Laking: estudo de caso de uma tentativa de pensar, em colaboração, diferentes formas de representação do real através do desenho e da fotografia Rita Castro Neves www.ritacastroneves.com |
[email protected] Membro colaborador i2ads Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, NAI Núcleo de Arte Intermedia
Artigo, e comunicação apresentada a 25 de Fevereiro de 2016, no contexto da Ilustrada Encontro de Ilustração, na UBI Universidade da Beira Interior, Departamento de Comunicação e Artes, Covilhã, Portugal | http://www.ilustrada.ubi.pt/#about A partir do projeto Laking que se materializa numa exposição de colaboração entre eu própria, artista que se exprime sobretudo com fotografia, vídeo e instalação e o ilustrador e artista Daniel Moreira, em Helsínquia no espaço Oksasenkatu 11 em Janeiro de 2016, tecem-‐se considerações sobre a relação entre estes diferentes modos de representar, as suas relações particulares com o real, e possíveis interseções e proximidades. Laking partiu de uma estadia-‐residência mas acima de tudo de uma vivência, numa “casa do lago” finlandesa, espaço naturalmente idealizado. Ancorado em imagens reais da Finlândia e de Portugal, pretendemos construir um espaço metafórico de possibilidade de ideia de paisagem, e das suas formas de representação, com imagens que interpelam o observador para que este descubra um lugar que se constrói a partir de dois lugares. Um lugar que não é híbrido, mas imaginado, quem sabe utópico. O evocativo lago é simultaneamente um contentor fechado e um local de matéria em fluidez e dissolução. Num lago, as diferentes matérias que o compõem fundem-‐se para serem percecionadas como uma realidade só -‐ o lago -‐ mas mantêm a sua unicidade -‐ a alga, o peixe, a rocha... A sempre presente ideia de duplicidade ou polaridade (dos sempre binómios lago-‐terra, Portugal-‐ Finlândia, desenho-‐fotografia, interior-‐exterior, contentor-‐contido, matéria-‐contorno, Daniel-‐ Rita...) é todavia constantemente atravessada pela ideia contraposta de um fusionismo aquático visceral. O título da exposição Laking joga com as palavras, entre Lake e Lacking, num novo verbo to lake, porque a idealizada ideia de um lago onde na fusão nos tornamos um, inclui sempre a compreensão da impossibilidade da sua total concretização. Laking, é então uma forma verbal de um verbo que não existia, mas agora sim. O processo de construção partilhada de Laking levantou questões importantes sobre qual o papel do desenho e da fotografia na construção de imagens desse novo lugar também construído, existente através da criação imagética por nós esteticamente operada, que se consubstancia em criações de situações e locais novos, que de irreais assim se foram tornando reais, ainda e também, porque por vezes surreais. Na série de quatro ilustrações Daniel Moreira ilustra, em escalas aproximadas pelo médium desenho, uma ideia de casa, lago e barco.
Lake House (series of 4 drawings), grafite sobre papel, 29,7x21 cm cada.
O desenho de Daniel Moreira tem por característica ser pormenorizado e detalhado, num traço fino e tecnicamente bem ancorado, numa prática que deixa adivinhar os seus primeiros anos dedicados à arquitetura, e a uma atenção escrutinadora e incansável sobre o existente espaço real. Lembramos aqui o recorte conceptual de Margarida Medeiros (Medeiros, pp. 45-‐55) a partir da análise da categoria do retrato, de como a pintura – tal como a ilustração, o desenho -‐ por ser sempre uma construção feita a partir da matéria (grafite, tinta...), com a característica de ser artesanal, densa e desenvolvida a partir de uma prática assente na temporalidade, é sempre uma ficção construída, mesmo quando realística. Ao contrário, e ainda com Medeiros, a fotografia – e por extensão o cinema, o vídeo – realizando-‐ se a partir de um instrumento ótico, é mecânica e automática, não temporal mas veloz, e logo colada ao real, “necessariamente real” e não “facultativamente real” (Barthes, p.109). Nos desenhos de Daniel Moreira a tensão entre a representação do arquétipo (de casa, de lago, de barco...) e a ficção de um lugar que faz uma ponte imaginária entre as paisagens de Portugal e a Finlândia, remete-‐nos para uma fantasia fusionista. A tensão das ilustrações presentes em Laking também são entre esse traço detalhado que nos remete para o real com rigorosa veracidade (todos os detalhes do barco a remos estão lá descritos, de tal forma que não duvidamos que foi “desenho à vista” ou -‐ desde o século XIX pelas possibilidades instauradas pelo novo meio -‐ “desenho à fotografia”) e o improvável isolamento do objeto. No real, um barco a remos está sempre em contexto: no lago, no mar, em terra, no apresto... Todavia aqui o que vemos é um barco que navega no nada, que, avançando do nada para o nada representa simultaneamente o paradigma da viagem e qualquer barco, português, finlandês ou outro. Mais ainda, este frágil barco a remos pela sua forma aeronáutica, é a tentativa de encontrar novas formas de viajar, a passarola de Bartolomeu de Gusmão. Daniel Moreira também opera aqui jogos de escala dentro da série: num desenho não sabemos se vemos um lago ou uma piscina, para a seguir nos questionarmos se o barco a remos é apenas um pequeno barco (de brincar) numa bacia, ou uma situação mais do campo do imaginário, em que um barco real se encontra numa bacia irreal, mais metáfora de local contido e delimitado, mais referência objetual do quotidiano. Um lago como um grande alguidar ou um alguidar como um grande lago? Ora, se por um lado, como vimos, as ilustrações presentes na exposição, permitem criar um espaço representacional simultaneamente realista, arquetípico, ficcional e fantasioso, as fotografias de Laking, vão também, mas por outra via, a partir do real concretizar situações ficcionadas.
