JOSÉ DE ALENCAR E AS OBSERVAÇÕES LITERÁRIAS SOBRE SUA PRODUÇÃO NAS PÁGINAS DA QUESTÕES DO DIA

July 31, 2017 | Autor: V. Rezende Borges | Categoria: History, Cultural History, Reception Studies, José de Alencar
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JOSÉ DE ALENCAR E AS OBSERVAÇÕES LITERÁRIAS SOBRE SUA PRODUÇÃO NAS PÁGINAS DA QUESTÕES DO DIA Valdeci Rezende BORGES1 [email protected]

RESUMO: Os campos da cultura e da política brasileiros em meados do século XIX foram espaços de lutas acirradas em nome da formação da nação e de uma identidade. Alencar combateu por uma literatura “brasileira” nos temas e “moderna” na forma, em confronto com vários intelectuais. Diversos ensaios configuram em lugares de memórias de tais lutas, às vezes esquecidas. Inseridos nas trincheiras lusas e usando pseudônimos, o português José Feliciano de Castilho (Lucio Quinto Cincinnato) e o carioca Franklin Távora (Sempronio), dentre outros, foram críticos ferrenhos da obra de Alencar. É objetivo abordar, por meio de alguns textos da revista Questões do dia, de 1871, as observações literárias realizadas sobre a prática literária de Alencar e seu lugar na literatura brasileira. PALAVRAS-CHAVE: José de Alencar, Questões do dia, recepção crítica.

ABSTRACT: The fields of culture and politcs in Brazil in mid-nineteenth century were places of bitter fighting in the name of nation-building and identity. Alencar literature fought for a “brazilian” in the themes and “modern” in form, in comparison with many intellectuals. Several tests of memory locations configured in such struggles, sometimes forgotten. Inserted in the trenches and under pseudonyms luso, the portuguese José Feliciano de Castilho (Lucio Quinto Cincinnato) and Rio Franklin Tavora ( Sempronio), among others, were staunch critics of the work of Alencar. It is aimed to address, through some texts of th journal Issues of the day, 1871, the literary observations made about the literary practice of Alencar and his place in the literature. KEYWORDS: José de Alencar, Issues of the day, critical reception.

José de Alencar (1829-1877), em vários ensaios críticos, refletiu sobre as relações estabelecidas entre a língua portuguesa e a diversidade lingüística existente no Brasil, entre a linguagem literária e a coloquial, entre a história, a cultura e a natureza. Suas propostas e

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Dr. em História pela PUC/SP. Professor do Departamento de História e Ciências Sociais, da Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão. O presente trabalho é produto do projeto mencionado e foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. Bolsa Produtividade.

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defesas dessas balançaram o campo intelectual oitocentista brasileiro e luso em combates e lutas calorosas por uma forma de representação do Brasil como nação. O início de sua reflexão pode ser acessado no pequeno ensaio “O estilo na literatura brasileira”, de 1850, publicado, quando acadêmico de Direito, na revista Ensaios Literários, de São Paulo. Já em 1856, no Diário do Rio de Janeiro, veio a luz a discussão que enfrentou ao longo de toda sua vida intelectual. Inaugurou a primeira grande polêmica literária brasileira com a publicação das “Cartas sobre A Confederação dos Tamoios” abordando a produção da literatura americana ou indianista. Em seguida na “Carta ao Dr. Jaguaribe” e no “Pós-escrito” à Diva, de 1865, tratou de como e por que escreveu Iracema e de dimensões de seus romances urbanos, respectivamente. O português Manuel Pinheiro Chagas, em “Literatura Brasileira – José D’Alencar: Iracema”, de 1867, criticou a referida obra abordando a questão das relações entre as línguas, indígena e portuguesa, e o problema da linguagem literária. Na próxima batalha, Alencar, em diálogo com Chagas, no “Pós-escrito” à segunda edição de Iracema, de 1870, defendeu-se das censuras e bateu pela diferenciação lingüística entre o português brasileiro e aquele de Portugal. Na sequência, em Lisboa, no Jornal do Comércio, o maranhense Antonio H. Leal, em “A Literatura brasileira contemporânea”, de 1870, realizando um balanço da produção literária nacional, tratou da figura de Alencar com elogios, mas também com críticas. Na cena seguinte, no primeiro semestre de 1871, ainda em Lisboa, Leal continuou sua reflexão em “Questão Filológica: a propósito da segunda edição de Iracema” focando a problemática da língua e da linguagem. Esse artigo saiu publicado no Brasil em O Paiz, de 27 e 28 de maio daquele mesmo ano. Já, a partir de meados de 1871, nas páginas da revista fluminense Questões do Dia, começou a aparecer uma série de cartas políticas e literárias com o intuito de demolir a fama e a reputação de Alencar, as quais só findaram em fevereiro de 1872. No próximo embate, Alencar produziu “Benção paterna”, em 1872, defendendo sua escrita e periodizando-a, enquanto, em 1874, Leal recolheu os escritos acima mencionados no livro Lucubrações, editado em Lisboa. Ainda em 1874, Alencar produziu as “Cartas ao Sr. J. Serra”, conhecidas por “Nosso cancioneiro”, tratando da naturalização de nossa literatura e escreveu também “Questão filológica”, rebatendo as críticas de Leal. No entanto, se estes foram alguns dos fatos que marcaram o campo de batalhas, aqui neste texto, se abordará apenas algumas facetas acerca das cartas de literárias de Sempronio (Franklin Távora) a Cincinato (José Feliciano de Castilho) e vice-versa. Alencar, em “Como e porque sou romancista”, de maio de 1873, texto de caráter autobiográfico e logo marcado por suas memórias, mas também por suas preocupações com o futuro, ao buscar garantir que seu nome figurasse na posteridade, menciona que em 1868 “a

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alta política” arrebatou-o às letras para só restituí-lo em 1870. No seu dizer, eram tão vivas “as saudades dos [seus] borrões, que apenas despediu da pasta auriverde dos negócios de Estado, para ir tirar da gaveta onde havia escondido, a outra pasta do velho papelão, todo rabiscado, que era então a arca do [seu] tesouro”. Em seguida ele refere a sua passagem para outra idade como romancista, a segunda, na qual obteve afinal um editor:

