Judith Butler e a ética da precariedade

July 8, 2017 | Autor: G. Hessmann Dalaqua | Categoria: Émmanuel Lévinas, Judith Butler, Hannah Arendt, Precariedad, Ética, Biopolítica
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Judith Butler e a ética da precariedade. Gustavo Dalaqua Seminário apresentado para o Programa de Pós-Graduação em Filosofia, UFPR, 2013.

1. Introdução

Este texto tem por objetivo reconstruir os principais momentos de Precarious Life, palestra proferida por Judith Butler, em Estocolmo, em maio de 2011. Em sua fala, Butler se afasta da problemática do gênero e se dispõe a esboçar os contornos para uma nova ética. Todavia, como pretende se detalhar, o afastamento não implica uma ruptura em seu pensamento. Entre a questão do gênero e a ética da precariedade, há uma continuidade. Também aqui o foco de preocupação são os mecanismos de exclusão, que hierarquizam quais vidas valem mais e quais valem menos, e também aqui há performatividade. O objetivo nesta introdução é realçar a continuidade, ou seja, tentar mostrar de que maneira a ética da precariedade visa driblar os mecanismos de exclusão, e de que maneira a concepção de um sujeito ético performativo é estratégica a semelhante empreitada. Antes de destacar como a performatividade, conceito-chave de Problemas de Gênero (1990), marca presença na ética da precariedade, é mister explicar, afinal, em que consiste o termo. Originalmente, o conceito remonta à filosofia da linguagem, sobretudo a de J. L. Austin, que cunhou o termo performatividade com o intuito de formular uma teoria discursiva que não a descritiva (AUSTIN, 1962). Grosso modo, existem duas maneiras muito diferentes de encarar o discurso. Sob uma perspectiva mais clássica, podemos entender que o discurso é unicamente descritivo, quer dizer, ele apenas descreve uma realidade fixa e imutável, que já existia antes de o discurso aparecer. Em segundo lugar, o discurso pode ser visto como performativo, isto é, como algo que produz realidades. O discurso não é re-presentacional, não é mera cópia que há de se conformar a uma realidade anterior mais originária. Afirmar que o discurso é performativo implica afirmar que o discurso inaugura realidades.

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Butler recorre implicitamente à performatividade logo no segundo parágrafo, onde procura rechaçar a concepção de um Sujeito ético soberano – Sujeito com S maiúsculo – da tradição política clássica, segundo a qual as obrigações éticas “resultariam de contratos ou acordos aos quais teríamos deliberadamente assentido” (BUTLER, 2011: 2). A noção de sujeito como átomo prévio à instituição de qualquer comunidade política, que mediante o recurso à Razão concederia, por meio de um contrato, sua liberdade natural ao Estado civil, eis o que Butler busca veementemente negar com a performatividade. A linguagem midiática, segundo Butler, inaugura o sujeito ético. Nesse sentido, o sujeito ético é produzido e se produz, a um só tempo, como correlato das mais variadas instâncias discursivas da contemporaneidade, tais como o jornal, a televisão, a internet.1 “Nós não apenas consumimos, e não somos somente paralisados pelo excesso de imagens [midiáticas]. [...] as imagens que se nos impõem operam como uma solicitação ética” (idem). O discurso midiático gera um sujeito ético que, de certa maneira, é responsável por aquilo com o qual se depara. O discurso midiático é performático, produz realidades, de sorte que quando um evento não é transmitido pela rede global, “parte da realidade do evento se perde” (ibid: 5). Não se trata de dizer que sempre que nos confrontamos com “uma imagem de guerra [...], à medida que andamos pela rua e passamos pela banca de jornal”, tornamonos responsáveis pelo que vemos (ibid: 3). Butler deixa claro que o chamado ético emitido pela mídia “nem sempre” é atendido (ibid: 2). Tampouco se trata de lamuriar que a mídia capturou a subjetividade contemporânea e pregar pelo extermínio da tecnologia, com vistas a liberar um sujeito ético jamais infectado pelos meios de comunicação de massa e elevá-lo como locus privilegiado de resistência (receio ser esta a intenção de ADORNO, 1985). A resistência não precisa ser prerrogativa de um sujeito imaculado, intocado pelo discurso midiático. Para Butler, o que está em questão é pôr em relevo como o próprio discurso midiático pode produzir “laços de solidariedade que emergem através do espaço e 1

Para Butler, não existe liberdade absoluta. No seu embate com a sociedade, o eu é, simultaneamente, ativo e passivo, produtor e produzido. Seria, pois, difícil decantar, de um lado, um polo subjetivo de pura atividade, e de outro, um polo unicamente passivo, posto que o momento de assujeitamento é indissociável da constituição de si enquanto sujeito. A liberdade se exerce neste duplo movimento; é no manejo ardiloso, ou se se quiser, artístico, com as técnicas de assujeitamento que o eu consegue tornar-se sujeito. Esta tese, como a própria autora confessa, é herança de Foucault (BUTLER, 2005: 17-40).

