Jurisdição constitucional, poder e processo: uma proposta de metodologia de análise jurisprudencial

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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL, PODER E PROCESSO: UMA PROPOSTA DE METODOLOGIA DE ANÁLISE JURISPRUDENCIAL1 Fernanda Duarte∗ Rafael M. Iorio Filho∗∗ Bárbara Lupetti∗∗∗ RESUMO

O presente trabalho se destaca pelo esforço investigativo voltado para a pesquisa jurisprudencial, explorando uma metodologia adequada para a análise das decisões do Supremo Tribunal Federal, na qual se associam categorias do direito, da Sociologia e da Análise do Discurso.

PALAVRAS-CHAVES: JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL, PODER, PROCESSO, JURISPRUDÊNCIA, STF.

ABSTRACT

This paper is an effort to develop a proper way of dealing with the decisions of the Brazilian Supreme Court. This research is based on legal, sociological and linguistics structures.

KEYWORDS: JUDICIAL REVIEW, POWER, PROCEDURE, CONSTITUTIONAL DECISIONS, STF.

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O presente artigo se apresenta como um ponto de inserção entre duas experiências de pesquisa concretizadas no âmbito do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Gama Filho. De um lado, evidenciam-se as principais reflexões travadas no projeto de pesquisa “Jurisdição Constitucional e Democracia”, vinculado, em 2005, ao Laboratório de Análise Jurisprudencial-LAJ. De outro, inspira-se na dinâmica e na carga crítico-reflexiva desenvolvida pelos projetos que trabalham com as “Relações entre tribunais e sociedade: acesso à justiça e ao direito e ao devido processo legal”, sob a coordenação dos professores Maria Stella de Amorim e Roberto Kant de Lima. ∗ Professora do Programa de Pós- graduação stricto sensu em Direito da Universidade Gama Filho. Doutora em Direito PUC/RJ.Juíza Federal da Seção Judiciária do Rio Janeiro . E-mail: [email protected]. ∗∗ Professor de Direito Constitucional da Universidade Estácio de Sá. Mestre e Doutorando em Direito UGF/RJ. Doutorando em Letras UFRJ. Advogado. E-mail:[email protected]. ∗∗∗ Mestre em Direito UGF/RJ. Advogada. E-mail:[email protected]

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INTRODUÇÃO

A relevância que a temática dos direitos humanos tem assumido nas diversas agendas do mundo contemporâneo é um fato inquestionável. Porém, ao refletir sobre o tema, Perez Luño2 alerta que não se deve entender tal situação como uma prova irrefutável de sua efetiva realização – o que desloca o cerne da questão para a problemática da aplicabilidade e eficácia desses direitos, traduzidos na idéia de sua proteção pelo Poder Judiciário, no exercício da função jurisdicional. Nesta cadeia de desdobramentos chega-se ao próprio instrumento do exercício dessa função, o processo. Adequação do sistema recursal, tensão entre excesso de demandas e celeridade, modelo do judiciário adotado, técnica processual própria à tutela pretendida são alguns dos temas recorrentes que interferem diretamente na efetividade3 do processo civil, que se agrava quando se trata da jurisdição constitucional, de seus tribunais e da proteção aos direitos fundamentais. Em outras palavras, a problemática da efetividade do processo repercute na qualidade da concretização da garantia do acesso à justiça e na própria institucionalização do Estado Democrático de Direito. A doutrina debruça-se sobre esta crise, no mais das vezes buscando prescrever remédios, baseados em diagnósticos exclusivamente de cunho dogmático-processual. E o legislador tenta, através de sua produção normativa, contorná-la na crença de que pela imputação disciplinaria e resolveria o fato social. Ainda assim, o processo não funciona e a conseqüência é a falência do sistema processual, com a consagração de um des(acesso) à justiça, que reproduz estruturas de desigualdade jurídica e exclusão social. Onde está o erro? Na percepção do problema. Na insuficiência do diagnóstico que desconhece que uma anamnese adequada deve levar em conta outras variáveis que não só a norma, mas em especial a cultura jurídica do país, suas instituições, tradições, expectativas e os reais sujeitos de “carne e osso” que a ordem jurídica diz serem seus destinatários. E na forma de compreender o Direito e suas relações

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PERÉZ LUÑO, Antonio E. Derechos humanos , estado de derecho y constitución. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1999. 3 Neste trabalho eficiência e eficácia são termos que se equivalem. A propósito, sobre essa equivalência, cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Efetividade do Processo de Conhecimento. Revista de Processo, n. 74, 126-137, abr.-jun. 1994.

