Judeus em trânsito pela Península Ibérica (Junho 1940)

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Judeus em trânsito pela Península Ibérica (Junho 1940)

Trabalho para o seminário Sociedades e Culturas orientado pelo Doutor João Paulo Avelãs Nunes no âmbito do Doutoramento em Estudos Contemporâneos do CEIS20

Janeiro de 2014 Tiago Agostinho Arrifano Tadeu

1-Introdução

A discriminação e perseguição fazem parte da História milenar dos judeus, contudo, nunca como no século XX, conheceu um grau tão elevado e sofisticado que colocou em causa a existência do povo. Durante o domínio nazi as populações judaicas europeias foram submetidas a um plano minucioso e sistemático de concentração e extermínio, que acompanhou o movimento das tropas do Eixo por vários países. A Península Ibérica acabou por estar a salvo do impacto inicial dessas iniciativas, porém e à medida que as nações europeias tombavam face ao poder militar alemão, os judeus europeus foram empurrados para a fronteira franco-espanhola. Aí, milhares de indivíduos tentaram obter a entrada em Espanha e Portugal a fim de alcançarem um refúgio. A relação dos países ibéricos com o povo judaico é secular e está profundamente marcada pela ação da inquisição nos séculos XV e XVI, havendo por isso a necessidade de explicar como é que a península se tornou num território tão desejado pelas populações judaicas durante o período da II Guerra Mundial. Foi nessa altura que Portugal e Espanha tiveram a oportunidade de colaborar diretamente na salvação de milhares de judeus, caso autorizassem a entrada nas suas fronteiras. Será necessário caracterizar e contextualizar a relação das sociedades ibéricas face às populações judaicas nos últimos séculos, para melhor compreender as decisões políticas dos regimes. A parte mais significativa do trabalho centrar-se-á no período mais crítico no que toca aos refugiados judeus, Junho de 1940, altura em que milhares de indivíduos procuraram a entrada na península de modo a escapar ao domínio nazi. Para a análise escolheram-se diversos jornais portugueses e espanhóis, que permitissem avaliar como é que aqueles refugiados tão especiais foram retratados pela imprensa. A seleção recaiu em periódicos com impacto a um nível nacional, nomeadamente o La Vanguardia e ABC para o território espanhol e o Diário de Lisboa e O Século para o português. Já localmente foram escolhidos A Guarda e La Gaceta Regional de Salamanca, publicações de lugares bem próximos dos postos fronteiriços terrestres mais importantes da fronteira luso-espanhola. Ao escolher um diverso leque de jornais esperamos conseguir descortinar as omissões e manipulações a que as ditaduras peninsulares eram

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tão atreitas, contribuindo assim para reconstruir um período que ainda suscita algumas dúvidas e muita controvérsia.

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2-A Península Portugal e Espanha não eram os destinos preferenciais dos judeus em fuga dos nazis, não tanto pela existência de um sentimento antissemita junto das populações ibéricas, mas sim pelo fraco desenvolvimento económico que não oferecia condições à instalação daquele grupo. No entanto, e ao contrário do que acontecera na maioria dos países europeus, na península ibérica tinha assistido à criação de um sentimento de simpatia para com os judeus, mais concretamente para com os sefarditas, descendentes dos que haviam sido perseguidos e expulsos do território peninsular durante o século XV e XVI. Do lado espanhol, o movimento filo-sefardita das primeiras décadas do século XX procurou restabelecer a ligação de Espanha àqueles indivíduos, que estavam espalhados pelo continente europeu e ainda mantinham alguns laços culturais com a cultura espanhola, nomeadamente o uso da língua. As razões por detrás da iniciativa devem ser enquadradas no desejo de reconstrução do império espanhol, cujos últimos vestígios haviam sido desmantelados em 1898 na sequência da guerra hispanoamericana. Os judeus sefarditas eram encarados como potenciais intermediários dos interesses económicos e diplomáticos espanhóis, nomeadamente na zona dos Balcãs e no norte de África, podendo assim ajudar à revitalização da sua antiga pátria. O principal dinamizador do filo-sefardismo espanhol foi o médico e senador vitalício Angél Pulido Fernández, que contactou com as comunidades sefarditas no decurso das suas viagens pela Europa e se rendeu à ligação que elas ainda mantinham com Espanha. A partir daí procurou fomentar esse vínculo através da criação em 1910 da Unión Híspano-Hebrea, que criou diversas escolas no território espanhol de Marrocos, assim como cadeiras de hebreu na Universidade em Madrid e cadeiras de espanhol em universidades balcânicas, com vista a fortalecer a ligação entre aquelas populações. Os superiores interesses da pátria também eram mais importantes para os setores mais conservadores da sociedade espanhola, que conseguiam separar os sefarditas dos judeus. Os primeiros eram encarados como uma prova da superioridade da cultura espanhola, pois estavam praticamente assimilados e integrados, o que era visível nos seus costumes e língua, chegando ao ponto de considerarem que antes de mais ”eran prioritariamente españoles, y después, judíos.”1 Já os judeus eram acusados pelos 1

ROTHER , Bernd, Franco y el Holocausto, Marcial Pons, Madrid, 2005, p.39.