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tempo” (BUTLER, 2011: 2). A produção de semelhantes liames entra em choque com a maior parte das éticas feitas até aqui, que costumam fazer da proximidade física condição da obrigação e do dever, como se as relações éticas só fossem possíveis com “aqueles cujas faces podemos enxergar, cujos nomes podemos pronunciar, aqueles que já somos capazes de reconhecer” (idem). Atentar para a concepção performativa de um sujeito ético engendrado pelo discurso midiático, em outras palavras, viabiliza uma ética desterritorializada, que não se fundamenta na exclusão de um outro e se situa para além do modelo do Estado-nação (visto que ambos, Butler evidenciará a partir de sua leitura de Arendt, caminharam lado a lado no século XX). “[G]ostaria de sugerir, como ponto de partida, que as imagens e relatos de guerra [...] são uma forma particular de solicitação ética, que nos obrigam a rever as questões de proximidade e distância” (ibid: 3). As fronteiras entre “próximo” e “distante”, entre “dentro” e “fora”, entre o “mesmo” e o “outro” soçobram na ética de Butler. A concepção de um sujeito ético performativo vai contra a rigidez das categorias autoexcludentes que ainda persistem em nosso tempo. A performatividade implica um sujeito poroso, aberto para o outro e, por conseguinte, de identidade mutável. A abertura para o fora, para um outro que ultrapassa nossa volição, é o ponto de partida inexorável de todo agir ético:

Apenas agimos quando somos incitados a agir, e o que nos incita a agir vem de fora, de alhures, [...] e se impõe como um excesso a partir do qual somos agidos e do qual agimos. De acordo com esta concepção de obrigação ética, a receptividade não é apenas uma pré-condição para a ação, como também sua característica constituinte (ibid: 3-4).

A abertura para fora, o chamado que irradia do outro, é fundamental para a constituição do sujeito ético e opera como sua base. As éticas que postulam um sujeito completamente autossuficiente e isolado dos demais, cujas obrigações éticas supostamente derivariam de seu consentimento para adentrar a vida social, revelam-se, pois, quiméricas. Todo nascimento humano é socialmente localizado e a formação do sujeito procede sempre de um excesso de socialidade, espécie de zona pré ou supraindividual a partir da qual eu e outrem se constituem mutuamente. Não há ação individual ex nihilo; sofrer uma ação (de outrem) é a condição para toda ação (de si). 3

Justamente porque não ignora este excesso de socialidade anônimo, onde as fronteiras entre eu, outrem, aqui e alhures, são fluidas, a ética da precariedade é desterritorializada:

[As] obrigações éticas surgem não apenas no contexto de comunidades estabelecidas, que se encerram dentro de dadas fronteiras e [...] constituem uma nação. [...] Minha própria tese é a de que os tipos de demandas éticas que emergem nestes tempos por meio dos circuitos globais dependem da reversibilidade entre proximidade e distância. Gostaria de sugerir, com efeito, que certos laços são de fato formados por meio desta reversibilidade (ibid: 4).

O fato de que uma injustiça possa repercutir a milhares de quilômetros de distância evidencia que uma ética que não se confine ao território nacional e se edifique na base da exclusão é possível. Nos tempos de mídia global, o que está dentro se liga com o que é de fora, e o que sucede com outrem acolá afeta o eu aqui. A reversibilidade e imbricamento ético entre eu e outrem aponta para a existência de algo comum e reclama por uma reformulação ética. A fim de realiza-la, Butler adverte que irá recorrer ao pensamento ético de Emmanuel Levinas e Hannah Arendt. Segundo a autora, a escolha de dois pensadores judeus não é acidental, visto que parte de seu propósito é precisamente articular uma versão de coabitação alternativa, que se opõe à postura de Israel em relação à Palestina.

2. Levinas

A noção de proximidade no pensamento de Levinas é de valia para a ética com a qual Butler flerta, pois reforça a concepção de um sujeito ético não voluntarista, que só se origina e se consolida mediante a interpelação de outrem. Ser agido por outrem, segundo a leitura de Butler, constitui para Levinas o início de todo agir ético. “Isto significa que somos agidos e eticamente solicitados antes de qualquer noção clara de escolha” (ibid: 6).

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Se, por um lado, a proximidade do eu com outrem é o que possibilita a solicitação ética, por outro, Levinas deixa claro que o encontro e a transformação entre ambos não se reporta a uma identidade comum. “Com efeito, para Levinas, aqueles que agem sobre nós são claramente outros em relação a nós; é precisamente por sua não identidade que nos ligamos a eles” (idem). Nesse sentido, a alteridade do outro em Levinas estende a obrigação ética do eu para além do Estado-nação. A fortiori, para que a ligação ética se sustente, “a alteridade do Outro” é indispensável (idem). A obrigação ética é mais forte entre aqueles que são diferentes do que entre os que são idênticos. O conceito de proximidade não implica, portanto, um nacionalismo e não restringe as obrigações éticas à similaridade étnico-cultural. Butler não esconde que há declarações de Levinas que contradizem sua ética da alteridade. De fato, o autor judeu era partidário do nacionalismo israelense, razão pela qual excluía os palestinos de nossas obrigações éticas, assim como todos os que não partilhassem da tradição judaico-cristã. É por isso que, ressalva a autora, Levinas deverá ser “lido contra si próprio” (idem). À procura de materiais de apoio para sua ética, Butler explorará as potencialidades contidas no pensamento de Levinas justamente para afirmar, à revelia do autor, que existe uma obrigação ética dos israelenses para com os palestinos. “Levinas enfatizava que somos responsáveis por aqueles que não conhecemos [...] e essas obrigações são, a rigor, pré-contratuais” (ibid: 7). As obrigações éticas não remontam a um sujeito voluntarista, átomo isolado cuja razão o demonstraria que o Estado civil lhe forneceria maior segurança e que, temendo a morte, resolveria participar da vida social de livre e espontânea vontade. A concepção de um ego enclausurado em si mesmo, que nasce pronto e acabado, impermeável às vicissitudes externas, é uma ficção, um recurso teórico que esta nova ética se evita invocar. “Para Levinas, nenhuma ética pode ser derivada do egoísmo; com efeito, o egoísmo representa a derrota da própria ética” (ibid: 8). Dispensa-se, pois, a noção de uma comunidade atomista, formada por indivíduos autointeressados, que após negociarem e barganharam entre si, se juntam com o intuito de proteger suas posses e garantir que a concorrência de todos contra todos se maximize, sem ser atravancada pelo uso improdutivo da violência.