Aí começa outra idade de autor, a qual chamei de minha ‘velhice literária’, adotando o pseudônimo de Sênio, e outros querem seja a da decrepitude. Não me afligi com isto, eu que, digo-lhe com todas as veras, desejaria fazer-me escritor póstumo, trocando de boa-vontade os favores do presente pelas severidades do futuro. [...] Ao cabo de vinte e dois anos de gleba na imprensa, achei afinal um editor, o Sr. B. Garnier, que espontaneamente ofereceu-me um contrato vantajoso em meados de 1870. (ALENCAR, 1965, v.1, p. 120)

Além de anunciar sua entrada naquilo que chamou de “velhice literária” ou “segunda idade” de autor, de informar que deixava de fazer parte do grupo dos “poetas mendicantes”, pois agora tinha um editor, que considerou ser “o deus da inspiração e pai das musas” da “poesia moderna” daquele século, ponderou: “Afora isso, o resto é monótono; e não passaria de datas, entremeadas da inesgotável serrazina dos autores contra os tipógrafos que lhes estripam o pensamento”. No entanto, se Garnier era o seu “Magnus Apollo” de poeta moderno e sua casa, “o seu Parnaso uma livraria”, isso não lhe garantiu, realmente, uma vida monótona, ao contrário. Animado, escrevera mais três obras, uma atrás da outra: O gaúcho, A pata da gazela e O tronco do ipê, todas assinadas por Sênio, marca de sua “velhice precoce”, aquela “da alma que deixam as desilusões”. (ALENCAR, 1965, v.1, p. 120-1; ALENCAR, 1965, v. 3, p. 21). Sobre essa nova fase de sua vida literária, “fase de dissabores, de tristezas íntimas e de pessimismo cruel”, deixadas pelas desilusões, pela corrupção e isolamento moral, o autor já havia referido no prefácio de O Gaúcho, escrito em novembro de 1870, no qual explicou a adoção do novo pseudônimo ou máscara:

Que significa este nome _ Sênio _ no frontispício de livros que vozes benévolas da imprensa já atribuíram a outrem? [...] Cada um fará a suposição que entender. [...] Era preciso um apelido ao escritor destas páginas, que se tornou um anacronismo literário. Acudiu esse que vale o outro e tem de mais o sainete da novidade.[...] Porventura escolhendo aquela palavra, quis o espírito indicar que para ele já começou a velhice literária, e que estes livros não são mais as flores da primavera,

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nem os frutos do outono, porém sim as desfolhas do inverno?[...] Talvez.[...] Há duas velhices: a do corpo que trazem os anos, e a da alma que deixam as desilusões. [...] Aqui, onde a opinião é terra sáfara, e o mormaço da corrução vai crestando todos os estímulos nobres; aqui a alma envelhece depressa. E ainda bem! A solidão moral dessa velhice precoce é um refúgio contra a idolatria de Moloc. (ALENCAR, 1965, v. 3, p. 21).

Com relação ainda ao começo dessa “segunda idade”, da alma desiludida, marcada não só pelos fatores subjetivos e internos aos textos, mas inerentes a sua visão e sentimento em relação à vida e ao mundo, o escritor apontou um outro aspecto já referido, que foi a conquista de condições objetivas mais apropriadas de produção e distribuição de seus livros por meio de um editor. Mas o autor ainda reconheceu que, mesmo antes desse instrumento legal, sua obra já era dele tributária: “O que lhe deve a minha coleção, ainda antes do contrato, terá visto nesta carta; depois, trouxe-me esta vantagem, que na concepção de um romance e na sua feitura, não me turva a mente a lembrança do tropeço material, que pode matar o livro, ou fazer dele uma larva.” Deste modo, Alencar ficava livre “da inesgotável serrazina dos autores contra os tipógrafos que lhes estripam o pensamento”, ao obter uma casa editora de suas obras possuidora de uma livraria, na qual expunha, em suas vitrines, seus livros e os vendia (ALENCAR, 1965, v.1, p. 120). Se em 09 de janeiro de 1870 ele deixou a pasta de ministro da Justiça para candidatar ao Senado, sendo eleito em primeiro lugar, nos fins de abril, D. Pedro II vetou sua indicação e escolheu o segundo e o quinto colocados da lista sêxtupla como os novos representantes do Ceará no Senado, deixando-o transtornado. Ao voltar à Câmara dos Deputados, fez oposição cerrada ao Imperador. Nascia o inimigo do rei e a proposta de erguer uma estátua ao rei foi a deixa para o retorno do terrível panfletário, que andava adormecido (NETO, 2006, p. 292, 296). No ano de 1871 Alencar teve a Câmara dos Deputados como espaço para defender suas posições e buscar expurgar seus ressentimentos, embora essa não lhe desse mais entusiasmo, apenas desconfianças. Assim fez, de forma tenaz e veemente, uma campanha contra seu antigo colega do Ministério de 16 de Julho, que chefiava, no momento, o gabinete que subiu ao poder a 7 de março de 1871, o visconde do Rio Branco. Opôs-se a, praticamente, tudo o que ele propôs ou defendeu, combatendo a viagem do Imperador ao estrangeiro e sua substituição pela princesa Isabel, a subvenção à imprensa e o projeto do Ventre Livre escravo. Neste contexto, na fase mais aguda dessas discussões, por volta de meados de 71, foi criada a revista semanal Questões do Dia: observações políticas e literárias escritas por vários e

