LEGITIMIDADE PROCESSUAL COLETIVA: Rumo a uma nova classificação

July 9, 2017 | Autor: J. Camargo de Aze... | Categoria: Processo Coletivo, Legitimidade
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LEGITIMIDADE PROCESSUAL COLETIVA: Rumo a uma nova classificação

Júlio Camargo de Azevedo Defensor Público do Estado de São Paulo. Bacharel e Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).

Resumo: Dentre as inúmeras discussões que permeiam o processo coletivo brasileiro, a questão da legitimidade processual apresenta-se como ponto sensível nos debates acadêmicos, haja vista a sua incompatibilidade com a concepção liberal-individualista que classifica a legitimidade consoante a titularidade (ou não) do direito material afirmado na ação. Ora, a própria natureza indivisível e indeterminável de alguns direitos impede seja aplicada esta técnica interindividual à legitimidade no âmbito coletivo, imprimindo a necessidade de revisitação do instituto à luz do “paradigma transindividual” inaugurado pela Carta Republicana de 1988. Nesta esteira, o presente estudo vislumbra aprofundar a análise sobre o instituto da legitimidade processual, procurando sedimentar a insuficiência das classificações hoje propostas para então sugerir uma nova forma de classificação: a legitimidade processual coletiva. Abstract: Among the countless discussions involving the brazilian collective procedure, the issue about standing represents a sore point in academy debates because of its incompatibility within the liberal-invidualistic theory that classifies the legitimacy according to the ownership (or not) of the right affirmed in pleadings. However, the indivisible and indeterminable nature of collective rights prevents the application of this technique over collective standing, printing the necessity of its review in sight of the “collective paradigm” brought by the Republican Charter of 1988. On this track, this paper glimpse a further analysis over the standing institute, trying to settle the insufficiency of its usual classifications and suggest a new form of legal legitimacy: the collective standing. Palavras-Chave: Legitimidade processual coletiva. Processo coletivo. Direitos Transindividuais. Keywords: Collective standing. Collective procedure. Collective Rights. Sumário: 1. O instituto da legitimidade processual e a evolução do direito de ação: premissas a uma nova classificação. 2. Classificações atuais da legitimidade “ad causam” no processo coletivo. 2.1 Críticas a estas classificações. 3. Colocando a problemática: por que necessitamos rever o instituto da legitimidade no processo coletivo? 4. Revisitando o conceito de legitimidade: a legitimidade processual coletiva e a noção de situação legitimante de Elio Fazzalari. 4.1 Uma adequação necessária à teoria de Fazzalari. 5. Conclusão.

1. O instituto da legitimidade processual e a evolução do direito de ação: premissas a uma nova classificação

Qualquer trabalho que se proponha a investigar a legitimidade processual depara-se com um dilema técnico inafastável: a impossibilidade de se explorar o instituto à margem das teorias que procuram explicar o direito de ação. Por ligar-se diretamente ao sujeito e ao bem da vida almejado no curso de um processo, a questão da legitimidade sempre esteve presente nos mais de dois séculos de discussões que precederam as modernas concepções de ação e processo hoje consideradas, suportando toda a ordem de influência na construção de seu conceito. Em um breve panorama metodológico – sempre assumindo o risco que a síntese científica representa – pode-se afirmar que as teorias que intencionaram explicar o direito de ação evoluíram a partir da teoria imanentista (em que o direito de ação era imbricado ao direito material), atingindo, em seguida, uma fase autônoma, inaugurada pela polêmica envolvendo Windscheid e Muther, na qual a teoria da ação bifurca-se, dando surgimento às teorias concretas (Wach, Bülow e Chiovenda) e abstratas (iniciadas por Degenkolb e Plósz e aperfeiçoadas por Mortara e Couture), até desembocar na teoria eclética de Liebman, hoje positivada em nosso ordenamento jurídico e aplicada com o temperamento da teoria da asserção (“in status assertionis”). Ao longo deste tempo, o instituto da legitimidade processual foi fortemente influenciado pelas teorias acima destacadas, sendo inicialmente conceituado como mera expressão da titularidade do direito material (teoria clássica), passando pelo conceito de condição à obtenção de um pronunciamento judicial favorável (teoria autônoma concreta), alcançando, por conseguinte, uma fase genuinamente processual (teoria autônoma abstrata), em que a legitimidade se vincularia ao direito público subjetivo de ação, baseado na boa-fé do autor. Com Liebman, a legitimidade processual recebe os contornos da teoria eclética, tornando-se uma das três condições que o direito de ação deve observar para fins de obtenção de um provimento meritório. Referida teoria encontra-se expressamente agasalhada no direito positivo brasileiro (artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil de 1973), o qual inclui a ilegitimidade dentre as causas de extinção do processo sem julgamento de mérito por carência de ação.

Com o passar do tempo, a teoria de Liebman passou a receber contundentes críticas da doutrina, mormente por restringir a essência dos principais institutos de direito processual – jurisdição, ação, defesa e processo – à obtenção de um julgamento de mérito, bem como por permitir a aferição destas condições a qualquer tempo e “ex officio”, com base até mesmo em dilação probatória, gerando evidente prejudicialidade à economia processual e à segurança jurídica. Não bastasse, referida teoria não valoriza garantias processuais indispensáveis à concepção constitucional de processo, como, por exemplo, o princípio do contraditório. Tais críticas impulsionaram o florescer na doutrina italiana da teoria da asserção ou “prospettazione”, a qual prevê que a análise das condições da ação devem se restringir ao juízo de admissibilidade inicial que o magistrado exerce com lastro nas afirmações feitas pelo autor na petição inicial (“in statu assertionis”). Assim, do modo como é aceita hoje, inclusive pelos Tribunais Superiores,1 a legitimidade processual seria uma das condições elencadas como necessárias à obtenção de um provimento de mérito (teoria eclética de Liebman), cuja análise eventualmente poderia levar à extinção do processo sem julgamento de mérito, caso evidenciada ab initio, a partir das assertivas feitas pelo autor na peça inaugural (teoria da asserção).