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Os apontamentos de Levinas acenam para algo óbvio, qual seja, o fato de que todos nós já nascemos em uma socialidade a qual jamais escolhêramos pertencer. Somos como plantas, que requerem um solo comum para se firmar e florescer. O solo comum, esta socialidade que nos excede e nos desloca de nós mesmos, propicia uma ética não excludente:

[G]ostaria de ressaltar certo imbricamento entre aquela outra vida, todas as outras vidas, e a minha própria, irredutível a qualquer pertencimento nacional ou filiação comunitária. De acordo com minha visão (que certamente não é apenas minha), a vida de outrem, a vida que não é a minha, é também a nossa vida, uma vez que qualquer sentido que a “nossa” vida é capaz de assumir deriva justamente desta socialidade, este já ser e estar aí, de antemão, dependente em um mundo de outrem (idem).

Não negligenciar este solo em comum nos fornece uma base universal para a ética, coextensiva à própria vida. Semelhante base, na medida em que é refratária a qualquer definição precisa, possui o mérito de possibilitar uma ética não excludente. O conceito de vida corporal desempenha papel fundamental na nova ética e é o fundo em comum que explica a reversibilidade e imbricamento entre eu e outrem. Para Butler, nossos corpos não são entidades encapsuladas; o contorno do corpo individual “é a um só tempo um limite e um local de adjacência, um modo de proximidade espaçotemporal e, inclusive, de obrigação” (ibid: 9). As éticas puramente racionais parecem esquecer que a razão é encarnada, suscetível, pois, ao frio, à fome, à febre. O que define a vida é ser sensível ao toque, estar aberta, lançada para fora, “exposta ao outro, à solicitação, sedução, paixão, injúria; exposta em modos que nos sustentam, mas que também nos destroem” (idem). Dito de outra maneira, o que define a vida é sua incapacidade de assumir definições rígidas, sua plasticidade, abertura a um outro “que me é impossível prever ou controlar” (ibid: 10). O estremecimento de tudo o que é vivo, o êxtase da pele que ferve como brasa perante o toque do outro, Butler nomeia de precaridade.2

Mutatis mutandis, a precariedade equivale ao conceito de “communitas”, que também designa “o caráter de exposição da existência, pelo qual ela se constitui” (ESPOSITO, 2006: 51). A propósito da relação de Esposito com Butler, não se deve deixar de notar os fios que costuram o pensamento de ambos. À semelhança da reversibilidade apontada por Butler, Esposito também conclama pela “construção de uma [nova] relação entre o singular e o mundial”, de modo a superar “a dialética entre o global e o local, que 2

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A receptividade corporal, comum a tudo aquilo que comunga do sopro de vida, aufere uma base genuinamente acolhedora: a precariedade. Portanto, o estado de precariedade é o que permite uma ética universal não excludente, que integra tudo aquilo que vive (a expressão “ética universal não excludente” não é oximoro, se lembrarmos que a maior parte das éticas que se apresentaram até aqui sob a égide da universalidade apoiavam-se em um recorte que excluía um outro de suas obrigações). Estar sempre lançado para fora e inevitavelmente exposto a outrem assinala a precariedade, a fragilidade da ex-istência não só humana como de todo vivente. Depreender as obrigações éticas a partir da precariedade configura uma ética que põe em xeque a noção tradicional de sujeito:

A relação ética [...] é anterior a qualquer sentido individual de eu. [...] Esta relação precede a individuação, e quando ajo eticamente, me desfaço como ser em ligação. Eu me dissolvo. Descubro que sou esta relação com “você”, cuja vida busco preservar. Sem esta relação, o eu não tem sentido algum e perde sua âncora, nesta ética que é sempre anterior à ontologia do ego. Noutras palavras, o eu se desfaz na sua relação ética com “você”, o que significa que há um modo muito específico de se ser despossuído que possibilita a relação ética. Se me possuo muito firme ou rigidamente, não posso tomar parte em uma relação ética (idem).

