sobre o controle social na redação”.

8

Como exemplo, têm-se os manuais de redação.

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Todo esse processo de conversão de conhecimento pode ser melhor visualizado através do conceito de “espiral do conhecimento” (Figura 1). Figura 1 – Espiral da criação do Conhecimento

Fonte: NONAKA e TAKEUCHI apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, (2011, p. 10).

A espiral do conhecimento, para ser efetiva e tornar-se um potente recurso empresarial, depende da cultura organizacional. A cultura organizacional é o “conjunto de crenças, valores, normas e pressupostos utilizados por um grupo, por serem considerados válidos para garantir a sua sobrevivência” (SCHEIN apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.21). Constitui-se aí um jeito de ser da organização, com uma identidade reconhecível, a partir do modo como os indivíduos internalizam, reforçam ou conflitam com ele, que vai ser decisivo para a efetivação de um processo de gestão do conhecimento.

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Tal situação gera um desafio para a organização, que é o de direcionar os esforços “para que se desenvolva uma cultura propícia às práticas de gestão do conhecimento” (ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.21). Uma das formas de implementar isso é alçando a gestão do conhecimento a um componente estratégico da organização, pois “o conhecimento perde seu valor rapidamente na corrida global para desenvolver competência técnica, por isso ele deve ser incentivado e mantido sistemicamente” (PROBST, RAUB, ROMHARDT apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.74). Em consequência, o conhecimento deve ser tratado como uma “variável estratégica, e deve ser planejado, organizado, coordenado e controlado, exercendo-se também a função de comando em seu tratamento” (ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.74). Essa situação impõe um grande desafio para as organizações jornalísticas: não obstante, o fato de elas trabalharem essencialmente com informações, essas informações são levantadas por profissionais, jornalistas que têm sua valoração profissional justamente pelas informações que obtêm. Nesse sentido, há uma forte tendência de valorização individual, preservação de fontes e de informações, haja vista que é isso o que diferencia um profissional do outro. Essa cultura se torna um desafio para políticas de gestão do conhecimento que visem ao compartilhamento de informações. Numa época em que a informação e o conhecimento se tornam os principais recursos das organizações, a “gestão da informação e o processo decisório surgem como variáveis de preparação para o direcionamento das empresas às organizações do conhecimento” (ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.104). “A informação é um insumo básico do processo decisório, constante nas organizações, sendo indispensável aos decisores dispor de informações confiáveis, adequadas, em tempo certo, para que possam tomar decisões eficazes e eficientes” (ANGELONI apud ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011, p.10).

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A gestão do conhecimento torna-se, assim, um recurso estratégico, essencial para distinguir uma organização num mercado competitivo e, consequentemente, dotar suas lideranças e profissionais-chave das condições adequadas para tomar as decisões necessárias, em cada momento. Ora, quando se volta os olhos para organizações jornalísticas, vê-se que uma política de gestão do conhecimento torna-se essencial para uma atividade que tem, em sua rotina, o desafio de processar um sem número de informações e de decidir, desde a pauta até a edição final, uma série de questões que caracterizam fortemente a produção de notícias. Quando um sistema informatizado incorpora recursos de qualidade editorial, ele exige a conversão de conhecimento tácito, operado pelos profissionais na avaliação do valor jornalístico da informação, em conhecimento explícito, por meio dos indicadores assinalados, que se convertem em um patrimônio organizacional. Este patrimônio gera uma socialização do conhecimento organizacional ao mesmo tempo em que se converte, potencialmente, em um recurso de apoio à decisão para a gestão editorial dos produtos jornalísticos da organização.

Fundamentos em sistemas de apoio à decisão A tomada de decisão é uma área da administração bastante complexa. Um primeiro aspecto a se levar em conta é o contexto decisório. Nesse terreno, ocorre uma aproximação necessária entre decisão e ação, na qual o contexto em que uma decisão será efetivamente implementada como ação pode e deve influir no próprio processo de tomada de decisão. “A medida de aproximação entre ação e decisão nos dá a dimensão do campo em que se dará o jogo: estratégico, no qual decidir reflete sobre os elementos que entrarão no jogo, ou tático-operacional, no qual decidir é o jogo em si” (TORRES JR., MOURA, 2011, p. 7).

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Torres Jr. e Moura (2011) propõem cinco possibilidades que auxiliam na análise do “campo de jogo”, a fim de se perceber o contexto decisório: decisão política estratégica, decisão política, decisão tática, decisão operacional e decisão trivial. Cada qual tem um grau de dificuldade próprio, quando considerados fatores como complexidade organizacional e complexidade analítica do problema (TORRES JR., MOURA, 2011, p. 9). O que não elimina, entretanto, o desafio de buscar meios de estruturar o processo decisório do ponto de vista racional, não uma racionalidade voltada para se atingir um resultado ótimo, mas uma racionalidade limitada, na qual a decisão “sempre se relaciona a quem decide e às condições da situação que a envolve” (TORRES JR., MOURA, 2011, p. 14). Tal perspectiva reconhece dimensões, variáveis e limites do processo decisório. Como não é possível a quem vai tomar uma decisão ter disponível o total de informações, dos recursos de ação e de todas as possibilidades envolvidas, nem a medida exata das consequências de cada opção, tanto pela impossibilidade física e temporal quanto pelo custo de tal processo, “torna-se comum optar por soluções satisfatórias e razoáveis, muitas vezes, fixando-se critérios minimamente viáveis de desempenho” (TORRES JR., MOURA, 2011, p. 15). O fundamento da perspectiva da racionalidade limitada, entretanto, não enseja juízos precipitados baseados em posições do tipo “O ótimo é inimigo do bom!”. Tal postura impediria um processo decisório baseado numa perspectiva normativa, “para que em uma análise descritiva consciente se possa avaliar que as limitações que impedem o alcance do ótimo foram trabalhadas, desafiadas e quase eliminadas” (TORRES JR., MOURA, 2011, p. 15). O grande desafio de um processo decisório está na identificação de qual a melhor abordagem a ser aplicada na solução de problemas reais. Enquanto na chamada abordagem descritiva, o processo é conduzido a partir do conhecimento de como as pessoas efetivamen-

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te decidem, a abordagem prescritiva baseia-se no esforço racional de buscar a melhor decisão, servindo-se para tanto de referenciais normativos. Para Façanha e Yu (2011, p. 68), a sabedoria está em tentar ajustar o meio termo por intermédio da integração entre as duas abordagens. As diferentes ferramentas – técnicas, softwares, etc. - desenvolvidas e disseminadas pela abordagem prescritiva até o momento podem ser de grande utilidade para as pessoas e para as empresas no processo de tomada de decisão. Independente de elas serem utilizadas ou não, o real comportamento dos decisores ao longo do processo de tomada de decisão, devidamente captado pela abordagem descritiva, sem dúvida pode trazer importantes contribuições para a abordagem prescritiva que, por sua vez, pode auxiliar outras pessoas e empresas e assim sucessivamente, fazendo com que o círculo virtuoso seja uma realidade (FAÇANHA e YU, 2011, p. 68-69).

Essas duas abordagens na verdade podem se completar. Enquanto a abordagem descritiva explica como as pessoas decidem, através de processos como heurística (modelos mentais pré-configurados que norteiam decisões), vieses (visão parcial do problema), intuição (decisão baseada na experiência do decisor), decisão política (por meio de acordos e conflitos) entre outros, a abordagem prescritiva procura estruturar racionalmente o problema e a consideração das alternativas de solução, através de métodos com ênfase quantitativa, qualitativa, multicritério e multicritério apoiado em softwares (sistemas de apoio à decisão). Numa organização jornalística, essas abordagens podem ser aplicadas conjuntamente desde a elaboração de projetos editoriais, numa perspectiva estratégica, na qual se avalia objetos de interesse por parte da audiência buscada a fim de se decidir sobre quais orientações editoriais a organização irá adotar, até a operação jornalística

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regular, na qual decisões sobre grau de segurança e relevância de informação são tomadas ao longo de todo o processo. As abordagens descritivas podem ser usadas para se perceber como as audiências e demais stakeholders envolvidos no processam tomam suas decisões, para escolha de produtos jornalísticos e avaliação de relevância das notícias. As abordagens prescritivas, na conversão desses critérios em critérios editoriais, deverão, normativamente, orientar os jornalistas em seus processos de tomada de decisão na implementação da linha editorial e dos produtores regulares. Um sistema informatizado de gestão da produção jornalística, que permita a extração de indicadores de qualidade editorial, pode oferecer para as decisões editoriais, seja no nível estratégico, para reorientar o padrão de cobertura sobre determinada área, como a política ou a economia, por exemplo, a partir de indicadores de qualidade insatisfatórios, seja no nível operacional, excluindo ou diminuindo o destaque de uma matéria considerada regular segundo os padrões estipulados. Assim, os indicadores de qualidade se convertem em elementos para uma decisão prescritiva, na medida em que sinalizam por onde as decisões editoriais devem passar. Ao mesmo tempo, o sistema, como recurso de gestão do conhecimento, explicita como os jornalistas efetivamente decidem – ao permitir ver os critérios usados por eles para avaliar suas matérias – o que pode ensejar diversos processos internos à organização, seja para sistematizar seus critérios editoriais, seja para promover cursos de capacitação, a fim de melhor transmitir a seu time os fundamentos de seu projeto editorial.

Considerações finais O desenvolvimento de sistemas informatizados para a gestão dos processos jornalísticos requer um conjunto de competências ligadas às áreas das teorias da organização, de processos, de gestão

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do conhecimento e de apoio à decisão, que contribuem para definir e refinar os requisitos que o próprio sistema deverá ter para a aplicação na atividade jornalística. Sistemas informatizados desenvolvidos sem o aporte conceitual dessas áreas correm o risco de não explorar os potenciais recursos que neles podem estar incorporados. Além disso, o elemento distintivo do protótipo aqui exemplificado é a inserção dos indicadores de qualidade editorial no sistema. Há um grau de complexidade nesse esforço, pois além de pensar no desenvolvimento do sistema com todo o potencial de recursos que ele pode vir a ter, faz-se necessário refletir sobre a sistematização de requisitos, indicadores e padrões de qualidade, aliados às metodologias necessárias para sua medição, tudo isso ajustado e modelado para operacionalização no sistema. Dois aspectos estritamente ligados ao jornalismo são fundamentais na apropriação das competências ligadas às áreas de teoria da organização, de gestão dos processos, de gestão do conhecimento e de apoio à decisão aos sistemas informatizados para fins jornalísticos: a cultura profissional e organizacional, por um lado; e o desenvolvimento de pesquisas aplicadas em jornalismo, por outro. No primeiro caso, sem que se enfrentem culturas profissionais e organizacionais engessadas ou reativas à inovação dos processos de gestão editorial, o potencial para o desenvolvimento de sistemas de apoio à gestão editorial balizados em indicadores de qualidade não se efetiva. O discurso em defesa da qualidade é um mantra em que as organizações jornalísticas repetem regularmente como tábua de salvação ante a ameaça ao seu mercado, representada pelos mais diversos sites e serviços de troca de informação na internet. Mas, ainda não se verificam iniciativas consistentes para a conversão desse discurso em métodos de trabalho e de demonstração de resultados baseados em indicadores consistentes.

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No segundo caso, também não se avança no desenvolvimento de sistemas baseados em indicadores de qualidade sem a realização e o acúmulo de pesquisas em jornalismo com essa finalidade específica. Trata-se tanto de se fazer pesquisa básica para levantar possibilidades teóricas a fim de fundamentar os desafios que se apresentam ao jornalismo no mundo contemporâneo, quanto – e principalmente – de se fazer pesquisa aplicada, a fim de converter os muitos saberes já produzidos em resultados aplicáveis à solução dos problemas existentes.

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Parte 2 y

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QUALIJOR - SISTEMA DE GESTÃO DA PRODUÇÃO JORNALÍSTICA: CONCEITO E TESTES DE FUNCIONALIDADE PARA FINS DE AVALIAÇÃO DE QUALIDADE EDITORIAL9 Josenildo Luiz Guerra Lucas Santos Vieira

Introdução O Qualijor é um sistema de gestão da produção jornalística, desenvolvido em sua primeira versão10, com quatro grandes funcionalidades11:

9

Agradecemos à pesquisadora de Iniciação Científica, Alanna Molina Vieira Lins, integrante do Qualijor, por ter contribuído na produção dos dados usados nesta pesquisa.

10

O Qualijor foi submetido a registro junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi) sob o número BR 51 2015 000113 2. O programa foi inicialmente batizado de Sistema de Gestão da Produção Jornalística (SGPJ), mas para fins de registro, foi denominado Qualijor. São seus autores: Josenildo Luiz Guerra, Débora Maria Coelho Nascimento (professora - Departamento de Computação - UFS), os estudantes de Engenharia de Computação Laerth de Jesus Bernardo, Elissandro Messias Santos e Ladyllsson Porto Silva Sobrinho; e as estudantes de Jornalismo Liliane do Nascimento Santos e Alanna Molina Vieira Lins.

11

Sua primeira fase foi realizada no âmbito da pesquisa Gestão da Produção Jornalística, concluída em março de 2012, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq – Edital 06/2008 Jovens Pesquisadores - Faixa B – apoio a atividades de pesquisa científica, tecnológica e de inovação). Tem continuidade atualmente com a pesquisa Gestão da Qualidade em Organizações Jornalísticas: um panorama inicial, com financiamento do CNPq (Edital Universal 14/2013 – Faixa B).

