JOSÉ RIBAMAR GARCIA: O FICCIONISTA, A LINGUAGEM E UM PASSO ADIANTE

May 26, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Brazilian Literature
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JOSÉ RIBAMAR GARCIA: O FICCIONISTA, A LINGUAGEM E UM PASSO ADIANTE



Cunha e Silva Filho


É possível um ficcionista, que entrou na casa dos setenta
anos, ainda se sustentar ficcionalmente? É, sim, e José Ribamar Garcia
não está sozinho na ficção brasileira contemporânea. Não vou citá-los
porque o leitor aficionado de literatura já sabe a quem me refiro.
Pois é. O piauiense Ribamar Garcia põe à venda um novo livro,
Leveza, só da brisa (Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2016, 127 p capa de
Teresa Akil.) reunindo contos e crônicas, posto que, na ficha de
catalogação o classifique no gênero de crônicas.
Sem querer entrar em considerações genológicas, é evidente que,
a rigor, a obra contém crônicas e contos. São 27 textos de extensão
curta, média e até curtíssima, como é o único exemplo "Fora dos eixos"
(p.29) escrita em meia página, mas longe de ser uma excrescência se 
lida com a devida atenção.
No texto tudo faz sentido: tem personagens, a maioria animais,
dois humanos, o primeiro apenas mencionado de passagem, o segundo, um
idoso mal completando oitenta anos, tem espaço, tem diálogo e uma
história que nos provoca uma boa gargalhada, dado que o tom
humorístico-burlesco é bem bolado soltando faíscas de ironias
desabridas para um tema hoje quase tabu, diante dos movimentos de
defesa da causa gay.
Ainda bem que o ancião, ao comentar o homossexualismo da família,
ainda brinca com a sexualidade do cachorro.Tudo no microtexto funciona,
diga-se desta forma, às avessas, inclusive o relato minimalista da
antropofagia de animais de espécies diferentes. Mas, outros temas ainda
se desentranham no texto, o do meio-ambiente, do desmatamento, violência.
Tudo, no entanto, relatado de uma perspectiva histriônica.
Ribamar Garcia, autor de 12 obras literárias incluindo esta que
ora comento, variadas em sua natureza, é um ficcionista e observador
arguto da alma humana, dos relacionamentos sociais e seus inúmeros
conflitos, dos dramas e tragédias brasileiros, sobretudo enfocando os
extratos médios e baixos da pirâmide social, em obras que o tornaram
mais visível aos leitores e a uma parte da crítica literária, como o
bem urdido romance Filhos da mãe gentil (Litteris Editora, 2011).
Dos textos inseridos em Leveza, só da brisa, pode-se inferir uma
recorrente atmosfera que permeia suas obras, seus contos, suas crônicas,
seus romances, que é a denúncia e a crítica social contra as mazelas e
os desatinos a que são relegados os humildes em nossa sociedade.
Observe-se, com atenção, que, no título desse volume, a vírgula
empregada depois do lexema "leveza." é determinante no significado geral
da obra. Tirasse a vírgula, e a intenção seria outra. Quero dizer, com a
vírgula o seu peso semântico desvela a camada mais profunda da
ficção do autor: a dureza de viver num país com tantos problemas para
serem resolvidos.
Por isso, também, o lado meio solto, meio desorganizado, meio
malandro, meio cínico, de uma tipo de sociedade que ainda não se
caracterizou devidamente em sua identidade e é o próprio autor que, num
dos textos do livro falando de sua formação intelectual, na crônica "Fora
do contexto," declara sem vacilações nem ufanismos hipócritas: [...] "o
brasileiro ainda se encontra em formação, sobretudo com relação ao tipo
físico e características próprias." (p.126).
Merecem lugar sobranceiro no volume os contos, além do
mencionado "Fora do eixo," os seguintes "Lero-lero no Galeto" (p.91-.97)
e "A confidente" (p.111-113). Estes três contos, pelo que venho há tempos
acompanhando as obras lançadas pelo autor e, na maioria, por mim
resenhadas ou analisadas, oferecem, do ponto de vista da linguagem
literária, um passo à frente que já começara no livro Em preto e branco
(Litteris Editora,1995, 1"ª edição e 1ª reimpressão em 2005), romance
construído em dois planos narrativos, o da história narrada e o do
relato paralelo conduzido pela mesma voz narrativa comentando os
acontecimentos políticos da época da ditadura militar. no país.