A ética da precariedade se situa em um nível mais radical que o da ontologia egoica. No lugar desta, o que se propõe é uma ontologia social, que não ignora o fato de que o sujeito ético procede a partir de uma socialidade anônima e pré-individual. Relações éticas não excludentes exigem abertura ao outro, a capacidade de suportar a alteridade e coabitar com a pluralidade. A relação com outrem é a experiência de desfazer-se; esta abertura, cissura primordial do eu, é condição da relação ética. Quebrar os meus limites é o primeiro passo para poder me relacionar com o que está fora de mim, de sorte que se me apego muito rigidamente ao meu eu, barro minha relação com outrem. A relação ética despossui os que dela participam, dilacera o eu como ser infinito, sem fronteiras, instaurando uma ausência tanto em si quanto no outro, um elo de carência. A relação com outrem expropria a própria subjetividade. parecem opostos, mas que não são” (ESPOSITO, 2008: 12). Semelhante construção, prossegue o autor, nos abriria as portas para “uma forma de comunidade aberta e plural” (ibid: 13); como veremos adiante, a busca por novos modelos comunitários também faz parte da empreitada de Butler.

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A rigor, meu corpo, minhas crenças, valores e inclusive minha identidade, não são coisas que possuo. Antes, são coisas que me possuem, coisas que me atravessam e ultrapassam, figuras de um mundo maior, aberto e indevassável. A ética da precariedade se opõe aos regimes identitários rígidos e vai contra a postulação de um sujeito fixo, impermeável, insulado contra o exterior. Ser genuinamente receptivo a todo outro só é possível com um deslocamento, uma desapropriação do sujeito ético, que cessa de ter sua identidade definida e estabelecida a partir de um outro que é seu oposto abjeto. A ruptura e a ordem de despejo executadas pela ética da precariedade põem a nu um sujeito poroso, que abriga alteridade dentro de si.

3. A ética da coabitação em Arendt

De maneira análoga a Levinas, Arendt também recusa a “concepção liberal clássica de individualismo, isto é, a ideia de que os indivíduos voluntariamente assinaram determinados contratos e de que suas obrigações éticas se seguem deste acordo deliberado” (ibid: 11). Mais uma vez, o problema com semelhante ideia é seu caráter excludente, posto que “supõe que somos apenas responsáveis” por aqueles que foram contemplados em nosso contrato original (idem). O relato de Arendt sobre o julgamento de Eichmann atesta que, para a autora, discriminar quem é digno de quem é indigno de obrigações éticas é o ato antiético por excelência (ARENDT, 2006a [1963]). Segundo Arendt, a conduta ética, assim como a ação política, brota de uma pluralidade inextirpável, que é sua condição sine qua non. Assim sendo, a obrigação ética para com a pluralidade das populações terrestres não é mero compromisso deliberado. Não se trata de uma escolha acessória, que a ética poderia dispensar. Preservar a pluralidade é preservar as próprias condições da ética e da política. Em suma, atentar contra a pluralidade aniquila a ética e a política. Eichmann “pensou que poderia escolher com quem coabitar a Terra. O que ele não percebeu, segundo Arendt, é que ninguém possui a prerrogativa de escolher com quem coabitar a Terra” (idem). A coabitação com outrem é condição de formação do eu, de sorte que tentar restringi-la tem por consequência o extermínio de si. Na medida em

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que existia antes mesmo de sua aparição, esta pluralidade tem precedência sobre o eu e escapa sua volição:

O caráter involuntário da coabitação terrestre é, para Arendt, a condição de nossa própria existência enquanto seres ético-políticos. Portanto, exercer a prerrogativa do genocídio [i.é, excluir determinados grupos étnicos da coabitação terrestre] é destruir não apenas as condições de manutenção do eu, constituído na esfera política, como também destruir a própria liberdade, compreendida enquanto ação plural. Sem esta pluralidade que ultrapassa nossa escolha, não temos nenhuma liberdade e, por conseguinte, nenhuma escolha. E sem esta escolha, não somos pessoas (idem).

Como se vê no trecho acima, ética, liberdade e política se relacionam intimamente no pensamento arendtiano. A ética pressupõe um sujeito livre capaz de fazer escolhas, sendo por isso que não qualificamos de ético o que é mecânico. Apenas o ato que poderia ter se desenrolado de maneira diferente é eticamente louvável. Além de uma pluralidade de escolhas, a ética requer liberdade, que no pensamento de Arendt se confunde com a política. Com efeito, a diferença entre liberdade e ação política é praticamente nula no pensamento arendtiano (ARENDT, 1991 [1960]). Contra a ideia do liberalismo clássico de que a liberdade é predicado de um sujeito prévio à instituição política, Arendt afirma que a liberdade é atributo de uma comunidade plural. A liberdade existe tão somente no tempo verbal, e conjuga-se no plural, enquanto ação que se exerce em concerto com os demais. Na concepção de Arendt, seria equivocado afirmar que as liberdades individuais são posses as quais devemos guardar com o maior zelo possível. A liberdade não é algo que se guarda, não é posse de um indivíduo, mas sim resultado de um exercício público. Em resumo, é uma ação plural. “O que Eichmann e seus superiores falharam em perceber é que a heterogeneidade da população terrestre é condição irreversível da própria vida política e social. Nossa existência depende desta heterogeneidade; não há individualidade fora da pluralidade” (BUTLER, 2011: 12). Não admira, então, que Arendt não fosse contra a pena de morte para Eichmann: ao se fechar para a pluralidade terrena, o burocrata deixara de ser uma pessoa e perdera sua humanidade, sendo por isso que não era mais 9