1

CONDIÇÕES DA AÇÃO. PRECLUSÃO. TEORIA DA ASSERÇÃO. POSSIBILIDADE JURÍDICA. LEGITIMIDADE PASSIVA. HONORÁRIOS CONTRATUAIS. Cuida-se, na origem, de ação de arbitramento e cobrança de honorários advocatícios contratuais. A recorrente busca afastar a preclusão reconhecida pelo tribunal a quo, sustentando, entre outros temas, que essa se operou em questões de ordem pública referentes às condições da ação. Argui, para tanto, a inocorrência de preclusão em relação à impossibilidade jurídica do pedido e à ilegitimidade passiva. Como consabido, não há preclusão em relação às condições da ação que, por se tratar de matéria de ordem pública, cognoscível de ofício e insuscetível de preclusão, devem ser apreciadas pelo tribunal intermediário, ainda que arguidas em sede recursal. Contudo, a qualificação pelo recorrente de uma defesa de mérito como se condição da ação fosse não modifica sua natureza. Pela teoria da asserção, a verificação das condições da ação é realizada com base nos fatos narrados na inicial. In casu, a condenação ao pagamento de honorários advocatícios contratuais é pedido juridicamente possível. Da mesma forma, o outorgante que se beneficiou dos serviços advocatícios é parte legítima passiva para a ação condenatória. Dessarte, por se tratar de uma discussão de mérito e não de questões afetas à condição da ação (art. 267, § 3º, do CPC), a matéria está sujeita à preclusão. Assim, a Turma negou provimento ao recurso. Precedentes citados: REsp 1.138.190RJ, DJe 27/4/2011; REsp 1.052.680-RS, DJe 6/10/2011; REsp 753.512-RJ, DJe 10/8/2010, e MC 18.318RJ, DJe 2/9/2011 (REsp 595.188-RS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 22/11/2011); EMBARGOS INFRINGENTES. MATÉRIA FORMALMENTE PROCESSUAL. TEORIA DA ASSERÇÃO. A Turma decidiu que cabem embargos infringentes contra acórdão que, por maioria, acolhe preliminar de ilegitimidade passiva e reforma sentença para extinguir a ação sem julgamento do mérito. Assim, em respeito ao devido processo legal, o art. 530 deve ser interpretado harmoniosa e sistematicamente com o restante do CPC, admitindo-se embargos infringentes contra decisão que, a despeito de ser formalmente processual, implicar análise de mérito. Para a Min. Relatora, adotando a teoria da asserção, se, na análise das condições da ação, o juiz realizar cognição profunda sobre as alegações contidas na petição, depois de esgotados os meios probatórios, terá, na verdade, proferido juízo sobre o mérito da controvérsia. Na hipótese, o juiz de primeiro grau se pronunciou acerca da legitimidade passiva por ocasião da prolação da sentença, portanto depois de toda a prova ter sido carreada aos autos (REsp 1.157.383-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 14/8/2012).

Apresentado o panorama atual da legitimidade processual (ainda que sob à ótica do direito individual), questiona-se: seria este um conceito/classificação suficiente de

legitimidade

para

o

processo

coletivo?

Melhor

dizendo:

seria

este

conceito/classificação adequado a toda relação social, independentemente das necessidades e vicissitudes do direito material envolvido?

2. Classificações atuais da legitimidade “ad causam” no processo coletivo

Dentre as diversas correntes que procuram classificar a legitimidade “ad causam” no processo coletivo brasileiro,2 três foram selecionadas neste trabalho por representarem o pensamento majoritário da doutrina a respeito do tema. Uma primeira corrente entende correta a adoção de uma legitimidade ordinária no campo do processo coletivo, fundamentando que a legitimidade, por ser instituída por lei e em razão do interesse público, faz com que os entes legitimados defendam não só interesses alheios, mas também interesses próprios, coincidindo-se parcela da titularidade do direito material com a representação processual. Este é o pensamento de Rodolfo de Camargo Mancuso, que afirma: (...) quando o indivíduo age per se, na tutela de interesses gerais, ele também defende interesse próprio, configurado na cota-parte daqueles interesses, a qual lhe pertence enquanto indivíduo, cidadão, eleitor ou contribuinte.3

Kazuo Watanabe, comentando a legitimação das entidades civis na defesa dos interesses metaindividuais do grupo associado, também conclui tratar-se de legitimação ordinária (com base em uma leitura ampliada do artigo 6º do CPC), a qual seria extraída das “formações sociais” que agem na defesa de seus objetivos institucionais.4

2

Além das três correntes aqui apresentadas, é possível falar ainda em doutrinas dissidentes, como as defendidas por Luciano Velasque Rocha (teoria de "partes em razão do cargo" ou "Parteien kraft Amtes"), Enrico Túlio Liebman (teoria da "sustituzione ufficiosa") e Donaldo Armelin (teoria da "condução do processo"). 3 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT, 2004, p. 214. 4 “Parece-me que é possível interpretar-se do art. 6º do CPC com maior abertura e largueza, extraindo de seu texto a legitimação ordinária das associações e outros corpos intermediários, que sejam criados para a defesa de interesses difusos. [...] Associação que se constitua com o fim institucional de promover a tutela de interesses difusos (meio ambiente, saúde pública, consumidor etc.), ao ingressar em juízo estará defendendo um interesse próprio, pois os interesses de seus associados e de outras pessoas eventualmente atingidas são também seus, uma vez que ela se propôs a defendê-los como sua própria razão de ser”. WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir,

