LEI MARIA DA PENHA E A (DES)ILUSÃO PENAL: Um Retrato da Relação entre o Sistema de Justiça Criminal e a Violência Doméstica

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

VINÍCIUS CRUZ SANTANA

LEI MARIA DA PENHA E A (DES)ILUSÃO PENAL: Um Retrato da Relação entre o Sistema de Justiça Criminal e a Violência Doméstica

CURITIBA 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

VINICIUS CRUZ SANTANA

LEI MARIA DA PENHA E A (DES)ILUSÃO PENAL: Um Retrato da Relação entre o Sistema de Justiça Criminal e a Violência Doméstica

Monografia apresentada pelo acadêmico Vinícius Cruz Santana ao Curso de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito. Orientadora: Prof. Cáceres Arguello.

CURITIBA 2014

Dr.

Katie

Silene

AGRADECIMENTOS

Aos professores da Universidade Federal do Paraná, pela educação crítica e emancipadora, e a todos os servidores que fazem a Faculdade de Direito da UFPR funcionar. Aos meus pais, pela educação firme e pelo apoio incondicional em todas as fases da minha vida. Pelo exemplo diário de retidão e caráter, pelo aporte financeiro até aqui. Ao meu irmão Edemilson Paraná (eterno sonhador/lutador das mudanças sociais) e à minha irmã Angela Mariani Santana, pelo carinho, cumplicidade e amor fraternal, mesmo à distância. À Carina Grossi da Silva, não só pelas revisões dos meus textos e ajuda na pesquisa desta monografia, mas também pelo amor, carinho, amizade e paciência de todos os dias. Ao ―pessoal‖ do Juizado de Violência Doméstica de Curitiba, do Cartório, da Promotoria, do Gabinete da Drª. Luciana Bortoleto pela amizade, oportunidade do crucial estágio e por possibilitarem com tanta disponibilidade a pesquisa de campo. À Associação Atlética Acadêmica de Direito – A.A.A.D, da Universidade Federal do Paraná, instituição na qual tive a honra de participar de duas gestões ao longo do período acadêmico, ― Vem Todo Mundo: o trabalho continua – 2011/2012‖ e ―Sou AAAD UFPR: A correria não para 2012/2013‖, exercendo cargos de Coordenador Social e Presidente, respectivamente. Agradeço pelos inesquecíveis momentos de descontração e trabalho, pelas amizades em todo Paraná e pelo amadurecimento pessoal. Aos membros das gestões, atletas, apoiadores, torcida ―Os Federais‖, enfim, todas as pessoas que nos ajudaram a mostrar que é possível congregar diferentes pessoas e ideias diante do esporte. A toda a ―piazada‖ do time de futsal da Faculdade de Direito da UFPR, o ―Resegna Ferroglio‖, pelos bons momentos, pelas vitórias e lamentáveis derrotas. Aos grandes amigos e colegas que fiz durante toda essa caminhada, da minha saudosa Umuarama, de São José dos Campos/SP e Curitiba, por todos os memoráveis momentos.

RESUMO

O presente trabalho busca refletir acerca da resposta penal presente na Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, criada no Brasil para o enfrentamento e erradicação da violência doméstica e familiar cometida contra a mulher. Nesse intento, expõe as contradições entre as medidas de expansão penal e a perspectiva de emancipação e superação do discurso punitivo. Para tanto, parte do estudo crítico das funções do Direito Penal a fim de compreender suas controvérsias e fracassos no enfrentamento à criminalidade. Discute a respeito das construções históricas e sociais do androcentrismo e da dominação masculina para demonstrar que estas também permeiam o Sistema de Justiça Criminal. Assim, diante de seu tratamento sexista, as instituições penais acabam por fazer o jogo da ideologia conservadora, conferindo às mulheres posição de inferioridade. Utilizando da mesma base teórica, e como fruto de pesquisa de campo no Juizado de Violência Doméstica de Curitiba, o presente trabalho expõe o perfil do réu da Lei Maria da Penha, de maneira a compreender quem são os clientes e de que forma o Sistema Penal opera sobre eles. Por fim, sustenta que a resolução da questão da violência doméstica ultrapassa a solução objetiva culpado/inocente, devido a enredar-se em relações mais complexas.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha; Violência Doméstica; Direito Penal e Gênero; Abolicionismo Penal.