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grupos mais radicais, nomeadamente católicos e carlistas2, de serem perigosos revolucionários, responsáveis pela perda das colónias americanas, introdutores de ideias liberais, maçónicas e de agora, já no século XX, estarem associados ao comunismo. Uma prova evidente de um certo filo-semitismo, associado a realpolitik, aconteceu durante a ditadura de Primo Rivera, mais concretamente em 1924, altura que o regime possibilitou a obtenção de nacionalidade espanhola por parte de muitos destes sefarditas que viviam na zona dos Balcãs. O decreto de 20 de Dezembro não foi feito de propósito para este grupo, mas sim para resolver a situação de muitos ex-súbditos do Império Otomano. Era comum que o pessoal local, prestador de serviços em embaixadas e consulados, fosse protegido pelo seu empregador pois muitas das vezes não tinham nem a nacionalidade do país para quem trabalhavam, nem daquele onde residiam. Com o fim do sultanato vários funcionários de Espanha naquela região dos Balcãs ficaram num limbo, quase numa situação de apátridas. Ora a decisão legislativa do Governo de Primo de Rivera, que concedia a hipótese daqueles indivíduos obterem a cidadania, permitiu também a nacionalização de vários sefarditas com raízes espanholas, numa lógica de granjear futuros apoios económicos e diplomáticos naquela região. Resta acrescentar que foram poucos os sefarditas que beneficiaram da medida do Governo espanhol, em grande parte devido à morosidade burocrática e ao elevado custo financeiro que acarretava para os interessados. Já nos anos 30, durante a II República, retomou-se a possibilidade de conceder a cidadania espanhola aos sefarditas na zona dos Balcãs, contudo o plano não se concretizou, acabando aqueles indivíduos por receberem documentos temporários que facilmente poderiam ser não renováveis quando o Estado espanhol assim entendesse. Não obstante o carácter liberal e laico do Governo republicano a verdade é que o filosemitismo espanhol parecia parar na fronteira, pois só estava disposto a proteger e reconhecer a herança sefardita no exterior, não desejando e até impedindo que eles regressassem a Espanha. O mesmo regime teve uma nova possibilidade de demonstrar o seu semitismo quando em 1933, pouco depois do início das perseguições nazis aos judeus, foi convidado a participar no acolhimento daqueles refugiados. O pedido teve um acolhimento negativo, justificado pela ”difícil situación económica de España”3, que poderia ser agravada com o regresso daqueles indivíduos e a possível concorrência que 2

Movimento político anti-liberal e conservador da segunda metade do século XIX, que procurava restaurar o Antigo Regime em Espanha. O seu líder inicial foi Carlos de Bourbon daí o nome de carlismo. 3 ROTHER , Bernd, op. cit. p.51.

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fariam no mercado de trabalho. Contudo, ao mesmo tempo que rejeitava a vinda dos judeus mais pobres, deixava entreaberta a possibilidade de acolher alguns dos mais ricos. Apesar dos condicionalismos alguns milhares de judeus, entre 3 000 a 5 000 instalaram-se em Barcelona no período de 1933 a 1935. Contudo viviam sob condições económicas muito precárias, com grande dificuldade em obterem emprego numa economia em crise e devido ao facto de serem estrangeiros. Assim sendo, não é de estranhar que o principal objetivo destes judeus fosse emigrar o quanto antes para o continente americano. O início da guerra civil espanhola em Julho de 1936 tinha o potencial de complicar as relações dos judeus com as forças nacionalistas, cuja fação mais radical, a falange, tinha uma forte ligação e admiração pelo nazismo. Alguns dos seus mais importantes dirigentes, nomeadamente os militares Emilio Mola e Queipo de Llano também já tinham declarado por várias vezes o seu antissemitismo. Contudo, o regime franquista nunca empreendeu uma campanha antissemita, apesar de terem existido algumas ações pontuais contra os judeus. Estes últimos eram acusados sobretudo de serem apoiantes dos republicanos, muitos até se alistaram nas brigadas internacionais4, o que em grande parte se devia ao desejo de lutarem contra o fascismo. A questão judaica só voltaria a ocupar as atenções dos políticos espanhóis em 1938, logo após a Noite de Cristal, altura em que Antonio Magaz, o embaixador do regime de Burgos em Berlim, temia uma emigração massiva dos judeus para Espanha. Para travar essa vaga sugeriu uma atenção especial à letra J, que já constava nos passaportes dos judeus alemães, sabendo que o visto de entrada só era concedido aos judeus após a análise e autorização do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Só com o fim da guerra civil, mais precisamente em Maio de 1939, é que o Governo nacionalista oficializou a sua política de entrada no país, vedando o acesso aos seguintes indivíduos: “a quienes hubiesen actuado en contra el Movimiento Nacional; a quienes hubiesen sostenido relaciones comerciales com la República; a los masones; a quienes hubiesen ocupado puestos dirigentes en empresas en territorio republicano o com “marcado carácter judío”; a los judíos, excepto aquéllos en que concurriesen especiales circunstancias de amistad hacia España y de adhesión probada al Movimiento Nacional.” 5 4

ROHR, Isabelle, The spanish right and the jews (1898-1945) Antisemitism and opportunism, Sussex, Academic Press, Cornwall, 2007, p.73. 5 ROTHER , Bernd, op. cit., p.131.

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A questão judaica só voltará a merecer o interesse do Governo espanhol após a ofensiva alemã para ocidente, na Primavera de 1940 e que conduzirá à fuga de milhares de judeus dos territórios invadidos (Bélgica, Holanda, Luxemburgo e França) em direção aos últimos redutos em solo europeu, Suíça, Espanha e Portugal. O filo-semitismo português teve algumas semelhanças com o espanhol, pois criou-se um sentimento de simpatia para com o povo judaico ao longo do século XIX e primeiras décadas do XX. Para além de uma certa expiação pelos feitos do século XV e XVI, a verdade é que a instauração de um regime republicano, profundamente anticlerical e muitas vezes anticatólico, terá ajudado à consolidação da pequena comunidade judaica portuguesa e à criação de uma salutar convivência deste grupo com os outros portugueses. Uma prova desse bom ambiente deu-se em 1912-1913, com o apoio manifestado pelas forças políticas ao plano da Organização Territorial Judaica, que visava a instalação de judeus em Angola com vista à sua colonização. Todavia e apesar do suporte político da proposta, o projeto não se concretizou, não tanto pela existência de sentimentos antissemitas junto dos portugueses, mas sim pela falta de recursos financeiros da OTJ e desinteresse do Governo português, cujas atenções se focavam na I Guerra Mundial e numa importância acrescida das colónias. Um outro sinal do convívio cordial entre os judeus e a maioria da população católica portuguesa aconteceu já nas décadas de 20 e 30, altura do levantamento marrano efetuado pelo Capitão Barros Bastos. Como já foi referido anteriormente, a grande maioria da população judaica peninsular fora expulsa durante os séculos XV e XVI, restando àqueles que permaneceram a conversão ao catolicismo, o que mesmo assim não os livrou da perseguição da inquisição. Nesse ambiente persecutório os judeus portugueses assumiram publicamente a sua nova fé, mas continuaram com os velhos hábitos, muitas vezes isolados e sem contactos com os seus correligionários. Assim se desenvolveram os marranos, os descendentes dos judeus sefarditas expulsos, que tinham mantido uma ligação sui generis à fé judaica, com ritos e costumes diferentes dos que eram doutrinados. O militar Barros Bastos, ele próprio um recém-converso ao judaísmo, procurou mobilizar os marranos portugueses para assumirem publicamente a sua fé e organizarem as suas comunidades de culto, empreendendo para isso diversas viagens de missionação6 ao interior de Portugal. Com