No mesmo sentido, Ada Pellegrini Grinover disserta que a defesa dos interesses institucionais pelos entes legitimados confunde-se com os interesses do grupo associado, cuidando, portanto, de uma legitimação ordinária.5 Entretanto, no tocante a defesa dos direitos individuais homogêneos, Grinover infere tratar-se de legitimidade extraordinária a título de substituição processual, alinhando-se, neste aspecto a outra corrente.6 De outro giro, uma segunda corrente capitaneada por Barbosa Moreira7 entende tratar-se de legitimação extraordinária (instituto amplamente conhecido pelos processualistas brasileiros como substituição processual), em que o legitimado extraordinário atuaria em juízo defendendo direito alheio em nome próprio, exclusiva ou concorrentemente ao legitimado ordinário titular do direito material. Este posicionamento é seguido de perto por parte considerável da doutrina brasileira, como Arruda Alvim,8 Hugo Nigro Mazzilli,9 Ephraim de Campos Júnior,10 Pedro da Silva Dinamarco,11 Fredie Didier Júnior e Hermes Zaneti Júnior,12 entre outros. Com efeito, a maioria dos doutrinadores simpáticos a esta corrente enxerga a substituição processual como sinônimo de legitimidade extraordinária, ressalvada a posição de Barbosa Moreira, que acertadamente prevê uma diferenciação para os institutos.13 Resta citar, por fim, a corrente defendida por Nelson e Rosa Nery, a qual estabelece que a legitimidade no bojo do processo coletivo seria autônoma para a

in GRINOVER, Ada Pellegrini (coord.). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 96. 5 GRINOVER, Ada Pellegrini. Mandado de segurança coletivo: legitimação e objeto. Revista de Processo. São Paulo, v. 15, n. 57, p. 101, jan./mar. 1990. 6 GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 799. 7 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos. Temas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 111. 8 ALVIM, Arruda. Código de do consumidor comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 360. 9 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 20ª e. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 62. 10 CAMPOS JR., Ephraim. Substituição Processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 86. 11 DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 205. 12 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil – Processo Coletivo. 4ª e. Salvador: JusPodivm, 2009, p.198. 13 O autor acentua que a substituição processual somente se verifica presente diante da legitimação extraordinária autônoma exclusiva, por ser esta a única hipótese fática que de fato substitui a atuação do legitimado ordinário em Juízo. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 39, 1985, p. 12.

condução do processo, no rumo da tese do autor alemão Wather Hadding acerca da “selbständige Prozeβführungsrecht”. Para os processualistas paulistas, a legitimação autônoma para a condução do processo teria lastro no direito positivo, o qual garantiria uma legitimação própria, sui generis, com base exclusivamente na previsão legal, distanciando-se da clássica divisão da legitimidade em ordinária e extraordinária, esta baseada na titularidade (ou não) do direito material.14 Conforme esclarece Marcelo Abelha Rodrigues, também partidário de referido entendimento: Assim, preferimos dizer que a legitimidade é autônoma, um tertium genus, e que, aprioristicamente, não deve ser classificada como ordinária ou extraordinária. Não é ordinária porque o atingido pela coisa julgada não é o titular do direito de ação, ainda que se dissesse que o ente com representatividade adequada tenha por finalidade institucional a defesa desses direitos. Repita-se, os limites subjetivos da coisa julgada alcançarão os titulares do direito adequadamente representado em juízo. Não é extraordinária nos moldes clássicos porque não se identifica o substituído e, portanto, não se sabe quando seria ordinária.15

Esta última teoria tem encontrado prestigio na doutrina brasileira, angariando adeptos como Thereza Arruda Alvim Wambier,16 Ricardo de Barros Leonel,17 Elton Venturi,18 José Marcelo Vigliar,19 Antonio Gidi,20 dentre outros.

2.1 Críticas a estas classificações

Conforme acentuado, a doutrina processual majoritária admite três grandes correntes para explicar a legitimidade processual em matéria de processo coletivo: a) há quem defenda tratar-se de espécie de legitimação ordinária; b) há quem afirme cuidar14

Na legitimação autônoma para a condução do processo “o legislador, independentemente do conteúdo do direito material a ser discutido em juízo, legitima pessoa, órgão ou entidade a conduzir o processo judicial no qual se pretende proteger o direito difuso ou coletivo”. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. São Paulo: RT, 2006, p. 152-153. 15 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e meio ambiente. São Paulo: Forense Universitária, 2003, p. 59. 16 WAMBIER, Theresa Arruda Alvim. O direito processual de estar em Juízo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 15-16. 17 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 159. 18 VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 212-215. 19 VIGLIAR, José Marcelo. Interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Salvador: JusPODVM, 2005, p. 65-66. 20 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 41.

se de legitimação extraordinária, a título de substituição processual; c) por fim, há autores que sustentam uma legitimidade autônoma para a condução do processo. As duas primeiras correntes, anteriores à Constituição Federal de 1988, à Lei de Ação Civil Pública de 1985 e ao Código de Defesa do Consumidor de 1990, podem ser elogiadas pela posição de vanguarda que assumiram em tempos ideologicamente desfavoráveis à tutela coletiva brasileira. Seus precursores buscaram, sobretudo, adequar a clássica divisão da legitimidade processual individual (ordinária e extraordinária) às pretensões coletivas, cuidando para que os direitos metaindividuais não ficassem à deriva de chancela jurisdicional. A seu turno, a terceira corrente foi importada do direito alemão, particularmente da tese sobre a “selbständige Prozeβführungsrecht”, traduzindo-se em um conceito processual lastreado na lei positiva, contrapondo-se ao instituto da substituição processual rejeitado por Hadding. Deve-se a Nelson e Rosa Nery a tentativa de adequar a figura processual estrangeira à tutela coletiva nacional, ainda que a ela os autores tenham acrescentado contornos tipicamente tupiniquins (como, por exemplo, a aplicação da tese para explicar a natureza de ações de controle concentrado de constitucionalidade). Ousa-se dizer, porém, que tais classificações, desenvolvidas à luz de institutos destinados a composição de conflitos interindividuais, não resolvem com a devida suficiência a questão da legitimidade “ad causam” no processo coletivo. Com relação à corrente que defende tratar-se de legitimidade ordinária, arquitetada no Brasil na década de 80, o próprio Kazuo Watanabe, revendo posicionamento anterior, assumiu não haver mais sentido atribuir à legitimidade a classificação de ordinária após a inclusão legal de um rol de legitimados não titulares do direito material para a defesa dos direitos coletivos em Juízo.21 É impossível conceber, por exemplo, que o Ministério Público, enquanto instituição autônoma e jungida constitucionalmente à defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis, deposite interesses particulares nas ações coletivas que ajuíza em favor da sociedade. O mesmo se pode dizer da Defensoria Pública em face das ações coletivas que promove em favor das coletividades hipossuficientes. O interesse