ABSTRACT

This work aims to reflect on the criminal response present in Law 11.340/2006, the ―Maria da Penha Law‖, created in Brazil to confront and eradicate domestic violence committed against women. In this attempt, exposes the contradictions between measures of criminal expansion and the prospect of emancipation and the overcoming of the punitive discourse. To do so, we start from the critical study of the functions of the criminal law in order to understand its controversies and failures in tackling crime. Also discusses the historical and social construction of the androcentrism and male dominance to show that they also permeate the Criminal Justice System. Thus, by its sexist treatment, penal institutions play the game of conservative ideology, imposing for women an inferiority role. On the same theoretical basis, and as a result of a fieldwork in the Court of Domestic Violence in Curitiba, this paper presents the profile of the defendant of Maria da Penha Law, in order to understand who the customers are and how the penal system works on them. Finally, states that the resolution of the issue of domestic violence exceeds the guilty/innocent objective solution, due to being part of more complex relationships.

Keywords: Maria da Penha Law; Domestic Violence; Criminal Law and Gender; Prison Abolition.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 1

2. A (DES)ILUSÃO PENAL: SISTEMA CRIMINAL EM DEBATE ............................. 3 2.1 DIREITO PENAL, CONTROLE SOCIAL E ESTRUTURA DE PODER ............... 3 2.1.1 Controle Social e Estado Capitalista Pós- Moderno ...................................... 5 2.2 A EFICÁCIA INVERTIDA - DAS FUNÇÕES DECLARADAS ÀS FUNÇÕES REAIS DO SISTEMA PENAL .................................................................................... 7 2.2.1 Funções Declaradas ..................................................................................... 7 2.2.2 Funções Reais ............................................................................................ 10 2.2.3 Seletividade do Sistema Penal e Desigualdade Social ............................... 12 2.3 CRISE DE LEGITIMIDADE - O SISTEMA PENAL ESTÁ NU .......................... 16

3. DIREITO PENAL E GÊNERO: DO PATRIARCALISMO AO SISTEMA CRIMINAL 3.1 DOMINAÇÃO MASCULINA E ORDEM SEXUAL HIERÁRQUICA ................... 19 3.2 LEI MARIA DA PENHA - UMA CONQUISTA DA ―ADVOCACY‖ FEMINISTA .. 25 3.3 LEI MARIA DA PENHA E A DEMANDA (NEO)CRIMINALIZADORA ................ 29 3.4 SISTEMA PENAL E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: PROTEÇÃO OU DUPLICAÇÃO DA VITIMAÇÃO FEMININA? .......................................................... 32 3.4.1 Ordem Sexual Hierárquica e Controle Formal – Da violência informal à violência institucional ............................................................................................ 33 3.4.2 Eficácia Invertida – Da Pretensa Proteção à Duplicação da Violência ......... 36 3.5 SISTEMA PENAL E CIDADANIA FEMININA: DA MULHER COMO VÍTIMA À MULHER COMO SUJEITO DE CONSTRUÇÃO DE CIDADANIA .......................... 39

4. AGRESSORES OU FRACASSADOS? PESQUISA DO PERFIL DO RÉU DA LEI MARIA DA PENHA NO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE CURITIBA 4.1 METODOLOGIA............................................................................................... 42 4.2 PERFIL E RESULTADOS ................................................................................ 42 4.2.1 Do Bairro de Moradia .................................................................................. 43