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com a realidade social, negando seus paradoxos, contradições e fragmentações inerentes das sociedades modernas. Essas foram as inquietações iniciais que motivaram nossa investigação cujo esforço consubstancia-se na tentativa de estabelecer parâmetros, de base sociológicojurídica, que tragam referências taxionômicas e dinâmicas para a compreensão das decisões da Suprema Corte brasileira, que concorrem para

atualização do modelo

ocidental de Estado de Direito no Brasil, desdobrado na consolidação de uma esfera de direitos fundamentais. Desta forma, pretendemos fornecer outros elementos que ajudem a melhor esclarecer o papel da referida Corte na adjudicação de direitos enquanto último patamar a quem compete assegurar a garantia do acesso à justiça, dando, segundo nosso modelo jurídico, a palavra final aos conflitos sociais que são submetidos ao Estado-Juiz – o que ao final fornece elementos de percepção dos paradoxos do Direito brasileiro e das relações entre os tribunais e a sociedade. Nesse sentido, duas observações preliminares devem ser declinadas a fim de dar consistência à nossa empreitada. São as premissas teóricas que permeiam nossas reflexões e os fenômenos que constatamos nessa virada de milênio tensionadores dos limites de atuação do Judiciário. Quanto às premissas teóricas, em primeiro lugar, trata-se de explicitar nossa adesão a uma visão relativista do mundo, na qual os valores são apreendidos originariamente de forma subjetivista e, portanto, demarcamos inicialmente um movimento arbitrário de escolha, fruto da imponderabilidade das situações novas e imprevistas. Porém, isso não significa dizer que esse arbítrio não possa vir a ser racionalmente justificado. Mas sim que o primeiro movimento é “injustificável”. Escolhe-se para depois racionalizar, ou seja, fazer crer que a escolha realizada é a correta. Portanto, a adesão que a fundamentação gera não se deve à qualidade moral da escolha (juízo de verdade) , mas sim a seu potencial de convencimento, que passa a ser percebido, por aquele a quem se dirige, como nãoarbitrário ou natural - o que nada mais é do que um instrumento de poder/dominação pela linguagem. Em segundo lugar, temos que a compreensão do Direito, resistente e encastelado em si mesmo, fornece uma percepção precária e reducionista da realidade

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social. Daí a necessidade de uma abordagem interdisciplinar a fim de inserir aqueles elementos descartados pelo jurista, mas que integram e conformam essa realidade4. Por outro lado, a crise do Estado moderno e a judicialização da política são “fenômenos” que chamam nossa atenção para o fato de que a Jurisdição Constitucional, especialmente a partir do Pós-45, tem assumido um papel de alta relevância no cenário político-jurídico, tencionando o frágil equilíbrio do modelo de separação de poderes, com o deslocamento de seu eixo principal para o juiz. Sob esta inspiração, trabalhamos as relações entre poder e direito, recortandoas para o momento da aplicação do direito pelo STF (que ocupa a posição mais alta na hierarquia do campo jurídico), no caso o Mandado de Segurança no. 24.405-4. Por conseqüência, nosso objeto de reflexão migra para o processo, buscando explicitar uma de suas funcionalidades que não é usualmente reconhecida pelos juristas, tal seja o processo como estratégia de poder, com pretensão de legitimar a atuação da Corte, a partir dos discursos atuais, aspirantes à legitimidade, dentro do campo jurídico, considerados na perspectiva dos seus autores.

1. O JOGO PELO PODER: UM PROJETO DE CONTINUIDADE VIA LEGITIMIDADE DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

As relações travadas nos

diversos campos que compõem o tecido social

representam uma permanente luta pelo poder que se traduz em um jogo. Nesse jogo ser vencedor

implica

compartilhar

um

projeto

voltado

para

a

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Sobre esta mesma visão acerca do Direito, mais especificamente em sua perspectiva criminal, ensinam Amorim, Kant e Burgos: “A naturalização dessas diferenças, operada de maneira institucional pelo sistema, embora as verdades por elas produzidas se desqualifiquem umas às outras, redunda em ‘dissonância cognitiva’, tanto para os operadores do sistema como para a população em geral. Quer dizer, ao mesmo tempo em que se apresenta como ‘sistema harmônico e coerente‘, a admiração institucional de conflitos na área criminal se constitui de partes complementares e desiguais, as quais possui relativa autonomia, conseqüentemente, exigindo dos mesmo operadores condutas distintas para seu desempenho competente, dependendo do lugar aonde se encontram desempenhando suas funções. Isto termina por enganá-los em ‘preferências’ por esta ou aquela forma institucional presente no dito sistema, sem perceberem que estão optando por formas institucionais díspares de administrar conflitos e de construir verdades judiciárias. Estas diferentes disposições podem coexistir porque, por um artifício da chamada ‘dogmática jurídica’, as normas jurídicas encontram-se hierarquizadas e se anula automática e reciprocamente quando entram em contradição observando-se para resolver os conflitos entre elas, a rígida hierarquia em que, teoricamente, se encontram disposta. Esta doutrina, portanto, como todo conhecimento dogmático não deixa espaço para que se explicitem as diferentes tradições e a sua história, que imprimem significados distintos a procedimentos semelhantes.” AMORIM, Maria Stella de; KANT DE LIMA, Roberto; BURGOS, Marcelo Baumann. (Orgs.). Juizados Especiais Criminais, sistema judicial e sociedade no Brasil. Niterói: Intertexto, 2003, p.1920.