21

WATANABE, Kazuo. Processo civil e interesse público – o processo como instrumento de defesa social. Carlos Alberto de Salles (org.) São Paulo: RT, 2003, p. 18, apud DIDIER JR.; ZANETI JR., op. cit., p. 198.

processual aqui decorre da própria missão outorgada pela Carta da República, o que impede tenham estas instituições públicas interesses subjetivos na lide. Da mesma forma, indicar ser a legitimidade dos atores da tutela coletiva uma legitimidade extraordinária por substituição processual não resolve propriamente a questão. Conforme ponderam Marinoni e Arenhart: De fato, não há razão para tratar da legitimidade para a tutela coletiva dos direitos transindividuais (ou mesmo dos direitos individuais homogêneos) a partir de seu correspondente no processo civil individual. Quando se pensa em “direito alheio”, raciocina-se a partir de uma visão individualista, que não norteia a aplicação da tutela coletiva. Não só a partir da premissa de que apenas o titular do direito material está autorizado a ir a juízo, mas principalmente a partir da ideia de que somente há direitos individuais. A noção de direitos transindividuais, como é óbvio, rompe com a noção de que o direito ou é próprio ou é alheio. Se o direito é da comunidade ou da coletividade, não é possível falar em direito alheio, não sendo mais satisfatória, por simples conseqüência lógica, a clássica dicotomia que classifica a legitimidade em ordinária e extraordinária.22

Nesta toada, o fato de o substituído ser atingido pelos efeitos da coisa julgada material, inclusive para prejudicá-lo, ou ainda, conforme lembra Arruda Alvim, o fato de o substituto ter de suportar os ônus sucumbenciais por agir “em nome próprio”,23 impedem que esta substituição processual seja plenamente aplicável à tutela dos direitos coletivos, à luz dos artigos 87 e 103, parágrafos 1°, 2º e 3º do CDC. Por sua vez, a teoria da legitimidade autônoma para a condução do processo merece um enfoque especial, já que inova ao abandonar a classificação da legitimidade conforme o fato de se tratar de direito próprio (ordinário) ou alheio (extraordinário). Ao contrário, passa-se a admitir uma espécie de legitimidade desprendida do direito substancial, de cunho estritamente processual. Assim, partindo de uma exegese puramente abstrata, esta teoria conclui que a legitimidade para agir no processo estaria imbricada a própria titularidade do direito de ação e não necessariamente à titularidade do direito material. Este o pensamento de Hélio Tornaghi, para quem “a legitimidade é a titularidade do direito de ação. Parte legítima é aquele a quem a lei confere o direito de ir a juízo pedir determinada prestação jurisdicional”.24

22

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 6ª e. São Paulo: RT, 2007, p. 792-793. 23 ALVIM, op. cit., p. 361. 24 TORNAGHI, Hélio Bastos. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 1974, p. 90-91.

Segundo Luciano Velasque Rocha, a figura da legitimação autônoma para a condução do processo foi criada por Walther Hadding para explicar a legitimidade conferida às associações e ao concorrente (em hipóteses de concorrência desleal), conforme dispositivos da lei alemã (parágrafos 1, 3, 6, 8, 10 - 12 da UWG) que "estabeleciam apenas o dever jurídico de omissão de certas ações que redundariam em concorrência desleal, sem que este dever estivesse associado a um direito material na pessoa de um sujeito de direitos apto a exigir o cumprimento deste mesmo dever".25 Ocorre que, segundo a perspectiva tracejada neste ensaio, compreende-se que esta teoria também não lança luzes sobre a problemática jurídico-processual que compõe a classificação da legitimidade aplicada aos conflitos metaindividuais. Ora, simplesmente afastar a titularidade do direito material da legitimidade “ad causam” e afirmá-la autônoma com base na estipulação legal não modifica a base científica interindividual que está por traz do conceito, revelando um raciocínio circular ou tautológico - os entes seriam legitimados porque a lei os legitima26 - que ao mesmo tempo em que afasta o instituto processual do direito material, lhe remete a um vácuo de indeterminabilidade. Neste sentido, eis a percuciente crítica de Rocha: Por outro lado e com o devido respeito dos defensores da tese, tampouco nos parece suficiente dizer que a legitimação é autônoma para a condução do processo quando se está a tratar de ações coletivas. Com efeito, dizer que a legitimidade é autônoma significa afirmar que a legitimidade é autônoma em relação à titularidade da relação de direito material, o que equivale a dizer que se rejeita esta afirmação de titularidade como situação legitimante. Mas afastada a afirmação de titularidade como situação legitimante, o que se deve colocar no seu lugar como situação legitimante? O conceito de legitimação autônoma para a condução do processo decerto não o diz. A ideia da legitimação autônoma expressa tão-somente um vácuo deixado pela noção de titularidade da relação jurídica material, sem nada pôr no seu lugar. 27

Dizer que a legitimidade é autônoma em relação ao processo em nada resolve a incompatibilidade da tutela individual aplicada aos conflitos interindividuais, eis que se abandona a corriqueira classificação baseada na titularidade do direito material, e, em seu lugar, acrescenta-se uma classificação fundada na lei e nada mais. Com efeito, deve-se ter em mente que a legitimidade processual terá sempre correlação com o direito substancial, porque aferido em razão e em face das 25

ROCHA, Luciano Velasque. Ações Coletivas – O Problema da Legitimidade para Agir. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 132. 26 ROCHA, op. cit., p. 134. 27 ROCHA, op. cit., p. 138.

circunstâncias deste, de maneira que afastá-la das teorias subjetivas e relegá-la ao vazio científico em nada corrige o equívoco dogmático que há por traz da classificação, tampouco modifica o fundamento filosófico que edifica o raciocínio. De todo o exposto, constata-se que as atuais classificações da legitimidade processual em matéria coletiva não se ajustam ao objeto da chancela metaindividual, ora porque baseadas em institutos do direito processual civil individual, ora porque afastadas do direito material coletivo, pouco contribuindo, assim, para a solução do problema que incomoda os estudiosos do tema. 3. Colocando a problemática: por que necessitamos rever o instituto da legitimidade no processo coletivo?