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A religião judaica não procura fazer proselitismo. Para saber mais sobre a atividade do Capitão Barros Bastos conferir MEA, Elvira de Azevedo e STEINHARDT, Inácio, Ben- Rosh, Biografia do capitão Barros Basto o apóstolo dos marranos, Edições Afrontamento, Porto, 1997.

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o apoio financeiro de organizações judaicas internacionais resgatou diversos marranos, conseguindo fundar várias comunidades pelo país nomeadamente em Bragança, Pinhel, Covilhã e Porto, onde também criou uma escola judaica e promoveu a construção de uma sinagoga. Não obstante alguns incidentes com setores mais católicos e tradicionalistas, a verdade é que as iniciativas de Barros Bastos nunca contaram com um sentimento generalizado de antissemitismo, quer na maioria da população quer ao nível das instâncias políticas. Curiosamente, os maiores adversários às iniciativas do militar acabaram por ser os seus correligionários, fomentadores de diversas intrigas que deram origem a processos judiciais e culminaram no seu afastamento da comunidade judaica portuense. Ao mesmo tempo, a atenção do mundo judaico também se deixara de interessar pelas centenas de marranos portugueses e centrava-se agora nas perseguições de milhares de indivíduos que ocorriam na Alemanha nazi. A escalada de violência que atingia a comunidade judaica na Europa central não preocupou de sobremaneira o Estado Novo, cujos principais dirigentes tinham alguma simpatia para com o regime alemão, nem os judeus portugueses que procuraram não se envolver naquela questão. Este último era um grande trunfo daquele grupo, o seu relativo distanciamento dos assuntos mais sensíveis da política nacional, que permitia inclusive o granjear de um certo prestígio por parte dos seus membros mais destacados, nomeadamente os irmãos Bensaúde e Moses Amzalak7. Em 1938, Bélgica, Holanda e Suíça deixaram de conceder vistos de entrada aos judeus da Grande Alemanha, pois sabiam que eles não tinham intenções de sair dos seus territórios. Deste modo o fluxo dos refugiados começará a alterar-se, já que em Portugal a entrada com visto de turista, válido por 30 dias, ainda era válida. Essa era a informação que constava na circular nº10 de Outubro e que a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) tinha feito chegar às secções diplomáticas. Aliás, era aquela força policial a detentora da última palavra no que dizia respeito à admissão dos estrangeiros em Portugal, havendo casos onde o desembarque foi recusado por falta da autorização da PVDE, não obstante o visto válido de entrada8. O controlo sobre as entradas dos judeus seria aumentado em Fevereiro de 1939, momento em que aquela polícia, com o aval das companhias de navegação, passaria a autorizar ou não a venda de bilhetes aos refugiados judaicos. O início da II Guerra Mundial e o mais que provável aumento do fluxo de refugiados levaram a uma mudança na concessão de 7 8

AVRAHAM, Milgram, Portugal, Salazar e os judeus, Gradiva, 2010, Lisboa., p.43 Idem, p.79.

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vistos, obrigando os representantes diplomáticos a fazerem uma prévia consulta junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros, sempre que estivesse em causa o visto para os seguintes casos: ”estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou e litígio, aos apátridas, aos portadores de passaporte Namsen e aos Russos; aos estrangeiros que não aleguem de maneira que o cônsul julgue satisfatória os motivos da vinda para Portugal e ainda àqueles que apresentem nos seus passaportes a declaração ou qualquer sinal de não poderem regressar livremente ao país de onde provêm [referência ao J vermelho nos passaportes dos judeus]. Com respeito a todos os estrangeiros, devem os cônsules procurar averiguar se têm meios de subsistência. [Não deverão ser concedidos vistos] aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daquele de onde provêm; aos que, evocando a circunstância de virem embarcar num porto português, não tenham nos seus passaportes um visto consular bom para entrar no país a que se destinam, ou bilhete de passagem via marítima ou aérea, ou garantias das respectivas companhias.”9 A política de entrada em Espanha e Portugal estava definida em função de um caudal de refugiados reduzido e seria posta à prova a partir da Primavera de 1940, altura em que a ofensiva alemã se virou para ocidente. A rápida invasão e controlo da Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França empurraria milhares de refugiados para a fronteira franco-espanhola, sobretudo de origem judaica, que procuravam obter em Espanha e Portugal a passagem para o continente americano.

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Idem, p.84.