Como sabemos, na fotografia não precisamos de desenhar o detalhe, com o afinco próprio de quem ao longo dos anos desenvolveu e dominou uma difícil técnica. Pelo contrário, uma vez que o detalhe, esses ““particolari” ínfimos” hiperpresentes se apresentam na fotografia por natureza (Frade, p.103 e ss.), o esforço, a técnica são para os retirar da imagem. O mesmo se passa com o realismo, que na fotografia parece sempre saltar para nós como uma força inevitável. Em fotografia o esforço não é o de mostrar o real, mas o de criar ficções. Dizia Barthes na sua famosa Câmara Clara que “o importante é que a foto possui uma força verificativa (..) De um ponto de vista fenomenológico, na Fotografia, o poder de autenticação sobrepõe-‐se ao poder de representação” (Barthes, p.125). Assim, a fotografia pela sua ontologia, por aderir ao real no sentido Barthesiano, por indiciar o real no sentido semiótico de Charles S. Peirce (tal como aplicado por Dubois, pp. 17-‐50), efetivou em Laking possibilidades representacionais de situações surrealizantes, de difícil resolução prática para os habitantes dessas imagens.
Communication (Rita to Daniel), Communication (Daniel to Rita), lambda print, 70x100 cm cada.
Em Communication, duas fotografias descrevem-‐me a mim e ao Daniel, numa paisagem idealizada mas concreta, porque fotográfica, de uma estrada do interior algarvio, ao nascer do sol, a tentar ter uma conversa através do intemporal mas ineficiente instrumento de comunicação que é o búzio. Separados fisicamente pelos enquadramentos, e pela existência de não uma, mas duas imagens, aproximam-‐se os retratados pelo posicionamento na fotografia, pela similar paisagem e búzio (que é o mesmo nas duas fotografias) mas sobretudo pela tentativa que os dois levam a cabo com a mesma determinação, e que é uma tentativa de comunicarem.
Boat Revealed, díptico, lambda print e grafite sobre papel, 29,7x42 cm cada.
Em Boat Revealed (barco revelado), a proposta de reflexão de Laking clarifica-‐se ao apresentar duas imagens de um barco a remos, com o mesmo tamanho, sensivelmente a mesma escala mas de ângulos diferentes. A fotografia mostra tudo, mas não revela, o desenho resume. O cuidadoso detalhe do desenho da rachadela, é de desenho rigoroso, ilustrando a realidade. Nos primórdios da fotografia são constantemente sublinhadas pelos seus contemporâneos as novas possibilidades que este médium traz de rapidez e veracidade na documentação da ciência, desde logo no discurso visionário que François Arago faz em 1839 em Paris, na sessão conjunta da Académie des Sciences e da Académie des Beaux Arts, e em que este apresenta publicamente o novo invento a que chamamos agora fotografia. Arago antevê desde logo várias úteis aplicações do Daguerreótipo “uma descoberta que tanto pode contribuir para o progresso das artes e das ciências”1, incluindo o exemplo de que para “copiar milhões e milhões de hieróglifos que cobrem, mesmo no exterior, os grandes monumentos de Tebas, Memphis, Karnak, etc, seriam necessárias décadas e legiões de desenhadores. Com o Daguerreótipo, um só homem poderia levar a bom porto esse imenso trabalho”2. Certíssimo Arago, é logo desde o início da fotografia que assistimos a várias aplicações da fotografia à ciência, como é o caso, entre outros, das primeiras fotografias da lua de John Adams Whipple, as primeiras fotografias de Abou-‐Simbel, os Raios X de Wilhelm Röntgen (1895), as nosografias de má memória...)3. Mas curiosamente, nos dias de hoje, na arqueologia (para citar apenas uma área científica) é prática comum atualmente, em complemento ou mesmo detrimento do uso da fotografia, contratar-‐se o serviço do ilustrador para, com precisão, desenhar os objetos em estudo. Curiosa solução, aparentemente em dissintonia com a indiscutível qualidade ontológica da fotografia de aderência ao real e o seu noema “Isto-‐foi”, como garante do que aconteceu no passado (Barthes, p.109). Aparentemente há então algo no olhar humano que aliando atenção, decisão e rigor poderá por vezes suplantar a capacidade técnica da fotografia, e que poderá ser a expressividade do traço singular e único daquele ilustrador, a capacidade de síntese na descrição, e até na análise, de um objeto, a simplicidade e despojo da técnica do desenho, etc. Pedro Saraiva, artista e Ilustrador científico, afirma-‐me que “Os desenhos analógicos de arqueologia permitem dar visibilidade ao que a máquina fotográfica “não vê”, o olhar é selectivo,