Consoante o esposado, no processo civil individual a legitimidade processual possui como regra a identidade entre a titularidade do direito de ação e a titularidade do direito material. A regra é, portanto, que ninguém pode pleitear, em nome próprio, direito alheio (art. 6º, “caput”, CPC). Há, porém, uma exceção trazida pela lei adjetiva (legitimidade extraordinária), em que a defesa do direito alheio restaria permitida ora em nome próprio (substituição processual), ora em nome da parte representada (representação processual). Ocorre que as classificações dos institutos citados (legitimação ordinária e extraordinária, substituição processual, representação processual etc.), foram todas erigidas com base em experiências do direito individual, do tipo “Tício versus Graco”, em uma época em que os direitos transindividuais sequer haviam se descortinado perante a comunidade jurídica nacional. É sempre bom recordar que o processo civil vigente (Código de Processo Civil de 1973) está assentado sobre premissas científicas liberal-individualistas, herança de uma principiologia patrimonialista do Código Civil de 1916, cujas regras procuravam antever todo um universo de conflitos interindividuais, em uma perspectiva claramente positivista-normativa. Trata-se de um dos indesejados efeitos do instrumentalismo processual, que, aliado a influência exercida pela axiologia liberal-burguesa cristalizada no Código Civil de 1916, conceituava o processo e seus institutos como meros "meios" à consecução dos "fins" do direito material.

Com o advento do Estado Social e, posteriormente, do Estado Democrático de Direito (1988), anseios coletivos até então encobertos e não judicializados passaram a compor o cenário jurídico nacional, exigindo uma nova postura dos Poderes Executivo, Legislativo e (principalmente) Judiciário frente aos direitos fundamentais sociais e à diretriz principiológica estampada no artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Republicana de 1988 (acesso à justiça). À luz dessa mudança de paradigma, o processo coletivo tornou-se impassível de se regular por institutos do direito individual, como, por exemplo, em relação às regras que disciplinam a coisa julgada, intervenção de terceiros, competência, efeitos recursais, liquidação de sentenças, tutela executiva, bem como a legitimidade. Consoante perfilha Venturi: O critério tradicional, aliás, não serve, pragmaticamente, à extração de soluções adequadas aos graves problemas atinentes à representatividade adequada, aos limites da participação do autor no procedimento judicial (v.g., restrições quanto a transações), aos limites da operatividade da eficácia dos provimentos e à incidência da autoridade da coisa julgada. [...] Assim, qualquer conclusão que se chegue sobre a natureza jurídica da legitimação ativa para a propositura de demandas coletivas, se alicerçada sob os paradigmas do processo civil individual, contrapondo-se legitimação ordinária vs. legitimação extraordinária, está fadada a não ser considerada nem correta, nem incorreta, mas sim desfocada ou descontextualizada.28

Alguns autores inclusive sustentam que o advento da Constituição Federal de 1988 deu cabo da vetusta dicotomia "público-privado" que permeou o Direito por séculos, passando a admitir uma nova polarização, agora "individual-coletiva".29 Na verdade, os danos científicos suportados em virtude da adoção desta antiquada base dogmática remetem a uma crise teórica muito mais profunda, de inevitável cunho jus-filosófico, há anos denunciada por vozes autorizadas na doutrina, sobretudo por Lenio Luiz Streck.30 Sem pretender esmiuçar o tema - até porque foge aos objetivos deste trabalho -, tem-se que a não superação da filosofia da subjetividade e a não aceitação da

28

VENTURI, op. cit., p. 213/214. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Material Coletivo - superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 30 "A crise do modelo (modo de produção de Direito) se instala justamente porque a dogmática jurídica, em plena sociedade transmoderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos Códigos (civil, comercial, penal, processual penal e processual civil etc)". STRECK, Lenio Luis. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 8ª e. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 138. 29

guinada linguística pelo Direito contribuem, negativamente, ao processo de interpretação dos institutos jurídicos (inclusive os processuais), porque ainda vistos como objetos a serem desvendados subjetivamente pelo intérprete, dentro de uma perspectiva dicotômica sujeito-objeto. Assim, afirmar que a legitimidade processual se baseia na titularidade (ou não) de um direito subjetivo, o qual, por sua vez, é compreendido como mera relação jurídica entre sujeito-bem ou sujeito-sujeito, remete à aplicação de um raciocínio interpretativo polarizado, distante da hermenêutica jurídica pós-moderna e do paradigma transindividual que permeia as relações sociais atuais. Nesta perspectiva, as normas de processo civil - enquanto produto aplicativo-interpretativo - esbarram sempre na barreira da subjetividade/individualidade, fato que as impede de exercer um “papel constitutivo e não apenas reprodutivo do Direito”.31 A frente desta ordem de ideias, compreende-se que as atuais classificações adotadas pela doutrina brasileira não resolvem dogmática ou filosoficamente o grande impasse que a legitimidade processual vive hoje no processo coletivo: impertinência do suporte científico de base individual-patrimonialista para conceituar/classificar a legitimidade processual coletiva. Assim, quando transportada a questão para o processo coletivo, a legitimidade necessariamente se modifica – ou ao menos deveria se modificar –, já que a própria natureza transindividual dos direitos coletivos, muitas vezes de conteúdo indivisível e com titulares indetermináveis, obstaculiza a conexão entre o direito material lesado e o sujeito processual que assume a sua defesa em Juízo. Humberto Theodoro Jr., neste sentido, obtempera: É claro que complicações graves surgem para a dogmática do processo, tradicionalmente elaborado e sistematizado em função quase que exclusiva dos interesses e conflitos individuais. Assim, conceitos clássicos como o de legitimação e interesse têm de ser readaptados para a análise dos pressupostos e condições das ações coletivas ou de grupo.32

Nesta trilha, premente a necessidade de uma correção de rumos, a fim de adequar o instituto processual da legitimidade à sistemática jurídica inaugurada pelo constitucionalismo pós-positivista e pelos conflitos metaindividuais. 31