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continuidade/permanência/manutenção do poder, que se realiza através da adoção de estratégias voltadas para a legitimação, que transformam a dominação (violência simbólica) em reconhecimento de manejo de poder não arbitrário. No campo5 jurídico, esse jogo é percebido em uma dupla perspectiva: a primeira se refere às disputas entre seus agentes sociais e a afirmação de legitimidade aos profanos; a segunda, manifesta-se no embate entre o campo jurídico e os demais campos/sub-campos do Estado6. Pontuado na jurisdição constitucional, visto que esta no plano do habitus ocupa a posição mais alta da hierarquia desse campo, essas estratégias se traduzem em teses de legitimação da própria jurisdição constitucional e de agentes – que disputam entre si primazia. Para tanto, entendemos que, entre os diversos discursos que pleiteiam legitimidade, “a salvaguarda dos direitos fundamentais” é o que melhor se ajusta a uma reflexão sobre o processo como veículo de solução dos conflitos apresentados perante o STF, e assim de concretização do acesso à justiça e ao direito. A conexão entre a proteção de direitos e a jurisdição constitucional tem sido freqüentemente trazida para o debate teórico brasileiro e é apresentada em discursos, ora mais constitucionalistas7, ora mais jusfilosóficos8. Nesse sentido, entendida como estratégia de legitimação da Corte, a tese da salvaguarda acompanha a demanda de proteção que deriva da adoção, pelo mundo ocidental, de declarações de direitos que caracterizam o movimento constitucionalista. Por essa lógica, na dogmática (doutrina) processual, a salvaguarda de direitos fundamentais se traduz no fim legítimo da jurisdição constitucional. E, por conseqüência,

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“Um campo, e também o campo científico, se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e dos interesses próprios de outros campos (não se poderia motivar um filósofo com as questões próprias dos geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar nesse campo (cada categoria de interesses, a outros investimentos, destinados assim a serem percebidos como absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados). Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas, e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de ‘habitus’ que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes da jogo, dos objetos de disputas, etc.” BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: EDUSP,1992, p. 89. 6 Essa disputa entre os sub-campos do Estado, no plano constitucional se traduz no princípio da separação de poderes. Como exemplo dessa disputa, interessante é a obra de Carlos Augusto Silva que levanta a hipótese de que o Executivo brasileiro estaria “vencendo” o Judiciário, através da edição de diversas Medidas Provisórias, com conteúdo processual e que viabilizam a imposição de sua vontade. 7 DUARTE, Fernanda; VIEIRA, José Ribas. Op. cit, p.71-72. 8 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica Uma Nova Crítica do Direito. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p.113.

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determina a construção de discursos processuais estratégicos que façam do processo um símbolo de proteção de direitos, no Estado que se pretende democrático e de direito.

2. SALVAGUARDA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS : UM DISCURSO DE LEGITIMAÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. Sob a inspiração das categorias habitus9 e seu movimento histórico, como também de capital simbólico10 dos juristas, deduzimos que do discurso da salvaguarda de direitos, como fim da jurisdição constitucional, derivam outros discursos de legitimação, entendidos também como estratégias de poder. Esses, por sua vez, têm por foco o processo em si e se encontram aparentemente dispersos no campo jurídico, sendo na maior parte das vezes, reconhecidos como obra de autor. Porém, não são isolados entre si, pois são construídos a partir de categorias referenciadas no imaginário coletivo dos juristas pós 198811, sob a rubrica do princípio do devido processo legal. Assim, no cenário brasileiro, como resultado de um esforço de classificação desta pesquisa, percebemos duas grandes vertentes significativas dos argumentos sobre processo que remetem à noção de salvaguarda de direitos, no contexto do devido processo legal: uma concepção finalista e outra procedimentalista12. 9

Categoria criada por Pierre Bourdieu para definir a estruturação de um raciocínio próprio da relação e práticas dos agentes sociais e seus campos, de forma a legitimar e criar o campo sobre o qual agem. Esse modo de pensar específico dos agentes de um campo de poder é historicamente construído, evoluindo em novas formas de adaptação e reforço de suas convicções, sem contudo serem atingidos seus princípios essenciais. Ele procura ser maleável aos anseios dos agentes impedidos de adentrar ao campo a fim de que possam se manter as relações de poder como legítimas. 10 Os sistemas simbólicos (ideológicos) são o resultado do monopólio dos agentes sociais em criar estruturas de comportamento e pensamento de dominação (poder simbólico), encaradas como arcabouço legítimo, na luta frente a outros agentes na manutenção e distinção de seu campo social. 11 Essas categorias circulam nos meios acadêmicos e profissionais e são aceitas pelos agentes sociais internos (especialistas) como discursos legítimos, a partir da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988. Ilustrando a ampla aceitação desse princípio como legítimo, vejamos: “Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of the law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa. É, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies” (NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal .3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 28); “A importância do princípio do devido processo legal: assegura que as relações estabelecidas pelo Estado sejam participativas e igualitárias; que o processo de tomada de decisão do Poder Público [em qualquer uma de suas funções, ou seja, executiva, legislativa e judiciária] não seja um procedimento kafkiano, mas um meio de afirmação da própria legitimidade e de afirmação perante o indivíduo pela participação do interessado” (SLAIBI FILHO, Nagib. Anotações à Constituição de 1988 . Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 181). 12 Devemos esclarecer que a sistematização oferecida não tem uma abordagem personalista e portanto não pretende arrolar, de forma exauriente, todos os processualistas pátrios que se identificariam com uma ou