digno de nossas obrigações éticas. Compreende-se, pois, que a ética arendtiana é pautada por um “antropocentrismo” e, nesse sentido, também perpetua exclusão (ibid: 13). Para Arendt, a obrigação ética se restringe a pessoas humanas. Não é este o caso de Butler, como já podemos supor, porquanto o estado de precariedade é uma condição comum a toda e qualquer vida; a ética da precariedade não é excludente. Butler recomenda que, tal qual Levinas, há momentos em que Arendt deve ser lida contra si mesma. Decerto, nada seria mais desprezível para Arendt que valer-se da precariedade do organismo vivente como meio de fundamentar “uma política do corpo” (ibid: 19). Em verdade, a concepção do político na autora é extremamente normativa e se baseia em uma separação radical entre público e privado que, por vezes, a aproxima da extrema direita. Na década de cinquenta, por exemplo, a oposição entre público e privado fez Arendt emitir parecer favorável aos grupos racistas do Sul dos Estados Unidos, contrários à decisão do governo federal, que decretara o fim da segregação racial nas escolas estaduais. Em resumo, o argumento da autora era o de que a escola pública estadual não se classificava, segundo seus termos, de espaço público, estando, portanto, completamente imune às deliberações políticas (ARENDT, 2003 [1957]). Embora público, o ensino de crianças e adolescentes pertencia à esfera privada, que segundo Arendt há de ser completamente insulado da política. O problema é que Arendt não percebeu que, às vezes, sua conceitualização inflexível era contraproducente, pois minava a própria pluralidade que visava estimular. Permitir que crianças e adolescentes de diferentes raças e classes sociais sejam negados a oportunidade de interagir entre si reforça uma homogeneidade social que os predispõe a hostilizar a convivência com a pluralidade, isto é, a coabitação que Arendt tanto estimava. A oposição radical entre o âmbito privado – aquilo que diz respeito à procriação, às necessidades corporais, à educação e à vida doméstica – e o âmbito político é refutada por Butler:

[O] político definido como público é essencialmente dependente do privado, o que implica que o privado não é o oposto do político, mas sim constitutivo de sua própria definição. Este corpo bem alimentado, que delibera aberta e publicamente; este corpo, que passou a noite abrigado na companhia privada de outrem, é quem posteriormente emerge na ação pública. A esfera privada torna-se, assim, o próprio fundo por trás da ação pública (BUTLER, 2012: 13).

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Ao se entusiasmar com a distinção grega entre público e privado, Arendt voltou as costas para o fato de que o corpo político é indissociável do corpo privado (ou se se quiser, de que a zoé não se sustenta sem a bíos). Se o corpo privado é condição da ação política, então nada mais natural que aquela seja objeto de preocupação desta. A deliberação política exige proteção contra a precariedade do corpo. A mulher que foi exposta ao frio, à fome e à violência no interior do âmbito doméstico, terá sua participação política, senão impossibilitada, certamente debilitada. Há casos em que o político não só pode como deve interferir na esfera privada, caso contrário corre-se o risco de sua própria manutenção ser comprometida. A existência do político requer a garantia de condições básicas de vida e, inversamente, a garantia de um padrão de vida mínimo para as populações terrestres é uma tarefa política. Embora não simpatize com a separação entre público e privado, Butler aposta alto no pensamento arendtiano, sobretudo no que concerne a ética da coabitação apresentada em Eichmann. Segundo a autora, desta obra depreende-se “a seguinte proposição: nós devemos formular instituições e políticas que preservem [...] e afirmem o caráter não escolhido de uma coabitação plural em aberto” (ibid: 13). Preservar a pluralidade é uma obrigação ética inegociável, que abarca todos os viventes. O pensamento arendtiano, que postula a heterogeneidade inextirpável dos povos terrestres como condição da conduta ética e da ação política, proscreve qualquer tentativa de delimitar a pluralidade da Terra e, acrescenta Butler, prescreve a necessidade de fomentar políticas inclusivas, de modo a fiscalizar que a prática da coabitação esteja aberta e sempre pronta a acolher novos grupos. Do aspecto negativo apresentado por Arendt, Butler extrai outro positivo. Além desta potencialidade, Butler crê que a coabitação involuntária teorizada em Eichmann nos possibilita imaginar novos modos de pertencimento, que não aqueles tipificados pelo Estado-nação.

4. A crítica arendtiana do Estado-nação e a busca por novos modos de pertencimento

O recurso ao pensamento arendtiano será imprescindível para a censura de Butler a Israel, dado que a própria Arendt disparou críticas ferozes à formação do estado 11