4.2.2 Da Cor de Pele ............................................................................................ 43 4.2.3 Escolaridade ............................................................................................... 44 4.2.4 Renda Percebida ........................................................................................ 45 4.2.5 Quantidade de Filhos .................................................................................. 46 4.2.6 Dependência Química ................................................................................. 47 4.2.7 Da Relação com a Denunciante .................................................................. 47 4.2.8 Do Crime Praticado ..................................................................................... 48 4.2.9 Antecedentes Criminais .............................................................................. 49 4.2.10 Defensor.................................................................................................... 50 4.3 PERFIL GERAL................................................................................................ 50 4.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS RÉUS ........................................................... 51

5. CONCLUSÃO ...................................................................................................... 54

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 57 ANEXO.................................................................................................................... 62

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1. INTRODUÇÃO Historicamente, as várias formas de violência contra a mulher expressam desigualdades entre homens e mulheres. Diante da violência contra a mulher, vislumbra-se o pretenso domínio do gênero masculino sobre o feminino nos âmbitos domésticos, político, econômico e cultural. A partir dessa díspar relação, surgem os comportamentos de submissão, manipulação, exploração e dominação, de modo que a desigualdade de gênero constitui um grande desafio da sociedade atual. O movimento feminista e outras organizações sociais reivindicam pauta diante das inúmeras denúncias de violações dos direitos das mulheres. No Brasil, a partir da década de 1970, a violência contra a mulher ganha espaço na mídia e nas publicações científicas. Da mesma forma, passa a ser vista como violação aos direitos humanos, ganhando estatuto constitucional. A sociedade, amparada pelos movimentos feministas, visam inclusão do tema na agenda política nacional e nesse momento encontram a solução imediata do Direito Penal. Nessa ocasião, em que o poder punitivo aparece como ―estratégia emancipadora das opressões‖, é necessário uma reflexão crítica. É esse o objetivo precípuo do trabalho. Desta maneira, busca-se compreender a complexa relação entre o sistema de justiça criminal e a violência doméstica, mas sem perder de vista as questões da dominação masculina, ordem sexual hierárquica e a violência simbólica. Neste contexto, diante da expansão do Sistema Penal em prol da ―segurança das mulheres‖ e da ―prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher‖, é imperioso observar se o Direito Penal é capaz de cumprir com as funções a que se propõe, ou se a lógica das representações vigente no sistema penal é, invariavelmente, permeada de essencialismos que multiplicam e reproduzem os estereótipos sociais. Nesse mister, o trabalho se inicia com algumas noções de controle social e como se arranjam os aparatos de poder que vão desembocar no Direito Penal. Verificam-se quais as funções e promessas desse sistema de controle social para se chegar às contradições que subsistem entre o real funcionamento e essas promessas. Em um segundo momento, o trabalho adentra o tratamento real que o Direito Penal proporciona à mulher, ou seja, as formas possíveis de intervenção punitiva no

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âmbito doméstico. Busca compreender como se constrói a relação entre a mulher e o Direito Penal e se esta reproduz a ordem sexual hierárquica. Por último, fruto de uma pesquisa de campo no Juizado de Violência Doméstica de Curitiba, apresenta-se o perfil do Réu da Lei Maria da Penha, de maneira a compreender quem são os clientes dessa Lei, como o Direito Penal opera diante desses homens e de que forma as relações de violência se arranjam. Pretende-se analisar se esses homens são simplesmente opressores, algozes de suas vítimas ou parte de um todo muito maior, resultado de complexas relações e que não podem ser somente observados pela lógica culpado/inocente. Portanto, o fio condutor do trabalho é a procura da superação da ilusão penal para o tratamento da conturbada questão da violência doméstica, buscandose novos entendimentos e possibilidades.

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2. A (DES)ILUSÃO PENAL: SISTEMA CRIMINAL EM DEBATE “A melhor reforma do direito penal seria a de substituí-lo, não por um direito penal melhor, mas por qualquer coisa melhor do que o direito 1 penal” (Gustavo Radbruch).