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a) A concepção finalista

Nesta concepção, englobamos todos os discursos processuais que têm sua preocupação principal no resultado do processo. E, portanto, o processo é um instrumento de realização do direito material. E como tal, deve ser entendido e conduzido nos litígios judiciais, cabendo à técnica processual, oferecer tão só as ferramentas processuais necessárias à realização do direito em jogo. Nesse sentido, três podem ser os grandes vetores que informam essa concepção, que tem por palavra de ordem o Estado Democrático de Direito. São elas: uma forma de interpretação adequada; a preocupação com o resultado; e duração razoável. A forma de interpretação adequada orienta que a norma processual seja compreendida a partir de uma perspectiva finalista, voltada para a entrega tempestiva do bem da vida em jogo, repudiando uma visão formalista excessiva13 das regras e estruturas processuais. A idéia do resultado se traduz numa maior sensibilidade para com a problemática da efetividade, logo o processo deve cumprir seu fim, isto é a proteção do bem da vida sob litígio judicial14. Para tanto, o elemento da temporalidade15 desempenha papel central, pois a prestação jurisdicional deve ser realizada em tempo razoável, não se admitindo soluções outra concepção, classificando-os, individualmente, desta ou daquela maneira. A proposta se constrói a partir das idéias centrais (escopo processual) que perpassam os vários discursos. Muitas vezes, um autor pode expressar concepções de processo finalistas e em outras, procedimentalistas, pois são as premissas da argumentação (1. direito material como escopo; 2. forma como garantia) que determinarão seus posicionamentos. Por outro lado, em determinadas situações essas concepções podem ser complementares e em outros não, dependendo para tanto, da com preensão que se dá à tensão conteúdo versus forma, isto é, bem da vida versus forma. 13 Sobre os diferentes sentidos da palavra “formalismo”, cf. OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Op. cit.. 14 Vejamos o que a doutrina diz a esse respeito: “A ciência processual no Brasil encontra-se na fase de sua evolução que autorizada doutrina identifica como instrumentalista. É a conscientização de que a importância do processo está em seus resultados”. “(...) Depois de longo período caracterizado por preocupações endoprocessuais, volta-se a ciência para os resultados pretendidos pelo direito processual. Trata-se, sem dúvida, de nova visão do fenômeno processual, instrumento cujo utilidade é medida em função dos benefícios que possa trazer para o titular de um interesse protegido pelo ordenamento jurídico material” (BEDAQUE, José Roberto Santos. Direito e Processo – Influência do Direito material sobre o processo, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 14-15).[...]“toma-se consciência cada vez mais clara da função instrumental do processo e da necessidade de fazê-lo desempenhar de maneira efetiva o papel que lhe toca” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Tendências contemporâneas do direito processual civil. In Temas de direito processual. 3a. S. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 3). 15 Na verdade toda a preocupação com o resultado e seus vetores tangenciam a questão temporal. Pois o tempo é o elemento responsável pela criação de nossas expectativas, que nada mais são que os objetivos que almejamos alcançar. Quando temos por expectativa gerar um debate mais seguro e minucioso sobre as

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processuais que levem a uma dilação temporal desnecessária. Por trás disso, entende-se que o tempo, para o processo, é sempre algoz e, portanto, lesivo. Logo, admite-se que o processo dure apenas o tempo aquilo seja realmente necessário. Em outras palavras, o processo desempenha um papel secundário16, pois o objetivo da intervenção do Judiciário é assegurar a efetividade do direito material, no caso, direito fundamental, sub judice. Esta concepção é aquela que autoriza a aplicação da norma processual de forma, relativamente, flexibilizada,

em prol da “entrega de uma

prestação jurisdicional” que viabilize o mais rápido possível o respeito ao direito questionado. Assim, o processo só deve ser usado, em tempo adequado, a serviço do Estado Democrático de Direito.

b) A concepção procedimentalista

Nesta concepção, alojamos aqueles discursos processuais que objetivam estabelecer um modelo ideal de processo, voltado para a construção de procedimentos que assegurem o respeito às regras do jogo, derivando-se daí diversas garantias processuais que são vistas como direitos fundamentais em si17. Propõe-se a idéia de um processo justo que decorre da aplicação do devido processo legal – que é seu referencial emblemático.