de Israel durante os anos quarenta, cinquenta e sessenta. Segundo Arendt, sionistas e nazistas cometeram o mesmo equívoco quando buscaram instituir “um caráter nacional homogêneo” (ibid: 15). O que ambos ignoraram é que o dever de coabitar com a pluralidade humana é ilimitado. O “pertencimento” que subjaz a ética arendtiana “não deve se deparar com fronteira alguma. Ele excede todo nacionalismo particular e todo limite comunitário” (idem). É nesse contexto que se insere a desconstrução arendtiana do Estado-nação, assim como sua condenação a Israel. Mais que destrutiva, a crítica arendtiana do Estado-nação visa desvendar novos modos de pertencimentos e modelos comunitários alternativos. Qual a querela de Arendt com o Estado-nação? A fim de encontrar a resposta, proponho um breve excurso sobre Origens do Totalitarismo. No último capítulo da segunda parte desta obra, Arendt realiza uma análise histórica minuciosa dos Estadosnações europeus. Segundo a autora, duas foram “as condições básicas para o surgimento dos Estados-nações”: (i) a delimitação de um solo; (ii) “a homogeneidade da população” (ARENDT, 1989 [1951]: 303). O recorte espaço-racial foi, portanto, a base de criação dos Estados-nações europeus. Como avesso do recorte, presenciou-se a proliferação de minorias, que embora tivessem existido em outras eras, passaram a ser vista como “instituição permanente”, cuja existência própria era definidora da “Nação” (ibid: 308). Ser alemão era ser não judeu, ser heterossexual era ser não homossexual, ser normal era ser não louco. O modo como as divisões binárias funcionaram como sustentáculos identitários, à serviço da normalização, foi bem explorado por FOUCAULT (2011), e não há dúvidas de que Arendt também captou este ponto. “As minorias”, explica-se, definiam-se como “fenômeno excepcional [...] que diferia da ‘norma’” (ARENDT, 1989 [1951]: 309). A criação do Estado-nação, enfim, operou na base da exclusão. O pertencimento que unia seus cidadãos promovia, como contraparte, a desnacionalização de outros grupos que, por terem sofrido “a perda de comunidade”, acabaram “expulsos da humanidade” (ibid: 331). Na visão de Arendt, também este foi o caso de Israel:

[Arendt] previu que os Estados-nações que pretendem regular a composição racial ou religiosa de suas populações produzem, invariavelmente, novas classes de refugiados, de um modo tal que põe em questão sua própria legitimidade de expulsar as populações que não conformam à norma nacional. Muito claramente, seu apelo à coabitação visava combater não apenas a política

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genocida do nacional-socialismo, como também a produção recorrente de apátridas, posta em curso por todas as nações que expurgavam a heterogeneidade [de seu território] (BUTLER, 2011: 17).

A criação do Estado judeu teve por condição a exclusão, ou melhor, a expulsão de outro grupo, a saber, os palestinos. A estratégica de empurrá-los para uma minúscula faixa de terra, garantindo à força a homogeneidade étnico-religiosa da população israelense, foi duramente reprovada por Arendt. Ela temia – e a história provou que seu temor não era gratuito – que se a expansão dos assentamentos israelenses fosse concretizada mediante a expulsão forçada dos palestinos, a produção incessante “de refugiados não apenas erodiria a legitimidade democrática do Estado como também o manteria envolvido em um conflito por décadas a fio” (idem). Os israelenses se veriam, então, envoltos por uma população árabe hostil, que jamais aceitaria a legitimidade de seu Estado. Como opção ao Estado-nação de solo delimitado e população homogênea, Arendt imaginava “uma federação pós-nacional” capaz de “conferir igualdade aos cidadãos de todas as nacionalidades” (BUTLER, 2007: 27).3 Semelhante comunidade pode prima facie soar inexequível e abstrato. Afinal, como seriam possíveis laços comunitários que não se delimitassem a um território específico, e qual denominador comum conseguiria conferir igualdade às populações de todo o mundo? A ética que Butler almeja, penso, satisfaz ambas as indagações. Em primeiro lugar, liames comunitários que cruzam através do espaço e tempo são, como vimos, factíveis por conta da própria tecnologia hodierna. Quanto a um denominador comum que garantisse igualdade a todos, a resposta se dá com a precariedade. Tudo aquilo que comunga do sopro de vida, dizíamos, é precário. A condição precária da vida nos fornece uma base ética universal não excludente e “contém um potencial radical para [a criação] de novos modos de socialidade e de política” (BUTLER, 2011; 18).

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Federação é uma união de estados autônomos que, ao contrário da confederação, não pode ser desfeita. No panorama político atual, todas as federações políticas são nacionais (cf. Encyclopædia Britannica, 1991: 1005-6). O termo federação designa, assim, estados que, embora autônomos, carecem de independência absoluta. A autonomia de um estado federado se dá dentro da união com este todo maior, com outras populações estaduais, cuja convivência e adesão é, longe de voluntária, fato incontornável de sua existência política. É justamente esse sujeito, que a um só tempo se produz e é produzido por uma socialidade maior, que a ética da precariedade procura desocultar (cf. nota um).

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As grandes revoluções históricas, segundo Arendt, compõem um bom panorama para os curiosos que desejam pensar como tais comunidades funcionariam. De fato, se analisarmos as grandes revoluções do século XVIII em diante, veremos que os períodos de grande mobilização político-social, antes de se cristalizarem na estrutura burocráticojurídica estanque da qual somos herdeiros, deram corpo a um tipo muito peculiar de comunidade, completamente estrangeiro ao modelo com o qual estamos acostumados hoje (ARENDT, 2006b [1963]: 248). “Dentre as características extraordinárias, comuns a todos os conselhos [revolucionários], sobressai-se a espontaneidade de sua existência, o que claramente contradiz os modelos revolucionários teóricos formulados no século XX – planejados, preparados, que seriam executados com fria exatidão científica” (ibid: 254). Passando ao largo das

teorias políticas

contratualistas,

os

períodos

revolucionários denunciam a criação de comunidades que, longe de se explicarem pela lógica do interesse individual, mantinham um ser em comum receptivo e aberto, sem programa prévio ou fixo. Imersos neste ser em comum, mais que a justaposição de seres individuais, o que se via era a constituição de sujeitos sociais, com capacidade para agir em concerto (ibid: 259). Junto com sua hospitalidade e espontaneidade, outra característica das células revolucionárias que Arendt ressalta é sua potencialidade relacional, ou seja, sua capacidade de multiplicar as relações interpessoais. Em questão de dias, o “desenvolvimento espontâneo [...]