2.1 DIREITO PENAL, CONTROLE SOCIAL E ESTRUTURA DE PODER

Não se pode falar em direito penal e controle social sem fazer menção ao processo de formação da sociedade atual e sua estrutura de poder. Essa estrutura se configura a partir da resolução dos conflitos sociais que são inerentes à interação dinâmica dos grupos sociais, ou seja, as estabilizações dos conflitos acontecem a partir dessa estruturação. Assim, toda sociedade apresenta um poder organizado, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão.2 As formas jurídicas e os órgãos de poder do Estado (estrutura de poder institucionalizada) instituem e garantem as condições materiais fundamentais da vida social. Desta forma, protege os interesses e as necessidades dos grupos sociais dominantes da formação econômico-social, com correspondente exclusão ou redução dos interesses e necessidades dos grupos sociais dominados.3 Diante desta perspectiva, o Estado é criado por aquela classe da sociedade que tem o poder para impor sua vontade (dominante) sobre o resto da sociedade (dominado) de modo a exercer o controle social. Nas palavras de Richard Quinney: O Estado é, assim, uma organização política real, mas artificial, criada pela força e coerção. O Estado é estabelecido por aqueles que desejam proteger sua base material e têm o poder (por causados meios materiais) para 4 manter o estado.

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Apud BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. 2ª ed. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999. p. 207. 2 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 4ª ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 61. 3 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed.. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 7. 4 QUINNEY, Richard. O controle do crime na sociedade capitalista: uma filosofia crítica da ordem legal. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. (Org.). Criminologia Crítica. Trad. Juarez Cirino dos Santos e Sérgio Tancredo. Rio de Janeiro: Graal, 1980. p. 236.

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Deste modo, o controle social está inserido na estrutura política, econômica e jurídica do Estado, existindo uma relação estreita entre as instituições punitiva e produtiva. Ao analisar a estrutura de poder explica-se o controle social. O Direito Penal realiza o controle social formal5, ou seja, por meio das normas legais e através do Sistema de Justiça Criminal institui a sua política de controle social. Portanto, o Direito Penal e o Sistema de Justiça Criminal constituem, no contexto dessa formação de estrutura de poder de grupos dominantes e dominados, o centro gravitacional do controle social: a pena criminal é o mais rigoroso instrumento de reação oficial contra as insurgências às estruturas de poder, isto é, contra as violações da ordem social, econômica e política institucionalizada, garantindo todos os sistemas e instituições particulares, bem como a existência e continuidade do próprio sistema social, como um todo.6 Lola Aniyar de Castro, ao tratar dessa função do direito de estruturar e garantir determinada ordem econômica e social, define que o controle social não passa da predisposição de táticas, estratégias e forças para a construção da hegemonia, ou seja, para a busca da legitimação ou para assegurar o consenso; em sua falta, para a submissão forçada daqueles 7 que não se integram à ideologia dominante.

Ao observar a seleção da população criminosa diante da perspectiva da interação e das relações de poder entre os grupos sociais, é possível vislumbrar os mesmos mecanismos de interação, de antagonismo e de poder que dão conta, em uma dada estrutura social, da desigual distribuição de bens e de oportunidades entre os indivíduos.8 Só assim é que se pode reconhecer o verdadeiro significado do fato de que a população carcerária, nos países da área do capitalismo avançado, em sua 5

Não se pode ignorar que para avaliar o controle social não se deve ater a estrutura de controle formal e ao sistema penal, sendo necessário analisar também outras instituições, como a família, escola, imprensa/meios de comunicação, partidos políticos, sindicatos e etc., ou seja, as organizações da sociedade civil que junto com as formas jurídicas e políticas do Estado convergem na tarefa de instituir e reproduzir uma determinada formação econômico-social histórica. A esta complexa estrutura do controle social Zaffaroni dá o nome de ―pluridimensionalidade do fenômeno de controle‖, afirmando que ―Qualquer instituição social tem uma parte de controle social que é inerente a sua essência, ainda que também possa ser instrumentalizada muito além do que corresponde a essa essência‖. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. p. 62.) 6 BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 211. 7 CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 2005. p. 119. 8 BARATA, Alessandro. Op.cit, p. 110.