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``

Gestão do fluxo de trabalho (controle do tratamento da informação da etapa 1, triagem, à etapa 5, edição, a partir dos indicadores de qualidade);

``

Gestão da qualidade (criação e inserção de indicadores de avaliação de qualidade do produto ao longo do processo);

``

Gestão do conhecimento editorial (processamento e disponibilização online de todo o conteúdo processado e de parâmetros editoriais);

``

Gestão do conhecimento temático (sobre a área de cobertura);

Os módulos Matriz de Veracidade e Matriz de Pluralidade são ferramentas de avaliação de qualidade, de apoio à decisão (Torres Jr., Moura, 2011; Façanha, Yu, 2011) e de gestão editorial do conteúdo jornalístico, que atravessam aquelas quatro grandes funcionalidades. Os aspectos inovadores (MOREIRA & QUEIROZ, 2007) do protótipo são, primeiramente, de natureza conceitual, isto é, introduzem uma lógica diferenciada de gestão editorial, em que decisões são baseadas em indicadores de qualidade, a partir de ferramentas conceituais inovadoras, as matrizes de veracidade e de pluralidade. Segundo, o próprio software é um produto inovador no que diz respeito à gestão do processo jornalístico voltado para a qualidade editorial. A incorporação de indicadores de gestão de qualidade editorial num sistema informatizado (O’BRIEN, 2010) voltado à gestão dos processos jornalísticos pode, a partir de princípios básicos da gestão do conhecimento (ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011), converter-se em importantes instrumentos para a tomada de decisão editorial. Trata-se de um esforço de pesquisa aplicada (STAL, 2007, p. 31) em jornalismo, a fim de gerar produtos e processos inovadores, embutidos no Qualijor, que possam dar apoio à produção jornalística, a partir da incorporação de indicadores de qualidade editorial.

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Este artigo tem por objetivo apresentar testes de validação e funcionamento dos módulos Matriz de Veracidade e Matriz de Pluralidade do protótipo de software Qualijor, através da aplicação do Índice Formal de Segurança da Informação (IFSI) e do Índice de Pluralidade Jornalística (IPJ). Os testes pretendem avaliar se os objetivos propostos em cada módulo estão sendo satisfatoriamente contemplados. Os requisitos avaliados, verdade (segurança da informação) e pluralidade, são requisitos caros às sociedades democráticas contemporâneas nas quais o jornalismo é praticado (NORRIS & ODUGBEMI, 2008; CANELA, 2007; GENTILLI, 2005; GOMES, 2004). Os testes, além de avaliar a eficácia das funcionalidades pretendidas, visam propor melhorias que possam tornar as avaliações mais precisas e úteis para a gestão editorial de conteúdos jornalísticos.

O problema da avaliação de qualidade em jornalismo A qualidade em jornalismo é um problema que nos desafia em nossa pesquisa dada a dificuldade para se avaliar a qualidade de produtos dessa natureza. Normalmente, nesta seara, a discussão sobre a “qualidade” dos produtos se perde em meio a análises, cujos parâmetros não são nem consensuais nem metodologicamente claros. Em consequência, a força de convencimento das eventuais críticas se esvanece ante a dificuldade de se operar mecanismos de demonstração mais rigorosos (GUERRA, 2010c e 2010d). O problema é que embora a discussão sobre a qualidade jornalística seja uma preocupação generalizada – todos de alguma forma a reivindicam ou a criticam – podemos perceber duas importantes lacunas em se tratando de jornalismo. A primeira lacuna é a escassa elaboração do tema no ambiente acadêmico destinado aos estudos do jornalismo. Como esforço inicial de abordagem do tema, podem ser citados Pinto e Marinho (2003),

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Jornet (2006), Benedeti (2009), Guerra (2010a, 2010b) Christofoletti (2010), Rothberg (2010), Cerqueira (2010) e Guerra (et. al. 2013), que dão uma contribuição para o mapeamento inicial desse campo, em alguns casos, avançando num esforço metodológico de avaliação, como no caso deste último e mais recente trabalho citado. Mas, certamente, ainda há muito por fazer até que a produção nessa área se consolide, com a devida e necessária articulação com pesquisadores e centros de pesquisa especializados nos estudos sobre a qualidade, que comportam uma longa trajetória e uma diversidade de métodos (PALADINI, 2005; BARBARÁ, 2006) A segunda, a ausência de métodos e critérios mínimos capazes de aferir a qualidade editorial de organizações jornalísticas em níveis aceitáveis de confiabilidade. Sem esses métodos e critérios, a discussão muitas vezes não avança e é relegada apenas a aspectos subjetivos, políticos ou ideológicos. A existência de métodos e critérios não vai obviamente resolver todos os problemas em relação ao desempenho das organizações jornalísticas. Mas é um esforço para oferecer algum rigor científico e técnico aos dados para aferição dos resultados jornalísticos. Com isso, contribuir com o debate tão presente não apenas na sociedade brasileira, mas em importantes democracias mundiais, sobre a capacidade que a sociedade tem de avaliar suas organizações jornalísticas e de algum modo “discipliná-las” quando se constatar deficiências na oferta desse tipo de serviço. Como o documento An inquire into the culture, practices and ethics of the press (2012), conhecido como Relatório Leveson, que culminou com uma proposta de órgão regulador externo da imprensa britânica. Os métodos de aferição de qualidade podem dar suporte para várias iniciativas que visam fiscalizar e monitorar o trabalho jornalístico. Ter a qualidade como eixo estruturante do sistema exigiu que se desenvolvesse uma metodologia de avaliação de qualidade. Ao se avaliar

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a qualidade do produto, introduz-se no sistema uma série de indicadores que se tornam disponíveis para o conjunto da equipe jornalística ou, a depender dos níveis de acesso à informação que foram definidos, aos gestores do conteúdo jornalístico. Nesse processo, opera-se o mecanismo básico de gestão do conhecimento: a conversão do conhecimento implícito (o conhecimento usado pelo jornalista na marcação dos indicadores) em conhecimento explícito (uma vez marcado, este conhecimento fica registrado em cada matéria e pode ser a base para relatórios adicionais, os quais serão acessados por outros jornalistas e gestores), que por sua vez serão internalizados por esses profissionais, ampliando o conhecimento que todos têm sobre o conteúdo trabalhado pela equipe (ALMEIDA, FREITAS e SOUSA, 2011). Assim, o próprio conceito do sistema congrega em si o fundamento da gestão do conhecimento, ou melhor, o sistema é uma ferramenta que permite a gestão do conhecimento. Uma vez conhecidos esses dados, os gestores poderão tomar suas decisões baseados não apenas no conhecimento que dispõem sobre seu ofício e sobre sua organização, mas também a partir dos dados do conteúdo produzidos por sua equipe, agora disponíveis pelo sistema. Nesse sentido, os dados gerados pelo sistema poderão dar suporte a decisões editoriais.

Avaliação de qualidade: a metodologia em teste Para o desenvolvimento do software, foi necessário desenvolver a metodologia de avaliação de qualidade cuja lógica pudesse ser incorporada ao Qualijor. A análise de qualidade das notícias se dá por meio da quantificação e categorização dos relatos que a compõem. O relato é uma unidade informativa da notícia, isto é, cada notícia é decomposta em unidades informativas menores, o que chamamos de relatos. Cada relato é tipificado a partir de uma lista de 25 categorias definidas pela pesquisa, a saber: Relato de fato; Relato de Contexto;

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Relato de norma; Relato estatístico; Relato de Versão; Relato de Tese; Relato de Posição; Relato de Macroposição; Relato de Crítica; Relato de Resposta; Relato de Prenúncio; Relato de Promessa; Relato de Hipótese; Relato de Opinião; Relato de valoração positiva; Relato de valoração negativa; Relato de suspensão; Relato de Propósito; Relato de Impressão; Relato de Recomendação; Relato de Determinação; Relato de Imposição; Relato de Possibilidade; Relato de Reivindicação; Relato de Retorno; e Relato Diverso. Não vamos entrar no mérito da descrição e aplicação dessas categorias na avaliação de qualidade, pois esse escopo, dado a sua complexidade, está desenvolvido parcialmente em outros artigos e permanece em desenvolvimento contínuo nas pesquisas atuais do grupo de pesquisa. O que interessa neste trabalho é explicar a relação dos indicadores de qualidade gerados pelo sistema e a sua articulação com princípios de gestão do conhecimento e de apoio à decisão editorial. A metodologia de avaliação de qualidade está baseada nos seguintes indicadores, todos eles extraídos diretamente do Qualijor: `` Indicador Número de Relatos de Pontos de Vista (INPV): a quantidade de relatos de cada ponto de vista identificado; ``

Indicador Número de Relatos de Dados (INRD): a quantidade de relatos de dados por tipo especificado (de fato, estatístico, de norma, etc);

``

Indicador Número de Relatos Total (INRT): o conjunto total de relatos identificados no conjunto das matérias/notícias;

``

Indicador Número de Relatos por Notícia (INRN): o conjunto de matérias no qual um determinado relato está presente;

``

Indicador Número de Notícias (INN): o total de matérias publicadas na retranca analisada;

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``

Indicador Grau de Segurança do Relato (IGSR): pontuação atribuída a cada relato, com base nas características do relato e no barema de pontuação para avaliar a segurança.

Quadro 1 – Padrão de conformidade do Índice Formal de Segurança da Informação (IFSI) por notícia Grau de segurança de Informação Muito Insegura

Insegura

Baixa Segurança

Média Baixa Segurança

Média Segurança

Média Alta Segurança

Alta Segurança

X< 0,25

0,25≤X>0,5 0,5≤X. Acesso em: setembro de 2014.

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JORNALISMO E DISPOSITIVOS MÓVEIS: UM ESTUDO SOBRE OS APLICATIVOS DE NOTÍCIAS DO UOL, ESTADÃO E O GLOBO Carol Correia Santana Carlos Eduardo Franciscato

Introdução As novas tecnologias da comunicação e da informação (multiplataformas, interativas, móveis, táteis, colaborativas, instantâneas, entre outros aspectos) trazem profundas transformações para vários níveis da experiência social, seja em caráter individual ou coletivo. Acreditamos que a intensidade dessas transformações não afeta apenas fenômenos sociais externos, particularmente relacionados à comunicação e ao jornalismo, mas atinge também os modos de pensar esses fenômenos. Ou seja, se o mundo social se modifica, é adequado supor que as práticas sociais e, em consequência, teorias construídas para explicar esse mundo também se transformem. Interessa-nos, então, salientar que, com a reconfiguração do jornalismo como consequência da digitalização e das redes de comunicação on-line, o jornalismo demanda ser pensado com o aporte de novas disciplinas e metodologias (NOCI e PALACIOS, 2008), a fim de dar conta de suas recentes dimensões. Com esse contexto tecnológico estruturador das práticas, amplia-se a consolidação de uma

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nova modalidade de atividade jornalística, usualmente denominada como jornalismo digital, termo simples para incorporar as determinações presentes em outras nomenclaturas, como: webjornalismo, ciberjornalismo, jornalismo on-line etc. A literatura produzida sobre jornalismo digital nos últimos anos tem descrito como a tecnologia “trouxe mudanças radicais para o jornalismo e as instituições que ele serve” (PAVLIK, 2011, p. 94; PAVLIK 2001). Essas mudanças afetam, é claro, não somente o jornalismo, mas as tecnologias que estruturam as redes digitais on-line (incluindo a sua versão mais atual, os dispositivos móveis), tornando-se a espinha dorsal das sociedades contemporâneas (CASTELLS, 2003). As novas tecnologias da comunicação e da informação produziram seus efeitos sobre a instituição, a organização e a atividade jornalística: espírito de livre acesso à informação; redefinição de papéis de leitor, usuário, público e audiência; multidões podem atuar ativamente na produção, ‘mineração de dados’ e circulação de informações; facilitação da interação entre audiências diversas (variedade de públicos, produção de conteúdos por especialistas); e sistemas artificiais disponibilizando ou gerando conteúdos. É fato que esse novo cenário complexo de inovações tecnológicas coincidentes e sucessivas vem gerando uma reestruturação do modelo de produção e de negócios que caracterizou a “mainstream media”, principalmente no século XX. Há uma perda crescente de rentabilidade e vendagem de produtos jornalísticos, mas, ao mesmo tempo, uma redução nos custos de produção de notícias. Novas rotinas de trabalho jornalístico são desenhadas para as organizações jornalísticas, tendo como foco a concepção de integração e convergência dos ambientes de trabalhos jornalísticos (as ‘Redações’), com uma concepção de jornalista multitarefa e multimídia. Com isso, as grandes organizações jornalísticas, caracteristicamente comerciais, vêm buscando novas formas de circulação e co-

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mercialização. Entretanto, os novos modelos comerciais, estruturados pela tecnologia digital, ainda são pouco expressivos, como o paywall, micropagamentos por produtos isolados em vez de assinaturas por períodos mais longos, desenvolvimento de aplicativos para equipamentos móveis com fins comerciais e criação de novas modalidades de assinaturas digitais de jornais. Todos esses aspectos que impactam o modelo tradicional de negócio da mídia jornalística foram sintetizados em um relatório produzido pelo Tow Center for Digital Journalism, junto à Columbia Journalism School, da Universidade de Columbia, denominado ‘Post-Industrial Journalism’. Analisaremos, a seguir, a estrutura de três aplicativos jornalísticos: UOL Notícias, Estadão e O Globo Notícias, considerando terem sido desenvolvidos associados a três dos maiores portais jornalísticos do País: UOL (www.uol.com.br), Estadão (http://www.estadao.com. br/) e O Globo (http://oglobo.globo.com/). Para a realização desta pesquisa, utilizamos como metodologia a análise da estrutura dos aplicativos, com base na Arquitetura da Informação, com a finalidade de compreender os sistemas de organização, navegação, nomeação e busca dos aplicativos, tendo como referência os respectivos portais jornalísticos. A análise esteve centrada nos produtos e conteúdos em versões disponíveis on-line, durante o mês de janeiro de 2014.