"Lero-lero" se passa num espaço restrito, um restaurante, onde, um
grupo de conhecidos ou amigos, se sentava a uma mesa após um dia de
trabalho a fim de espairecer as caseiras profissionais. O que mais chama
a atenção da narrativa é o dado polifônico em que se passa esse período
de conversas descontraídas, brincalhonas, fofoqueiras, malandras,
farsescas num clima de camaradagem, cuja tônica era falar de si e dos
outros em meio a pedidos de cervejas e petiscos diversos.
O que faz do conto "Lero-lero," acima-citado, uma pequena obra-
prima é o emprego do recurso do dialogismo ou polifonia, recurso, de
resto, que já encontramos em Machado de Assis (1839-1908), no romance 
Quincas Borba (1891). Esse recurso é claramente percebido pelo burburinho
de vozes dos clientes que compunham o grupo em mesa de bar, segundo já
referi, com seus intervalados ou simultâneos pedidos ao garçom. A
narrativa tem um ritmo frenético, reproduzindo as conversas entre os
amigos nas quais não faltavam alguns palavrões para apimentar ainda mais
o ambiente carnavalizado do restaurante. A narrativa se desenvolve 
com longas falas de personagens iniciadas por travessão.Creio que
seja uma estratégia nova nas narrativas de Ribamar Garcia..
O todo da narrativa se torna, assim, compacto, uma bem
elaborada reprodução artística de como se faz habilidoso o autor para
dar vozes na babel de tantas falas e contrafalas.. Por sinal, no conto
há uma referência sintomática a essa multiplicidade de vozes proferidas
simultaneamente, sinalizada pelo sintagma "confusão-polifônica" (p. 91.) O
conto faz parte das inúmeras narrativas de Ribamar Garcia na quais as
histórias acontecem no Rio de Janeiro, enquanto outras ocorrem em
Teresina, no Piauí, tanto nas áreas urbanas quanto na periferia dessas
cidades.
No conto "A confidente," temos uma história estruturada em duas
camadas narrativas: uma se desenvolve num diálogo com travessões em que
um homem e uma mulher, sem serem nomeados, conversam sobre um possível
início de namoro. Ela terminara um noivado. Ele, que alega ter uma
namorada, lhe reforça que a deixou. Todavia, ela só lhe daria alguma
chance de relacionamento amoroso quando ele desse por concluído o namoro.
Na segunda camada narrativa, duas amigas, uma delas aquela que
inicia a narrativa falando com o possível namorado, faz suas
confidências a uma amiga, que também não vem nomeada, sobre o
comportamento do rapaz interessado nela.Faz um resumo do que se passa na
vida dele, da ida a um motel. Informa que ele vive com mãe em
Jacarepaguá, (subúrbio da Zona Oeste do Rio de Janeiro), e que tem uma
filha da relação com a ex-namorada. Enfim, ela está encantada com as
qualidades do futuro namorado, rapaz simples, gentil, bom de cama, ou
seja, tudo aquilo que era o reverso do ex-noivo.,
A história se desenrola, assim, alternando diálogos dos dois 
presumíveis jovens que se preparam para um namoro e o relato da futura
namorada reportado com detalhes para a amiga.O único nome revelado,
Daniel, é o do ex-noivo da futura namorada
Tal recurso lembra o chamado corte de cenas de um filme moderno ou de
alguns ficcionistas contemporâneos. A narrativa é simples, mas possui
essas duas formas de relato. Os vazios de enunciação e enunciado que aí
ocorrem ficam para serem preenchidos pela imaginação do leitor, tal
são paradigmas os contos"Sovina, brochante e..."(p.67-70) e, de alguma
forma, o escatológico conto "A potiguar porreta"(p.71-74).
Nos demais contos do volume, há um caleidoscópio de temas
implicados. O amor poetizado no conto "A leveza da brisa"(p.11-13), o
primeiro do livro, narrativa em que o amor passageiro e delicado
compete com o amor à magia e beleza do rio, que, pelas indicações de
pontos da cidade, seria o Parnaíba e a cidade de Teresina, possivelmente
no início dos anos sessenta do século passado, a se ver pela alusão ao
filme "Suave é a noite." Neste conto, não existem nomeações de
personagens. Continuam os gaps enuciativos a serem completados pelo
leitor.