[...] como relação jurídica plurissubjetiva, complexa e dinâmica, o processo em si mesmo deve formar-se e desenvolver-se com absoluto respeito à dignidade humana de todos os cidadãos, especialmente das partes, de tal modo que a justiça do seu resultado esteja de antemão assegurada pela adoção das regras mais questões em pauta, realizamos nosso tempo na forma responsável pela segurança. O objetivo é a forma, e por isso nosso resultado é tempestivo. Entretanto quando, os fundamentos suficientes para a legitimidade, nas palavras de Perelman e Tyteca, o habitus, nas palavras de Bourdieu, se focalizam a uma nova expectativa, que não é formal, e sim de efetivação material, o tempo torna-se agora instrumento para implementar esta expectativa, relegando a um aspecto secundário desperdiçar esforços no tempo com outras questões, dentre elas a forma. 16 Dessa forma, o processo reveste de certa acessoriedade, como se infere: “O processo, como instrumento, tem por fim realizar os direitos e eliminar os conflitos. O processo que não chega a produzir os seus efeitos normais não só não permite à jurisdição realizar os seus objetivos como, também, gera angústia e decepção àqueles que buscam a tutela jurisdicional. O processo, em outras palavras, é instrumento que apenas tem valor quando serve ao direito material e aos aspectos da jurisdição” (MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit, p. 64-65). 17 Como tal os direitos processuais ostentam uma dimensão objetivo-institucional pois garantem posições jurídicas subjetivas que se colocam como direitos de defesa perante o Poder Público e funcionam, nos dizeres de Canotilho, “como princípios jurídicos objetivos para a conformação da organização dos tribunais e do processo judicial” (CANOTILHO, J.J. Gomes. Tópicos de um Curso de Mestrado sobre Direitos Fundamentais, Procedimento, Processo e Organização, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXVI, 1990, p. 192 ).

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propícias à ampla e equilibrada participação dos interessados, à isenta e adequada cognição do juiz e à apuração da verdade objetiva: um meio justo para um fim justo18. Nesse sentido, os vetores que informam essa concepção estão diretamente relacionados à idéia de segurança jurídica, com regramento previamente ajustado, de conhecimento das partes e

que se concretize na noção de garantias constitucionais

processuais. Essas garantias se polarizam com

dois grandes núcleos de proteção

interligados: a igualdade processual e o respeito ao contraditório. A igualdade processual repercute no processo em diversos desdobramentos. Dela deriva a igualdade de acesso aos tribunais e de tratamento pressupondo, respectivamente,

a inafastabilidade da prestação jurisdicional e o recebimento, pelas

partes, de uma mesma valoração pelo julgador – o que implica na imparcialidade do órgão. De igual sorte, dela decorrem a chamada paridade de armas, bem como todas aquelas regras processuais que asseguram a figura do juiz natural e do exercício do próprio direito de defesa e do contraditório. O respeito ao contraditório se traduz no direito de colaboração das partes com o órgão judicial e prévia discussão pelas partes da matéria objeto do litígio, resultando daí o direito do jurisdicionado a ver seus argumentos enfrentados e correlato dever do juiz de fundamentar suas decisões. Por outro lado, a concepção procedimentalista também sugere uma maior valorização da forma, que é percebida com um elemento com contornos de garantia. Apresenta-se o formalismo como elemento de limitação da vontade das partes, e portanto, redutor do arbítrio.

O formalismo processual controla, por outro lado, os eventuais excessos de uma parte em face da outra, atuando, por conseguinte, como poderoso fator de igualação (pelo menos formal) dos contendores entre si. O fenômeno oferece duas facetas: no plano normativo, impõe uma equilibrada distribuição de poderes entre as partes, sob pena de tornar-se o contraditório uma sombra vã; no plano do fato, ou seja, do desenvolvimento concreto do procedimento, reclama o exercício

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GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: O Processo Justo. Disponível na Internet: . Acesso em 21 de maio de 2005.

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de poderes pelo sujeito, de modo a que sempre fique garantido o exercício dos poderes do outro19. Portanto, a pretensão de legitimidade da prestação jurisdicional fica vinculada ao modo pelo qual ocorre a aplicação das regras processuais e o manejo de suas formas que dê conta do escopo constitucional acima declinado e que, por conseqüência, se traduzirá em “justiça”.

3. O PROCESSO COMO ESTRATÉGIA DE PODER : UMA PROPOSTA DE PAUTA DE ANÁLISE DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

No segundo passo de nossa pesquisa partiremos das vertentes finalista e procedimentalista a fim de que possamos traçar uma pauta para a análise de casos em concreto, e verificar se, ao proferir sua decisão, o Supremo Tribunal Federal aproxima-se das concepções abordadas. Essa pauta é proposta a partir dos vetores acima apontados: forma de interpretação adequada; preocupação com o resultado; duração razoável; igualdade de tratamento das partes e respeito ao contraditório. Se verificados nos casos sob análise, sugerem a utilização do processo, enquanto instrumento de legitimação da atuação da Corte, quer numa vertente finalista ou procedimentalista. E como tal, o processo é estratégia de poder voltada para um projeto de permanência. Entendemos que uma melhor compreensão do processo, necessariamente, deve enfrentar e desvelar os mecanismos de poder que se estruturam nas formas processuais. O processo passa a ser considerado também como elemento integrante do jogo de poder que permeia as relações travadas em sociedades definidas a partir da jurisdição. E, portanto, é ele próprio uma estratégia de poder a ser descoberta a serviço da legitimação do juiz constitucional. Assim propõe-se a identificação, nas decisões, de alguns elementos que devem ser observados no processo, a fim de habilitá-lo como instrumento legítimo da prestação jurisdicional, e em especial, em sede de jurisdição constitucional. Logo, é a

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OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. XXX.