Mobilidade e comunicação móvel Embora a mobilidade social não seja diretamente dependente das tecnologias disponíveis, existindo historicamente em períodos e locais de limitados recursos de transporte, as experiências contemporâneas de mobilidade têm sido, cada vez mais, atravessadas por profundas transformações tecnológicas na sociedade. Urry (2007) lança, à ideia de mobilidade, uma perspectiva paradigmática e estruturante que se estende a praticamente todas as relações sociais

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contemporâneas: uma sensação de que tudo parece estar em movimento, seja na possibilidade de deslocamentos físicos (avanço da velocidade e eficiência dos meios de transporte), seja na capacidade ampliada de circulação de dados e produção de contatos mediados tecnologicamente, aspectos que alcançam uma construção de relações sociais, culturais e afetivas. Há uma nova fluidez nas relações sociais, decorrentes dessa dinâmica contínua, o que indica a necessidade de perceber os lugares e momentos de encontro. Os atores vivem na sociedade em uma condição de movimento, sob a qual constroem suas relações e modos de vida. Um dos fatores mais evidentes desse processo é a complexa rede digital que conecta máquinas e pessoas. Na visão de Castells, “a comunicação móvel amplia e fortalece a plataforma tecnológica da sociedade em rede, uma sociedade cuja estrutura e as práticas sociais estão organizadas em torno de redes microeletrônicas de informação e comunicação” (CASTELLS et alii, 2007, p. 394). A comunicação móvel (associação de tecnologias, equipamentos e produtos de comunicação portáteis e móveis, como smartphones e tablets, com processos de produção e recepção de conteúdos comunicacionais) está atingindo a produção, formato e circulação de produtos jornalísticos. O desdobramento dessa transformação tem sido denominado de “jornalismo móvel”, o que indica uma forma alterada de configuração do jornalismo a partir da incorporação dessas novas tecnologias de comunicação. Entendemos que há mudanças sucessivas no padrão de tecnologia móvel (FIDALGO e CANAVILHAS, 2009), particularmente dos telefones celulares, com a introdução dos smartphones e do desenvolvimento de aplicativos (comumente denominados apps), que podem ser caracterizados como softwares simplificados para operação em equipamentos de comunicação móvel. Toda a base de circulação de informações na internet vem gradativamente se adaptando a essa

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nova plataforma comunicacional. O já tradicional jornalismo online (WARD, 2007) também enfrenta essa influência, acrescido das novas práticas comunicacionais das redes sociais digitais simplificadas e potencializadas com as ferramentas móveis. Nos estudos sobre jornalismo com base nessa nova configuração tecnológica, estimulando a delimitação de um específico objeto de estudo denominado “jornalismo móvel”, concordamos com Firmino da Silva (2013) na identificação de duas principais tendências: `` A produção de conteúdo: perspectiva direcionada ao estudo da atividade jornalística, quando o repórter se encontra em condição de mobilidade e realiza o seu trabalho jornalístico no local da notícia, com o auxílio dos smartphones e outros dispositivos (denominada, segundo pesquisas, de Mobile Journalism – MoJo). ``

A difusão e recepção de conteúdo: estudo e desenvolvimento de procedimentos para a disponibilização do conteúdo de forma direcionada aos celulares, fazendo adaptações ou criando conteúdo específico para o meio. Isso ocorre, por exemplo, nas adaptações dos sites jornalísticos para acesso, via telefone celular, tanto na reprogramação da linguagem de formatação dos portais quanto no desenvolvimento de aplicativos específicos para a oferta de contéudo.

Os aparelhos de telefonia celular com padrão smartphone são uma das ferramentas atuais que expressam com mais clareza essa nova fase de experiência comunicacional móvel e seus efeitos sobre a produção e difusão de conteúdos jornalísticos. Fidalgo e Canavilhas (2009, p. 4) identificam três funções mais comuns nos celulares: a) dispositivos de comunicação, de voz e de escrita; b) dispositivos de produtividade com funções de livro de endereços, agenda, calculadora, bloco de notas, relógio e despertador, máquina fotográfica e gravador

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de voz, entre outros; c) dispositivos de lazer, com jogos, e audição de música (receptores de emissoras de rádio ou armazenamento e leitura de arquivos MP3). Mais do que isso, a expansão dessas funcionalidades incorpora-se a uma renovada dimensão do uso dos celulares como uma nova mídia ou, pelo menos, um novo suporte midiático. Assim, o celular tensiona a ideia clássica de meio de comunicação social restrito às organizações com suportes, linguagens e modos de reconhecimento social específico (como nos casos do rádio, da televisão e dos jornais impressos) e se coloca como um “caráter híbrido”, gerando uma sensação de experiência ubíqua de recepção: as notícias são lidas em qualquer momento e lugar em que o sinal de celular alcançar, sendo possível pensar na metáfora de “todos os jornais no bolso” (FIDALGO e CANAVILHAS, 2009, p. 13). A própria noção de recepção se reconfigura, pois o leitor é também potencialmente coprodutor do conteúdo noticioso, na medida em que pode colaborar no registro de situações cotidianas e sua emissão instantânea (BRUNS, 2011).

Os aplicativos no jornalismo móvel Os aplicativos se apresentam como uma tendência irreversível na comunicação móvel e, por sua vez, têm sido utilizados pelas redações jornalísticas preocupadas em informar através da web e dos smartphones. Com o boom do uso dos smartphones, passou também a existir um mercado e uma demanda muito grande em torno dos aplicativos, mini softwares direcionados à execução de determinadas tarefas. Em sua maioria, os apps, como são apelidados, constroem-se a partir das tecnologias HTML, CSS, JavaScript e Objective-C, adquiridos, gratuitamente ou não, na loja relacionada ao sistema operacional do celular, como a App Store (do sistema iOS, da Apple) e a Google Play (loja oficial do sistema Android). Para desenvolver

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esta reflexão, concentraremos nosso foco no uso de aplicativos como ferramentas que expandem o vínculo da organização jornalística com os seus leitores, por meio de telefones celulares, modelo smartphone, o que significa que aspectos relevantes dos aplicativos para experiências de redes sociais digitais ou para outras plataformas de dispositivos móveis (por exemplo, os notebooks) não serão considerados. Hoje, os aplicativos fazem parte, intrinsecamente, dos avanços nas tecnologias móveis, da alta taxa de penetração móvel na sociedade e já não mais detêm a exigência de que, para saber fabricá-lo, é necessário saber programar. Exemplo disso é o recém- criado projeto do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos EUA, o AppInventor (http://appinventor.mit.edu/explore/). Trata-se de uma plataforma que coloca, ao alcance de todos, a possibilidade de criar aplicativos para celulares sem a necessidade de ter conhecimentos de programação, utilizando uma metodologia visual, que facilita o desenvolvimento do aplicativo. Assim, a confecção dos aplicativos deixa de estar restrita a um pequeno grupo de especialistas em programação e o público mais geral passa a participar e a interagir com a nova tecnologia, desde o seu início. Utilizar os apps para realizar grande parte das atividades no mundo contemporâneo – aplicativos para o e-mail, redes sociais, jornais, agregadores de notícias, podcasts, comunicação, jogos etc – estimula a apreciação de Chris Anderson (2010) quando afirma que a web está em declínio e os aplicativos é que agora regeriam a nossa relação com a internet. Os aplicativos caracterizam-se como plataformas semifechadas que usam a internet como transporte e não possuem um browser como exibidor. Para o autor, isto é trazido pelo modelo iPhone de computação móvel, pela mudança de HTML para XML (com maior amplitude no entendimento de diferentes linguagens), de JavaScript para Objective-C, mas, principalmente, pela mudança de comportamento do consumidor, que acha mais prático utilizar um

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aplicativo que traz as informações de interesse do usuário, em vez de ter de buscá-las na web. Entretanto, Anderson (2010) argumenta que o modelo de aplicativos é uma forma de realinhamento dos conglomerados de internet para garantir uma forma de rentabilização de seus produtos e serviços comunicacionais, concentrando usuários por meio de aplicativos e enfraquecendo a ideia de uma internet livre e aberta. Além de desenvolver e disponibilizar conteúdo a partir dos aplicativos, o jornalismo faz uso desse mecanismo também na fase de produção da notícia, isto é, os repórteres utilizam aplicativos para capturar áudio, vídeo e imagem, realizam o upload de informação do local do fato ou de qualquer lugar fora da redação, caracterizando uma “cobertura móvel” – os chamados “mobile journalists”. O maior desafio, porém, reside em adaptar, diagramar ou desenvolver um conteúdo jornalístico específico para os apps, personalizar a experiência da leitura móvel ou, até mesmo, reinventar o formato da notícia. Tudo isso aliado ao sucesso comercial da comunicação móvel e ao aproveitamento do potencial que os aplicativos para smartphones trazem.

Análise dos aplicativos UOL Notícias, Estadão e O Globo Notícias Consideramos que o jornalismo realizado em redes digitais e mídias móveis é um desafio metodológico de pesquisa em razão da sua complexidade e multidimensionalidade (NOCI e PALACIOS, 2008). Estas razões são potencializadas pelo atravessamento da tecnologia pela atividade jornalística, o que garante uma estrutura ainda mais multifacetada. Dessa forma, optamos por nos servir de uma proposta de aproximação interdisciplinar entre o jornalismo e a Arquitetura da Informação (AI), conforme pesquisa desenvolvida por Franciscato e Pereira (2013), que analisaram o G1 nacional e o G1 Sergipe sob essa perspectiva. Segundo Morville e Rosenfeld (2006, p. 19), a

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Arquitetura da Informação é uma prática profissional e um campo de estudos voltados para a resolução de problemas básicos de acesso e uso das vastas quantidades de informações disponíveis hoje. Um dos profissionais que poderiam exercer a função de arquiteto seriam os jornalistas, pois estão “treinados” a organizar a informação e a classificá-la de acordo com a sua importância. Assim, analisamos as estruturas dos aplicativos mobile com a pretensão de identificar e descrever aspectos materiais com foco em questões técnicas e de interface. O objetivo foi obter, à luz da Arquitetura da Informação, um panorama geral das ferramentas e poder comparar os aplicativos de notícias - UOL Notícias, Estadão e O Globo Notícias – vinculados a três dos maiores portais noticiosos do País. Buscamos investigar a estrutura dos apps e não o seu conteúdo diretamente (apenas na medida em que se constituísse como um elemento na estrutura do aplicativo, cuja análise fosse necessária para compreender como o app é estruturado).

Categorias de análise Baseando-se em Figueiredo (2013), foram elaboradas categorias de análise para entender melhor quais são as características praticadas, emuladas ou reconfiguradas nas mídias móveis; que tipo de conteúdo é publicado e quais são as estratégias de mídia neste meio. As categorias de análise descritas a seguir nos auxiliam a identificar e a descrever as características técnicas e materiais dos aplicativos, de modo a obter um panorama geral das ferramentas e possibilitar a identificação sobre como o jornalismo vem sendo produzido para esse meio. Figueiredo (2013), quando estuda aplicativos jornalísticos a fim de observar possibilidades tecnológicas interativas nas mídias móveis, utiliza as seguintes categorias para nortear sua análise: a) Versão e avaliação na App Store; b) Hyperlinks; c) Comentários; d)

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Fotos e vídeos; e) Push notifications; f) Geolocalização; g) Personalização de editorias; h) Visualização horizontal; i) Arquivamento de notícias; j) Tamanho da fonte; k) Compartilhamento; e l) Previsão do tempo personalizada.

Análise dos aplicativos A investigação foi realizada sobre os aplicativos de notícias UOL Notícias, Estadão e O Globo Notícias. Todos os aplicativos estão disponíveis gratuitamente para download, sendo que utilizamos na pesquisa o sistema operacional iOS, da Apple, e o instrumento foi iPhone. O trabalho foi construído para observar o jornalismo móvel sob a perspectiva da difusão e recepção do conteúdo, isto é, para analisar de que forma e em que medida o conteúdo jornalístico foi reorganizado ou produzido para o formato específico de aplicativo para smartphone e como ele se apresenta. Na tela da “home” dos três aplicativos, já podemos detectar semelhanças nas suas estruturas. Todos possuem o nome no topo e centralizado; dois deles têm o botão de “refresh” ao lado do título; a previsão do tempo está localizada na parte superior da tela, antes das notícias; o Estadão e O Globo Notícias mostram as cotações da Bolsa de Valores, também na parte de cima, antes das notícias e em sistema de letreiro em rolagem lateral; as notícias estão na parte central dos aplicativos; a publicidade está exatamente no mesmo lugar em todos eles (abaixo das manchetes e acima do menu), possuindo, praticamente, o mesmo tamanho de banner; e, por fim, o menu, com estrutura também semelhante, aparece na base dos aplicativos. A tabela abaixo (Tabela 1) mostra aspectos relativamente abrangentes dos aplicativos pesquisados e nos oferece um panorama geral das funcionalidades praticadas. Em seguida, com efeito de análise, descreveremos como as categorias são contempladas ou em que

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medida são desenvolvidas nos aplicativos. Evitaremos executar uma análise dos itens “Versão” e “Avaliação na App Store” pela ausência de dados que pudessem indicar aspectos significativos dos objetos estudados, apenas deixamo-los identificados na pesquisa. Tabela 1 – Características estruturais dos aplicativos Aplicativo

UOL Notícias

Estadão

O Globo Notícias

Versão

1.2.20

2.4

1.6.4

Avaliação na App Store

1,5 estrela

2 estrelas

1,5 estrela

Hyperlinks

X

Comentários

X

Fotos

x

Vídeos

x

Push Notifications

x

Geolocalização

x

Personalização de editorias

x

X x

x x

x

x

x

Visualização horizontal Arquivamento de notícias

x

Tamanho da fonte

x

x

Compartilhamento

x

x

x

Previsão do tempo personalizada

x

x

x

Fonte: pesquisa de campo

Descrição dos aplicativos móveis com base nas categorias de análise: `` Hyperlinks: só foram encontrados hyperlinks na página das notícias em O Globo Notícias, as quais, por sua vez, só tinham a finalidade de direcionar o leitor para notícias afins/ relacionadas, em vez de estar no corpo da notícia - característica

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que estaria mais relacionada ao papel de promover diferentes caminhos de leitura. Outro agravante é o fato de que, ao clicar no link para uma notícia relacionada, o usuário é direcionado ao site mobile de O Globo, quando poderia continuar no aplicativo da empresa. ``

Comentários: apesar de ser um item praticamente imprescindível em sites e blogs na web, o espaço de publicação de opiniões destinado aos leitores é incipiente nos aplicativos mobile. Dos três, apenas O Globo Notícias destinou essa seção ao final de cada notícia, mas o item tende a não estar em funcionamento, deixando de exibir e sem permitir a publicação dos comentários. Já o Estadão se relaciona com essa funcionalidade na seção de “mais comentadas”, em que apenas exibe os comentários das dez notícias mais comentadas.

``

Fotos e vídeos: os três aplicativos possuem galerias de fotos, assim como fotos integradas às notícias, aliás, todos dedicam uma seção ao acesso das notícias através das suas fotos. Já no caso dos vídeos, apenas o Estadão não possui a funcionalidade.

``

Push notifications: este elemento foi detectado apenas no UOL Notícias. Há um aviso sonoro de mensagem e aparece na tela do celular a manchete da notícia. O problema é que o aplicativo não permite personalizar sobre qual conteúdo o usuário irá receber as notificações, como, por exemplo, editorias (receber apenas notícias sobre economia) ou localização (receber avisos sobre notícias da sua região e realidade). O leitor recebe as push notifications de todas as notícias que a redação achar importantes. A única possibilidade de escolha que existe é apenas ativar ou desativar este serviço.