STRECK, op. cit., p. 91. THEODORO JR., Humberto. A tutela dos interesses coletivos (difusos) no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, v. 318, p. 45, apud GOMES JR., op. cit., p. 34. 32

Abandonando, portanto, os conceitos e classificações anteriormente expostos, sobretudo em virtude das críticas já ventiladas, vislumbra-se a adoção de uma nova classificação: a legitimidade processual coletiva. 4. Revisitando o conceito de legitimidade: a legitimidade processual coletiva33 e a noção de situação legitimante de Elio Fazzalari

Investigando o vínculo que legitima concretamente o exercício do direito de ação em face de situações jurídicas coletivas, parece claro que uma mudança de paradigma passa necessariamente pela formação e identificação do elemento constitutivo da legitimidade: a situação legitimante. Luciano Velasque Rocha abordou, com a devida propriedade, o tema da situação legitimante em sua dissertação de mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Com suporte na doutrina estrangeira, partiu da teoria da aparência de Carnelutti,34 passando pela teoria de Monacciani,35 e, ainda, pela teoria alemã de “partes em razão do cargo” (Parteien Kraft Amtes),36 até chegar à tese que entende apropriada – a qual também é compartilhada por Barbosa Moreira37 – de que a situação legitimante seria a "situação abstratamente prevista em lei", aferida em face da “afirmação da titularidade da relação jurídica controvertida”.38 Ao final de sua análise acerca da situação legitimante, todavia, o próprio autor conclui que o âmbito de validade deste conceito deve circunscrever-se ao processo civil individual, eis que baseada (novamente) na afirmação da titularidade de uma

33

O conceito de “legitimação processual coletiva” foi encontrado na obra originada da tese de doutoramento de Luiz Manoel Gomes Júnior, em que o autor, após analisar detidamente as diversas classificações sobre a legitimidade processual no plano coletivo, propõe, de forma inovadora, uma nova classificação, prevendo sua maior utilidade à tutela do direito coletivo material (GOMES JR., Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. Rio de Janeiro: Forense, 2005). Adotando o conceito de Gomes Júnior como ponto de partida, este trabalho pretende acrescentar à concepção de "legitimidade processual coletiva" uma possível base científica de influência fazzalariana, visando impedir o desuso ou a imoderação da mera aposição do adjetivo "coletivo" a categorias processuais já existentes, conforme alerta Rocha (ROCHA, op. cit., p. 128). 34 Para o mestre italiano, somente através de uma legitimidade aparente poderia um sujeito, que não o titular da relação jurídica controvertida, apresentar-se como seu titular em juízo. CARNELUTTI, Francesco. Istituzioni nel nuovo processo civile italiano. 4ª e. Roma: Foro Italiano, 1951, t. 1, p. 312 apud ROCHA, op. cit., p. 107. 35 Sobre a teoria de Luigi Monacciani e seu rapporto prodromico (relação prodrômica) como situação legitimante, conferir a obra “Azione e legittimazione”, 1951. 36 ROCHA, op. cit., p. 110-111. 37 MOREIRA, Apontamentos para um estudo sistemático... op. cit., p. 10. 38 ROCHA, op. cit., p. 109.

relação jurídica material, não havendo sentido em pintá-la com as cores da tutela coletiva.39 Superado este obstáculo, Rocha obtempera que o ponto fulcral da titularidade da ação coletiva está justamente no instituto da situação legitimante e não propriamente no conceito de legitimidade, adotando, então, a teoria alemã de "partes em razão do cargo" (Parteien kraft Amtes), que, nas palavras do autor, "vislumbra a situação legitimante nas próprias atribuições do cargo que se ocupa".40 Tendo em vista as lúcidas considerações lançadas pelo autor, tomadas aqui como ponto de partida, compreende-se a necessidade de elaboração de uma base teórica mais apropriada de situação legitimante, que abrigue todas as hipóteses de legitimidade processual coletiva e não só a legitimidade dos entes públicos (como parece fazer a teoria de "partes em razão do cargo"), eis que só assim poderá ser superado o paradigma individual que há por traz das classificações hoje existentes. Neste sentido, a teoria proposta por Fazzalari41 parece oferecer o supedâneo necessário para a elaboração deste novo preceito (embora também careça de certa adequação ao processo coletivo). Segundo o mestre italiano, a situação legitimante seria espécie do gênero "legitimação", compreendido como um conceito geral do Direito, do qual se extrairia também o conceito de situação legitimada. Abandonando a tese relacionista de Bülow, de matiz liberal-individualista, o autor parte das concepções situacionistas de Goldschmidt42 e estabelece que a situação legitimante referir-se-ia a uma situação constituída, originada de um fato ou ato jurídico, a qual, com base na norma, instituiria um poder, uma faculdade ou um dever a um sujeito, legitimando-o a exercer àquela pretensão em Juízo. A

respeito

deste

quadrante,

explica

Flaviane

Pellegrini,

citando

Goldschmidt: 39

Idem, p. 110. Idem, p. 111. 41 A teoria de Fazzalari rompe com três dos pilares cristalizados no Brasil pela adoção da teoria eclética de Liebman. Primeiramente, o processo passa a ser admitido enquanto situação jurídica, abandonando-se a concepção de relação jurídica processual liberal-individualista de Bülow, segundo a qual o processo é visualizado como um vínculo subordinativo entre sujeitos. Como segundo ponto de rompimento, o processo passa a ser admitido enquanto “procedimento em contraditório”, em que o rito processual desenhado pela atuação paritárias das partes torna legítima (ou não) a própria noção de processo e de jurisdição, contribuindo essencialmente à formação do resultado da apreciação jurisdicional. Por fim, a ação passa a ser diretamente influenciada pelo instituto da legitimidade, a qual é dividida por Fazzalari em situação legitimante e situação legitimada. FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Trad. Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006. 42 GOLDSCHMIDT, James. Teoria general del proceso. Barcelona: Labor, 1936. 40