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3-A fronteira A ofensiva alemã para ocidente já há muito que era esperada, sobretudo pelos franceses que aguardavam pacientemente a chegada dos alemães à sua linha Maginot. A quase ausência de manobras ofensivas por parte da França e Reino Unido deveu-se a um excesso de confiança no seu poder militar e sobretudo a um certo torpor que perpassava toda a sociedade. Longe estava o tempo da mobilização espontânea e voluntária para participar na guerra. Ainda estavam bem presentes na mente dos europeus os efeitos catastróficos do conflito de 1914. Desde a subida dos nazis ao poder, com a consequente retoma de políticas militaristas e expansionistas, que a grande maioria dos países europeus deram provas da pouca vontade em voltar a combater. Apesar dos vários indícios, os líderes europeus seguiram uma política de apaziguamento para com a Alemanha, onde fizeram múltiplas cedências, achando que podiam adiar o que estava à vista de todos mas que ninguém queria encarar, a guerra. A generalidade dos judeus sob domínio alemão, não obstante o avolumar das perseguições que lhes eram movidas, também optaram por adiar um problema que se ia espalhando pela Europa e acompanhando o avanço dos exércitos alemães, o antissemitismo. À semelhança dos outros europeus acreditaram na inexpugnabilidade dos seus países de acolhimento, crença que ruirá em Maio e Junho de 1940, altura em que praticamente toda a Europa Ocidental ficou sob o domínio nazi. Como um castelo de cartas Holanda, Bélgica, Luxemburgo e depois a França renderam-se, abrindo o caminho para a continuação da política antissemita levada a cabo na Grande Alemanha. Numa fase inicial visando os judeus que de lá tinham fugido e posteriormente alargando essa política a todos os outros. O movimento dos refugiados irá centrar-se sobretudo na fronteira pirenaica, onde procuravam obter vistos de entrada em Espanha e Portugal, que lhes permitissem fugir das perseguições alemãs. Os relatos das primeiras levas de refugiados datam de 17 de Junho de 1940, poucos dias após a queda de Paris e da fuga do Governo francês para Bordéus. O tráfego na fronteira franco-espanhola ainda era reduzido, pois o jornal português O Século só referia a passagem de “dois grupos de crianças expatriados pelos “vermelhos” ”10 rondando os 50 elementos, em contraste com o que sucedia na fronteira franco-suíça onde o número de refugiados em Porrentruy (Suíça) já rondava os 10

Redação, Poucos estrangeiros têm atravessado a fronteira do Irún, O Século, 17 de Junho de 1940, p.2.

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10 00011. A maior parte dos fugitivos ainda estava a dirigir-se para os Pireneus ou então aguardava nas localidades fronteiriças de Biarritz, Baiona e Hendaia a autorização para atravessar para o lado espanhol. As condições a que aquela massa humana estava sujeita não eram as ideais, havendo relatos da falta de víveres e da ausência de alojamento, fazendo com que muitos optassem por ficar nas carruagens dos comboios. Do lado da imprensa espanhola o eco daquela vaga de refugiados focava-se no pânico existente nas hostes dos “refugiados rojos españoles”12, que agora se confrontavam com dois dos mais fervorosos inimigos do comunismo, Franco e Hitler. Será o jornal espanhol ABC13 que dará conta dos primeiros refugiados judeus a chegarem à fronteira, destacando o caso do advogado francês, Henry Torrès, que viu as autoridades francesas recusarem a sua saída não obstante ter os papéis em ordem 14. Aparentemente este seria uma exceção já que o mesmo periódico acrescentava, na sua edição de Madrid, que “continúa el êxodo hacia Portugal y España de miles y miles de personas residentes en Francia, casi todas de origen israelita.”15 No movimento massivo ainda havia tempo para descortinar certas individualidades, nomeadamente elementos da nobreza europeia16, da rica família Rothschild e até de pessoas ligadas à cultura como o pianista Stanisław Niedzielskide de origem polaca. O movimento em direção a sul das tropas germânicas empurrava cada vez mais os refugiados, permitindo aos jornalistas retratarem um quadro onde o desespero e a riqueza andavam lado a lado. Os fugitivos eram facilmente reconhecíveis pelos inúmeros haveres que traziam. Todavia, havia uns mais identificáveis do que outros, nomeadamente “el rabino de largas barbas y perfil rapaz [voraz]”17, que se somava aos que em Baiona, Hendaia e Bordéus procuravam a todo o custo os documentos necessários para entrarem em Espanha. O funcionamento quase ininterrupto das 11

Redação, Numerosos fugitivos chegam à fronteira da Suíça em precárias circunstâncias, O Século, 18 de Junho de 1940, p.2. 12 Redação, Panico Entre Los Elementos Rojos Refugiados En Francia, La Vanguardia, 19 de Junho de 1940, p.1. 13 Redação, La emperatriz Zita y varios príncipes se refugian en España, ABC, Sevilha, 20 de Junho de 1940, p. 6. 14 O advogado irá posteriormente conseguir entrar no Marrocos francês a bordo de um navio inglês, de onde fugirá para a América Latina. 15 Redação, Los plenipotenciários. Ante la incógnita territorial de Francia, ABC, Madrid, 20 de Junho de 1940, p.1. 16 Redação, Os filhos do rei da Bélgica, a ex-imperatriz Zita e a família da gran-duquesa do Luxemburgo chegaram a San Sebastian, O Século,21 de Junho de 1940, p.4. 17 Redação, Balance Implacable, ABC, Madrid, 21 de Junho de 1940, p.1.

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dependências consulares não assegurava a passagem para todos os refugiados, fazendo com que alguns, especialmente os judeus, tentassem recorrer a outros artifícios como indicava a imprensa, “Hay quien muestra diez millones de francos en valores para pedir un permisso de residência en España, compatible com su extirpe judia”18. Terá sido também o suborno que garantiu a entrada em Portugal do ator norte-americano, Robert Montgomery, através da “entrega de mil francos a Auxilio Social”19. Curiosamente, uma situação semelhante foi descrita no processo que envolveu o afastamento do cônsul Aristides Sousa Mendes20. Estas situações terão sido pontuais e em último caso ocorreriam com o beneplácito dos respetivos governos, pois quer em Portugal com a PVDE quer em Espanha, a partir de Maio de 1940, com a Dirección General de Seguridad (DGS), quem controlava as entradas no território eram aquelas forças policiais, em estreita comunicação com os ministérios de negócios estrangeiros. Teoricamente os vistos eram concedidos após a prévia autorização de Madrid e Lisboa, só podendo os cônsules, em casos excecionais e devidamente fundamentados, conceder previamente os vistos. Foi recorrendo a este último expediente e abusando da autorização para a concessão de vistos aos súbditos britânicos dada por Salazar 21, que vários diplomatas portugueses possibilitaram a entrada de milhares de refugiados em Portugal durante a II Guerra Mundial. Um dado curioso acerca dos relatos vindos da fronteira pirenaica era o relativo silêncio da imprensa local fronteiriça. Do lado português, o jornal A Guarda, o periódico mais próximo da principal fronteira de Vilar-Formoso, nunca se referiu aos milhares de refugiados que entraram em Portugal durante o mês de Junho. Já em Espanha, não obstante as referências na imprensa nacional22 da passagem dos refugiados nas cidades junto à fronteira portuguesa (Salamanca), o diário La Gaceta Regional de Salamanca só dedicou ao tema duas pequenas notícias23. Aí, dava das centenas de refugiados que passavam pela cidade e lotavam os hotéis, assim como do