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coordenadas por Lucio Quinto Cincinnato, pseudônimo do português José Feliciano de Castilho, seu fundador. Nela começaram a surgir cartas políticas e literárias produzidas em tom panfletário com a intenção de combater as idéias, os pensamentos e os posicionamentos políticos de Alencar, discutindo seus pronunciamentos realizados na imprensa (na folha de sua propriedade Dezesseis de Julho e no Jornal do Commércio) e no parlamento. Era motivação do debate, sobretudo, as questões acerca do poder pessoal do imperador e aquela do elemento servil, isto é, da escravidão, do projeto de abolição da instituição do cativeiro ao qual Alencar se opunha. Mas, não foram trazidas a cena apenas as idéias e posições de Alencar no campo da política imperial. Suas produções e concepções literárias foram debatidas com clara intenção de desqualificá-lo. A pena de Castilho, durante mais de seis meses (de meados de agosto de 1871 a 20 de fevereiro de 1872), semana após semana, auxiliada por Franklin Távora e outras, investiu contra ele, estando a serviço do gabinete de Rio Branco, como o próprio deputado-romancista, objeto das análises, denunciou na Câmara dos Deputados, e o Pe. Campos, aliado do visconde, o confirmou em carta (MAGALHAES JR, 1977, p. 274, 292; MENEZES, 1977, p. 298). Foram publicados 40 números da Questões do dia e ainda em 1871, a Typographia e Lithographia Imparcial, reuniu em volume os 20 primeiros números enfaixados no tomo I referentes aos meses de agosto até 10 de novembro daquele ano. O tomo II foi editado no ano seguinte com os 20 números restantes abarcando o período de 14 de novembro de 1871 a fevereiro de 1872. O primeiro número contém 72 páginas e compreende as 4 primeiras cartas de Castilho denominadas “Cartas políticas dirigidas pelo roceiro Cincinnato ao cidadão Fabricio”. Nestas primeiras missas fica claro o motor do empreendimento; as discussões ao redor de duas questões da ordem do dia: o exercício do poder pessoal de D. Pedro, atacado por Alencar e o projeto de emancipação do elemento servil. Alencar, na imprensa e na câmara dos deputados, batia contra seus adversários, denunciando e questionando o uso do poder pessoal do soberano, opondo ao projeto do ventre livre e apontando a presença e interferência de estrangeiros em questões nacionais, como da pena mercenária de Castilho, paga pelo governo para defender o Imperador, o projeto e as iras que desencadeou. Castilho, por sua vez, julgando que “o nobre disputante [...] decidiu esmagar-me”, abriu fogo contra Alencar junto a outros aliados reforçando uma visão negativa do adversário e positiva do grupo a que pertencia. Já os 19 números da revista restantes, presentes no primeiro tomo, cada um dele, possui 16 páginas. Se os dois primeiros números são compostos de cinco cartas com reflexões políticas de Cincinnato a Fabrício, a partir do número 3 outras divisões de conteúdos

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apareceram, figurando, em geral, 3 divisões; duas com artigos sobre temas políticos e questões do governo, como reforma judiciária, os discursos de Alencar, o partido conservador, a escravidão... e outra com mais uma carta “Do roceiro Cincinnato ao cidadão Fabrício”. A partir do número 5, a revista passa a conter, geralmente, uma seção denominada “Obras de Senio- O gaúcho” ou aquela em que figuram as cartas de “Cincinnato a Sempronio” ou de “Sempronio a um amigo”, todas versando sobre O gaúcho. Encontram-se ainda nas páginas de primeiro volume, artigos de Solon, de Juntus, sem assinatura e de alguns jornais, intercalados com epigramas, madrigais e poesias, como aquelas de Pit e Blackstone. No que refere às relações com o mercado, a partir do número 3 a revista indicava os pontos de venda onde poderia ser adquirida pelo preço de 200 réis. Eram eles: -a casa do srs. E. & H. Laemmert – Praça da Constituição; - Loja do Canto – Rua de S. José, n. 110; Livraria Acadêmica e Cruz Coutinho, na mesma rua n. 75. A partir do n. 7 a Livraria Acadêmica situava na rua de S. José n. l19 e foram acrescidos os endereços do Largo do Paço n. 12 C e da Rua de Gonçalves Dias n. 79. A partir do n. 21 figuraram também: - Agostinho de Freitas Guimarães & Companhia, na Rua General Câmara, 26. Já, a partir do n. 27, de 20 de dezembro de 1871, o volume I, contendo os 20 primeiros números da revista, passou a ser anunciado por 3$000.

Cenas dos debates políticos e literários

Com relação à proposta de abolição da escravidão, corrente na Câmara dos Deputados, Alencar posicionava-se contra. Em 14 de maio e 30 de setembro de 1870 esclarecia que era contra a escravidão e desejava “ardentemente ver desaparecer do País essa instituição”, mas não por meio de medidas diretas e legislativas. Diante da “pecha de escravocrata”, lembrava que foi “dos primeiros que se inscreveram na cruzada santa que trabalha por extinguir a escravatura, não na lei, mas nos costumes, que são a medula da sociedade”; que há 15 anos, as vozes que ali se levantavam com sofreguidão, emudeciam e “ele se esforçava, no campo que se abria então à sua atividade na literatura e na Imprensa, em banir essa instituição” (ALENCAR, 1977, p.186-7,196-7). Em 10 e 13 de julho de 1871, considerou o projeto de Rio Branco como fruto de imposição estrangeira, da Conferénce Abolitionniste Internationale, de Paris. No Partido Conservador, se pensava no “progresso contínuo, suave e natural da revolução íntima” que se operava e realizaria a emancipação pelo melhoramento dos costumes, pela civilização e regeneração moral, sendo em pouco extinta a escravidão pela Nação, independente do

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Governo e da lei. No entanto, agora o Governo queria dela “fazer um troféu” para o general da idéia, pois era de cima, do alto que vinha o impulso. Chamava a atenção para a autonomia nacional frente à intervenção externa, opondo-se à “filantropia européia” e aos “cortejos à opinião estrangeira” (ALENCAR, 1977, p.203, 225-8). Criticou o tipo de abolição que se propunha, por discordar de seu alcance e resultados. Era medida imperfeita que não se preocupava com o destino dos negros. Os “propagandistas, os emancipadores a todo o transe” queriam a abolição como ostentação; entendiam que libertar era “unicamente subtrair ao cativeiro”. Era preciso não apenas conceder a liberdade, mas querer “a redenção” das pessoas, não implementar saída mesquinha e superficial. Libertar requeria ato mais profundo, era “preciso esclarecer a inteligência embotada, elevar a consciência humilhada”, para que, “no momento de conceder-lhe a liberdade”, se pudesse dizer: “Vós sois homens, sois cidadãos”. Só assim os remiria “não só do cativeiro, como da ignorância, do vício, da miséria, da animalidade” em que estavam. Era “a redenção do corpo e da alma”, a “reabilitação da criatura racional”, a “liberdade como símbolo da civilização e não como facho de extermínio”:

Não basta para vós dizer à criatura, tolhida em sua inteligência, abatida na sua consciência: ‘Tu és livre; vai; percorre os campos como uma besta fera!...’[...] Queremos fazer homens livres, membros úteis da Sociedade, cidadãos inteligentes, e não hordas selvagens atiradas de repente no seio de um povo culto. [...] Entre estas duas causas não há quem hesite: a nossa é benéfica, a vossa é fatal; a nossa é santa e cristã, a vossa é cruel e iníqua. [...] Nós queremos a reabilitação daqueles que um erro do passado abateu; vós quereis a emancipação por uma simples vaidade; para vós a liberdade não é senão o combustível que ascenderá a luz de vossa glória, de reformadores e propagandistas. Vós sois [...] os heróis do extermínio... (ALENCAR, 1977, p.228-9).