``

Geolocalização: dentre os aplicativos analisados, o UOL Notícias e o Estadão são os que oferecem, em alguma medida,

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este serviço. O UOL limita-se a detectar a localização do smartphone, para configurar a previsão do tempo mostrada no aplicativo. Já o Estadão tenta oferecer um conteúdo geolocalizado, disponibilizando um texto/resumo sobre pontos de interesse (centros culturais, pontos turísticos, praças, bibliotecas, etc) apenas da cidade de São Paulo. Esse conteúdo está disponível no menu inferior, no ‘Acervo’. ``

Personalização de editorias: os aplicativos Estadão e O Globo Notícias são os que permitem escolher editorias de interesse e construir o que as empresas chamam de ‘Meu

``

Globo’ e ‘Meu Estadão’. A ferramenta é um importante recurso de personalização, pois permite que o usuário selecione editorias de interesse e crie a sua própria “home” de notícias selecionadas.

``

Visualização horizontal: nenhum dos aplicativos pesquisados oferece a função da autorrotação, o que permitiria que o leitor acessasse o conteúdo de forma horizontal, com frases mais longas e menos quebradas.

``

Arquivamento de notícias: todos os aplicativos possuem esse recurso, sendo que o UOL oferece a marcação com um ícone contendo uma setinha para baixo (depois elas podem ser encontradas no menu inferior, no sugestivo “Ler depois”); o Estadão, a partir do botão “salvar” (que depois vão para a seção de “Favoritos”); e no O Globo Notícias a partir de “guardar” (encontradas depois na seção ‘Meu Globo’, juntamente com as editorias personalizadas salvas).

``

Tamanho da fonte: dos aplicativos analisados, apenas o UOL Notícias não oferece essa possibilidade de alteração.

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``

Compartilhamento: os três aplicativos estão afinados com a necessidade de compartilhar socialmente a notícia e oferecem suporte para que o usuário espalhe o conteúdo por e-mail, Facebook ou Twitter.

``

Previsão do tempo personalizada: esta funcionalidade pode ser realizada de duas maneiras: uma é através da geolocalização, que é quando o smartphone e o aplicativo identificam automaticamente onde a pessoa está e já altera a previsão do tempo para esta localidade. Este é o caso do UOL Notícias. Já a outra forma é a possibilidade de o usuário manualmente alterar a cidade da previsão do tempo, escolhendo o local de onde quer receber a informação, seja o local em que se encontra ou não. É o que acontece com o Estadão e com O Globo Notícias.

Características e implicações dos aplicativos no jornalismo móvel Iremos agora discutir as características apresentadas acima a partir de aspectos e desafios próprios do jornalismo digital, particularmente quando este se estende para ferramentas de plataformas móveis:

Abertura e fechamento da navegação nos aplicativos Os aplicativos possuem apenas uma pequena parte do conteúdo do site, com poucas notícias selecionadas e com muito menos recursos que os seus portais web, isto é, ele reduz a capacidade de acesso ao conjunto de conteúdo disponível na internet. Além disso, os apps, de certa forma, “fecham” a navegação do usuário, quando consideramos a maneira restrita com a qual ele direciona o acesso aos dados e à informação. Por outro lado, expandem em termos de mobilidade, porque operam no padrão smartphone, que garante o

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acesso à notícia de qualquer lugar e situação em que o usuário tiver acesso às redes com sinal como o 3G ou 4G.

Hipertextualidade em baixa A hipertextualidade, mesmo sendo um dos elementos-chave do padrão de jornalismo digital, parece perder força no jornalismo móvel. A lógica do hipertexto de maximizar possibilidades de leitura, ampliar fluxos, combinações e opções de narrativas, promovendo um rompimento com uma sequencialidade linear preestabelecida, praticamente deixa de existir nestes aplicativos para jornalismo móvel. Basicamente, o único link que ocorre com frequência nos apps é a ligação entre o título em uma página de títulos e o texto noticioso correspondente. Isso significa que a arquitetura de texto nos aplicativos está montada com base em uma estrutura linear, em que o texto, internamente, não oferece movimentos de leitura com links externos a ele.

Sistema de busca: banco de dados e indexação Notamos, também, que os aplicativos não possuem um sistema de buscas que pudesse oferecer acesso e possibilidade de consulta a notícias anteriores. Não há o armazenamento das notícias em um banco de dados e tampouco recursos de indexação e recuperação de informações. O sistema de banco de dados tem sido importante na arquitetura dos sites jornalísticos, porque permite um uso contínuo do arquivo de notícias como parte da sua construção narrativa, ampliando a capacidade de construção da memória dos fatos pelos jornalistas e pelos leitores. No caso dos apps, essa funcionalidade não foi desenvolvida nos estudos considerados.

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Os apps como prolongamentos dos sites Os aplicativos de notícias pesquisados parecem funcionar como prolongamentos dos portais de notícias aos quais são vinculados. O conteúdo dos sites passa por uma seleção e, então, segue reduzido para os apps; da mesma forma, nem todas as editorias e menus são transpostos para a mídia móvel. Isto significa uma limitação dos aplicativos como expansão das potencialidades da comunicação móvel, ao mesmo tempo em que reforça a estratégia dos três grandes portais estudados de manter, no âmbito de sua arquitetura de navegação, o vínculo do usuário com o conteúdo jornalístico oferecido. Se considerarmos, a partir da Arquitetura da Informação, os sistemas de organização, de navegação e de nomeação dos três aplicativos comparados com seus sites de origem, perceberemos uma disposição espacial e concepção visual focadas na especificidade da telefonia celular, como sua portabilidade, a adequação e redução do conteúdo ao tamanho diminuto da tela e a previsão da função “touch screen” como recurso principal de operação e navegação do usuário pelo aplicativo.

Considerações finais A pesquisa permitiu observar que parte das funcionalidades intrínsecas ao jornalismo digital é reduzida, simplificada ou desaparece nos aplicativos para a comunicação móvel. É o caso da hipertextualidade, que quase não se apresenta, ou do sistema de busca, que é inexistente. Os comentários, elemento básico de participação do leitor e de interatividade, também foram suprimidos. Há também uma clara redução do conteúdo e do número de notícias quando comparados aos sites web das empresas jornalísticas. Acreditamos que todas essas abreviações referentes às funcionalidades e ao conteúdo são feitas em razão das características de formato

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do smartphone, como instrumento tecnológico e do seu uso social. Parece-nos que, quando a mobilidade inerente ao celular facilita e amplia o acesso à notícia, realmente passa a existir uma implicação da limitação da informação, e os editores selecionam uma parte do conteúdo que consideram essencial para o usuário móvel. Sabemos que não faz sentido apresentar um conteúdo tão vasto ou notícias extensas, com infográficos ou diversos percursos de leitura a esse tipo de usuário, que lê em ambientes rodeados de movimento e ação. As reduções também fazem sentido quando consideramos os sistemas operacionais e a capacidade de processamento dos smartphones – mais simples e menos potentes comparados aos dos computadores. Por outro lado, existem os novos recursos possibilitados e quase exclusivos dos dispositivos digitais móveis. É o caso das push notifications, da geolocalização e da autorrotação. Todas as funcionalidades ainda engatinham nos apps pesquisados e provavelmente irão se desenvolver e ser melhor exploradas, tal qual o caso de evolução do jornalismo digital em suas diferentes fases nos últimos 20 anos. As notificações por push possuem grande potencial se personalizadas, pois é cada vez mais comum as pessoas se informarem a partir de “assinaturas” que vão compondo um feed de notícias. Outra tendência são os agregadores de notícias, que compilam informações selecionadas para o usuário. Dessa forma, receber as notificações sem precisar ir até o aplicativo parece ser uma funcionalidade promissora. A geolocalização é uma das grandes possibilidades dos smartphones e do jornalismo móvel, além de ser um importante recurso de personalização. Em vez de apenas fazer uso da geolocalização para mudar automaticamente a cidade da previsão do tempo, as empresas jornalísticas poderiam tentar mudar o contexto de recepção da notícia, ao oferecer uma seleção diferente de informações a partir desta funcionalidade. Aliar geolocalização com conhecimento dos hábitos e preferências do usuário também pode garantir grandes mudanças

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em termos de personalização, como por exemplo ao “aprender” como funciona a rotina do usuário para fornecer informações mais certeiras e úteis. Percebemos que os aplicativos se apresentam como uma extensão, um complemento do acesso aos portais jornalísticos. Trata-se de um produto mais simples produzido para um usuário que utiliza o suporte tecnológico e consome notícias de uma maneira particular. Não sabemos se a intenção é de que o consumidor depois retorne ao portal de notícias em busca de uma informação e navegação mais completas ou se essa formatação presente nos aplicativos é um indicador de mudanças no produto jornalístico, considerando os perfis e desejos do usuário pelo que parece ser uma informação fácil e singela. Acreditamos que supressões como as que foram feitas muitas vezes são válidas a fim de construir um produto mais condizente com o suporte para o qual é fabricado. No mesmo sentido, é preciso pensar e desenvolver formatos que aproveitem ao máximo os recursos dos dispositivos móveis. Ao mesmo tempo, também é necessário refletir a respeito de possíveis transformações no modo de fazer jornalismo, para entender seus fenômenos e as condições em que a sociedade e a comunicação se reconfiguram. O uso dos smartphones e o surgimento do modelo baseado em aplicativos já demonstram que mudanças profundas são vivenciadas.

Referências ANDERSON, C. “The web is dead. Long live the internet”. In: Wired. Sep, 2010, p. 1-3. Disponível em: http://www.wired.co.uk/ magazine/archive/2010/10/features/the-web-is-dead. Acessado em: dezembro/2013. BRUNS, A. “Gatekeeping, Gatewatching, Realimentação em Tempo Real: novos desafios para o Jornalismo”. In: Brazilian Journalism Research. V. 7, n. 2. Brasília: SBPJOR, 2011.

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CASTELLS, M. A galáxia da Internet. São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2003. _____; FERNÁNDEZ-ARDÈVOL, M.; QIU, J. L.; SEY, A. Comunicación móvil y sociedad, una perspectiva global. Barcelona: Ariel e Fundação Telefônica, 2007. FIDALGO, A.; CANAVILHAS, J. Todos os Jornais no Bolso. Pensando o jornalismo na era do celular. 2009. Disponível em: http://www.labcom.ubi.pt/publicacoes/201104301350-fidalgo_ canavilhas_todos_jornais_bolso.pdf. Acessado em: fevereiro/2014. FIGUEIREDO, D. R. “Jornalismo e mobilidade: novas e possíveis reconfigurações”. 2013. In: Verso e Reverso, XXVII(64), jan-abr 2013, p. 9-18. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/ versoereverso/article/view/ver.2013.27.64.02/1406. Acessado em: dezembro de 2013. FRANCISCATO, C.; PEREIRA, L. “O diálogo interdisciplinar entre jornalismo e a arquitetura da informação: estudo da estrutura de navegação do Portal G1/Sergipe”. In: Revista Estudos de Comunicação. Curitiba, v.14, n. 33, jan./abr 2013, p. 43-61. Disponível em: http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/comunicaca o?dd1=7652&dd99=view&dd98=pb. Acessado em: outubro de 2013. MORVILLE, P., ROSENFELD, L. Information Architecture for the World Wide Web. 3rd ed. Sebastopol: O’Reilly Media, 2006. NOCI, Javier; PALACIOS, Marcos (orgs.). Metodologia para o Estudo dos Cibermeios – Estado da arte & perspectivas. Salvador (BA): Edufba, 2008. SILVA, Fernando Firmino da. Jornalismo móvel digital: o uso das tecnologias móveis digitais e a reconfiguração das rotinas de produção da reportagem de campo. 2013. 408 f. (Tese Doutorado). Faculdade de Comunicação Social. Universidade Federal da Bahia – UFBA. Salvador, 2013.

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PAVLIK, John. “A Tecnologia Digital e o Jornalismo: as implicações para a Democracia”. In: Brazilian Journalism Research - Vol 7, Nº 1, 2011, p. 94-118. _____. Journalism and new media. New York: Columbia University Press, 2001. URRY, John. Mobilities. London: Polity, 2007. WARD, Mike. Jornalismo Online. São Paulo: Roca, 2007.

Sumário y JORNALISMO E TECNOLOGIAS DIGITAISy

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Parte III y JORNALISMO E PARTICIPAÇÃO

EXPERIÊNCIAS CONVERSACIONAIS DO LEITOR DE NOTÍCIAS NO JORNALISMO DIGITAL Eneida Trindade

Introdução Historicamente, o surgimento de novos meios de comunicação resultou no desenvolvimento de novos formatos jornalísticos. Com o advento da internet, essa dinâmica não foi diferente. O jornalismo praticado na web desenvolveu não apenas características próprias, mas introduziu uma questão a ser discutida: o leitor. As novas tecnologias de comunicação e informação multiplataformas, interativas, móveis, táteis, colaborativas e instantâneas proporcionaram ao leitor de webjornais a possibilidade de modificar suas experiências comunicacionais com as instituições jornalísticas e com outros leitores. Em meio a tal cenário, este texto propõe uma reflexão acerca do reposicionamento do leitor em relação às organizações jornalísticas no ambiente do webjornalismo, destacando o caráter interacional desse formato. A partir da utilização de mecanismos de participação, como a ferramenta de comentários online – recurso que possibilita a interação conversacional –, o leitor de webjornais adquiriu uma posição mais ativa no espaço jornalístico. Ele passou a ser mais interativo no processo comunicacional.

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Disponível nos sites e portais de notícias a cada matéria publicada, a ferramenta de comentários é um recurso que possibilita a interação entre o leitor, a publicação jornalística e os demais leitores da página. Compreendendo esta ferramenta como um mecanismo que contribui para a introdução da voz dos leitores no espaço de publicação de notícias, a proposta aqui é discutir a existência de um tipo de interação conversacional no webjornalismo, por meio da qual o leitor se relaciona dialogicamente com os diferentes sujeitos presentes na publicação. Para tanto, a trajetória aqui desenvolvida aborda a experiência conversacional do leitor de notícias sob duas perspectivas que não são excludentes, mas complementares. A primeira encara a experiência conversacional do leitor como um processo interacional. A segunda trata essa experiência como um movimento interativo por meio do qual são gerados sentidos em uma determinada cena enunciativa. Neste texto, ambas são discutidas no intuito de compreender as mudanças práticas do reposicionamento do leitor no jornalismo, em decorrência do surgimento de um novo ambiente tecnológico.