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Ibidem. Ibidem. 20 AVRAHAM, Milgram, op. cit., p.102. 21 Idem, p.99. 22 Redação, A ponte internacional de Irun esteve aberta até adiantada hora da noite, O Século, 22 de junho de 1940, p.3. 23 Redação, Siguen llegando refugiados extranjeros a Salamanca, La Gaceta Regional de Salamanca, 23 de Junho de 1940, p.1; Redação, Portugal cierra sus fronteras a los que huyen de Francia, La Gaceta Regional de Salamanca, 25 de Junho de 1940, p.1. 19

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anormal movimento ferroviário que fazia com que “todos los trenes llegan abarrotados de publico.”24 A iminente queda da França daria um último fôlego à vaga de refugiados, já que o controlo alemão da fronteira seria uma das principais preocupações das forças ocupantes. Tal urgência era visível nos relatos das filas de automóveis que se acumulavam na fronteira franco-espanhola e na caracterização feita quer pelo ABC quer pelo La Vanguardia, que falavam em “La avalancha de fugitivos”25. A magnitude dos números seria impossível de escamotear, pelo menos nalguma imprensa nacional portuguesa, situação que levava O Século a reportar a intenção do Governo espanhol em aumentar a fiscalização e até encerrar a fronteira, para a controlar o fluxo de refugiados. O periódico acrescentava ainda que eram “sobretudo judeus que passam a fronteira.”26, prevendo o avolumar desse número face ao avanço alemão em direção a Bordéus. Uma vez entrados na Península e não obstante a existência de censura, a verdade é que a presença dos refugiados também merecia a atenção dos jornais. Em Portugal os alvos iniciais foram as individualidades27, passando depois à grande massa anónima que entrava quer de automóvel quer pelo caminho-de-ferro. Aliás, este último merecia um especial reparo em virtude dos constantes atrasos no Sud-express, motivados pela fiscalização da PVDE e pela forte afluência de passageiros que obrigava ao desdobramento das composições. Já em Espanha os que chamavam a atenção da imprensa eram “los innumerables Rotschild (…) las más altas jerarquias de la Banca Morgan (…) los Levis, los Gohen, Los Davidson”28, quase todos eles judeus e que segundo o jornalista estavam comodamente instalados. Viviam sem preocupações pois “No son los refugiados pobres, com sus pobres enseres [haveres], que suelen passar las fronteras en las guerras; son gentes de dólar, gente para las que das divisas no tienen ningún secreto, puesto que son ellos mismos los que han inventado el trasiego [tráfico] internacional de moneda. Llegan com sus dólares, sus automóviles com pirâmides de

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Redação, Siguen llegando refugiados extranjeros a Salamanca, La Gaceta Regional de Salamanca, 23 de Junho de 1940, p.1. 25 Redação, El êxodo de Francia hacia España, La Vanguardia, 22 de Junho de 1940, p.2. Redação, El paso de fugitivos por la frontera de Irún, ABC, Madrid, 22 de Junho de 1940, p.6. 26 Redação, Afluencia de refugiados a Irun leva o governo espanhol a pensar no encerramento da fronteira, O Século, 22 de Junho de 1940, p.3. 27 Redação, A ex-imperatriz Zita e o sr. Van Zeeland passaram em Viseu, O Século, 22 de Junho de 1940, p.4. 28 Jacinto Miquelarena, San Sebastián y los fugitivos, ABC, Sevilha, 22 de Junho de 1940, p.3.

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maletas en el techo y sus perros.”29 Muito provavelmente seriam estas pessoas a quem O Século chamava de “categorizadas.”30 A rendição oficial da França deu-se a 22 de Junho, iniciando-se assim a contagem decrescente para o encerramento da fronteira pirenaica e o fim da vaga de refugiados. O desespero pela mais que provável chegada das tropas alemãs à fronteira e a falta de combustíveis para os diversos meios de transporte, levaram milhares de pessoas a prosseguir “la marcha hacia la frontera española en bicicleta, en carros [carros de mão] o a pie.”31 À medida que a tormenta se abatia sobre os refugiados mais era exaltado o comportamento de Espanha e Portugal, sobretudo deste último que era caracterizado como “lleno de calor de humanidade y de ese sentido compreensivo, cordial y noble que, a través de la Historia, es la más acentuada característica de su personalidade inconfundible.”32 Os dias seguintes colocariam à prova o humanismo luso, pois foi durante esse período que as autoridades portuguesas tomaram pleno conhecimento das ações de Aristides de Sousa Mendes. O cônsul português em Bordéus já tinha sido admoestado por passar vistos sem a respetiva autorização da PVDE/MNE e continuou a desrespeitar as diretrizes, sobretudo a partir da invasão alemã, mas desta vez de um modo massivo dando origem a alguns milhares de vistos. Entre Janeiro e 22 de Junho de 1940, altura em que é mandado regressar a Lisboa, o diplomata passou 286233 vistos registados, a que se acresce um número desconhecido emitidos em Baiona e Hendaia quando estava a caminho de Portugal. A grande maioria foi concedida a judeus, que o Estado Novo considerava serem indesejáveis, já que em caso limite poderiam atrair a atenção da Alemanha nazi para Portugal. O regime português tentou travar os refugiados com os vistos de Aristides de Sousa Mendes, não sendo de estranhar que no dia 23 de Junho apareça o relato da crescente demora e fiscalização na fronteira de Vilar Formoso, que contava agora com a presença do Capitão Agostinho Lourenço, Diretor da PVDE34. Como era expectável a imprensa portuguesa não relatava os verdadeiros motivos que atrasavam e