Alencar era contra esse tipo específico de emancipação, que não produziria cidadãos pela falta de instrução e condições de inserirem-se na sociedade. A discussão é longa. Alencar historicizou o pensamento do Partido Conservador sobre a questão, apontou a mudança de perspectiva inclusa no relaxamento dos laços disciplinares da agremiação; relembrou que apresentara um projeto com “algumas medidas indiretas, de uma aplicação mais suave, e entretanto de resultados mais eficazes”, o qual passou despercebido por não consignar a idéia da libertação do ventre, que julgava funesta, “iníqua e bárbara”, pois concedia liberdade à prole, negando à geração atual e condenando os inocentes ao abandono, o que significaria

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miséria e morte, transformando a família num antro de discórdia e híbrida; proposta que fora repelida pela Inglaterra, França e Estados Unidos. (ALENCAR, 1977. p. 229, 233-7, 240-1). Não defendia “unicamente os interesses das classes proprietárias”, mas, “sobretudo essa raça infeliz que se quer sacrificar”. A causa da emancipação espontânea estava há muito vencida no coração do povo e, em menos de 20 anos, a escravidão estaria, por si, extinta. A discussão, encerrada na Câmara com a Lei do Ventre Livre sancionada em setembro de 1871, continuou noutros espaços, como nas cartas da polêmica Alencar e Nabuco, em 1875, quando este o chamou de “dramaturgo escravagista”, levando-o a repassar toda sua atuação no teatro e noutros meios como propagandista da emancipação espontânea. Alencar declarou: “Felizmente que meu pensamento sobre esse magno problema está arquivado em documentos públicos; obras dramáticas, discursos parlamentares; escritos políticos. A posteridade, se ocupar-se desta reforma julgará”. (ALENCAR, 1977, p. 242-3; COUTINHO, 1978, p.109, 120). O projeto de Rio Branco foi defendido também na imprensa, conforme os interesses do Governo. No combate à essa proposta e às práticas a elas atreladas, Alencar na tribuna, atacou a subvenção e o suborno da imprensa, ou parte dela, pelo governo à custa do bem público, para difundir suas idéias. Sua finalidade era “para moralizar essa profissão” e o Governo, batendo contra “os processos empregados para o confisco das nossas liberdades” e “a imprensa clandestina do governo”. O Governo, com “os ataques de sua imprensa clandestina”, metralhava a Oposição e, por esse meio, anulava “essa força democrática”, “inoculando-lhe o vírus da imoralidade, a lepra da subversão”. Censurou o expediente do governo, que, “tomando a máscara e simulando um homem do povo”, buscava iludir o País, inventar uma opinião falsa, apócrifa, que não era inspirada pelas ideias, mas pelo salário. Considerava que o Governo maquinava, conspirava contra as liberdades públicas, desviava dinheiro público, por ser “imorais e corruptores” os “créditos clandestinos” como a subvenção da Imprensa, que era “ainda mais danosa”, pois criava uma opinião artificial e dava armas aos Ministérios sem apoio no País para combater a verdadeira opinião (ALENCAR, 1977, p. 624, 627-8). Alencar denunciava a fabricação da opinião pública e seus efeitos nefastos para a sociedade. Apontava a estratégia de desmoralizar aqueles que eram oposição ao governo, que por esse meio que se mantinham no Poder gabinetes organizados por capricho, contra os verdadeiros interesses do País e contra as legítimas aspirações de seu Partido. A subvenção da Imprensa rebaixava a profissão do jornalista, quando o Governo chamava “em seu auxílio os mercenários da pena”, que “alugam a palavra e a bílis”, forjando “instrumentos de difamação”

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e insulto aos adversários que não animavam a combater na tribuna: “vão-se enxovalhando todos os caracteres, vão se demolindo todas as reputações, e o povo que assiste a este triste e degradante espetáculo ou descrê dos homens superiores que deviam dirigi-lo, ou perde a fé na Imprensa.” Assim, gerava a dúvida e desmoralizava a Imprensa, e nenhum Ministério tinha promovido em tão vasta escala essa desmoralização como o de Rio Branco (ALENCAR, 1977, p. 628-9). Para Alencar, o ministério buscou eliminar sua atuação política ao suscitar “uma corte de escritores anônimos”, referindo-se aos colaboradores da Questões do dia, incumbidos não de refutar suas idéias, mas de atacar a sua pessoa, lançando-lhe injúrias e insultos. Outra questão que julgou mais grave e que o revoltava, afrontava a nacionalidade; o Governo tinha chamado “em seu auxílio uma pena estrangeira para coadjuvá-lo nos seus trabalhos parlamentares, para discutir os negócios políticos do País” e lançar contra seus adversários invectivas “bafejadas do alto.” Era intolerável que “um estrangeiro, faltando aos deveres de cortesia para o povo que lhe deu hospitalidade”, se arrogasse o direito de insulto e se empenhasse “em deprimir caracteres políticos desse País”, fazendo-se instrumento de vinganças ao tratar de membros do Parlamento. Alencar afirmava que era seu “costume combater [seus] adversários de frente”, nunca recorrendo “a penas mercenárias para atirar a [seus] antagonistas o estigma que não tivesse a coragem de lançar em rosto” (ALENCAR, 1977, p. p. 629-32, 640, 643).