1
Tradução nossa do discurso de Arago, em Compte rendu de la séance du 7 janvier 1839 devant l'Académie des Sciences de Paris, excertos publicados em http://expositions.museedelaphoto.fr/mod_webcms/content.php?CID=LQ1671C, acessado a 3 de Fevereiro de 2016. 2 Tradução nossa do discurso de Arago, em Compte rendu de la séance du 19 août 1839 devant l'Académie des Sciences de Paris, excertos publicados em http://expositions.museedelaphoto.fr/mod_webcms/content.php?CID=LQ1671C, acessado a 3 de Fevereiro de 2016. 3 Ainda assim ironicamente, as primeiras imagens de locomoção animal de Eadweard Muybridge fragmentando o movimento dos cavalos – revelações apenas possíveis graças à fotografia – quando são publicadas em revistas científicas como é o caso da capa de 19 de Outubro de 1878 da Scientific American, não o são como reproduções das fotografias mas com ilustrações que as copiam. Para dar outro exemplo, as primeiras reportagens fotográficas de guerra – uma área que se irá tornar fundamental na cultura da fotografia profissional - na Guerra da Crimeia (1853-56) sob a alçada do fotógrafo britânico Roger Fenton, são na altura raramente mostradas enquanto fotografias, antes servindo de base para desenhos, esses sim publicados na imprensa. O facto da publicação da fotografia documental na imprensa ser mediada pelo desenho acontece muito frequentemente, muito ainda por questões de ordem técnica, que tornavam o processo de colocar fotografias nos jornais moroso e de elevado custo, problemas que só começam a ser ultrapassados a partir da década de 80 do séc. XIX graças aos esforços técnicos de Frederick E. Ives e outros.
eliminando aquilo que não produz informação arqueológica.” 4 Guida Casella, também ilustradora científica, afirma igualmente: “o desenho é como uma escrita. É uma síntese. Algo diferente de outros meios.”5.
Pedro Saraiva, ilustração científica, gentilmente cedida pelo autor.
A esta síntese acrescenta-‐se que, talvez em parte, se justifique o uso da ilustração científica pelo seu poder comunicativo. Parece ser esse o sentido da afirmação do ilustrador científico e biólogo português Pedro Salgado quando diz “Muitas vezes, os próprios cientistas passam um bocadinho ao lado da importância da ilustração em termos de comunicação e pensam que a fotografia pode perfeitamente cobrir esse papel. Isso não é verdade, de todo”.6 Salgado parece ir mais longe num artigo de 2011 quando diz que “A fotografia capta o momento e a informação que lhe está associada. A ilustração, e o desenho científico na sua essência, é uma explicação. O desenho seleciona a informação relevante, omite o desnecessário, simplifica, sintetiza. O desenho permite a composição de vários elementos não disponíveis em simultâneo, faz uma gestão da profundidade de campo e da iluminação do modelo, elimina sujidade e fatores de ruído, e tem a extraordinária capacidade de reconstruir partes escondidas ou danificadas. O desenho científico é concebido e desenvolvido para transmitir níveis de informação selecionados e muito específicos, de acordo com os objetivos e públicos predeterminados. A fotografia não tem estas capacidades, mas terá também o seu papel, seja na comunicação científica ou numa perspetiva estética. Além disso, não se pode deixar de referir a sua importância crucial como material de referência para o desenvolvimento de uma ilustração.”7 4
A propósito, e na sequência desta investigação, foram realizadas duas perguntas a três ilustradores científicos portugueses: Guida Casella, Pedro Salgado e Pedro Saraiva (janeiro e fevereiro 2016). Correspondência com Pedro Saraiva (10 de fevereiro 2016). 5 idem. Correspondência com a ilustradora (9 de fevereiro 2016). 6 Jornal Público https://www.publico.pt/ciencia/noticia/isto-nao-sao-fotografias-sao-desenhos-cientificos-de- peixes-1661039, acessado a 2 de fevereiro de 2016. 7 Pedro Salgado, “Ilustrating Fishes / Ilustrando os Peixes”, in Oceanário de Lisboa – Ilustração dos Oceanos (Introdução), 2011, Ed. Bizâncio, pp. 11-16.