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Ibidem. Redação, Continuam a entrar em Portugal muitas individualidades estrangeiras, O Século, 22 de Junho de 1940, p.5 31 Redação, Repercusión mundial, ABC, Sevilha, 23 de Junho de 1940, p.5. 32 Redação, La noble Hospitalidad Portuguesa, ABC, Madrid, 23 de Junho de 1940, p.6. 33 AVRAHAM, Milgram, op. cit., p.100. 34 Redação, Cresce o número de refugiados que procuram a paz em Portugal, O Século, 24 de Junho de 1940, p.2. 30

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impediam o acesso dos refugiados, quer em solo português quer na fronteira francoespanhola, pois o visto português era quase uma condição sine qua non para a entrada em Espanha. Do lado espanhol ficava-se a saber que a fronteira portuguesa estava fechada e que o humanismo lusitano teria acabado, pois “no parece que puede [Portugal] o desee recebir a más refugiados, y niega el visado para penetrar en su país.”35 Acrescentava-se ainda uma importante informação relativa aos vistos portugueses, mais concretamente àqueles emitidos em Bordéus por Aristides de Sousa Mendes que “son rechazados por las autoridades españolas, seguramente por indicaciones del Gobierno de Lisboa, que há encontrado algo anormal en dicho Consulado francês.”36 Era ainda referido, que muitos dos que já tinham entrado em território espanhol com aqueles documentos estavam agora retidos na fronteira luso-espanhola, “en un campo de concentración que han improvisado nuestros vecinos en Fuentes de Oñoro.”37 Aí se encontravam mais de 600 pessoas, que curiosamente pertenciam todas a uma “raza especialmente en el errabundear [vagabundear] y en el trasiego [tráfico] de joyas.”, um elaborado eufemismo para dizer que eram judeus. A edição de Madrid do jornal ABC também registava o mesmo acontecimento, descrevendo que havia um avolumar do número de refugiados na fronteira, onde se destacava um grupo de “gentes de nacionalidade imprecisa y quizá multiples, habituadas al nomadismo de lujo”38. Segundo o jornalista eram estes indivíduos que revelavam uma maior impaciência e desejo de cruzarem a fronteira, não obstante terem documentos inválidos. Face à proibição muitos “pronuncian discursos como Kerenski [conhecido dirigente comunista]”39 ou então apelavam à humanidade dos guardas espanhóis, muitas das vezes suplicando de joelhos. Aparentemente nenhum dos argumentos conseguia demover a atitude das autoridades, merecedoras de rasgados elogios por “el orden riguroso, la disciplina, la meticulosidade severísima y elegante de la Comandancia”40. Por fim, o jornalista dava conta das fortes chuvas que atingiam o sul

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Redação, Las aglomeraciones de fugitivos en el puente internacional de Irún, ABC, Sevilha, 25 de Junho de 1940, p.6. 36 Ibidem. 37 Ibidem. 38 Jacinto Miquelarena, Pasta de Huídos, ABC, Madrid, 25de Junho de 1940, p.7. 39 Ibidem. 40 Ibidem.

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de França e que se abatiam sobre os refugiados, fazendo-o pensar se tudo aquilo não se tratava “en un castigo del cielo.”41 O crescente número de refugiados acabaria por ser noticiado na imprensa portuguesa, que dava conta de “ “bichas” de 4.000 pessoas”42 à porta do consulado português em Baiona, estimando que seriam necessários mais de três dias para todas aquelas pessoas conseguiram o visto no respetivo passaporte. Segundo o jornal, entre o numeroso grupo de refugiados que aguardava pelo carimbo encontrava-se uma grande quantidade de judeus, facilmente identificáveis, pois “trazem na sua bagagem numerosos e preciosos “gobelins” [tapeçarias francesas] e quadros de artistas célebres.”43 Era usual os refugiados trazerem bens que pudessem trocar e vender, não sendo de estranhar o relato da detenção de um judeu polaco por tentar atravessar a fronteira com uma elevada quantia em lingotes de ouro. Ficam algumas dúvidas no que toca aos 15 milhões de francos referidos por ser um valor muito elevado, mas sobretudo porque a notícia tem origem na agência de notícias do III Reich, a D.N.B. (Deustches Nachrichten Büro). O Século de 25 de Junho de 1940 também relatava a existência de um grande número de fugitivos, nunca especificando a sua naturalidade ou grupo étnico, que procuravam entrar em território português e tinham obrigado as autoridades a montar de um “acampamento”44 em Vilar Formoso. Segundo o jornal aquela estrutura serviria para “com vagar, ordem e método, exercer rigorosa fiscalização sobre a identidade dessas pessoas.”45 Já no que toca ao encerramento da fronteira a pedido das autoridades portuguesas e que fora noticiado pelos jornais espanhóis, não havia nenhuma menção. Aliás, quem lesse O Século no dia 26 de Junho ficaria a saber que já tinha sido “reaberta a fronteira espanhola para todas as pessoas que têm o visto de trânsito para Portugal”46. Tal notícia transmitia uma sensação de normalidade, imputando os condicionamentos ao lado espanhol, não fosse a presença nos Pirenéus do embaixador em Madrid, Pedro Teotónio Pereira e do seu adido militar, o Coronel Passos e Sousa. Do lado português justificava-se a deslocação do diplomata com necessidade de agilizar a entrada dos 41

Ibidem. Redação, As estradas da França meridional estão cheias de fugitivos que sofreram os rigores duma tempestade, O Século, 25 de Junho de 1940, p.1. 43 Ibidem. 44 Redação, O Governo português mandou estabelecer um acampamento em Vilar Formoso, O Século, 25 de Junho de 1940, p.6. 45 Ibidem. 46 Redação, Foi reaberta a fronteira espanhola com a França para quem tenha visto de trânsito para Portugal, O Século, 26 de Junho de 1940, p.5. 42