As observações literárias nas páginas da Questões do Dia

Mas, afinal, quais foram as críticas que Franklin Távora e Castilho, o último chamado por Alencar na Câmara dos Deputados de “gralha imunda”, apresentavam a sua produção literária? Delas, daremos um rápido apanhado, pois numerosas e apareceram ao longo de quarenta números da revista semanal Questões do Dia, entre meados 1871 e fevereiro de 1872, entremeadas a uma série de “Cartas Políticas Dirigidas pelo Roceiro Cincinato ao Cidadão Fabrício” em colaboração com Távora (Semprônio). Nas primeiras sete cartas, Castilho, usando o pseudônimo de Lúcio Quinto Cincinato, voltou-se para as questões políticas,

tachando

de

incoerentes

as

idéias

de

Erasmo

(pseudônimo de Alencar) a respeito do Poder Moderador, que vinham a público após seu rompimento com o Imperador. Para ele, o escritor que naquelas Cartas de Erasmo ao imperador, ponderava “que não existe entre nós poder pessoal; que é uma falsa prevenção’”, somente “descobriu o poder pessoal, depois que não foi escolhido senador!” As críticas de

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Castilho foram incisivas ao defender o projeto de Rio Branco da oposição de Alencar. Já a partir da sétima carta, Távora, usando o pseudônimo de Semprônio, veio associar-se nessa tarefa, empenhando-se em desmontar a reputação literária do romancista, ao apontar erros gramaticais, inverossimilhanças, deslizes na concepção e composição de alguns romances, sobretudo O gaúcho (MAGALHÃES JR, 1977, p. 293 ; MENEZES, 1977, p. 298-9). Castilho dedicou-se, além de esmiuçar as contradições do político, com especial atenção, aos problemas de linguagem nos escritos de Alencar, colocando-se na posição de fazer correções de neologismos e da “linguagem brasileira”, que considerava espúria, pois aferrado à gramática de forma estreita, ao latim e à erudição clássica. Empenhado em demonstrar, nos escritos do romancista, o mau emprego dos pronomes, arvorando-se em mestre do bom gosto e do estilo, documentava-os, ao passo que expunha algumas regras de colocação, desenvolvendo uma campanha para modificar esse uso. Ao discutir tais questões em torno da língua portuguesa, logo, remetendo-se às questões da nacionalidade, ele identificava no escritor brasileiro o perigo da perda de influência da cultura portuguesa no Brasil. (MENEZES, 1977, p. 301-2; MAGALHÃES JR, 1977, p. 294-5; RODRIGUES, 2001, p. 138). Nessa polêmica, que envolveu Alencar, Távora e o português Castilho, não estava em discussão simplesmente a literatura, mas as visões sobre o Brasil. Á medida que o romancista tornou-se referência nacional, as críticas e as tentativas de diminuir o seu poder sucederam-se, especialmente, quando ele ingressou na política e passou a ter duas frentes para apresentação de suas idéias e censuras sobre o que o desgostava no momento presente. Castilho era apontado como aquele que dava o ranço de além-mar às acusações, que havia redigido o parecer ao projeto e vivia produzindo relatórios para políticos ignorantes. Já a presença de Franklin Távora nessa peleja deu-se, ao que parece, por um caso pessoal, pois mandara a Alencar um manuscrito de romance, Índios do Jaguaribe, mas, como o parecer demorava e começou a correr o comentário de que o romancista havia dito que “esses índios precisam de ser descasacados”, sentiu-se magoado filiando-se aos opositores; passando de admirador à atacante (RODRIGUES, 2001, p. 136-7; MENEZES, 1977, p. 299 ; MAGALHÃES JR, 1977, p. 295). Nas Cartas de Sempronio a Cincinato, foram tratados dois romances de Alencar, em específico, que são O Gaúcho e Iracema, ao passo que se remetia, de modo mais geral, a outros. Na revista de n. 6 do dia 17 de setembro de 1871, saiu o artigo “Obras de Senio – O Gaúcho”, no qual Tavora, sob a máscara de Sempronio expunha sua leitura sobre a literatura de Alencar.

Pensando a “arena das letras” como marcada por lutas, a literatura como

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sacerdócio e o literato como um sacerdote que serve a uma das diversas ordens de religionários, Sempronio apresentou-se como defensor das letras pátrias, possuindo um dever diante dos projetos literários executados:

Se deslizam do verdadeiro trilho, é dever imperioso argui-lhes as faltas, para que não suceda aos sectários inexperientes seguirem o mau exemplo, na persuasão de se estarem edificando. Há práticas, que sendo aparentemente sãs, não deixam de ser no fundo heterodoxas. (SEMPRONIO, 1871, p.5-6).

Considerando Alencar um sacerdote herético, oposto aos princípios ortodoxos, ponderou sobre os males que poderia causar no campo literário devido a autoridade que era e pela idolatria que recebia. Não ponho em dúvida os créditos e a autoridade, de que Senio goza neste gênero de labor intelectual. [...] E justamente por estar cônscio de sua autoridade e dos seus conceitos, é que estremeço pelas letras pátrias, que vejo ameaçadas de um transtorno inevitável, si fizerem escola as fátuas fantasias de uma pena filauciosa [...] Tanto mais me receio dos males que da aberração possam porvir, quanto é inegável a espécie de idolatria, que existe em certo circulo para com as obras oriundas da pena de Senio. (SEMPRONIO, 1871, p.6).

Questionando a existência na “república das letras” de “oráculos indiscutíveis, autoridades dogmáticas”, Sempronio, fez menção em refletir sobre O Gaúcho. Mas antes disso teceu considerações a respeito do romance nacionalista e sobre a figura de Walter Scott, na Europa, e a de Cooper, na América do Norte. Após afirmar que “o romance de nacionalidade ainda por ninguém foi melhor entendido e executado do que por Cooper”, ponderou: “Walter Scott, de quem a Europa tão legitimamente se vangloria, ainda assim a certos respeitos é menos recomendável do que o soberbo escritor norte-americano”, pois:

[...] antes de Walter Scott haver empreendido a construção do agigantado edifício da história da Escócia, já outros o haviam precedido neste mister, colhendo e recolhendo muitos costumes, muitas superstições nacionais, como observa um profundo crítico. Walter Scott não é no todo original. [...] outros tinha já explorado as virgens fontes, para onde Walter Scott não fez mais que acentuar com sua pena arrojada vastos caminhos, descobrindo com amplitude perspectivas belíssimas, apenas entrevistas e semi-ocultas. (SEMPRONIO, 1871, p.7).