Mas termina Pedro Salgado “Em tom de confissão; houve casos de insegurança, uma dificuldade ou uma lacuna na informação que não permitiram o resultado tão perfeito como gostaríamos.”1 A posição de Salgado não põe em causa a evocada ontologia fotográfica, uma vez que a fotografia não deixa de efetivamente captar exatamente o que está em frente à câmara (e independentemente do ser humano que prima o disparador). Se na fotografia do barco a remos a rachadela não é mostrada é apenas porque com a câmara naquela posição, naquele ângulo, não a vemos. Mas embora intocada a essência, parece que todavia, assim se complexificam as relações entre fotografia e desenho, e com a fotografia e com o desenho, sai reforçado o papel do autor, e acima de tudo, abre-‐se aqui um campo de possibilidades para trabalhar no espaço-‐entre a fotografia e o desenho, em abstrato, e entre esta fotografia deste barco e este desenho do mesmo barco, em concreto. No díptico, com efeito, com esta passagem de uma imagem fotográfica para uma imagem pictórica, propúnhamos uma performatividade do olhar do observador, como se o seu corpo mudasse de lugar, como se contornasse fisicamente o barco, como se desse a volta. A mudança de médium representacional no díptico -‐ da fotografia para a ilustração -‐ serve também para sublinhar e enfatizar essa mudança física de posição corporal. À opção dos artistas corresponde a experiência vivida: realmente quando entusiasticamente decidimos “dar uma volta de barco no lago”, no barco que ali estava “à nossa vista” há dias, nada fazia prever que estivesse quebrado. Só a nossa aproximação ao objeto e olhar atento nos revelaram esse importante -‐ e perigoso -‐ detalhe. Combinando e contrapondo as potencialidades ontológicas do desenho e da fotografia para ilustrar, Laking tenta criar a partir da possibilidade de existência de um espaço entre os espaços tradicionais de representação visual. Laking é assim uma especulação sobre um real eminentemente contruído não apenas com o desenho e a fotografia, mas através do desenho e da fotografia. Especulação pois no seu sentido reflexivo original, como dois espelhos que tentam através dos seus diferentes posicionamentos no espaço, isto é, das suas diferentes perspetivas – óticas, ontológicas, autorais e culturais, refletir um real, e refletir sobre um real que é, já se vê, uma ficção em comum. 1
ibidem. Esta confissão é-nos interessante sobretudo pelo véu que levanta sobre as limitações de todos os modos de representar (ilustração, fotografia...), e a sua consequente relativização e deshierarquização.
Bibliografia Barthes, Roland, A câmara clara, Lisboa, Edições 70, col. Arte & Comunicação, 1989, 176p. Dubois, Philippe, “Da Verosimilitude ao Índice”, in O Acto Fotográfico, Lisboa, Vega, col. Comunicação & Linguagens, 1992, pp. 17-‐50, 229 p. Frade, Pedro Miguel, Figuras do espanto. A fotografia antes da sua cultura, Lisboa, Asa, col. Argumentos Pensamento Contemporâneo, 2007, 240 p. Medeiros, Margarida, “O retrato pintado e o retrato fotográfico”, in Fotografia e narcisismo. O auto-‐retrato contemporâneo, Lisboa, nº 20, Assírio & Alvim, col. Arte e Produção, 2000, pp. 45-‐55, 177 p. Pedro Salgado, “Ilustrating Fishes / Ilustrando os Peixes”, in Oceanário de Lisboa – Ilustração dos Oceanos (Introdução), Lisboa, Ed. Bizâncio, 2011, pp. 11-‐16. Webgrafia
http://expositions.museedelaphoto.fr/mod_webcms/content.php?CID=LQ1671C, acessado a 3 de fevereiro de 2016. https://www.publico.pt/ciencia/noticia/isto-‐nao-‐sao-‐fotografias-‐sao-‐desenhos-‐cientificos-‐de-‐peixes-‐1661039, acessado a 2 de fevereiro de 2016