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portugueses em território espanhol, que agora podiam “atravessar a fronteira sem necessidade de “visto” nos respectivos passaportes.”47 Por seu turno, o jornal ABC revelava que a presença do embaixador fora motivada pela vaga de refugiados com vistos portugueses, muito provavelmente os passados por Aristides de Sousa Mendes e que obrigou a ida do diplomata à fronteira para “hacer cumplir integramente (…) la determinación del Gobierno de Lisboa referente a la concesión de visados para Portugal.”48 Se o controlo das entradas em território português era fundamental para o regime, a estadia dos refugiados também merecia uma atenção especial, quer pelo seu número elevado quer pelas influências que poderiam ter junto da população. Portugal era encarado pela maior parte dos judeus como uma plataforma de emigração para o continente americano, contudo, as complicações aos nível do tráfego atlântico e as dificuldades em arranjar passagem nos navios obrigaram à estadia forçada de muitos em solo português. Com vista a minorar o impacto e sobretudo a controlar a presença dos refugiados, o regime criou Zonas de Residência Fixa, geralmente em pequenas localidades junto ao litoral, onde estes indivíduos se instalavam como se fossem turistas temporários. Os ecos desse exílio interno eram percetíveis na imprensa, que indicava a deslocação desses refugiados para locais como Caldas da Rainha, Figueira da Foz 49 e Curia50, onde provocavam alguma agitação devido ao anormal trânsito automóvel e sobretudo à curiosidade que despertavam junto das população. Em pleno tempo estival a bonomia e hospitalidade portuguesa darão sinais de algum desgaste, face aos hábitos balneares menos conservadores daqueles turistas. A atitude mais relaxada e um uso de diferente indumentária provocará uma forte reação por parte da imprensa católica, que considerava haver “lodo”51 nas praias portuguesas. Os refugiados eram apelidados de serem “uma praga de indesejáveis, endinheirados e gosadores nababos”52 e fortemente criticados por tentarem corromper os bons costumes e a moral dos portugueses com a

47

Redação, Os portugueses que vêm para Portugal não necessitam de “visto” nos passaportes, O Século, 26 de Junho de 1940, p.5. 48 Redação, Regreso del embajador de Portugal, ABC, Madrid, 26 de Junho de 1940, p.1. 49 Redação, A Coimbra continuam a chegar muitos estrangeiros, entrados pela fronteira de Espanha, O Século, 26 de Junho de 1940, p.8. 50 Redação, Na Figueira da Foz já estão mais de trezentos refugiados, O Século, 27 de Junho de 1940, p.3. 51 Redação, Lodo que é preciso varrer…, A Guarda, 26 de Julho de 1940, p.1. 52 Ibidem.

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prática do

“nudismo”53. Convém esclarecer que não se tratava efetivamente de

nudismo, mas sim do uso de fatos de banho mais curtos, geralmente acima do joelho e um pouco mais reveladores das formas femininas54. Outro comportamento dos refugiados alvo da censura era o convívio entre homens e mulheres nos areais e a frequência de cafés por parte do sexo feminino. O controlo da fronteira franco-espanhola por parte das tropas alemãs, a partir de 27 de Junho, iria reduzir substancialmente o movimento legal de refugiados, especialmente depois dos nazis proibirem a saída dos judeus alemães (austríacos, checoslovacos, polacos) do território francês. Restava aos mais corajosos tentarem entrar em Espanha ilegalmente, correndo o risco, caso fossem apanhados, de serem entregues às autoridades de Vichy e aos nazis ou então de passarem uma larga temporada em campos de concentração espanhóis. A chegada dos nazis aos Pirenéus era considerada vantajosa, sobretudo pela imprensa espanhola, visto que a ligação ao Reich dava a possibilidade de fornecer “gran número de produtos muy importantes de España y Portugal, y de proporcionar a estos países mercancias igualmente importantes.”55 Já de um outro ponto de vista, a presença alemã na fronteira vinha repor uma certa normalidade e impedir a contínua vinda de indesejáveis para a península. Contudo, havia quem do lado francês ainda manifestasse alguma insatisfação pelo encerramento da fronteira, considerando que o seu país só estava a ganhar com a saída ”de los sin patria y curada de esta lepra cosmopolita”56. Os desejos dos antissemitas começariam a ser realizados em Maio de 1941, altura das primeiras deportações de judeus franceses para campos de concentração.

53

Ibidem. Cf. Tadeu, Tiago, Os fatos de banho nas décadas de 30 e 40 (século XX) n’A Guarda, trabalho para o seminário As Mulheres no Mundo Contemporâneo: História Comparada no Mestrado em História Económica e Social Contemporânea da F.L.U.C., 2007; Calado, Maria Helena, O Estado Novo e as mulheres, Câmara Municipal de Lisboa, 2001. 55 Redação, Irun y Gibraltar, los dos puntos de la Península que ofrecen la máxima actualidad, La Gaceta Regional de Salamanca, 28 de Junho de 1940, p.1. 56 Redação, Es un espectáculo bíblico…, ABC, Madrid, 27 de Junho de 1940, p.4. 54