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Já no que referia a Cooper, sua avaliação o sobrepõem a Scott, destacando suas características, como sua capacidade de observação da terra americana:

Antes de Cooper porém, que observação literária havia já perlustrado as seculares solidões do Ohio, do Mississipi, do Illimois? Que pena rasgara a célula virgem e imensa de uma natureza acima de todos os vôos, de todas as preocupações das mais arrojadas fantasias, e fizera jorrar dali a veia caudal da poesia americana, para inundar mares e continentes? Quem já havia criado e dado um certo molde para exemplo? (SEMPRONIO, 1871, p.7).

Sempronio continuou a mostrar a originalidade e singularidades desse autor, sua modernidade, sua relação com a história americana e com a natureza.

Cooper não tem predecessor; veredas ainda não batidas se lhe apresentam de todos os lados. Uma inesgotável variedade de materiais; cenas que exigiam um teatro; painéis que demandavam um quadro; pontos de vista, que solicitavam um pintor; por toda a parte novidade, bizarria, maravilhas; um interesse todo moderno; um povo, apenas saído de suas faixas e já poderoso; uma história, cujas primeiras páginas brilham de civilização e falam de conquista; a singularidade de um heroísmo tranqüilo, piedoso e perseverante; os nomes de Washington, de Penn, de Franklin; para o fundo do quadro as florestas seculares; para atores, os apóstolos do Novo Mundo, entretendo-se com os filhos do wigwam e do calumel; os progressos da arte européia no meio dessas solidões sem dono; os combates de opressos e de opressores, uns reclamando, outros querendo abafar a liberdade e a tolerância; _ que digo? Talvez nova era social, fechada para o mundo, e prestes a emanar de Filadélfia! (SEMPRONIO, 1871, p.7-8).

Finalizando sua apreciação sobre Cooper chamou a atenção para a faculdade de observação e capacidade de transmitir com exatidão fotográfica aquilo que viu, ainda que possuísse defeito que não o diminuía:

O grande merecimento de Cooper consiste em ser verdadeiro; porque não teve a quem imitar senão à natureza; é um paisagista completo e fidelíssimo. [...] Não escreveria um livro sequer, talvez, fechado em seu gabinete. Vê primeiro, observa, apanha todos os matizes da natureza, estudo as sensações do eu e do não eu, o estremecimento da folhagem, o ruído das águas, o colorido do todo; e tudo transmite com uma exatidão daguerreotipica. (SEMPRONIO, 1871, p.8).

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Tal procedimento tinha um sentido, uma lógica de raciocínio; era lançar a base de um processo comparativo entre Senio e Cooper, para censurar o autor brasileiro e apontar-lhe os defeitos e incorreções. Cooper é americano, Senio também o é – eis aí um ponto de analogia, que os aproxima. [...] Ao passo porém que Cooper daguerreotipa a natureza, Senio, à força de querer passar por original, sacrifica a realidade ao sonho de sua caprichosa imaginação; despreza a fonte, onde muita gente tem bebido, mas que é inesgotável, e onde há muito licor intacto. Para Senio a verdade, dita por muitos, perde o encanto. Ele não há de escrever pelo ramerrão; fora rebaixar-se. É preciso dar cousa nova, e eis surge o monstro repugnante e desprezível. (SEMPRONIO, 1871, p.8).

Sempronio avaliou o entendimento de Alencar a respeito de poesia, ao tratar da poesia americana, de linguagem e de epopéia. Senio não compreende a poesia americana, como em geral tem sido concebida por bons talentos que o hão precedido, e vem dar-nos o ideal da “poesia verdadeiramente brasileira, haurida na língua dos selvagens” na sua efeminada Iracema, onde os guerreiros falam uma linguagem débil, esmorecida e flácida, que não podiam de modo algum usar em sua braveza.[...] Isto importa um característico: a pena de Senio não foi talhada para construir a epopéia; faltam-lhe asas para elevar-se nos assuntos heróicos, que demandam vôos excelsos do pensamento, fraseologia máscula, jogo de paixões veementes e arrebatadoras. A linguagem de Senio é dolente e languida. No dizer de um crítico português, sua pena pode ter bom sucesso “na poesia dengue e coquete, poesia arrebicada, doentia, rasteirinha, poesia de alcovas e salões, complacente, piegas, cousa de toilette, feminina... como o pó de arroz, os vinagres aromáticos, os espíritos de petites dmes e de petits crêvés, o Ilangylang, o bouquet Manilha, e o cosmético Miranda.” (SEMPRONIO, 1871, p.8-9).

Távora, que vinha dando destaque à observação na criação literária, a contrapôs à imaginação, a seu ver, fonte de inexatidões quando o principio a ser considerado seria a reprodução daquilo que foi visto. Nesse prurido de querer passar por original “seus esforços de imaginação são vôos de uma inteligência, que quer criar, e que em sua impotência cria quimeras” na frase de um crítico, apreciando Brockden Brown. Exemplo: Diva, Pata da Gazela,

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Gaúcho. [...] Além do mais, Senio tem a pretensão de conhecer a natureza, os costumes dos povos (todas essas variedas particularidades, que só bem apanhamos em contato com elas), sem dar um só passo fora do seu gabinete. Isso o faz cair em freqüentes inexatidões, quer se proponha a reproduzir, que a divagar na tela. (SEMPRONIO, 1871, p.9).

Pautando-se no critério da observação direta como fonte de criação e de renovação da economia literária iniciou sua avaliação de O Gaúcho indicando as possíveis falhas alencarianas. Porque não foi ao Rio Grande do Sul, antes de haver escrito o seu Gaúcho? A literatura é uma religião, e tem direito de merecer tais sacrifícios de seus sinceros cultores. Não nos teria então talvez dado esses esboços de fisionomia fria, de cútis contraditória, concepções hibridas, a título de figuras esculturais e legendárias da campanha. Muita razão tinha Balzac: não fundava ação nenhuma em lugar que não conhecesse. [...] Convençamo-nos: a imaginação, até a mais viril e opíma, se esgota, cansa e desfalece. [...] A renovação faz-se pela observação. A natureza oferece cada dia um encanto novo, que a imaginação sadia recolhe para dar-lhe mil feições graciosas, ainda não conhecidas. O fluído propriamente original e imaginoso é apenas aplicado a dar o tom, o equilíbrio, o reflexo estético às criações reais. Com tão comedido emprego e uso, nunca poderá dar a bancarrota. (SEMPRONIO, 1871, p.9).