O leitor em meio a um novo formato de jornalismo O jornalismo, como atividade profissional da área de comunicação social, não se manteve isolado das inovações científicas e tecnológicas que vêm tomando força nos últimos vinte anos. Assim como aconteceu com o rádio e com a televisão, o jornalismo adaptou-se também ao ambiente digital, dando origem a um novo formato, ora chamado de jornalismo eletrônico, ora de jornalismo digital, ciberjornalismo, jornalismo online ou, ainda, webjornalismo, termo que será aplicado para efeito deste artigo. Baseando-se em Murad, João Canavilhas (2014) considera o conceito de jornalismo associado ao suporte técnico e ao meio que

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permite a difusão das notícias, ou seja, se, no caso do jornalismo praticado em papel, resulta o jornalismo impresso, na TV o telejornalismo, e no rádio o radiojornalismo, nada mais natural do que usar o termo webjornalismo para o jornalismo praticado na web. Canavilhas (2007) explica esse novo formato como o jornalismo que utiliza as ferramentas de internet para investigar e produzir o conteúdo jornalístico difundido pela web, com uma linguagem própria, composta por textos, sons, imagens e animações conectados entre si, através de links. Este formato tem a interatividade como uma de suas principais propriedades, relacionada à capacidade de o usuário interagir com o conteúdo e seus autores. Citando Bardoel e Deuze, Marcos Palácios esclarece: A notícia online possui a capacidade de fazer com que o leitor/ utente sinta-se mais diretamente parte do processo jornalístico. Isto pode acontecer de diversas maneiras: pela troca de emails entre leitores e jornalistas, através da disponibilização da opinião dos leitores, como é feito em sites que abrigam fóruns de discussões, através de chats com jornalistas, etc (PALÁCIOS, 2004, p. 2).

A partir dessa característica, as redes instauram, segundo Maria Leoneire C. Oliveira (1997), uma nova maneira de se perceber o emissor e o receptor, pois, através da internet, os dois sujeitos passam a ser interativos no processo comunicacional. Assim, evocando as ideias de Dan Gillmor, Primo e Träsel (2006, p. 39) enfatizam essa configuração ao perceberem que, “Na nova era das comunicações digitais, com múltiplas direções, o público pode tornar-se parte integral do processo [de produção de notícias]”. Os autores ainda destacam algumas condições que favoreceram o desenvolvimento do jornalismo na web e viabilizaram a participação mais efetiva do público:

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Aponta-se aqui algumas delas [das condições]: maior acesso à Internet e interfaces simplificadas para publicação e cooperação online; popularização e miniaturização de câmeras digitais e celulares; a filosofia do “hacker” como espírito de época; insatisfação com os veículos jornalísticos e herança da imprensa alternativa (PRIMO; TRÄSEL, 2006, p. 39).

Somadas às outras características desse formato de jornalismo1, essas condições contribuíram para potencializar os espaços de participação do público na web em várias perspectivas, possibilitando, inclusive, a manifestação imediata do leitor. A interferência vai desde as enquetes, como o recurso mais básico; passando pelo fórum, que permite uma interação dialogal com debates que, em alguns periódicos na web, chegam a ser mais informativos que a matéria; até os projetos de jornalismo participativo, com a abertura do sistema hipertextual2 à escrita de links e textos, permitindo que o internauta possa escrever, anotar, revisar e discutir documentos, vídeos, fotos, etc (PRIMO; TRÄSEL, 2006). À medida que promove essa abertura para o exercício de práticas colaborativas na produção da informação e no debate das notícias, o webjornalismo fornece condições necessárias para que, dentro da estrutura do produto jornalístico, os leitores possam interagir entre si e com a produção e, ainda, construir um espaço de conhecimento atrelado àquele já constituído pela publicação.

1

Hipertextualidade, multimidialidade, personalização do conteúdo, memória e instantaneidade.

2

O hipertexto é entendido como a “posibilidad de, através de enlaces, conectar signos o grupos de signos de um documento digital com otros documentos digitales” (CANAVILHAS, 2007, p. 52).

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A experiência conversacional de leitores no webjornalismo e a produção de sentido Ao refletir sobre a definição do termo comunicação, é inevitável que, intuitivamente, a resposta tenha como referência a situação de diálogo. O termo remete imediatamente à ação de estar em contato ou em interação com o outro, seja esta uma relação entre indivíduos, animais ou coisas, e seja esta relação verbal ou não-verbal. Neste sentido, compreende-se a comunicação como um processo que implica, normalmente, a existência de pelo menos duas partes em contato e fisicamente distintas: um emissor (aquele que emite a mensagem) e um receptor (aquele que a recebe). Diante, ainda, da definição espontânea de comunicação imaginada a partir da visualização de uma situação de diálogo, é possível dizer que a conversação é a primeira atividade comunicacional na qual, de fato, o indivíduo interage com o outro e inicia o seu aprendizado sobre o mundo. Assim, a interação conversacional é “a primeira das formas de linguagem a que estamos expostos e provavelmente a única da qual nunca abdicamos pela vida afora” (MARCUSCHI, 2007, p. 14). Segundo Luiz Antônio Marcuschi (2007, p. 5), a conversação é “a prática social mais comum no dia a dia do ser humano”. Como prática interativa, ela está associada, principalmente, às interações orais, mas nada impede que aconteça também em outros tipos de interação, desde que ocorra entre atores, em um determinado contexto e com alternância na tomada dos turnos de fala3. Trata-se, portanto, de um fenômeno no qual os atores, por intermédio de interações verbais, negociam, constroem relações sociais e dividem informações e valores (MARCUSCHI, 2007; KERBRAT-ORECCHIONI, 2006; RECUERO, 2013). 3

O turno “é a produção de um falante enquanto ele está com a palavra”. Assim, a tomada de turno constitui-se como o ato de tomar a palavra (MARCUSCHI, 2007, p. 89).

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Inserindo essa dinâmica no contexto tratado aqui, a experiência conversacional será abordada sob duas perspectivas: a primeira diz respeito à experiência do leitor de notícias como um processo interacional; já a segunda toma essa experiência como um movimento interativo entre interlocutores e seus enunciados, ou das falas produzidas por eles num diálogo. Um movimento por meio do qual são gerados sentidos em uma determinada cena enunciativa que, nesta discussão, é dada pela matéria jornalística.

Da conversação face a face à conversação digital Para compreender como a interação proporcionada pelo ambiente tecnológico do webjornalismo se constitui em uma experiência conversacional, antes é preciso entender o que caracteriza esse tipo de interação. No que diz respeito à organização elementar da conversação, cinco características básicas são utilizadas para defini-la: interação entre pelo menos dois participantes; a ocorrência de pelo menos uma troca de mensagens entre eles, com alternância da posição dos falantes; presença de uma sequência de ações coordenadas; o envolvimento dos participantes numa interação centrada; e a execução numa identidade temporal (MARCUSCHI, 2007). Esta última característica, contudo, pode ser revista na perspectiva da conversação em ambiente digital, visto que, no ambiente online, a conversação transcende a relação de espaço e tempo, e a interação pode acontecer mesmo que a troca de mensagens não seja simultânea. O que marca de fato uma conversação é a interação centrada, na qual ambas as partes do diálogo reconhecem o tema em discussão e se compreendem entre si, em um jogo de alternância de posições, dado pela troca de turnos na conversação. Essa alternância de turnos é apresentada nos estudos dos precursores da análise da conversação, Harvey Sacks, Emanuel A. Schegloff e Gail Jefferson (1974), como

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elemento fundamental da conversação, responsável pela formação de sequências, chamadas de pares adjacentes ou conversacionais4. São tais sequências, bem como as características já citadas, que determinam o caráter de conversação das interações, a partir da compreensão que um falante tem da fala do outro. Assim como a fala, no caso da conversação oral, implica a existência de um destinatário fisicamente distinto do falante, a conversação empreendida no ambiente dedicado aos comentários de leitores no webjornalismo também implica na participação de leitores/comentadores diversos. No entanto, é preciso mais do que isso para definir esta situação como uma conversação. É necessária uma troca de mensagens, na qual os participantes se compreendam mutuamente. Catherine Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 8) explica: “Para que haja troca comunicativa, não basta que dois falantes (ou mais) se falem alternadamente, é preciso ainda que eles se falem, ou seja, que estejam, ambos, ‘engajados’ na troca”. Daí também a importância da observação das sequências formadas pela alternância de turnos na interação, em especial no ambiente de comentários online dos portais de notícias, visto que nem todos os comentários postos em sequência podem ser identificados como pares conversacionais. Neste espaço, a análise do par adjacente consiste em um recurso metodológico central para a investigação da conversa. É importante observar também que a situação face a face não é condição necessária para a interação conversacional. Além da conversação que acontece face a face e presencialmente, é possível apontar outros tipos de interação que se configuram como conversação5. O advento da internet e o desenvolvimento da tecnologia 4

Os pares adjacentes ou conversacionais são definidos como “uma sequência de dois turnos que coocorrem e servem de organização local para a conversação” (MARCUSCHI, 2007, p. 35).

5

A conversação telefônica, por exemplo, é mencionada por Luiz Antônio Marcuschi (2007) como uma forma de conversação que não acontece em uma situação face a face.

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informática, por exemplo, fizeram surgir uma nova forma de interação e, com ela, recursos e ferramentas digitais capazes não apenas de proporcionar a conversação, mas de criar possibilidades que aproximam cada vez mais a conversação online da conversação face a face. Dentro do universo digital, alguns desses mecanismos são mais propícios à conversação. Aplicativos para bate-papo (MODESTO, 2011) e as redes sociais digitais (RECUERO, 2013), por exemplo, permitem esse tipo de interação com mais eficiência e de forma síncrona, possibilitando a troca de mensagens em tempo real. Contudo, ambientes assíncronos construídos na web, onde os usuários não estão conectados ao mesmo tempo, também podem abarcar esse tipo de interação. Exemplo disso são os comentários dos blogs (CONSONI, 2013; PRIMO, SMANIOTTO, 2006) e os comentários online dos sites jornalísticos. Os blogs e os sites jornalísticos oferecem, hoje, uma série de recursos que facilitam a interação. Entre tais recursos, a ferramenta de comentários online é uma das mais importantes para o desenvolvimento da conversação nesses espaços. No ambiente de comentários que se forma ao final de cada matéria6, cria-se, muitas vezes, um debate entre leitores/comentadores de modo semelhante ao que acontece nos fóruns de discussão online, permitindo, assim, a conversação entre esses atores. As conversações naturais em situação face a face acontecem por meio de perguntas e respostas, asserções e réplicas (MARCUSCHI, 2007). Transpondo essa interação para o ambiente digital – em especial dos blogs, que se aproxima mais da realidade do webjornalismo no que diz respeito ao espaço de comentários online – observa-se a postagem (CONSONI, 2013) como uma declaração e os comentários feitos pelos leitores como as respostas, formando as

6

Tomando-se como referência aqui o webjornalismo.

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duas partes do par conversacional, caso identificada uma relevância condicional entre eles. Gilberto Balbela Consoni (2013) utiliza, neste sentido, a abordagem sistêmico-relacional de Primo (2003) para identificar a relevância condicional entre os turnos, atentando para a questão da recursividade entre os falantes em uma perspectiva de interação mútua – um tipo de interação que é definido por Alex Primo (2003, p. 62) como “aquela caracterizada por relações interdependentes e processos de negociação, em que cada interagente participa da construção inventiva e cooperada da relação, afetando-se mutuamente”. Esta é a ótica adotada por Consoni para a identificação da conversação, a partir do engajamento entre os falantes e da projetabilidade que o comentário de um exerce sobre o do outro. Tal concepção remete a uma das principais características da conversação, a interação centrada, e também ao principal ponto de divergência entre a conversação face a face e àquela realizada nos blogs e no webjornalismo: a identidade temporal. No ambiente de comentários online, a identidade temporal não é um ponto essencial a ser observado. A evidência da interação centrada, demonstrando o envolvimento dos leitores/comentadores em uma tarefa cognitiva comum, e a alternância de turnos entre eles, bem como verificação de um entendimento mútuo na formação dos pares adjacentes, já atestam a existência da conversação. Neste sentido, discorda-se de que a identidade temporal seja condição necessária para comprovar a conversação, visto que “pode haver uma interação centrada em espaços de tempos diferentes e que esta é uma das principais características da conversação online”. A interação conversacional pode, portanto, acontecer no ambiente digital, em espaços como fóruns, sites de redes sociais e nos comentários online dos blogs e sites noticiosos como se seus participantes estivessem frente a frente (CONSONI, 2013, p. 116).

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O engajamento do leitor na interação conversacional que se torna possível no webjornalismo, por meio da ferramenta de comentário online, é um exemplo do seu reposicionamento em relação à organização jornalística. O leitor assume uma posição ativa, escolhendo quais matérias quer comentar, o tipo de argumento que deseja defender, concordar ou discordar, ou o comentário que deseja responder, além de introduzir a sua fala no espaço de publicação das notícias, atrelada ao material jornalístico. Os aspectos apresentados neste item sobre as características da conversação e as particularidades desse tipo de interação no ambiente digital conduzem essa discussão para o próximo ponto deste artigo. Aqui, foi possível discutir o caráter conversacional das relações interativas estabelecidas pelo leitor de notícias no ambiente de comentários online das matérias jornalísticas, evidenciando um processo interacional. No próximo ponto, pretende-se ampliar essa discussão, compreendendo que essa experiência conversacional pode implicar também em um movimento interativo de interlocutores e seus enunciados em uma cena enunciativa, sendo necessário compreender os sentidos gerados nessa interlocução e os procedimentos de sua construção.