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enorme maioria, seja recrutada entre a classe trabalhadora e as classes economicamente mais frágeis. Por fim, para Michel Foucault, na sociedade capitalista a prisão evolui de um aparelho marginal a uma posição de centralidade, como aparelho do controle social, em razão da necessidade da disciplina (relação de docilidade/utilidade) da força de trabalho.9 Em Foucault, o sistema punitivo realizaria uma função indireta de punir uma ilegalidade visível para permitir uma ilegalidade invisível e uma função direta de produzir uma zona de criminosos marginalizados, que alimentam mecanismos econômicos da ―indústria‖ do crime10 pois ―A vigilância se torna um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar‖11.

2.1.1 Controle Social e Estado Capitalista Pós- Moderno

O final do século XX e início do século XXI marcam a ascensão do capitalismo pós-industrial e globalizado e demonstra uma nova etapa histórica, identificada como pós- modernidade.12 A nova ordem em questão é apontada pela introdução de novas tecnologias, de modo a depender cada vez menos da quantidade de força de trabalho diretamente empregada no processo produtivo. Esse progresso tecnológico não amplia a produção, mas a reestrutura e modifica através de um constante incremento de flexibilidade, decrescendo a criação de emprego. Torna-se o desemprego não mais um fenômeno puramente conjuntural, mas sim estrutural.13 Alessandro de Giorgi atesta que essa restrição dos espaços de acesso ao emprego regular produz ―uma hipertrofia das economias submersas, dos circuitos produtivos paralelos aos quais aqueles que não têm garantia são obrigados a recorrer para se assegurar de fontes alternativas de renda‖14. 9

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 40ª ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012. p. 191. 10 BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 17. 11 FOUCAULT, Michel. Op. Cit.. p. 169. 12 KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETTI, Edson (Org.). Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 69. 13 GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Trad. Sérgio Lamamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2006. p. 66. 14 GIORGI, Alessandro de. Idem. p. 67.

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Ensejado por um notável desenvolvimento das forças produtivas, motor dos enormes avanços e conquistas da revolução cientítifico-tecnológica, esse modelo pós-moderno atesta uma crescente incapacidade de solução dos desequilíbrios e problemas. Esses, de maneira geral, são gerados pelo desenvolvimento excepcional das forças produtivas, aí se destacando a desaceleração do ritmo de crescimento nos centros dinâmicos da economia mundial e a queda estrutural nos níveis de emprego. Todos esses fatores contribuem para o aprofundamento do processo de desigualdade e exclusão, de acordo com as ideias de Jock Young, trata-se de: Um processo de duas partes, implicando em primeiro lugar a transformação e a separação dos mercados de trabalho e um aumento maciço do desemprego estrutural, e em segundo a exclusão decorrente das tentativas de controlar a criminalidade resultante das circunstâncias transformadas e 15 da natureza excludente do próprio comportamento anti-social.

Destarte, a evolução do capitalismo monopolista proporciona uma crescente concentração de capitais em poucas empresas, que se transnacionalizam e acumulam um poder enfraquecedor do poder dos Estados nacionais. A concentração do capital se torna possível, em grande medida, pela globalização das instituições bancárias e financeiras, pelo emprego das novas tecnologias para intensificar operações globais, pela utilização de tecnologias avançadas de comunicação que tem a potencialidade de duplicar o capital produtivo e torná-lo altamente móvel16. Aliando-se esses elementos ao crescimento da quantidade de marginalizados e excluídos da produção e à prevalência da lógica do mercado com enfraquecimento do estado, é possível perceber a inviabilidade dos Estados na prática de atividades fiscais e assistências dos Estados de Bem-Estar Social.17 Não diferente, Loic Wacquant, ao tratar dessa experiência social e política vivenciada pela pós-modernidade, afirma que houve ―a substituição progressiva de um (semi)Estado- providência por um Estado penal e policial‖18, na qual a 15

YOUNG, Jock. A sociedade Excludente: Exclusão Social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 23. 16 ARGUELLO, Katie. Do Estado social ao Estado Penal: invertendo o discurso da Ordem. In: Anais do Congresso Paranaense de Criminologia. Londrina: Mimeo, 2005. p. 2. 17 KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. p 69. 18 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2003. p. 20.