Em seu ataque ao lugar que a imaginação teria ocupado no processo produtivo alencariano, levando-o a afastar da realidade, a qual requeria ser observada, continuou: A imaginação atrofiada nas cidades só pode procriar a mentira, a falsidade, quando quer estampar ações e figuras da vida florestal ou do deserto. Não é a leitura isolada, embora dos mais escolhidos modelos, que dará a expressão fiel da natureza. É preciso contemplá-la, receber impressões face a face com o desconhecido, experimentar verdadeiramente todas as sensações da inspiração, não fictícia, mas real. (SEMPRONIO, 1871, p.9).

Voltando ao modelo de literatura implementado pelos literatos norteamericanos como paradigma de romancista nacionalista, problematizou: O que foi que contribuiu para ter cedo a América do Norte uma literatura original e grandiosa, graças ao trabalho de poucos obreiros? Foi o não fazerem outra coisa

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senão copiarem fielmente as grandes cenas, as magníficas perspectivas dessas regiões virgens, onde tudo oferecia um cunho de originalidade tão graciosa, que não só dispensava, porém mesmo excluía o uso da criação fantasiosa, por somenos aos majestosos painéis. (SEMPRONIO, 1871, p.9-10).

Para o crítico, Alencar padecia ainda da “monomania de querer passar por criador ou melhor por dizedor de novidades”, tendo “a pachorra de asseverar em sua Diva ao público, para quem se deve ter a gravidade e a reverência devida a tão alto senhor, que os termos núbil, pubescência, olímpio, frondes, aflar e outros (já de muito consignados nos dicionários da língua) são inovações suas! e demora-se em justificá-las”. Mas, no entanto, “todos estes vocábulos se acham em Moraes e Constancio, e especialmente em Fonseca...” Semprônio insurgiu também contra o uso de notas explicativas de algumas palavras pouco usadas e particularidades históricas, apontando ainda o expediente de aportuguesar vocábulos estrangeiros: Sênio tem a mania das notas. Não há volume seu, dentre os últimos que assinalam a sua precoce decadência literária, que não seja acompanhado de alguns desses enxertos, que, em sua maioria, só servem para desabonar o autor. Na Pata da Gazela escreve tilbure, champanhe, porque entende que devemos imprimir certo cunho português nas palavras estrangeiras adotadas pelo uso. Não te parece uma extravagância? (SEMPRONIO, 1871, p.10-1).

Tratando do Gaúcho, indicou que alguns vocábulos que Senio usou, “com certos ares de novidade”, poderiam ser encontrados em alguns dicionários e outros, que o romancista dizia figurar em certos dicionários, não podiam ser encontrados. Portanto, pondera: Notável singularidade! Parece que Senio faz timbre de lançar a confusão nos escritos. Quando ele diz que inventou tal verbo, encontra-se o verbo nos dicionários mais vulgares; quando diz que em tal dicionário vem tal termo, justamente este termo deixa de vir no dicionário referido. [...] Não é uma mania de querer a todo o transe passar por filólogo? (SEMPRONIO, 1871, p.11).

Finalizando sua leitura teceu comentários acerca de termos usados em O Gaúcho como far-west e pampa questionando o sentido que Alencar atribuiu a estes. No que refere a pampa ele afirma que Senio disse que “é uma palavra originária da língua quíchua, que significa simplesmente o plaino”. Mas, aqui a questão é: “Porque não declarou de onde houve

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esta notícia sobre a língua quíchua, tão pouco conhecida entre nós, e que não se aprende nas academias?”. Para indicar a fonte que Alencar recorreu e ocultou, mencionou o Guarany, de G. Aimard e apontou a página onde o romancista a bebeu. Sempronio continuou sua análise minuciosa de O Gaúcho, na Questões do dia, n. 7. Da pena de Távora surgiram considerações como: Os graves encargos de conselheiro de Estado, de político, de advogado, de parlamentar, de oposicionista, e de muitas coisas mais, não permitem aos talentos literários produzir senão abortos, se querem dar crianças em menos de nove meses. [...] Quando Sênio era simples advogado, e não queria campar de filólogo abalizado, político profundo, nem concebera ainda a vaidade de passar espicha nos clássicos e de arvorar-se em mestre de escola, tudo ia bem.[...] Chegando-lhe o tempo para aplicar-se às letras amenas, compor seus trabalhos com vagar, corrigilos, à luz do gosto e do bom senso, até onde este lhe chegava também. A prova temo-la nós no Guarani, na Viuvinha, e no Demônio Familiar. O tempora. [...] Hoje, porém, como tudo está mudado! Os elogios imoderados apodrecem cedo o talento útil, fazendo-o infunar-se de presunção de ser gênio. Prejuízo para a literatura natal! Porque em vez de recolher mais duas ou três produções dos quilates da Viuvinha ou do Guarani, temos uma bagagem de volumes que não valem o arroubo dos - Cinco Minutos. [...] Mas nada de desacoroçoar. É ainda ocasião de recuperar o tempo gasto em pura perda, e reparar o mal que tem feito ao seu nome e às letras brasileiras. (SEMPRONIO, 1871, p.11-12).

Essa carta deixa claro o quanto Alencar incomodava seus opositores, ao abarcar tantas frentes de ação e pela forma como produzia suas intervenções nessas arenas, garantindo-lhe reconhecimento e respeitabilidade, os quais os ataques buscavam minar. Tais considerações dão amostra de como apresentava-se a campanha desenvolvida na Questões do Dia para atacar o romancista e desqualificar sua atuação política e literária. Ao ser aprovada a lei do ventre livre no Senado, essa campanha cessou, faltava-lhe objetivo. (MENEZES, 1977, p. 301-2; MAGALHÃES JR, 1977, p. 299). Porém, antes que isso ocorresse, outros ataques ocorrerem, como a Til, novo romance publicado nos folhetins de A República, que intentava aproximar-se do parlamentar dissidente do Partido Conservador. Os redatores agradeceram ao escritor e enalteceram sua obra, destacando sua contribuição para a grandeza nação, usando a imagem de ourivesaria ao se referir a sua literatura. Não demorou para que Cincinnato (Castilho) em carta a Sempronio, se manifestasse com ironia. Chamou o artigo de “fausta notícia” veiculada em folha “de