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4-Conclusões Portugal e Espanha tiveram uma oportunidade única entre 1933 e 1940 de assumirem um papel de destaque no apoio aos refugiados que fugiam dos nazis, nomeadamente aos judeus. Estima-se entre 10 000 e 20 000 aqueles que terão passado na enorme vaga de refugiados, sendo que a maior parte terá entrado na península por volta de Maio e Junho de 1940, antes da chegada dos nazis aos Pirenéus. Como vimos os regimes peninsulares tiveram na maior parte das vezes uma atitude ambivalente para com os judeus, não assumindo declaradamente um antissemitismo mas também não revelando uma especial preocupação para com aqueles indivíduos. No fundo a sua atitude retratava o dilema daquelas duas sociedades, profundamente católicas, conservadoras e simpatizantes do III Reich, mas ao mesmo tempo com uma secular herança judaica, que era vista com algum orgulho sobretudo em Espanha. Por outro lado, os governos ibéricos também não tinham muita possibilidade de fomentar um visceral sentimento antissemita em virtude do número reduzido de judeus que habitava nos seus territórios. Este grupo também dava sinais de uma boa integração nas sociedades peninsulares, sendo que em Portugal optava por não se imiscuir nas questões políticas, ao passo que em Espanha viu alguns dos seus membros envolverem-se diretamente na Guerra Civil. Tal facto motivará um posterior ajuste de contas por parte dos nacionalistas, visível na legislação de Maio de 1939, mas cuja fundamentação residia sobretudo em motivos políticos e não étnico-religiosos. A invasão alemã da Europa ocidental catalisaria a fuga massiva de judeus, que se encaminharam para a península face à falta de alternativas e testariam o antissemitismo ibérico. A quase totalidade da malha burocrático-fronteiriça já estava instalada por essa altura, sendo só feitos pequenos retoques em Maio de 1940 com vista a estabelecer um maior controlo na concessão dos vistos de entrada. Um dos aspetos que se salientou naquele período foi a diferente postura da imprensa local e nacional face aos refugiados, nomeadamente aos judeus. Nos periódicos regionais consultados, que à partida estavam em melhores condições para retratar o périplo dos fugitivos, poucas foram as notícias encontradas. No jornal português A Guarda não houve nenhuma referência durante aquele período, enquanto na La Gaceta Regional de Salamanca surgiram um par de pequenas notícias pouco reveladoras da visão privilegiada que os periódicos tinham da fronteira. Estranhamente foram as publicações de âmbito nacional, talvez pela maior disponibilidade de recursos 18

ou pela menor fragilidade às pressões da censura, a melhor retrataram a vaga de refugiados que se abateu na península em Junho de 1940. Contudo, dentro desta imprensa há que destacar a diferente atitude assumida em Portugal, onde houve um menor tratamento noticioso do que em Espanha, mesmo de acontecimentos que diziam respeito à fronteira portuguesa. Ainda assim há que distinguir os dois jornais analisados em Portugal, O Século e o Diário de Lisboa, pois neste último a questão dos refugiados foi abordada de um modo muito ligeiro, já que nunca foram reportadas situações que tivessem ocorrido na fronteira luso-espanhola, nem mencionada a entrada de judeus em Portugal. Já o jornal O Século fez uma cobertura mais detalhada, relatando inclusive acontecimentos ocorridos em Vilar Formoso, não obstante as informações fornecidas terem sido truncadas ou então manipuladas tendo em conta o que era relatado pelos jornais espanhóis. Tal foi o caso dos vistos portugueses passados em Bordéus e do campo

de

concentração edificado na fronteira luso-espanhola.

O primeiro

acontecimento nunca foi mencionado na imprensa lusa, que culpabilizou o excesso de refugiados e as autoridades espanholas pelos entraves ocorridos na fronteira franco-espanhola. Já o segundo foi referido superficialmente, justificando-se a montagem do acampamento na necessidade de efetuar uma melhor fiscalização dos refugiados. Como vimos, do lado espanhol não houve pejo em esclarecer os reais motivos do fecho da fronteira e da criação do campo de concentração em Fuentes de Oñoro. Ainda sobre o tratamento jornalístico do tema, convém salientar que a diferença substancial que existiu foi o antissemitismo revelado pelos jornais espanhóis, que contrastou com uma certa discrição dada pelo jornal O Século, já que nos outros dois periódicos o grupo étnico-religioso nem sequer foi mencionado. Um leitor mais distraído até ficaria com a ideia que a maior parte dos judeus entrados na península ficariam em Espanha ou daí sairiam, o que seria enganador, já que as rotas transatlânticas partiam da capital portuguesa. Os judeus que entravam ou queriam entrar em Espanha eram geralmente retratados como indivíduos abastados, ligados à alta finança ou então possuidores de inúmeros bens e associados ao comunismo. Toda essa adjetivação preparava o terreno para a conclusão final, que mereciam as perseguições que lhe eram movidas. Já a única referência antissemita, num periódico português, deuse com a publicação de uma informação proveniente da agência noticiosa do III Reich. Em Portugal, de uma maneira geral, os judeus não foram sujeitos a uma caracterização diferente da dos outros refugiados. Tal foi percetível quando se noticiava o 19

internamento dos foragidos, onde nunca houve um tratamento discriminatório de destacar os judeus, sendo o grupo tratado como um todo. O relato da imprensa durante o período mais crítico para os refugiados judeus, Junho de 1940, acaba por retratar fielmente as atitudes que as nações ibéricas tiveram para com aquele grupo ao longo do conflito. Do lado espanhol houve um antissemitismo declarado, mas que não passou dos discursos mais inflamados registados na imprensa. Já em Portugal, aquele sentimento nunca foi publicamente assumido, contudo, as ações desenvolvidas ao nível diplomático e policial acabaram por muitas vezes contradizer o silêncio do regime.

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Índice 1-Introdução...................................................................................................................... 1 2-A Península ................................................................................................................... 3 3-A fronteira ..................................................................................................................... 9 4-Conclusões .................................................................................................................. 18 Fontes ............................................................................................................................. 22 Bibliografia ..................................................................................................................... 22

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Fontes ABC (1940) Diário de Lisboa (1940) La Gaceta Regional de Salamanca (1940) A Guarda (1940) O Século (1940) La Vanguardia (1940)

Bibliografia AVRAHAM, Milgram, Portugal, Salazar e os judeus, Gradiva, 2010, Lisboa. MAZOWER, Mark, Hitler’s Empire, Penguin, London, 2008. MEA, Elvira de Azevedo e STEINHARDT, Inácio, Ben- Rosh, Biografia do capitão Barros Basto o apóstolo dos marranos, Edições Afrontamento, Porto, 1997. RAY, John, História Narrrativa da Segunda Guerra Mundial, Edições 70, 1999, Lisboa. ROHR, Isabelle, The spanish right and the jews (1898-1945) Antisemitism and opportunism, Sussex Academic Press, Cornwall, 2007. ROTHER, Bernd, Franco y el Holocausto, Marcial Pons, Madrid, 2005. WASSERSTEIN, Bernard, On the Eve – the jews of Europe before the second world war, Profile Books ltd, London, 2013.

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