Assim, o conceito de imperativo e de relação jurídica, por conseqüência, pertence ao direito privado, compreendendo a face estática do direito. Ao passo que o direito processual compreende a sua face dinâmica, na qual não existem relações jurídicas – entre juiz e as partes (teoria angular), ou entre juiz, demandante e demandado (teoria triangular), ou entre demandante e demandado exclusivamente (teoria linear) – (Cf. GOLDSCHMIDT, 1936B, p. 7), mas sim, situações jurídicas, compreendidas como expectativas, possibilidades e ônus.43

Importante registrar também a posição de Teixeira: O que se verifica é que o processo, enquanto estrutura normativa, não mais comporta vínculos de subordinação entre os sujeitos. Uma nova leitura acerca do que seja direito subjetivo impõe-se. Nessa perspectiva, o direito que decorre da norma deixa de ser visto como vínculo subjetivo de exigibilidade, passando a ser concebido como posição subjetiva de vantagem de um sujeito em relação a um bem. Tal vantagem tem assento na própria norma e não na vontade de um dos sujeitos. São os fatos ou atos jurídicos que encontram correspondência na norma - enquanto cânone de valoração de uma conduta -, que irão propiciar ao sujeito uma específica posição em relação a ela. Essas posições subjetivas, em que se colocarão os sujeitos processuais, poderão ensejar-lhes poderes (atos gerados por uma vontade declarada), faculdades (atos gerados por uma vontade implícita) ou deveres (atos de cumprimento da norma). Dessa forma, as posições assumidas pelas partes ao longo do procedimento geram-lhes situações jurídicas. Não situações que derivam da sobreposição de um sujeito sobre o outro. Mas de faculdades, poderes e deveres que são vistos, à luz da teoria da situação jurídica, como possibilidades que a própria lei oferece às partes.44

Nesta senda, a situação legitimante restaria caracterizada diante de um fato ou ato jurídico (situação jurídica), referendado pela norma, a qual oportunizaria um poder, uma faculdade ou um dever a um sujeito específico. Fazzalari define esta posição do sujeito em face da norma originada pela situação jurídica como a posição jurídica subjetiva do indivíduo. Assim, o autor abandona a ideia de legitimidade em face da titularidade do direito material para buscá-la em face da situação legitimante, em que uma situação jurídica permitiria a identificação dos sujeitos processuais em face da norma, levando em consideração dois aspectos fundamentais: a) a medida jurisdicional requerida (provimento); b) sujeitos que sofrerão os efeitos deste provimento. Para melhor compreensão, eis a lição de Gonçalves:

43

PELLEGRINI, Flaviane de Magalhães Barros. O processo, a jurisdição e a ação sob a ótica de Elio Fazzalari. Belo Horizonte: Virtualjus, v. 1, 2003, p. 14. 44 TEIXEIRA, Renato Patrício. Legitimação para agir no processo coletivo. 2006. 401f. Tese de Doutorado – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Programa de Pós Graduação em Direito. Belo Horizonte, p. 150-151.

Situação legitimante é uma situação constituída, perante a qual um poder, uma faculdade ou um dever são conferidos ao sujeito, e, conforme Fazzalari, permite a indicação de quem pode atuar como sujeito em um processo concretamente considerado, quem deterá a legitimação para agir em um dado processo. [...] O provimento será o ponto referencial para que, com base na situação legitimante, se identifique quem é o sujeito, dentre os protagonistas do processo – as partes (autor, réu, intervenientes), o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exigir –, que pode ou deve cumprir um determinado ato processual.45

Logo, parte seria aquele que sofre os efeitos do provimento jurisdicional e não todo aquele que concorre para o desenvolvimento do processo (estes sujeitos processuais). Interessante acentuar que, para Fazzalari, todos os sujeitos que sofrem os efeitos da decisão são considerados sujeitos passivos em face do provimento jurisdicional, isso porque se analisa a posição de parte com relação ao suporte dos efeitos da decisão exarada. Na outra ponta da linha, o autor assevera, em relação aos sujeitos processuais, que todos estes seriam detentores de legitimidade ativa, eis que “agem” no processo segundo os direitos, faculdades ou deveres conferidos pela norma, participando assim da construção do provimento jurisdicional final. Neste sentido, conclui Flaviane Pellegrini: Importantes, parece-nos, são as implicações dessa conclusão, pela qual têm ação no processo todos aqueles que realizaram uma série de atos, poderes, faculdades e deveres. Principalmente, no que tange ao confronto entre as atuações do autor e do réu. Pois, tanto um, quanto outro, possuem faculdades, poderes e deveres, relativos à construção do processo como procedimento em contraditório, entendido como posição de simétrica paridade entre eles. Logo, não se pode falar em legitimação ativa do autor e legitimação passiva do réu. Pois, ambos são legitimados ativos do contraditório. Se há alguma legitimação passiva das partes, esta se refere à legitimação ao provimento jurisdicional, pois serão eles os afetados pela sentença do juiz. 46

Paralelamente ao conceito de situação legitimante está o de situação legitimada, que, para Teixeira, consubstancia a verdadeira novidade da teoria de Fazzalari no que diz respeito à teoria da ação.47 De fato, é na elaboração da situação

45

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE, 1992, p. 145-146. 46 PELLEGRINI, op. cit., p. 27. 47 TEIXEIRA, op. cit., p. 273.