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aspirações adiantadíssimas”, a qual publicava “uma nova brilhatura romântica do Sr. José de Alencar”, dizendo à Távora que se podia “imaginar com que ansiedade” era esperado “o novo parto da fecunda musa, para glória nacional, orgulho e desvanecimento da pátria”. Quando o texto saiu apreciou: É isto um acervo de erros e defeitos [...] O enredo é chato. O diálogo desnatural, impróprio, forçado. As imagens são uma incrível profusão de disparates. A gramática mais elementar geme a cada linha. Os caracteres dos personagens são todos repelentes, mal trajados e pior traçados. Aqui os velhos são crianças, e as crianças são velhos. Descobre-se a cada instante o inaudito tatear da imaginação para gemer sem produzir senão monstros, como seio exausto que, ao ser sorvido, só deita sangue. A linguagem compõe-se de uns arcaísmos inabilmente extraídos de elucidários, e de galicismos de palmatória, tudo caldeado com uns neologismos que se não se comparam com coisa alguma senão com a escola senial, na qual não há senão um mestre e um discípulo... que é ele mesmo. (CINCINNATO, 1871, t. II, p. 8, 146).

Já no início de 1872, terminada a publicação de Til em folhetim, a casa Garnier lançou o romance em volumes. O diário A República veiculou apreciações elogiosas à obra de Alencar, enaltecendo O Guarani, Iracema, O Gaúcho e Minas de Prata, afirmando preferir os dois primeiros e tratando de Til: “digno companheiros de outros livros do mesmo autor, tão justamente aplaudido pela crítica imparcial”( MAGALHÃES JR, 1977, p. 310). Em decorrência da campanha de desqualificação que vinha sofrendo, tão logo Sonhos D’Ouro foi lançado, em agosto de 1872, o folhetim de A Nação, de 9 de setembro, elogiou o romance. Certamente, Alencar estranhou, pois esse veículo conservador, embora dirigido por João Juvêncio Ferreira de Aguiar, recebia orientações diretas do Pe. Pinto de Campos, aliado de Rio Branco. O artigo do cronista da folha, sob o pseudônimo de Argesilau, saudava-o: Sênio, o romancista inspirado, que sob tal pseudônimo oculta uma das nossas brilhantes glórias literárias, acaba de mimosear a letras pátrias com mais um livro, que é um primor, e que tem por título _ Sonhos de Ouro. [...] Cingindo a tríplice coroa de dramaturgo, poeta e romancista, Sênio não descansa.[..] Se os interesses da política chamam-no a colher louros na tribuna parlamentar ou nos conselhos da Coroa, sua alma de poeta sente nostalgia nestas regiões inóspitas, e ei-lo que volta ao campo viçoso das letras, onde sua imaginação torna-se cada vez mais vigorosa. [...] Seu estilo faz-nos recordar aquele de Méry de saudosa memória, orgulho da França, que lhe deu o ser. [...] Primoroso e fluente, ora singelo e perfumado, [...]

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ora faceto e travesso [...] deleita o leitor, que não sabe o que mais há de admirar, se o pensamento da obra, se as louçanias da frase. [...] O último trabalho de Senio veio confirmar a reputação merecida que goza o literato.[...] Não cabe nos estreitos limites de que dispomos a análise do romance. [...] É nosso fim apenas saudar o escritor e felicitar a nossa literatura. [...] Aos incessantes esforços do Sr. Garnier deve ele esses outros serviços que o recomendam à gratidão nacional. (MAGAHÃES JR, , p. 311).

Mas, se nesse jornal, que, de costume, atacava o escritor, saiu tais apreciações, o deputado Pe. Campos, no dia seguinte escreveu a Rio Branco, queixando-se dessa “pronunciada tendência para a dissolução”. Ao fazê-lo explicitava aquelas práticas de subvenção à imprensa, que determinavam a relação entre informação e poder estatal, que as quais Alencar denunciara na Câmara. Aludindo-se ao pedido de Rio Branco para que ele, Campos, “alcançasse do Conselheiro Castilho algum subsídio para o nosso jornal”, dizia que “tinha toda a esperança” de consegui-lo, apesar do desgaste da situação. Porém, avaliava que, essa esperança “desvaneceu-se hoje, com a leitura do folhetim” que fazia “a mais complexa apologia às miçangas romanescas de José de Alencar”. Isto era “tremenda bofetada na face do referido Castilho, que no ano passado, quando éramos cobertos de sarcasmos ridículos de José d’Alencar, saía a campo para esmagá-lo sob o mesmo aspecto por que é hoje levado às nuvens por um jornal conservador”. Afirmava que eles não se convenceram de que a dissidência, de que Alencar “foi arauto insolente”, fez “grande mal” e continuaria fazendo, se não abrissem o olho; que começava “a saltar fora do caminho”, não prestando mais ao Ministério sua defesa n’A Nação, essa “trombeta laudativa do herói da dissidência.”(MENEZES, 1977, p. 309-10). Devido a essa carta, Rio Branco escreveu ao Ministro do Império, anexando a missiva de Campos, solicitando providências. Julgou que ele tinha “razão no que diz do tal folhetim” e que era “uma verdadeira desgraça” que o Aguiar não tomasse a sério sua posição de jornalista, cabendo o dever de chamá-lo “à razão”. Acreditava que os faria “perder tudo, quanto à imprensa”. Nesse ano, 1872, Alencar encerrava sua legislatura e a findava como dissidente, como opositor declarado ao governo imperial, caminhando, cada vez mais, para as propostas liberais, como a descentralização, o poder da minoria e dos municípios. Afirmou, em 1873: “Não sou liberal de nome, é verdade, mas na doutrina; prezo-me de ser de um liberalismo muito adiantado.”(MAGALHÃES JR, 1977, p. 312.; ALENCAR, 1977, p. 383). Nesse contexto, preocupado em saber se seu nome chegaria à posteridade, buscou, ele mesmo, erigir novo monumento que o representasse e perpetuasse sua imagem, impondo ao futuro uma representação de si próprio, ao lado de sua produção literária, e, assim,

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escreveu nesse ano “Como e porque sou romancista”. Como se agravou seu estado de saúde e os médicos lhe recomendaram a mudança de clima, pediu licença para deixar temporariamente os trabalhos na Câmara durante o inverno, embarcou com a família para o Ceará e só voltou ao parlamento no ano seguinte.

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