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criminalização da marginalidade e a ―contenção punitiva‖ fazem as vezes da política social. Este quadro de desequilíbrio econômico e social constitui campo extremamente fértil para a intensificação do controle social e, conforme expõe Maria Lúcia Karam19, para ―reavivar as premissas ideológicas de afirmação da autoridade e da ordem, fazendo surgir à direita e à esquerda, uma opção preferencial pela reação punitiva‖. Desta forma, amplia-se o poder do Estado de punir, agora pautado pela lógica do Estado mínimo social e Estado máximo Penal, vigilante e onipresente. Katie Arguello20, embasada nos estudos de Loic Wacquant, demonstra que essa progressiva degeneração do Estado Social em Estado Penal confirmam as teses críticas sobre a relação entre mercado de trabalho e sistema punitivo. Para a autora em questão, o exemplo enfático dos Estados Unidos, cuja população carcerária quadruplicou em duas décadas pela ―extensão do recurso ao aprisionamento a infrações menores, para normalizar o trabalho precário‖ 21, confirma a tese de Rusche e Kirchhmeimer de que todo sistema de produção tende a descobrir e a utilizar sistemas punitivos que correspondem às próprias relações de produção. Ainda, Katie Arguello22, de forma pertinente, identifica que, no caso da América Latina, as prisões não prestam ao aspecto disciplinador da mão de obra ao mercado de trabalho, mas sim à gestão da pobreza de modo que ―as prisões se assemelham a verdadeiros campos de concentração para miseráveis‖23. Desta feita, no caso latino-americano, enquadra-se melhor a noção de que existe um abandono da tentativa de encontrar uma política racional de reabilitação, sendo que, este fato é ocultado com uma ideologia moral24. 2.2 A EFICÁCIA INVERTIDA - DAS FUNÇÕES DECLARADAS ÀS FUNÇÕES REAIS DO SISTEMA PENAL

2.2.1 Funções Declaradas

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KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal . p. 71. ARGUELLO, Katie. Do Estado social ao Estado Penal: invertendo o discurso da Ordem. p. 18. 21 ARGUELLO, Katie.Idem. p. 19. 22 ARGUELLO, Katie.Idem. Ibidem. 23 ARGUELLO, Katie. Do Estado social ao Estado Penal: invertendo o discurso da Ordem. p.21. 24 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. 2ª ed. Trad. Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2004. p. 192. 20

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Ao mesmo tempo em que o Estado Moderno encontra no Sistema Penal um dos instrumentos de violência e poder político, exercendo controle e domínio das classes mais vulneráveis, sempre necessitou de discursos, saberes e ideologias que consubstanciassem formalmente o exercício efetivo deste controle, para sua justificação e legitimação.25 De acordo com Juarez Cirino dos Santos26, o Direito Penal possui ―objetivos declarados (ou manifestos)‖ apontados pelo discurso oficial da teoria jurídica. Para o autor, na sociedade contemporânea, esses objetivos consistem na proteção de bens jurídicos, isto é, na proteção de valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva, sob a ameaça de pena. Ainda nesse aspecto, a proteção de bens jurídicos realizada pelo Direito Penal é de natureza subsidiária e fragmentária, de modo que o Direito Penal supõe a atuação principal de ―meios de proteção mais efetivos do instrumento sociopolítico e jurídico do Estado‖27. Nesse viés, não protege todos os bens jurídicos definidos pela Constituição da República, mas ―apenas parcialmente os bens jurídicos selecionados para a proteção penal‖28. Cezar Roberto Bitencourt29 demonstra que, de acordo com a teoria pessoal do bem jurídico30, advinda dos ideais liberais do Iluminismo, o bem jurídico deve ser 25