legitimada que o processualista italiano abandona a ideia de ação como ato inaugural do processo, movido pela vontade do autor. Segundo ele, o procedimento construído com base no contraditório é algo fluído e dinâmico, de forma que as situações jurídicas que surgem ao longo do processo não são iniciais e singulares, mas sim complexas e multifacetárias, modificando-se com base nas novas posições jurídicas que os sujeitos alcançam através da manifestação de suas faculdades, ônus ou direitos. A esta concatenação de atos interdependentes (ações), expressados pela série de possibilidades contidas na norma como faculdades, ônus ou direitos, confere-se o nome de situação legitimada, a qual vai perdurar durante todo o processo até a construção do provimento final. Nas palavras de Gonçalves, “a situação legitimada consiste em uma série de poderes, faculdades, deveres, que se põe como expectativa para cada um dos sujeitos do processo”.48 Teixeira assim sintetiza a teoria de Fazzalari, citando, mais uma vez, Aroldo Plínio Gonçalves: Comentando a obra de Fazzalari, o Prof. Gonçalves esclarece que aquele autor trabalhou a legitimação sobre duplo aspecto, a saber, o da situação legitimante e o da situação legitimada. A primeira é uma situação constituída, em que são conferidos poderes, faculdades ou deveres ao sujeito, que fica legitimado a agir em um determinado processo. A segunda são os poderes, faculdades, ou deveres postos como expectativas para cada um dos sujeitos do processo. Através do provimento, tido como eixo referencial da legitimação, identificar-se-á qual dos participantes do processo (partes, juiz, auxiliares) poderá ou deverá cumprir certo ato processual. As partes, destinatárias que são do provimento, poderão influenciar na sua formação, mediante o contraditório. Todos os participantes do processo, na visão de Fazzalari, têm legitimação ativa. Partes, entretanto, serão apenas os destinatários dos efeitos do provimento. Dessa forma, parte deixa de ser quem pede em juízo, bem assim em face de quem se pede, para ser, efetivamente, aqueles sujeitos que serão alcançados pelo provimento jurisdicional.49

Para os fins perseguidos neste ensaio, portanto, é evidente a contribuição que Fazzalari exerceu para a reconstrução do conceito de legitimidade processual. Os delineamentos efetuados pelo autor claramente quebram com a ultrapassada identidade entre as titularidades do direito material e do direito de ação, trazendo à baila um novo conceito de legitimidade, este baseado na situação legitimante

48 49

GONÇALVES, op. cit., p. 152. TEIXEIRA, op. cit., p. 339-340.

e nas diferentes posições jurídicas construídas pelos sujeitos processuais ao longo do procedimento desenvolvido em contraditório. Não bastasse, a teoria de Fazzalari se ajusta a todas as espécies de representatividade exercidas na seara coletiva, sendo possível aplicá-la em face de ações coletivas movidas por entes públicos (Ministério Público, Defensoria Pública, Administração Pública Direta e Indireta) e privados (associações, partidos políticos, sindicatos, OAB etc.), ou mesmo em virtude de ações coletivas ajuizadas pelo próprio cidadão (ação popular). Vislumbra-se, ainda, a possibilidade de sua incidência independentemente da espécie de direito transindividual tutelado, até porque se compreende que o fato de o direito ser naturalmente coletivo (difusos e coletivos strictu sentu) ou acidentalmente coletivo (individuais homogêneos) em nada modifica a essência da legitimidade processual exercida em Juízo, cujo fundamento deontológico continua fixando raízes no paradigma transindividual, na conflituosidade de massa e na realização da macrojustiça. Nesse contexto, compreende-se que a concepção de legitimidade trazida por Fazzalari demonstra-se apta a alicerçar a proposta de uma nova classificação de legitimidade processual, agora pautada em bases científicas adequadas aos direitos transindividuais.

4.1 Uma adequação necessária à teoria de Fazzalari

Apesar de remodelar a ideia de situação legitimante, a teoria de Fazzalari não trabalha, com completude, a nítida imbricação que há entre o instituto da legitimidade e os direitos fundamentais coletivos. Por embasar-se, sobretudo, em um eixo analítico procedimentalista50 sendo possível buscar uma aproximação do pensamento do autor italiano com a doutrina política de Habermas - Fazzalari deposita no procedimento exercido em contraditório a chave para uma legítima construção do processo, à luz da teoria do discurso.

50

Contrapondo-se às teses substancialistas, é possível afirmar, com Streck, que o paradigma procedimentalista "pretende ultrapassar a oposição entre os paradigmas liberal/formal/burguês e o do Estado Social de Direito, utilizando-se, para tanto, da interpretação da política e do direito à luz da teoria do discurso”. STRECK, op. cit., p. 39.

Assim, embora o autor não renegue a teoria dos direitos fundamentais, como o faz Niklas Luhmann,51 também não se preocupa com ela, fazendo de sua teoria uma tese a ser conformada, especialmente em razão do direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e da noção de acesso à justiça. Neste sentido, Marinoni conclui, com razão, que a teoria de Fazzalari “não se preocupa com o direito ao procedimento adequado à tutela do direito ou com a necessidade de o procedimento estar atento às necessidades do direito material”,52 bastando o atuar em contraditório para legitimação do processo e do provimento jurisdicional. Nada impede, todavia, que a teoria do processualista italiano seja adequada a esta concepção de acesso à justiça (direito à tutela adequada), à luz de uma leitura material das regras e princípios processuais estampados na Constituição Federal. De qualquer forma, para os fins propostos neste trabalho, suficiente a adoção da teoria de Fazzalari para demonstrar a possibilidade - e porque não necessidade - de reconstrução científica do conceito de situação legitimante, demonstrando-se a desnecessidade de seu enraizamento à titularidade do direito material.

5. Conclusão

À guisa de conclusão, é possível sustentar que o conceito de legitimidade processual, construído a partir das teorias da ação e do paradigma liberal-individualistaprocessual, não serve a embasar o conceito de legitimidade quando transportado à seara da tutela coletiva de direitos. Frente à cristalina inadequação das teorias científicas nacionais que procuraram sedimentar a classificação da legitimidade dos entes coletivos em ordinária, extraordinária (substituição processual) ou autônoma para a condução do processo, vislumbrou-se a necessidade de se buscar a reconstrução do instituto à luz do “paradigma transindividual” e dos conflitos envolvendo as coletividades de massa. Nesta esteira, com suporte na teoria de Fazzalari, compreendeu-se possível edificar a legitimidade processual conforme os pilares da situação legitimante e do

51

LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: UNB, 1980. 52 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 4ª e. São Paulo: RT. 2010, p. 443.

processo enquanto procedimento em contraditório, ultrapassando as descontextualizadas concepções que visualizam o processo enquanto relação jurídica e a legitimidade como relação dicotômica sujeito-objeto, aferida em face da titularidade do direito material.

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