O leitor conversacional e a produção de sentido no webjornalismo Ao utilizar a ferramenta de comentário disponibilizada por sites e portais de notícias, o leitor apresenta um comentário que tem como cenário, ou lugar de constituição da fala, a matéria jornalística. Este discurso do leitor pode aparecer em diferentes intenções e perspectivas: como uma manifestação direta, relacionada às informações e enquadramentos propostos pelo texto noticioso, em uma tentativa de interagir com os produtores da informação; como uma interpretação

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direcionada a outros leitores, que visitaram a página e deixaram um ponto-de-vista com o qual concorda ou discorda; ou como a exposição de um posicionamento que possa introduzir novas informações ou entendimentos sobre o fato jornalístico descrito na notícia. Nessa perspectiva, o leitor de notícias se coloca como um leitor conversacional. Um sujeito capaz de, no ato de leitura, interagir com outros interlocutores em uma situação de conversação, produzindo enunciados e introduzindo, através do comentário, seus próprios pontos-de-vista e suas visões de mundo na cena enunciativa dada pela matéria jornalística. Assim, a mudança de perfil do leitor de notícias, a partir da emergência do jornalismo praticado na web, faz com que a cena enunciativa das coberturas noticiosas abrigue um complexo de enunciados construídos por jornalistas, leitores e seus discursos, cujos sentidos podem construir representações sociais de vários tipos. Trata-se, portanto, de uma cena enunciativa que engloba a dimensão conversacional da condição de leitor. Destarte, a cena enunciativa, neste caso, é vista sob a perspectiva dialógica de Bakhtin (2011), para quem a enunciação é produto da interação entre dois indivíduos socialmente organizados. Para o autor, “todo enunciado é um elo na cadeia de comunicação discursiva. É a posição do falante nesse ou naquele campo do objeto e do sentido”. Ao conjunto desses enunciados erguidos nas trocas interacionais entre o leitor e o texto jornalístico, bem como entre os leitores participantes do ambiente de comentários online, é que deve ser atribuída a responsabilidade pela construção da cena enunciativa na qual este leitor conversacional está inserido (BAKHTIN, 2011, p. 289). A fim de ampliar a compreensão acerca da cena enunciativa que nasce do movimento interativo presente no webjornalismo, bem como da relação entre essa perspectiva conversacional e a formação dos enunciados que compõem esta cena, é importante ampliar a leitura sobre a concepção dialógica de Bakhtin.

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A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, como ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN, 2002, p. 88).

Para o autor, assim como acontece com a conversação, o diálogo não está restrito a situações face a face. De acordo com Bakhtin (2011), todo enunciado é dialógico. Ele é delimitado pela alternância dos sujeitos no discurso e mantém relação com a realidade, com enunciados alheios e constroem sentidos, constituindo-se, portanto, como uma prática social. De outro modo, Fiorin (2008) explica que, para construir o seu discurso, o indivíduo leva em conta o discurso do outro e este passa a estar presente no seu discurso. Logo, pode-se dizer que o dialogismo é marcado pelas relações de sentido que se estabelecem entre pelo menos dois enunciados. Nessa perspectiva, tal observação leva a considerar que o enunciado existe em uma relação de interdependência, pois este se configura como a réplica de um diálogo que, por sua vez, se constitui na relação entre os enunciados. Ao produzir um enunciado, o indivíduo está, na verdade, participando de um diálogo com outros discursos. Os limites do enunciado são determinados pela alternância dos falantes, e a capacidade deste enunciado de gerar uma resposta é o que o valida (FIORIN, 2008).

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Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera da comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc (BAKHTIN, 2011, p. 297).

Aplicando essa perspectiva ao ambiente de comentários online das matérias jornalísticas é possível perceber a dinâmica apresentada por Bakhtin. A participação dos leitores nesse ambiente é sempre motivada por um primeiro enunciado (a matéria jornalística) que, em si, já dispõe de um diálogo dado pelas fontes ouvidas pelo jornalista produtor do texto. Este seria o enunciado precedente ao comentário do leitor e este último, por sua vez, motiva um novo comentário, ou uma resposta que concorda, discorda, confirma, refuta, completa ou baseia-se no comentário anterior para que o novo seja gerado. De maneira mais clara, em princípio, três formas de enunciados podem ser localizadas nesse movimento: o texto noticioso produzido pelo jornalista; o comentário produzido pelo leitor buscando interagir com o jornalista; e o comentário do leitor buscando interagir com outros leitores, seja concordando ou divergindo de um posicionamento anterior, seja procurando apresentar uma nova percepção sobre o evento. Desse modo, a cena enunciativa que se forma a partir dos comentários de leitores e da matéria jornalística está repleta de ecos de outros enunciados e também de discursos que vão construindo sentidos ora semelhantes, ora diferentes daqueles propostos pelo discurso jornalístico. Esse movimento coloca, assim, a participação

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dos leitores no webjornalismo como um elemento que pode ampliar a leitura da matéria jornalística, fornecendo pontos-de-vista diferentes daqueles apresentados inicialmente pela notícia.

A experiência conversacional no ambiente de comentários online A experiência conversacional sob as duas perspectivas abordadas neste texto pode ser ilustrada a partir da observação da dinâmica de um site de notícias. Tomando como exemplo a matéria “Estudante é morto com tiro na cabeça durante assalto em SP”, publicada no portal G17, no dia 10 de abril de 2013, observa-se o modo como os leitores utilizam a ferramenta de comentários para interagir com a página jornalística, concordar ou discordar do enquadramento proposto pelo jornalista, tecer as suas próprias opiniões sobre o fato noticiado e discutir o tema com outros leitores. A organização da página traz a matéria jornalística e os comentários de leitores, bem como evidencia o movimento no qual os leitores interagem com a publicação e com outros leitores. A notícia funciona, neste caso, como o elemento motivador do comentário do leitor, e os participantes seguintes passam a comentar a matéria (o tema ou o enquadramento noticioso), o comentário de um leitor anterior ou ambos. A interação entre o leitor e a publicação jornalística se dá imediatamente, no momento em que este se dispõe a participar do ambiente interativo que se constitui na página e escolhe a quem direcionar o seu comentário. A fala do leitor normalmente tem o jornalista como um interlocutor, mesmo que indireto, distanciado, um autor do texto inicial que criou a cena enunciativa que cria o am-

7 www.g1.com.br.

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biente da interação conversacional. Já a interação entre os leitores acontece de um modo um pouco mais direto. Em grande parte, os leitores costumam responder às falas dos outros, utilizando o recurso de resposta na ferramenta de comentários, ou indicando no próprio texto o destinatário da sua mensagem. Essa experiência de interação do leitor acontece de forma conversacional, ou seja, com a alternância de turnos de fala entre os sujeitos que estão engajados em uma interação centrada. Os interagentes dividem informações e trocam valores sociais em uma experiência que também pode ser chamada de dialógica, na medida em que está marcada por relações de sentido estabelecidas no cruzamento entre os enunciados. Na matéria jornalística citada acima, é possível perceber a cena enunciativa que se forma em decorrência do movimento interativo dos interlocutores e dos seus enunciados. Ela apresenta os três tipos de enunciados localizados na página: a matéria jornalística; o comentário do leitor na tentativa de interagir com o jornalista; e o comentário do leitor buscando interagir com outros leitores. Cada um desses enunciados está atrelado ao outro e só existe na relação com o outro (BAKHTIN, 2011). Ao comentar a publicação e se colocar na cena enunciativa, o leitor de notícias declara a sua opinião, apresenta as suas propostas, seus pontos-de-vista, concorda ou se contrapõe aos comentários e motiva o debate entre os participantes, gerando sentidos. Há, nesse movimento, uma relação responsiva entre os enunciados. Um sujeito constrói o seu discurso levando em consideração o discurso do outro e, assim, o discurso do outro passa a estar contido no seu. Nos comentários desta matéria jornalística, por exemplo, o leitor “Marcio Sarabando” comenta a matéria, escrevendo uma crítica às orientações do governo e da imprensa sobre o modo como as pessoas devem se comportar em uma situação de assalto, sugerindo que

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o país vive em um estado de guerra. Em seguida, “wanderley coelho” ironiza o comentário de “Marcio Sarabando”, ato que gera um novo comentário do primeiro falante. Essa é uma pequena demonstração de como o ambiente tecnológico no qual o webjornalismo está inserido gera um movimento interativo e promove um reposicionamento do lugar do leitor, fazendo com que este seja também um sujeito ativo no jornalismo. Com essa reconfiguração, o leitor passa a ocupar o espaço de publicação das notícias, junto com o jornalista, colaborando com a construção de enunciados e a produção de sentidos.

Considerações finais A conversação desenhada neste artigo só é possível em virtude do cenário tecnológico no qual está inserido o webjornalismo e dos mecanismos que ampliam a interação dos leitores das notícias com os sites jornalísticos e com outros leitores. Essa configuração do jornalismo praticado na web resultou em um reposicionamento do leitor, que passou a ser mais ativo e interativo no processo comunicacional, inserindo no ambiente jornalístico as suas opiniões e pontos-de-vista sobre os temas tratados nas notícias online, em uma interação conversacional. Ao utilizar a ferramenta de comentários online, o leitor ganhou a possibilidade de interagir com o produto jornalístico, com o produtor da notícia e com os demais leitores, concordando, discordando ou apresentando novas informações e argumentos sobre o fato noticiado. Dessa maneira, os enunciados produzidos pelos leitores em resposta ao texto jornalístico se tornaram parte da cena enunciativa dada pela matéria, compondo o espaço de publicação de notícias. Tomando a experiência conversacional do leitor como um processo interacional, pode-se dizer que essa experiência, possível em virtude da utilização da ferramenta de comentários online, contribui

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de maneira significativa para o reposicionamento do leitor em relação às organizações jornalísticas. O leitor, neste sentido, passa a ser um colaborador do processo jornalístico, mesmo que essa contribuição não seja direta, como acontece no uso de ferramentas colaborativas como o “você repórter” e outros recursos do tipo. Observando a experiência conversacional sob a perspectiva de um movimento interativo de interlocutores e seus enunciados, por meio do qual são gerados sentidos em uma determinada cena enunciativa, é possível verificar também o papel exercido pelo leitor na cena que se forma. A partir do momento em que produz um enunciado, o leitor se engaja em uma relação dialógica, tornando-se parte da cena enunciativa dada pela matéria jornalística. Ele coloca nesse ambiente seus próprios pontos-de-vista, visões de mundo e representações sociais, e contribui para a construção de novos sentidos em um conjunto de discursos presentes no ambiente jornalístico, do qual ele passa a fazer parte. Verifica-se, desse modo, que as duas perspectivas de estudo da experiência conversacional apresentadas neste texto não se excluem, mas se complementam na medida em que o estudo de uma pode ser utilizado como preâmbulo ou motor propulsor para o estudo da outra. Se, em um dado momento, pode bastar a um determinado estudo a análise das interações estabelecidas nessa experiência conversacional, em um momento seguinte, a pesquisa pode buscar os sentidos construídos em decorrência dessa experiência conversacional.

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x EXPERIÊNCIAS CONVERSACIONAIS DO LEITOR DE NOTÍCIAS NO JORNALISMO DIGITAL

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Sumário y JORNALISMO E TECNOLOGIAS DIGITAISy

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O MÍDIA NINJA COMO “MÍDIA RADICAL”: UM ESTUDO SOBRE O USO DO FACEBOOK DURANTE AS MANIFESTAÇÕES DE 2013 Marcela Prado Mendonça Eloy Santos Vieira

Introdução As manifestações populares que aconteceram no Brasil, em meados de 2013, seguiram as características de eventos similares ocorridos recentemente ao redor do mundo. Os movimentos apresentavam pautas amplas e relativamente dispersas, mas que questionavam problemas inerentes ao atual sistema econômico e suas implicações sociais e políticas na vida da população. Esse foi o caso, entre outros, da Primavera Árabe8, do Occupy Wall Street9 e do Movimiento 15-M (Espanha)10, marcados não só por levantes orgânicos, mas também pelo despreparo do poder do Estado, independentemente do tipo de 8

Para mais informações sobre esse evento, vide: ALJAZEERA. Protesters flood Egypt streets. Disponível em: . Acessado em: 07 de junho de 2014.

9 Para aprofundar esse assunto, vide: BBC BRASIL. O que o movimento ‘Occupy’ tem a ver com os protestos no Brasil? Disponível em: . Acessado em: 07 de junho de 2014. 10

É possível verificar as demandas desse movimento no blog criado por eles: MOVIMIENTO15M. ¿Qué propone el Movimiento 15M? El programa político de los indignados. Disponível em: . Acessado em: 05 de setembro de 2014.

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regime político vigente nos países em que ocorreram, ao tratar de manifestações dessa natureza. Cabe ressaltar que, apesar das semelhanças, cada movimento tem características próprias, entretanto, não devem ser vistos como manifestações espontâneas que se formaram somente devido às ferramentas disponibilizadas na internet, mas sim em função de um contexto muito maior de mobilizações. Para Bolaño e Filho (2014): Não nos parece adequado [...] tratar o conjunto desses movimentos como manifestações puramente espontâneas de coletivos que se formam na e a partir da Internet com a disposição de expor injustiças sociais cotidianas. Trata-se, no agregado, desde o início do século e um pouco antes, de um longo processo de mobilizações e de aprendizagem de um movimento social tendente a organizar-se em nível internacional, mas com enormes dificuldades nesse sentido. (BOLAÑO & FILHO, 2014, p. 11).

A internet não deve ser reduzida ao seu aspecto tecnológico ou industrial11, uma vez que se constitui num espaço de convergência para a produção cultural, a circulação do capital em geral e a interação de indivíduos e grupos sociais, podendo então funcionar como grande plataforma de comunicação e mobilização. A este respeito, Bolaño etl al. (2011) argumentam: Quando falamos de internet, estamos falando em algo substancialmente distinto de todas as inovações tecnológicas anteriores no campo da informação e da comunicação, devido ao seu caráter híbrido. Não se trata de uma nova tecnologia ou de uma nova indústria concorrente com as anteriores, mas do resultado do desenvolvimento das novas tecnologias e da sua interpenetração e expansão global (BOLAÑO et al., 2011, p. 36). 11

Sobre esta discussão cabe ver também a visão de WOLTON, 2003. No texto, o autor aborda as relações sociais por trás da rede de forma bastante sóbria.