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aplicação dessa pauta, que ao final, demonstrará se o exercício da jurisdição pelo STF, nas decisões que versam sobre os direitos fundamentais, é aceito como não arbitrário.

4. O MANDADO DE SEGURANÇA NO N. º 24.405-4 E A ESTRATÉGIA DA CORTE

Passamos a analisar um caso em concreto, escolhido aleatoriamente, para fins de “testar” as possibilidades da pauta de análise ora proposta.

4.1. Dados gerais do caso Processo: MS (Mandado de Segurança) n. º 24.405-4, Ministro relator: Carlos Velloso, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Decisão: por maioria, Resultado do julgamento: Deferida a segurança e declarada “incidenter tantum”, a inconstitucionalidade da expressão constante do §1º do art. 55 da Lei Orgânica do TCU, Lei n. 8.443, de 16.07.1992, “manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia”, e ao contido no disposto no Regimento Interno do TCU, que quanto à autoria da denúncia, estabelece que será mantido o sigilo, Data do julgamento: 03/12/2003, Data da publicação: DJ 23.04.2004, Pólo ativo: Euclides Duncan Janot de Matos, Pólo passivo: Presidente do Tribunal de Contas da União. 4.2. Sinopse do caso com a dedução das teses apresentadas

Trata-se de mandado de segurança, impetrado contra ato do presidente do Tribunal de Contas da União que, no processo administrativo TC-002369/2001-8, negou pedido de fornecimento da identificação completa do denunciante no feito mencionado. O impetrante constrói a defesa de seu direito com base nos seguintes fatos argumentos: 1.

o TCU, ao final das investigações em processo administrativo sobre possíveis irregularidades cometidas pelo impetrante, entendeu ser improcedente a investigação, publicando a decisão no diário oficial;

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em vista da improcedência da investigação, restou configurada a violação sua imagem, hora objetiva e subjetiva do impetrante, pois nada ficou provado contra sua pessoa; 11

3.

foi indeferido requerimento para que fosse divulgada a autoria completa da denúncia, a fim de possibilitar o ingresso em juízo para buscar a reparação civil dos supostos danos causados a honra e imagem, o que foi negado pelo TCU – o que violaria o direito estabelecido no art. 5º, V da CF (“é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem). A autoridade contestada apresentou a defesa de seus atos, com base nos

seguintes fatos e argumentos:

1. Em preliminar, requereu a extinção do processo sem julgamento do mérito com fulcro no art. 267, VI do CPC c/c art. 8º da Lei n° 1532/51, pela falta de comprovação de ofensa aos direitos invocados pelo impetrante, inexistindo, portanto, direito líquido e certo; 2. No mérito, alegou não se tratar de questão vinculada ao anonimato, pois a denúncia foi identificada, sendo apenas preservada sua autoria, conforme autoriza o art. 55 da Lei n 8.443/92, até a decisão final sobre a matéria; 3. as determinações do TCU não atingiram a imagem, honra ou a moral do impetrante, vez que apenas houve a apuração de fatos inerentes a seus atos de gestão, no exercício do cargo de Diretor do DPC, não sendo atingida a pessoa do impetrante; 4.

não há que se falar em obtenção de informações de interesse particular, porquanto a própria Constituição Federal, em seu art. 5 º XXXIIII, ressalva hipóteses em que o sigilo deve ser resguardado.

4.4. Posicionamento dos ministros

4.4.1 Ministro Carlos Velloso Mostrou-se contrário à possibilidade de o Poder Público deixar de fornecer ao denunciado o nome do denunciante, tendo em vista que a proteção do denunciante pelo sigilo redundaria no que chama de “denuncismo irresponsável”, que se constitui comportamento torpe. Adota o posicionamento segundo o qual aquele que, irresponsavelmente, formula denúncia contra alguém, deve responsabilizar-se pelo seu ato, respondendo, na justiça, pelos danos causados à honra subjetiva e objetiva do denunciado.

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A proteção conferida pela lei ao denunciante impediria a apreciação do Poder Judiciário à lesão ou ameaça ao direito do denunciado, fato que, via de conseqüência, implicaria na ofensa à Constituição Federal, de forma indireta, exclusivamente ao art. 5°, V e X e principalmente ao inciso XXXV do mesmo art.5° que tem como objeto o Princípio da inafastabilidade da Jurisdição.

