Kerouac ao sol nascente

October 3, 2017 | Autor: Célia Musilli | Categoria: Poesia, geração Beat, Literatura Norte-Americana, Haikai
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Kerouac ao sol nascente



'Livro de Haicais' de Jack Kerouac traz um autor entre dois continentes



Um autor versátil na poesia e na prosa que escrevia num jorro, tal como fez
quando criou sua obra-prima On the Road composta alucinadamente em apenas
três semanas, à base de benzedrina e café. Um autor que escrevia no ritmo
do jazz e que, de repente, encontramos numa trilha zen, fazendo haicais
como se girasse o dial de um rádio sintonizando uma emissora do oriente,
audível, penetrante, mas com alguns ruídos que marcam de forma positiva as
diferenças culturais e uma possível adaptação. Ele podia estar ali mesmo,
em Nova York ou em Oklahoma, mas penetrava nas solitárias montanhas reais
ou imaginárias onde criava como um mestre japonês, às vezes dividido entre
a poesia e o chá.

Estamos falando de Jack Keroauc , cujo Livro de Haicais acaba de ser
lançado pela L&PM. São 300 páginas, em edição bilíngue, com apresentação de
Regina Weinreich – escritora e jornalista alemã, radicada nos EUA,
especialista na Geração Beat – e tradução de Claudio Willer, também um
especialista no movimento que levou a literatura para a estrada, dividindo
caminhos entre o antes e o depois.

O ensaio de Regina Weinreich é fundamental para compreensão da produção de
haicais por Kerouac. Ela nos mostra as várias instâncias de criação do
poeta no gênero contando que foi Gary Snyder, o zen-budista do grupo, quem
apresentou o haicai aos escritores da Costa Oeste. Kerouac aderiu ao estilo
com peculiaridades. Regina mostra isso introduzindo um trecho em que ele
comenta como faria o haicai ocidental, criando depois variações que
chegariam ao que chamou de Pops.

"Eu proponho que o haicai ocidental simplesmente diga muita coisa em três
linhas breves em qualquer língua ocidental. Acima de tudo, um haicai deve
ser muito simples, livre de truques poéticos, capaz de evocar algo e ainda
assim ser tão delicado e gracioso como uma Pastorella de Vivaldi."

Dito e feito. Os haicais de Kerouac realmente primam por esta delicadeza.
Mais, nos inserem em paisagens como na tradição oriental, passando muitas
vezes pelas estações do ano, mas também superando-as. Sobretudo, ele
privilegia o caráter efêmero de um gênero que flagra os instantes , nos
tomando quase sempre pela beleza e imediata nostalgia de algo que surge,
ilumina nossa percepção e parte. Esta pelo menos é minha sensação quando um
haicai me toma.

O livro aponta as diferentes fases de produção de Kerouac, cobrindo um
período que vai de 1956 a 1966. Regina mostra o escritor enchendo os bolsos
da camisa xadrez com blocos de anotações, referência a um artista sempre
de plantão, a produção estende-se por muitos cadernos, períodos e lugares
que se dividem em seis partes: Livro de Haicais – que ,ao que tudo indica,
foi uma seleção de poemas feita pelo próprio Kerouac para publicação; Pops
do Darma, compostos por haicais que ele identifica como americanos (não
japoneses); Pops da Desolação (1956) referentes ao período em que Keroauc
se isola no Pico da Desolação por 63 dias, reproduzindo a experiência do
poeta chinês Han Shan que vivia isolado e era tido como louco; Haicais
de Estrada – produzidos no verão de 1957 quando Kerouac viveu numa cabana
em Berkeley, pouco antes da publicação de sua obra-prima On the Road;
Haicais da Geração Beat (1958-1959) escritos no período em que a expressão
Geração Beat era tratada de forma pejorativa pelos críticos enquanto
Kerouac escreve de forma radical, mergulhado também no alcoolismo e,
finalmente, uma sexta parte: Haicais de Northport que contém anotações de
vários cadernos, de 1961 e 1966.

Para ler os haicais vamos na ponta dos pés, cumprindo com o autor o mesmo
rito de sutilezas que permeia sua produção. Alguns poemas chamam a atenção
por peculiaridades estilísticas, imagens, intertextualidades. Claro que
este exercício daria também um caderno. Mas limitamos o espaço para
tratar também do efêmero desses flagrantes poéticos. Aqui e ali, saltam
traços de religiosidade, espiritualidade, transcendência enfim, como não
poderia deixar de ser em Kerouac:



Linda noite de verão

Gloriosa como as vestes

De Jesus



Gaivota navegando

No céu de açafrão –

O Espírito Santo quis assim



Há ainda poemas especialmente fotográficos:



Delicadamente dependurada

a Folha de Outono

Quase cai do galho



O pássaro pousou no galho

- dançou três vezes –

E sumiu

Há referências a sapos, sempre lembrando Bashô, e intertextualidades como
neste haicai que nos remete a Rimbaud em "Por delicadeza/ perdi minha vida"
(Canção da Mais Alta Torre) que em Kerouac aparece assim:



As papoulas! –

eu poderia morrer agora

por delicadeza



Também aparece bastante a solidão como tema. Mas como em Bashô, no termo
identificado como "sabi", a solidão vem acompanhada de tranquilidade, uma
espécie de quietude transcendental que é também o caminho do poeta. Em
Kerouac, a solidão vem assim:



Louco para me sentar em uma pilha de feno,

escrevendo haicais

Bebendo vinho



Ou ainda:



Aurora – o escritor que

não fez a barba

Debruçado sobre anotações



Já nos haicais americanos que denominou Pops, é interessante observar como
ele toma flagrantes do cotidiano urbano para escrever poemas que apontam
para outras paisagens:

Olhando para cima para ver

o aeroplano

Só vi a antena da TV



Concatenação! -

a bicicleta puxa o vagão

Porque a corda está amarrada

Numa categoria que poderíamos chamar "haicai beat", percebe-se ainda o
inquieto autor de On The Road saltando de um lugar a outro, de uma cidade a
outra, sem largar o caderno de anotações que é, afinal, seu registro de
passagens pelo mundo. Viagens, climas, mergulhos, poemas. De Nova York a
Berkeley, de Oklahoma a Carolina do Norte ele traz para o ocidente o estilo
milenar de escrever movido pelo efêmero, pelo circunstancial e, no
entanto, eterno por aquilo que nos toca pela intimidade cósmica e
atemporal, pelo pertencimento a um inesgotável universo de linguagem,
ritmos e sons. Destaca-se ainda a tradução de Claudio Willer que coloca em
evidência a linguagem coloquial que nos aproxima , por exemplo, da paisagem
dos quintais:



Frutinhas e mais frutinhas

o esquilo

Na grama



"Frutinhas e mais frutinhas" figurando o que no original está como
blubberry (mirtilo) e dubberry (fruta-pão). Ah! frutinhas, muito mais
coloquial nos remetendo à infância.

O poeta Gary Snyder é também lembrado em alguns momentos. O zen-budista que
apresentou o haicai aos outros beats é o amigo e, ao mesmo tempo,
representa o próprio gênero que chega a Kerouac vindo do outro lado do
mundo :



Gary Snyder

é um haicai

bem longe



O Livro de Haicais é mais um exemplo da versatilidade de um grande autor,
um apanhado de imagens que chegam por satélite. Rápidas, certeiras, elas
parecem mostrar Keroauc na Golden Gate celebrando no poente o sol nascente
em centenas de poemas.



* Livro dos Haicais de Jack Keroauc, tradução de Claudio Willer. Editora
L&PM/ 2013 (edição bilíngue)
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