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O grupo Mídia Ninja exerceu importante papel nessas manifestações, apropriando-se dos recursos do ambiente on-line e desenvolvendo uma cobertura atípica dos fatos. Diante disso, propomos aqui uma análise da página do grupo no Facebook, a fim de identificar quais os usos que o coletivo fez dessa rede social para a cobertura das manifestações que irromperam entre os dias 01 de julho a 04 de agosto de 2013. Observa-se que esse foi o período em que o grupo passou a ganhar ainda mais visibilidade nos meios de comunicação, chegando inclusive a pautá-los em diversas ocasiões. Para a análise, levaremos em consideração aspectos, como o engajamento (envolvimento da audiência), os principais temas abordados e as localizações as quais os conteúdos se referem.

A Mídia Radical e o Mídia Ninja Para Downing (2004, p.39), o termo “Mídia Radical” engloba qualquer mídia que trabalhe com informações e notícias fora do circuito das mídias informativas, o que garante preceitos editoriais diferentes dos praticados pelo jornalismo das mídias hegemônicas. Downing (pp. 41-42) ainda afirma que essa mídia radical é essencial à democracia, pois faz uma importante contraposição aos veículos hegemônicos e oferece ressonância às vozes minoritárias, subjugadas e portadoras do impulso da mudança. A relação da mídia radical com movimentos sociais não é recente. Downing (2004, p.55) caracteriza a relação entre mídia radical e movimentos sociais como marcada por uma “forte interdependência dialética”, ou seja, podemos interpretar esse conceito basicamente de duas maneiras: como necessária para construir a contra-hegemonia, mas desfrutando de um poder apenas temporário, somente nos períodos de tensão política, ou como parte do anseio de expressar o disruptivo e profundamente arraigado descontentamento das massas

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(DOWNING 2004, p.50). Por isso, é esse tipo de mídia que o autor considera o primeiro a articular e a difundir as questões, as análises e os desafios dos movimentos. Ao discorrer sobre a relação entre internet e mídia radical, Downing (2004) lembra que, “tradicionalmente, os ativistas de mídia radical funcionaram como repórteres ou documentaristas, mediando as notícias e a análise de fatos atuais e movimentos sociais” (p. 275). Nesse sentido, a atuação do Mídia Ninja, durante as manifestações de rua aqui no Brasil, vem a ser um bom exemplo. Nos termos do autor: [...] é essencial dar à Internet um enfoque de mídia radical consiste na participação das pessoas, na criação de formas interativas de comunicação, que atuam como força de compensação para o fluxo unilateral que é próprio da mídia comercial [...] embora o acesso ainda seja limitado e distribuído de maneira irregular (DOWNING, 2004, p. 275).

A partir desse conceito, de mídia radical, levantamos o seguinte questionamento: O Mídia Ninja é de fato uma mídia radical utilizada por outra estrutura maior? Para responder à questão foi realizado um estudo, tabulando as postagens do Facebook nas categorias “Cobertura”, “Denúncia”, “Divulgação”, “Editorial” ou “Vídeo”, para, posteriormente, realizar a análise.

Historicizando o Mídia Ninja Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) é um coletivo de mídia integrado à estrutura do coletivo Fora do Eixo desde 2011. O Coletivo Fora do Eixo é uma rede de coletivos culturais que surgiu no final de 2005 e seguiu crescendo economicamente a partir de algumas formas de financiamento, como recursos

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próprios, editais públicos e com possibilidade do crowdfunding12. Em entrevista concedida ao jornal Valor Econômico em julho de 2013, Pablo Capilé, um dos organizadores do grupo, explica que eles contam ainda com uma pequena porcentagem de financiamentos proveniente editais públicos, e frisa que apenas 3% a 7% dos recursos são oriundos de empresas públicas; além disso, afirma que o maior percentual provém de iniciativas de viabilidade econômica do próprio grupo, tais como prestação de serviços através de oficinas, debates e festivais, o que, segundo ele, é o que permite a sua autonomia financeira (VALOR ECONÔMICO, 2013; RODA VIVA, 2013). Em outra entrevista, concedida ao programa Roda Viva em agosto de 2013, Pablo Capilé e Bruno Torturra explicaram que a rede chegou a registrar mais de 200 espaços culturais no Brasil e mais de 2000 agentes culturais distribuídos em casas coletivas, em diversos pontos do país (RODA VIVA, 2013). O modelo, segundo os próprios integrantes, garante as necessidades básicas de todos, incluindo comida, plano de saúde, roupas, equipamentos, celulares e computadores, além das contas de luz e internet (VALOR ECONÔMICO, 2013). Bruno Torturra, Felipe Peçanha, Pablo Capilé e Felipe Altenfelder explicaram que naquele momento estavam se organizando para captar recursos financeiros diretamente dos espectadores por meio de crowdfunding e assinaturas (VALOR ECONÔMICO, 2013). Ainda na mesma entrevista, um dos organizadores, Pablo Capilé, esclareceu que muitos veículos da imprensa tradicional tentam rotular o Mídia Ninja: “A esquerda fala que a gente é o novo capitalismo, a direita fala que é o novo comunismo. Ninguém sabe direito

12

Captação de recurso financeiro para iniciativas de interesse coletivo através da agregação de múltiplas fontes de financiamento. Sobre Crowdfunding ver França (2012).

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onde a gente está porque a gente não é organizado por nenhum deles”, diz Capilé (VALOR ECONÔMICO, 2013).

O Mídia Ninja ganha visibilidade O ápice das manifestações deu-se já nos primeiros dias de junho quando um grupo começou a questionar o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, que havia subido de R$ 3,00 para R$ 3,20, desencadeando uma série de protestos e manifestações que continuaram nos meses posteriores. Os eventos que se seguiram ganharam os “holofotes” da imprensa internacional, somando-se à atenção já dedicada a Copa das Confederações, levando o jornal espanhol El País (2013) a considerar os movimentos como uma mera “crise repentina”. Apesar do El País (2013) esclarecer os motivos dos protestos no restante do texto, dizer que era apenas uma crise repentina foi, no mínimo, uma precipitação, posto que, como defendido por boa parte dos manifestantes, não se tratava apenas dos R$ 0,20 relativos ao aumento da tarifa, mas de uma série de outras questões igualmente importantes.

Essas pautas ganharam força com a mobilização efetuada em sites de redes sociais13, tais como Facebook e Twitter14, que serviram também de base para a cobertura midiática, pois, como assinala Cruz (2012): Ao mesmo tempo que reproduz a exploração econômica, as contradições e a ideologia da forma capitalista

13

Entendemos uma rede social como uma estrutura social composta por vários atores, sejam eles pessoas ou organizações conectadas entre si através de laços sociais e partilhando interesses em comum. Ao transportar o conceito para o espaço da internet, optamos por seguir a mesma lógica proposta por Recuero (2009). Para a autora, esses atores sociais passam a ser representados por perfis, blogs ou fotologs e, através de plataformas disponibilizadas, estabelecem relações e interagem com outros atores com interesses comuns, constituindo, portanto, uma rede social. Quando falamos em redes sociais na internet estamos, ainda, limitando um espaço no qual focaremos esse fenômeno. Assim, por exemplo, o Facebook pode representar diversas redes sociais que são constituídas pelos atores que ali se cadastram e interagem.

14

Sobre a relação entre o Twitter e as manifestações de 2013, ver França (2014).

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da informação, a Internet apresenta um potencial democrático e contra-hegemônico que tem possibilitado apropriações criativas, libertárias e comprometidas com a transformação social por parte de cidadãos e coletividades. Na luta por maior autonomia em relação ao Estado e ao capital, esses novos sujeitos do discurso têm feito das atuais tecnologias digitais instrumentos para mobilizar grupos e pessoas, expressar suas visões de mundo e intervir na realidade (CRUZ, 2012, p.14). É interessante notar que, tanto no Brasil quanto no Egito, os protestos tiveram a característica marcante de serem organizados por jovens ativistas que fizeram da internet a sua base. Na Primavera Árabe, os protestos chegaram a ser apelidados de “Revolução da Juventude”. De acordo com Capilé, o Brasil e o Egito guardam semelhanças nas manifestações, pois a juventude de ambos os países se uniu e criou alternativas de comunicação (VALOR ECONÔMICO, 2013). No Brasil, o Mídia Ninja alcançou a marca de aproximadamente duas mil pessoas transmitindo as manifestações ao vivo e in loco, oferecendo uma outra visão dos fatos, diferente daquela dada pela mídia tradicional. Apesar de inúmeras tentativas de utilizar os recursos do Pós-TV, como no caso da TV Maxambomba no Rio de Janeiro entre 1986-200215, não encontramos registro de uma audiência tão significativa no Brasil como a que o Mídia Ninja atingiu na noite do dia 11 de julho de 2013, às 23h39min. O internauta que acessasse o link assistiria, ao vivo, a uma repórter do Mídia Ninja usando um telefone celular para transmitir uma reportagem sobre o autoritarismo policial durante a possível prisão de 15

Durante 16 anos (1986-2002), a TV Maxambomba conduziu na Baixada Fluminense atividades de TV comunitária produzindo vídeos em conjunto com os moradores da região que eram exibidos em praças públicas. Mais informações estão disponíveis no site: Acessado em: 10 de setembro de 2014.

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dois garotos acusados de roubo, ao final da manifestação popular, que convulsionou a cidade do Rio de Janeiro. A reportagem, no calor dos fatos, aconteceu quase ao término da “guerra” entre manifestantes e policiais militares. No dia seguinte, o jornal O Globo trataria o ocorrido como uma “Batalha na frente do Palácio da Guanabara”, apresentando uma cobertura bem diferente da véspera, que a descrevia como uma manifestação pacífica, cuja tranquilidade foi quebrada pela ação dos vândalos. O conteúdo da reportagem impressa estava bem mais próximo dos acontecimentos transmitidos ao vivo pelo Mídia Ninja, do que a da cobertura realizada pelos repórteres da TV Globo. Às nove horas da noite, no auge da luta entre policiais e manifestantes, a transmissão ao vivo, já contabilizava 2.500 acessos. A imprensa nacional (tradicional e alternativa) e a internacional deram muita visibilidade às manifestações sociais no Brasil, inclusive abordando o Mídia Ninja com um discurso heterogêneo, ora demonizando, ora enaltecendo sua força de mobilização. De junho a setembro de 2013, vários jornais tradicionais internacionais noticiaram a respeito das manifestações sociais no Brasil dando muita visibilidade ao grupo, que passou a ser conhecido mundialmente pela transmissão dos protestos ocorridos no Brasil em 2013. Na semana de 28 de julho a 04 de agosto de 2013, o Mídia Ninja ganhou as páginas do The New York Times e do britânico The Guardian. Naquela semana, também a Folha de São Paulo afirmou que o Mídia Ninja contribuiu para a libertação de Bruno Ferreira Teles, manifestante preso em Laranjeiras, Rio de Janeiro, acusado de atirar um “coquetel Molotov” na PM e libertado graças a vídeos reunidos na internet, disponibilizados por meio do canal do Mídia Ninja, no Facebook. Na entrevista ao Valor Econômico (2013), o integrante do Midia Ninja, Bruno Torturra, afirmou que “estamos vendo emergir o pós-expectador (sic). Começamos a entender que ele não é passivo, que

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tem uma responsabilidade na hora que replica, que comenta que dá um “like” (curtir a página do Facebook), que usa algo de uma fonte, ele tem responsabilidade”. CRUZ (2012) já havia salientado que as mídias sociais possibilitam o alcance de um grande público com pouco investimento: Hoje, sites, blogs, comunidades virtuais e mídias sociais alcançam um público inimaginável a custos módicos e vão além: proporcionam uma interação permanente e uma crescente liberdade de participação, criação, disseminação de informação e conhecimento (CRUZ, 2012, p. 8).

Conforme propusemos inicialmente e, em face da afirmação do próprio Torturra (VALOR ECONÔMICO, 2013), analisaremos logo o conteúdo da página oficial do Mídia Ninja no Facebook16, durante um período intenso de manifestações aqui no Brasil, período em que grandes veículos de comunicação passaram a se utilizar do conteúdo produzido pelo movimento, para a produção de conteúdo em várias outras plataformas.

O uso do Facebook pelo Mídia Ninja A página do Mídia Ninja no Facebook foi uma ferramenta importante na estratégia de divulgação do conteúdo on-line do coletivo. Como ela já tem capacidade intrínseca de registro, armazenamento e organização temporal das informações, optamos por utilizá-la como corpus de análise em nosso trabalho. Além dessas informações, pudemos observar os assuntos mais abordados, por meio da categorização de cada postagem, de acordo com as cinco categorias que criamos após uma primeira análise: “Cobertura” (qualquer tipo

16

Atualmente, o Mídia Ninja conta com mais de 300.000 seguidores no Facebook. A página está disponível em: . Acessado em: 05 de setembro de 2014.

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de cobertura de evento, incluindo aí as manifestações), “Denúncia” (postagens que denunciam algum tipo de abuso por parte do poder público), “Divulgação” (conteúdo com o intuito de divulgar eventos do próprio coletivo ou de entidades parceiras), “Editorial” (conteúdo institucional que demonstra claramente a posição do “coletivo” diante de algum fato específico) e “Vídeo” (como quase todas as postagens contêm alguma fotografia, geramos essa categoria para diferenciar o formato e também em função da ênfase que foi dada ao canal Pós-TV). Durante a análise, coletamos manualmente também informações relativas à recepção da audiência que não serão detalhadas em função do recorte aqui empreendido. Priorizamos alguns aspectos, tais como a frequência dos assuntos abordados, a categorização do conteúdo postado (Cobertura, Denúncia, Divulgação, Editorial ou Vídeo) e, também, a localização geográfica a que se referia cada postagem, de acordo com as informações dentro de cada uma. A priori, nossa análise foi feita semanalmente e, somente ao final, juntamos as informações referentes ao período completo. Optamos então por fornecer primeiramente uma visão parcial de cada semana, para só então apresentarmos uma análise geral. Na primeira semana analisada, compreendida entre os dias 01/07 e 07/07, é possível verificar, conforme Gráfico 1, que as postagens, em sua maioria, ficaram centradas na cobertura dos eventos no Cairo, realizada por Rafael Vilela, fotojornalista enviado pelo “coletivo”17. Além disso, destacaram-se a divulgação da transmissão de um coletivo de imprensa no Complexo da Maré, Rio de Janeiro, que contou com a presença de veículos, como o Jornal do Dia, Folha de S. Paulo e BBC (UK), no dia 02/07, e a cobertura de confrontos direto de manifestantes com a polícia no Leblon e em Ipanema, Rio de Janeiro, este último, inclusive,

17

Para mais informações sobre essa cobertura, vide: . Acessado em 06 de setembro de 2014.