4.4.2 Ministro Marco Aurélio Afirma que a lei não autoriza o anonimato, sendo este um ato de irresponsabilidade. Concorda com o relator no seu voto, todavia dele se afasta na fundamentação, justificando a não proteção do anonimato com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e da publicidade dos atos da Administração Pública. ressalvando que aquele é fundamento da República e este, preserva o sigilo, apenas, quando diz respeito à atividade profissional

4.4.3 Ministro Carlos Britto Posicionou-se contra o voto e fundamentos do Ministro relator, Carlos Velloso. Analisou o anonimato como categoria jurídica proibida no ordenamento jurídico, no que tange à manifestação do pensamento, ou seja, num plano intelectual. Como exemplificado em seu voto, entende que o anonimato é proibido quando alguém vem a público tecer considerações que correspondam a uma “cosmovisão” ou “mundividência”, isto é, ao modo peculiar de ver a vida, os fatos, as pessoas, as idéias. Entende que esse anonimato que é proibido - não tem nada a ver com o do servidor público, pois, se assim fosse, o ato de revelar a identificação do denunciante inibiria a cidadania e a participação na vida pública. Ressaltou, nesse sentido, a necessidade de manutenção do sigilo porque o cidadão, no caso, identificou-se, atendendo ao requisito do art. 144 da Lei n° 8.112, no momento em que apresentou a denúncia, por escrito, sendo, a seu ver, o suficiente.

4.4.4 Ministro Cezar Peluso Posicionou-se no sentido de não haver anonimato no caso. Entende que o sigilo se justifica até determinado momento do procedimento administrativo, sendo certo que terminado o procedimento e revelada a má-fé do denunciante, entende o Ministro Cezar Peluso, ser desnecessária a sua manutenção. Declarou-se contrário ao sigilo, pois, nesse caso, admiti-lo seria proclamar-lhe a absoluta irresponsabilidade civil e penal, ao não

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permitir fosse identificado pelo ofendido. Refutou o fundamento do Ministro Carlos Ayres Britto, afirmando não se tratar de limitação ao exercício da cidadania, mas sim uma mutilação de um cidadão, tendo em vista que lhe estaria sendo subtraída a possibilidade constitucional de reclamar indenização por ofensa à sua imagem e à sua honra. Assim, acompanhou o voto do Ministro relator.

4.4.5 Ministro Gilmar Mendes Entende que o exercício da cidadania supõe responsabilidade. Atribui à responsabilidade uma conseqüência a ser suportada por todos os cidadãos pelos atos praticados. Cita e defende a idéia da dignidade humana por considerar que o homem não pode ser transformado em objeto do Estado. Defende, também, a idéia de que as normas de organização de procedimento devem permitir que se façam as amplas investigações. Contudo, as eventuais denúncias infundadas não merecem obter proteção pelo sigilo e, quem as fizer, deve suportar as responsabilidades a elas atinentes. Ao final, acompanhou o voto do Ministro relator.

4.4.6 Ministra Ellen Gracie Afirma que de nada valeria a Constituição Federal – que resguarda a proteção à imagem e à honra dos cidadãos - se o próprio Supremo, guardião da Carta Magna, recusasse ao impetrante o direito de fazer valer o respeito à sua integridade moral,. Posiciona-se contra a denúncia anônima alegando que esta categoria jurídica se dava em tempos de Inquisição, o que foi superado pela civilização ocidental. Destarte, acompanha o voto do Ministro relator.

4.4.7 Ministro Nelson Jobim Acompanha a posição do Ministro relator, direcionando seu voto para a concessão da segurança. Demonstra preocupação com as conseqüências da decisão, tendo, dessa forma, uma postura pragmática quando afirma “não tenho dúvida de que essa decisão vai descambar para as denúncias anônimas”.

4.4.8 Ministro Sepúlveda Pertence Declarou-se contra o sigilo por entender que a admissão deste seria contrariar princípios fundamentais da Constituição como, por exemplo, o da dignidade da pessoa

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humana, já citada pelo Ministro Marco Aurélio e o instrumental do direito de ação. Dessa forma, acompanha o voto do Ministro relator.

4.4.9 Ministro Maurício Corrêa Entende que uma denúncia grave como a que fora feita no caso não deve “esconder” o denunciante através da imunidade conferida pela lei, bem como que tal anonimato fere todos os princípios constitucionais, impossibilitando à vítima da denúncia o direito de obter o ressarcimento pelos danos que lhe tenham sido causados. Sustenta outrossim, que quem materializa esse tipo de denúncia, deve se expor para arcar com eventuais responsabilidades resultantes de seu ato.