No segundo conto, "O batismo" (p.15-16), um pastor leva alguns
fiéis até ao Rio Poti, um dos dois rios que banham Teresina, a
realizarem uma batismo nas águas do famoso rio.Entretanto, ao
desincumbir-se de seu ofício à moda do profeta João Batista, surge um
"cachaceiro" diante do pastor que, por sua vez, o chama para o ato do
batismo. É aí que, no desfecho, a história, se torna hilariante.
Ao mergulhar a cabeça do cachaceiro, o pastor lhe perguntou se ele
tinha visto Jesus. O bêbado lhe responde que não. O ato de mergulhar o
cachaceiro se repetiu outras vezes cada vez mais demorando no mergulho.
Foi, então, que o pastor lhe perguntou se vira Jesus. Ao que o vagabundo
lhe retrucou, já não suportando o aumento do tempo do mergulho: "O senhor
tem certeza que ele afundou aqui?"(p.16).
Ribamar Garcia é um ficcionista cuja temática tem como
recorrentes algumas questões polêmicas do cotidiano contemporâneo, além
daquelas do domínio sentimental: ou de natureza psicológica. o amor, a
amizade, a traição, o erotismo, o burlesco, a frustração amorosa, entre
outras.
A par disso, tematiza a vigarice, conto "O prêmio". (p.27); o
papel do colecionador, conto "Relíquia"(p.32); com final imprevisível e
humor negro; violência urbana, conto "No morro da praia brava"(p.41-44).
Neste conto, o autor me parece que, pela primeira vez em sua ficção,
atualiza mais um recurso narrativo à maneira de outros ficcionistas de
hoje, mediante a inserção, sem travessão ou aspas da fala de
personagens. Igual recurso reaparece em outros contos do livro.
Dando sequência ao temas, vemos o preconceito social, conto."Na toada
do antes"." (p.49-51), um dos bons textos do livro; a carnavalização de
um personagem, conto "O coronel"(p. 53-56), talvez um dentre os melhores
contos da obra, lembrando algo da ficção de Fernando Sabino (1923-2004)
pelo lado do humor; tráfico, sexo, violência e tragédia, conto "Que nem
galo."(p.57-61); violência no trânsito, conto "O diabo louro". (p.63-65);
crítica à precariedade do serviço público, conto "O doutor". (p.75-78); uma
visão microscópica da corrupção nas empresas, conto "Dona Sônia e a
clínica".(p.85-90); a "flânerie" na urbe carioca, e bem assim a corrupção
policial de mãos dadas com a violência independente da hierarquia militar
ou civil, conto "Viessem os abutres" (p.99-105), notável narrativa pela
dimensão cultural-literária focando um dia de um personagem-narrador, um
jornalista, situando-o nas suas peripécias desde a hora em que acorda
"com humor revirado;"
Por último, cabe uma referência a uma bem composta crônica "De
Madeiro à Boca do Forno." (p.119-122) que combina uma crítica à
politicagem populista e um recorte memorialístico, numa experiência de
viagens pelo interior piauiense repassada de saudade e de lembranças
tristes, como a daquela menina de treze anos, prima do autor, que quase
foi vítima de uma tragédia em decorrência de uma descarga de um fio
elétrico que caíra de um poste e no qual a menina tropeçou ao passar com
um bebê no colo.
Ribamar Garcia, com mais esta nova obra entregue ao público e aos
leitores de suas obras, sai fortalecido como escritor de ficção,
sobretudo porque soube, ao longo dos anos, seguir uma receita que, a
meu ver, pode ser posta em prática por todos os autores que escrevem
com responsabilidade: a de que somente pode produzir bem e melhor aquele
que domina a técnica da arte narrativa.
Tem vasta experiência dos homens e da vida, da história do seu povo
e do gosto pelo que faz criando, pelo talento, personagens, situações
dramáticas ou não, vidas humanas que nos levam à emoção do prazer
estético, ao choro, ao riso, à indignação e a refletir profundamente
sobre os mais diversos problemas enfrentados pelo espírito dos homens
na Terra, notadamente na diversificada sociedade brasileira.
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