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expunha as manifestações contra Sérgio Cabral, então governador do Estado. No dia 05/07, o número de postagens ultrapassou a marca dos 10 mil compartilhamentos. A seguir, apresentamos alguns dados sobre os posts analisados durante essa semana. A categoria, denominada “Cobertura”, ganhou bastante destaque dentre as 21 postagens da primeira semana, representando mais da metade das encontradas na página. Em geral, elas abordaram as manifestações no Egito (com cobertura direta do fotojornalista Rafael Vilela, enviado pelo Mídia Ninja) e das manifestações no Rio de Janeiro, sobretudo algumas no Complexo da Maré e outras, na zona Sul da cidade, contra o então governador Sérgio Cabral. Gráfico 1 – Frequência dos assuntos – Semana 1 (01/07 e 07/07) 14 12 10 8 6 4 2 0

Fonte: Elaboração própria.

Na segunda semana analisada (08/07 a 14/07), e conforme Gráfico 2, percebemos que boa parte do conteúdo tratou da cobertura do Dia Nacional de Luta. Os eventos organizados por vários movimentos sociais (centrais de trabalhadores e sindicatos, entre

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outros), em todo o país, no dia 11/07, contaram com uma transmissão ampla do Mídia Ninja. Aliás, foi a única semana em que as postagens do Rio de Janeiro (RJ) foram superadas por outra cidade, pois São Paulo (SP) ficou com 22% das postagens e o Rio, com 14%. Outro fato relevante dessa semana foi que, apesar da audiência que tiveram no Pós-TV durante as manifestações no Palácio da Guanabara, como apontamos anteriormente, só houve uma postagem na página oficial do “coletivo” no Facebook sobre o tema. Gráfico 2 – Frequência dos assuntos – Semana 2 (08/07 e 14/07) 7

6 5 4

3 2 1 0

Fonte: Elaboração própria.

No Gráfico 3, referente à terceira semana (15 a 21/07), percebemos que foram feitas 11 postagens no total, sendo que 8 abordaram diretamente as manifestações contra o então governador Sérgio Cabral, ocorridas no Rio de Janeiro, e o restante se referiu à ocupação de espaços públicos, em Porto Alegre e São Paulo. Com isso, a categoria “Cobertura” continuou sendo a principal. Convém salientar que praticamente todas as postagens partiram da capital fluminense.

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Gráfico 3 – Frequência dos assuntos – Semana 3 (15/07 e 21/07) 9 8 7 6 5 4 3 2 1

0

Fonte: Elaboração própria.

Já na quarta semana, compreendida entre os dias 22 e 28/07, notamos uma certa discrepância em relação aos períodos anteriores. Ocorreram apenas 5 postagens oriundas do Rio de Janeiro. O número baixo pode ser relacionado ao fato de que essa semana coincidiu exatamente com a semana em que o Papa Francisco visitava a cidade, ou seja, o foco que antes estava sendo dado às manifestações acabou sendo ofuscado pela cobertura da visita do papa. Conforme mostra o Gráfico 4, houve apenas uma postagem que não se enquadra na categoria “Cobertura”, mas sim na categoria “Denúncia”, pois havia um pedido direto para que as pessoas compartilhassem uma denúncia de abuso policial no Rio de Janeiro.

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Gráfico 4 – Frequência dos assuntos – Semana 4 (22/07 e 28/07) 4,5 4 3,5 3 2,5 2 1,5 1 0,5 0

Ao Vivo

Papa

Manifestações

Polícia

Dilma

Fonte: Elaboração própria.

A última semana analisada, já depois da visita do papa, apresentou 15 postagens, e, agora, o foco já voltava novamente para as manifestações que ocorreram no eixo Rio-São Paulo, durante o período de 29/07 a 04/08, assunto que voltou a dominar as postagens nesse período. Do total de postagens, 11 foram de “Cobertura”, 3 de “Divulgação” e uma de “Denúncia”18, esta última referindo-se diretamente a uma reportagem do G1-Portal de Notícias da Globo19, considerada “distorcida” de acordo com o Mídia Ninja. Destacamos também a cobertura feita em São Paulo, que mencionava diretamente a ação dos Black Blocs20 durante os protestos, na capital paulista.

18

Postagem disponível no link: . Acessado em: 10 de setembro de 2014.

19

Reportagem completa disponível aqui:< http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/07/ manifestantes-deixam-porta-de-cabral-durante-madrugada-no-rio.html>. Acessado em: 10 de setembro de 2014.

20

Black Bloc é a nomenclatura dada a grupos de protestos de características anarquistas, geralmente mascarados, que se reúnem com o objetivo de protestar contra o sistema capitalista. Mais informações disponíveis em: Acessado em: 11 de setembro de 2014.

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Gráfico 5 – Frequência dos assuntos – Semana 5 (29/07 e 04/08) 10

9 8 7 6 5 4 3 2 1 0

Fonte: Elaboração própria.

Ao todo, foram analisadas 66 postagens nas cinco semanas compreendidas entre os dias 01/07/2013 e 04/08/2013. Desse total, pudemos constatar no Gráfico 6, que 48 postagens foram sobre a cobertura de eventos, a maioria do conteúdo dessa categoria abordou as manifestações populares, mas também tratou de outros fatos que ocorreram no período no Brasil e em outros países, como Egito e Espanha. A proporção de conteúdo de acordo com nossa proposta de classificação de categorias pode ser verificada abaixo:

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Gráfico 6 – Postagens por categoria - Total Editorial 4%

Vídeo 3%

Divulgação 11%

Denúncia 9% Cobertura 73%

Fonte: Elaboração Própria.

Entre os assuntos mais falados durante todo o período, destacamos as “Manifestações”, com 32 menções dentre o total de postagens analisadas. Em seguida, aparecem “Polícia”, “Ao Vivo”, “Egito” e “Ocupação” (Gráfico 7).

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195

Gráfico 7 –Frequência dos assuntos – Total 35

30

25

20

15

10

5

0

Fonte: Elaboração própria.

No tocante à localização geográfica das postagens (Gráfico 8), alguns aspectos apresentados já eram esperados, como a concentração na cidade do Rio de Janeiro, com 28 postagens, basicamente com a cobertura das manifestações. Em seguida, o Cairo (Egito) foi o segundo local mais citado21, com a cobertura do Mídia Ninja sobre as manifestações que se sucederam por lá e, em terceiro lugar, apareceu São Paulo (SP), com as manifestações e algumas ocupações de prédios públicos. As outras cidades que figuram no gráfico abaixo foram mencionadas apenas uma ou duas vezes ao longo das cinco semanas.

21

Essa ação no Egito se deve ao fato de que o Midia Ninja tinha a intenção de internacionalizar a sua lógica colaborativa para a criação de uma rede de jornalismo interdependente. Para mais informações acessar: .

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Gráfico 8 – Localização geográfica das postagens – Geral Belém (PA) Madrid (Espanha)3% 3%

Cairo (Egito) 20%

Belo Horizonte (MG) Fortaleza (CE) João Pessoa (PB) 1% Brasília (DF) 1% 1% Palmas (TO) 3% 1% Paraty (RJ) 2% Porto Alegre (RS) 2% Porto Velho (RO) 2%

Vitória (ES) 2% São Paulo (SP) 17%

Rio de Janeiro (RJ) 42%

Fonte: Elaboração própria.

Considerações Finais É verdade que a internet carrega em si contradições intrínsecas, uma vez que, ao mesmo passo que se revela um novo espaço para o mesmo processo de reprodução capitalista da Indústria Cultural, como entendem Bolaño e Filho (2014) e Bolaño et al. (2011), possibilita também um grande campo para finalidades que permitem a transformação social através de diferentes plataformas e seus usos e apropriações. É exatamente essa apropriação da internet, enquanto espaço que permite aos indivíduos criarem novas formas de comunicação e interação social, que faz com que Downing (2004) a denomine como uma potencial plataforma de mídia radical. Esse tipo de mídia é um dos principais responsáveis por dar voz a esses movimentos que não têm necessariamente as desigualdades

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econômicas como principal fonte de desigualdade geral, mas sim um conjunto de práticas socioculturais. Em outras palavras, diríamos que a potencialidade comunicativa e mobilizadora ficaram evidentes a partir do momento que analisamos o conteúdo divulgado pelo Mídia Ninja, por meio do Facebook, uma vez que o uso dessa plataforma pelo “coletivo” objetivava a contestação das estruturas de comunicação dominantes, ou seja, representava uma forma de mídia radical que prezava por garantias e preceitos editoriais próprios, diferentes daqueles praticados pelos veículos de comunicação tradicionais e, assim, possibilitava discursos dissonantes chegassem à audiência.

Referências ALJAZEERA. Protesters flood Egypt streets. Disponível em: . Acessado em: 07 de junho de 2014. BBC BRASIL. O que o movimento ‘Occupy’ tem a ver com os protestos no Brasil? Disponível em: . Acessado em 07 de junho de 2014. BOLAÑO, César Ricardo Siqueira; FILHO, Adilson Vaz de Cabral. “O Brasil e o movimento social global: uma análise dos eventos de junho de 2013 em perspectiva histórica”. In: Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v.10, n.1, p. 10-21, maio 2014. Disponível em: . BOLAÑO, César; HERSCOVICI, Alain; CASTAÑEDA, Marcos e VASCONCELOS, Daniel. Economia Política da Internet. Universidade Federal de Sergipe. Aracaju: Ed. UFS. Vol. I. 2ª Edição. 2011. CRUZ, Carole Ferreira da. “WikiLeaks e as Apropriações Contrahegemônicas da Internet”. In: Anais doIV Encontro Nacional da Ulepicc-Brasil – Rio de Janeiro/RJ – 9 a 11/10/2012. Disponível

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em: . Acessado em: 06 de julho de 2013. DOWNING, John D. H. Mídia Radical: Rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. 2. ed. São Paulo. Editora Senac, 2004. EL PAÍS. ¿Por qué Brasil y ahora?. Disponível em: .Acessado em 06 de julho de 2013. FRANÇA, Lilian Cristina Monteiro França. “Crowdfunding: Alternativas para as Políticas Públicas no Fomento da Arte e da Cultura no Escopo da Economia Criativa”, In: Anais do IV Ulepicc Brasil, 2012. Disponível em: . Acessado em: 11 de setembro de 2014. Lilian Cristina Monteiro França. “Occupy Brazil: configurando uma rede de reações”. In: Culturas Midiáticas, v. 7, n.1, 2014. Disponível em:. Acessado em: 4 de setembro de 2014. FOLHA de São Paulo. Mídia Ninja prepara portal para transmitir ‘outro lado’ da Copa. Disponível em: . Acessado em: 05 de agosto de 2014. RECUERO, Raquel. “Redes Sociais na Internet, Difusão de Informação e Jornalismo: Elementos para discussão”. In: SOSTER, Demétrio de Azeredo; FIRMINO, Fernando (org.). Metamorfoses jornalísticas 2: a reconfiguração da forma. Santa Cruz do Sul: UNISC, 2009, p. 37-55. Disponível em: .

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RODA VIVA. Roda Viva | Mídia Ninja | 05/08/2013. 2013. Disponível em: . Acessado em: 11 de setembro de 2014. VALOR Econômico. A Narrativa que se engaja nas Manifestações. Site do Jornal Valor Econômico, 31 jul. 2013. Disponível em . .Acessado em: 31 de julho de 2013. WOLTON, Dominique. Internet, e depois? - Uma teoria crítica das novas mídias. 2003. Editora Sulina. Porto Alegre.

Parte 3 y x O MÍDIA NINJA COMO “MÍDIA RADICAL”: UM ESTUDO SOBRE O USO DO FACEBOOK DURANTE AS MANIFESTAÇÕES DE 2013

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Sumário y

y AUTORES

Carlos Eduardo Franciscato Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Professor do PPGCOM/UFS e do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe. Ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor) e atual coordenador do GT Estudos de Jornalismo da COMPÓS. E-mail: [email protected].

Greice Schneider Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBA e Doutora em Comunicação pela Katholieke Universiteit Leuven, na Bélgica. Professora do Programa curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected]

Josenildo Luiz Guerra Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Professor do PPGCOM/UFS e do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe. Coordena o Programa de Pesquisa em Qualidade, Inovação e Tecnologia Aplicada ao Jornalismo (Qualijor) e é um dos líderes do Laboratório de Estudos em Jornalismo (Lejor). Coordena a Rede Nacional de Observatório de Imprensa (Renoi).E-mail: [email protected].

Lilian Cristina Monteiro França Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUCSP e Pós-Doutora pelo IFCH/UNICAMP. Professora do PPGCOM/UFS, do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) e do Departamento de Comunicação Social (DCOS) da Universidade Federal de Sergipe. integra a equipe de pesquisa do projeto “”Subjugated Knowledge: Permitting the Narratives of the Oppressed to Emerge”, City Universiy of New York (CUNY). E-mail: [email protected].

x JORNALISMO E TECNOLOGIAS DIGITAIS

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Eneida Trindade Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia. Mestranda pelo PPGCOM/UFS sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Eduardo Franciscato. Email: eneidatrindade@ gmail.com.

Eloy Santos Vieira Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade do Federal de Sergipe. Mestrando pelo PPGCOM/UFS sob a orientação da Profa. Dra. Lilian Cristina Monteiro França. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

Marcela Prado Mendonça Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Tiradentes (SE). Mestranda pelo PPGCOM/UFS sob a orientação da Profa. Dra. Sonia Aguiar Lopes e coorientação do Prof. Dr. César Ricardo Siqueira Bolaño. Bolsista Fapitec-SE, E-mail: [email protected].

Carol Correia Santana Graduada em Comunicação/Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected].

Lucas Santos Vieira Estudante de Estatística da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Atuou como pesquisador de Iniciação Tecnológica, com bolsa financiada pela Coordenação de Pesquisa (Copes/UFS) na pesquisa que testou o SGPJ. E-mail: [email protected].

JORNALISMO E TECNOLOGIAS DIGITAISy

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Formato Tipografia Software de editoração Número de páginas

15cm x 21cm DTL Documenta e Georgia Adobe InDesign 204

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