4.5. Ementa do acórdão

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. DENÚNCIA. ANONIMATO. LEI 8.443, DE 1992. LEI 8112/90, ART. 144. C.F., ART. 5º, IV,V,X, XXXIII E XXXV. I. – A Lei 8.443, de 1992, estabelece que qualquer cidadão, partido político ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU. A apuração será em caráter sigiloso, até decisão definitiva sobre a matéria. Decidindo, o tribunal manterá ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia (δ1º do art. 55). Estabeleceu o TCU, então, no seu Regimento Interno, que, quanto à autoria da denúncia, será mantido o sigilo: inconstitucional diante do disposto no art. 5º, inciso V, X, XXXIII e XXXV, da Constituição Federal. II Mandado de Segurança deferido”

4.6. Descrição das estratégias de poder usadas pelo STF: a escolha dos argumentos que seriam apreciados pela Corte

É interessante observar a dinâmica seletiva dos argumentos/teses a serem enfrentadas pela Corte e preocupação em afastar-se um futuro dever de coerência sobre a matéria decidida. Não foi apreciado o argumento do impetrado no sentido da inexistência de direito líquido e certo, vez que este não comprovou a ocorrência de ofensa aos direitos que

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invocou. Em nenhum dos votos proferidos a questão foi refutada ou analisada, optando a Corte por apreciar o mérito da causa diretamente, isto é a problemática do anonimato/sigilo/denúncia. Ora, o argumento desconsiderado é de natureza estritamente processual, cujo acolhimento inviabilizaria a via processual escolhida pelo autor, ensejando a mera extinção do processo, sem julgamento de mérito. Aliás, esse é um grandes obstáculos à utilização do mandado de segurança, e a doutrina pátria tem se debruçado sobre ele com bastante intensidade sobre essa questão20. Nessa ótica, constata-se certo descuido com o rigor processual, o que pode ser traduzido em uma flexibilização da forma do mandado de segurança. Essa flexibilização, por carecer de fundamentação racional explícita, admite inclusive uma leitura de um atuar “voluntarioso” da Corte, vez que a mesma “quis” apreciar a questão de mérito. A ementa da decisão colegiada, nos termos em que foi redigido, mais se parece com uma tutela específica de inconstitucionalidade e não com uma decisão, proferida em sede de mandado de segurança, onde se busca o amparo judicial com o fim de reparar uma lesão causada, por ato administrativo, a direito da parte requerente. O ato administrativo é o alvo da jurisdição, tanto que o mandado de segurança é uma das formas de controle da Administração Pública. Observe-se que a Corte se contenta em “deferir a segurança” (exigindo do leitor que se dirija a outras peças processuais para a compressão da tutela deferida à parte), mas explicita as expressões dos dispositivos de lei, ora declarados inconstitucionais (não havendo sequer para o leitor a necessidade de buscar em outra fonte os textos impugnados)21. Porém, percebe-se uma clara preocupação da Corte, com a possibilidade de que o entendimento vitorioso (que renega o sigilo da fonte denunciante) seja invocado, posteriormente, em casos análogos. Pelo menos, em dois votos, é explicitada a preocupação em deixar evidente que o entendimento da Corte só se aplica ao caso decidido - embora não sustentado racionalmente o posicionamento abraçado. Num primeiro plano, 20

Cf. PACHECO, José da Silva. O mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas. 3a.ed. São Paulo: Renovar, 1998. 21 Nesse sentido, vota o Relator: “Assim posta a questão, tenho como ofensiva à Constituição, art. 5, incisos V, X, XXXIII e XXXV, a expressão, constante do § 12 do art. 55 da Lei 8.443, de 16.7.92, “manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia” e ao contido no disposto no Regimento Interno do TCU, que estabelece que, quanto à autoria da denúncia, será mantido o sigilo.

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tratando-se de controle na modalidade difusa, de fato, os limites subjetivos da decisão se encerram nas partes litigantes. Porém, a Corte não desconhece da “autoridade” de seus pronunciamentos e busca estabelecer o que pode ser ou não invocado posteriormente como “jurisprudência” a ser observada – afasta-se , assim, o dever de coerência em decisões posteriores análogas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: UMA APLICAÇÃO INSPIRAÇÃO DA CONCEPÇÃO FINALISTA

DO

PROCESSO

SOB

É interessante observar que a Corte não enfrentou o debate técnico- processual suscitado. Não foi apreciado o argumento do TCU no sentido da inexistência de direito líquido e certo, vez que este não comprovou a ocorrência de ofensa aos direitos que invocou. Em nenhum dos votos proferidos essa questão (que abre a possibilidade de o debate se enverede por questões formais) foi refutada ou analisada, optando a Corte por apreciar o mérito da causa diretamente. Percebe-se no caso, uma certa dificuldade da Corte em se ver como órgão “ordinário” judicante, já que sua competência aqui não é recursal. Tal situação remete ao debate sobre o papel do Supremo Tribunal Federal e ainda sobre o feixe de competências que lhe deve ser atribuído, em decorrência da definição desse papel. Não se percebe um zelo com o rigor da técnica processual. O que ressalta a evidente vontade da Corte em conhecer do caso, para julgá-lo em seu mérito e deferir o amparo pretendido – cuja conseqüência é a impossibilidade de manter-se o sigilo nas denúncias feitas ao TCU . As questões da técnica processual foram ignoradas e cederam espaço para a defesa do direito apontado como violado, embora sem a pretensão de “fazer precedente”. Daí se sugere que, no presente caso, a Corte adotou uma concepção finalista do processo, para aquelas circunstâncias consideradas.

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