das

células

[revolucionárias]

independentes” encetava “um processo de coordenação e integração” que se expandia irrefreavelmente, contaminando todos em seu entorno (idem). Esta comunidade, que se mantinha na mesma medida em que a ação em concerto das pessoas a sustentava, na visão da autora, não se assimilaria à estrutura jurídicogovernamental das sociedades contemporâneas (ibid: 254-73). Se fôssemos obrigados a classifica-la sob algum conceito político, o mais correto seria dizer que sua organização social se dava sob a forma de uma federação em aberto (ibid: 259). Ou como diria Butler, uma comunidade “sem território, que só faria sentido na forma de uma federação, a qual seria, por definição, parte constitutiva de uma pluralidade” (BUTLER, 2007: 27). Ao retomar a ontologia social arendtiana com sua ética da precariedade, é na promessa deste tipo de comunidade que Butler quer se enredar.

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5. A ética da precariedade e a política do corpo

Na conclusão do texto, Butler escreve que, conquanto a ética da coabitação e a política da pluralidade a abasteça com boas ferramentas teóricas, a filosofia da precariedade encontra resistências no pensamento de Arendt. “A precariedade só faz sentido se pudermos identificar como questões políticas a dependência e a necessidade corporais, a fome e a necessidade de abrigo, a vulnerabilidade de ser machucado e destruído” (BUTLER, 2011: 19). Todavia, como já se teve a oportunidade de comentar, “a questão das necessidades, a reprodução das condições materiais de vida [...] – tudo aquilo que pertence à vida precária” Arendt relega à “esfera privada”, que não se imiscui na política (ibid: 20). Não surpreendentemente, como vimos, Butler repudia esta divisão. Com efeito, na visão da autora, as “reinvindicações emergem da própria vida corporal” (ibid: 19). A ética e a política dizem respeito, em uma palavra, à vida, compreendida aqui de modo amplo e sem fronteiras. A inclusão da vida como tema ético-político primordial é, seguramente, o grande abismo que separa Butler de Arendt. A ética da precariedade conduz-nos, assim, a uma “política do corpo” (idem). Os atores políticos que protestam na rua, que deliberam em congresso e fazem política são, no final das contas, corpos viventes que se agregam. A política do corpo não nega a indissociabilidade e mútua dependência que enlaça corpo político e corpo privado, do mesmo modo como não oblitera o fato de que a vida humana “depende da vida nãohumana, sob aspectos essenciais” (idem). Destarte, a política do corpo tem por compromisso a garantia de condições mínimas de vida, de “instituições sócio-políticas [...] que visem à organização e proteção das necessidades corporais” (ibid: 20). Por não se definir rigidamente, a vida concebida qua precariedade nos oferece

[u]ma ontologia social que, ao partir desta condição comum de precariedade, refuta aquelas operações normativas [...] que decidem de antemão quem se qualifica e quem não se qualifica de humano. Meu objetivo não é tanto reabilitar o humanismo quanto lutar por uma concepção de

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obrigação ética que se fundamenta na precariedade. Ninguém escapa a dimensão precária da vida social – tratar-se-ia, poderíamos dizer, de nossa não-fundação comum (ibid: 21).

A precariedade proporciona uma base universal não-fundacional. A precariedade não seria um fundamento, ao menos não no sentido que o termo evoca. Em quase todo o pensamento ético de nossa tradição, a palavra fundamento caracterizou-se sempre pela rigidez identitária e, consequentemente, pela exclusão. O sujeito ético da polis ateniense era o não bárbaro, do mesmo modo como o indivíduo contratualista dos séculos XVII e XVIII era o não negro. Até muito recentemente, nossas éticas eram exclusivamente humanistas e excluíam os animais de suas considerações, o que não acontece uma vez que passemos a indexar a obrigação ética à condição precária. A ausência de mecanismos de exclusão e de cadeias de hierarquização é o que diferencia a política do corpo da biopolítica. Enquanto esta “estabelece um conjunto de medidas para a valorização diferencial da vida” e “dispõe à precariedade” as vidas que julga “valer menos”, aquela luta justamente para atenuar a precariedade de todos os viventes, isto é, de tudo aquilo que se qualifica de vida, dispensando definições rígidas para o termo (BUTLER, 2012: 10). Nesse sentido, a política do corpo constituiria o reverso da biopolítica.

6. Conclusão

No início de sua palestra, Butler pontuou alguns comentários sobre o papel do discurso midiático na formação do sujeito ético. Endossando uma concepção performativa do discurso, a autora argumentou que o sujeito e a obrigação éticas são inaugurados pelo discurso midiático. O mito de um sujeito atômico soberano, cuja obrigação ética derivaria de consentimentos contratuais, recebia, assim, seu primeiro ataque, reiterado inúmeras vezes ao longo do texto. Poupando lamúrias, Butler dizia que o fato de a mídia ser instância produtora da subjetividade contemporânea podia ser visto como fonte de renovação ética. Os meios de comunicação tecnológica deflagrariam laços de solidariedade desterritorializados, que ampliariam a obrigação ética para além da proximidade física. Assumindo este dado 16

como ponto de partida, Butler dedicou a tarefa de rever as oposições binárias entre proximidade e distância, entre aqui e alhures, entre eu e outrem. Na visão de um sujeito ético performativo, toda ação ética teria por condição e âncora um excesso de socialidade, zona pré-individual que apontaria para uma intersecção e reversibilidade entre eu e outrem, entre aqui e acolá. Butler sustentava, em acréscimo, que os laços éticos formavam-se nesta reversibilidade, o que por sua vez requeria uma reformulação do pensamento ético tradicional. A fim de realiza-la, recorreu-se, respectivamente, a Levinas e Arendt. Com Levinas, vimos que a obrigação ética remete a um sujeito ético não voluntarista, que tem como condição de seu agir ético a interpelação alheia. De acordo com ele, a obrigação ética dar-se-ia precisamente à medida que há ausência de identidade entre eu e outrem. Não obstante suas declarações em favor do nacionalismo israelense, Butler evidencia que a filosofia de Levinas nos apresenta uma obrigação ética que não se restringe ao Estado-nação e àqueles próximos de nós. O outro que é condição para nossa existência ética ultrapassa nossa volição. Ao romper com a noção de um indivíduo ético egoísta e voluntarista, Levinas teria apontado para a existência de outro sujeito ético, aberto e poroso. A partir das observações de Levinas, seria possível desbancar a ontologia egoica, que nos foi legada pela tradição filosófica, em favor de uma nova ontologia, que destacasse o papel da socialidade na formação do sujeito ético. De acordo com esta ontologia social, a relação ética precede a individuação. Nascemos imersos em uma socialidade que nos excede e nos desapropria, e é deste fato, e não de uma abstração da razão, que a ética deve partir. A ação ética pressupõe a ruptura do eu, uma abertura ao outro que desarranja e embaralha as fronteiras que me distanciam de “você” (BUTLER, 2011: 10). A ontologia social revela que o eu é um outro, que o eu só é na medida em que se relaciona com um “você”. A relação ética configura uma expansão dos limites do sujeito, e a tentativa de cercar ou enclausurar o eu contra o outro impede acesso à relação ética. O solo de indiscernibilidade social do qual o sujeito ético desponta propicia uma base ética universal, imanente à própria vida. Esta base é denominada de precariedade, que designa justamente a fragilidade de se estar aí, aberto a outrem. Na medida em não

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se rende a nenhuma definição precisa, a precariedade tem o mérito de possibilitar uma ética não excludente. Dito isto, Butler passou de Levinas a Arendt. Em verdade, à maneira da ética da precariedade, Arendt também desconstruiu a ontologia egoica em favor de uma ontologia social. Como vimos, segundo a autora, a coabitação com a pluralidade alheia é condição de formação do eu. Este solo plural e infra-individual, a partir do qual o eu cria raízes e floresce, é indispensável para a individualidade. A fortiori, não há individualidade sem pluralidade, razão pela qual aquele que se fecha à pluralidade é destituído da condição humana (foi o caso de Eichmann). Segundo Arendt, a heteregoneidade dos povos terrestres seria a condição da ética e da política, e a proteção da pluralidade é nosso dever incondicional. Partindo desta afirmação, Butler acrescenta a necessidade da promoção de políticas inclusivas, que estimulem o caráter aberto e ilimitado da coabitação terrestre, para além do Estadonação. De acordo com a exposição de Origens do Totalitarismo, o nazismo teria sido reflexo de um mal maior, a saber, o fato de que a formação dos Estados-nações europeus criaram como refugo seres abjetos, excluídos do dever ético. No lugar do Estado-nação, Arendt investia em modos de pertencimento outros, que viabilizassem novas teias relacionais entre os sujeitos sociais, estimulando o potencial criativo da coexistência humana. Seria o caso, por exemplo, de uma federação pós-nacional, que estabeleceria laços comunitários inclusivos, sem apelar para uma delimitação territorial, tampouco para uma homogeneidade normalizadora. A despeito de seus méritos, a ontologia social arendtiana permanecia com mecanismos excludentes, qual seja, seu antropocentrismo. Outro problema em Arendt, além deste, seria seu apego arraigado à divisão entre público e privado, que impedia a autora de perceber que o corpo político depende do corpo privado. O sujeito que delibera em concerto com os demais é sempre um eu incorporado. As reinvindicações políticas emergem e são indissociáveis da dimensão corporal. Nesse sentido, a ética da precariedade se ligaria a uma política do corpo, que sem desconsiderar as vicissitudes corporais, luta para garantir uma vida vivível a todos viventes. A ética da precariedade é, enfim, a ética da inclusão, que tem como sujeito ético uma pluralidade, “um ‘nós’ que está constantemente se fazendo” (ibid: 24).

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Trad.

T.

Campbell.

Disponível

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