ANDRADE, Vera Regina de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 176. 26 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. p. 4. 27 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. Ibidem. 28 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p.6. 29 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte geral. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 42. 30 Cuida-se aqui da concepção pessoal do bem jurídico, pois ela ainda é a teoria oficial do discurso jurídico penal. Todavia não ignora-se o fato, como trazido por Bitencourt, de que atualmente é possível perceber certa ―transição entre a tradicional concepção pessoal de bem jurídico e posturas que prescindem do dogma do bem jurídico para a legitimação do exercício do ius puniendi estatal‖. Contudo, para o autor, não significa ―sentenciar de morte o conceito de bem jurídico, nem o abandono de sua função crítica, pelo contrário, ainda hoje é possível sustentar que o conceito de bem jurídico desempenha um papel produtivo importante já no nível primário de averiguação da estrutura do delito, e, num segundo plano, na determinação do marco de ações compreendidas no tipo como ‗de menosprezo do bem jurídico‘‖. Consoante seu entendimento, a concepção mais adequada na conceituação de bem jurídico é a formulada por Shunemann (a partir da moderna filosofia da linguagem) e Roxin (que constrói concepção semelhante à de Shunemann, mas sem recorrer expressamente ao método analítico da filosofia da linguagem). Nessa perspectiva ―a exegese do Direito Penal está estritamente vinculada à dedução racional daqueles bens essenciais para a coexistência livre e pacífica em sociedade. O que significa, em última instância, que a noção de bem jurídico-penal é fruto do consenso democrático em um Estado de Direito. A proteção de bem jurídico, como fundamento de um Direito Penal liberal, oferece, portanto, um critério material extremamente importante e seguro na construção dos tipos penais, porque, assim, ‗será possível distinguir o delito das simples atitudes interiores, de um lado, e, de outro, dos fatos materiais não lesivos de bem algum‘. O bem jurídico deve ser utilizado, nesse sentido, como princípio interpretativo do Direito Penal num Estado Democrático de Direito e, em consequência, como o ponto de partida da estrutura do delito‖. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Idem. p. 43/44).

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concebido como um interesse humano concreto, necessitado de proteção pelo Direito Penal. Isto é, como bens do homem, imprescindíveis para a sua sobrevivência em sociedade, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, a sexualidade, o patrimônio e etc. Os postulados das funções declaradas pelo Direito Penal são corolários da ideologia da defesa social, construída desde a Escola Clássica, transferindo-se pela Escola Positiva até se constituir na ideologia dominante na ciência penal, na criminologia, do aparato penal penitenciário e também no saber comum dos indivíduos sociais (every day theories)31. Para Baratta32, é possível definir, de forma resumida, a ideologia da defesa social a partir de alguns princípios, dentre os quais se destaca: a) Princípio da Legitimidade: Afirma a legitimidade do estado (expressão da sociedade), por meio de suas instâncias oficiais de controle social (legislação, política, judiciário, instituições penitenciárias) para reprimir a criminalidade. Tais instâncias sociais ―interpretam a legítima reação da sociedade, ou da grande maioria dela, dirigida à reprovação e condenação do comportamento desviante individual e à reafirmação dos valores e das normas sociais‖33. b) Princípio do bem e do Mal: A partir da visão maniqueísta da sociedade, esse princípio demonstra o delinquente como um ―elemento negativo e disfuncional do sistema social‖34. Deste modo, o desvio criminal é o próprio mal enquanto a sociedade constituída, o bem. c) Princípio da Culpabilidade: Enxerga o delito como atitude interior reprovável, já que é contrária aos valores e às normas presentes na sociedade, antes mesmo de serem sancionadas pelo legislador. d) Princípio da Igualdade: A criminalidade nada mais é que uma violação da lei penal, comportamento de uma minoria desviante. Nesse sentido, a lei penal é igual para todos, aplicando-se de modo uniforme aos autores de delitos. e) Princípio do Interesse Social e do delito natural: Os delitos definidos legalmente pelos códigos penais representam ofensa de interesses fundamentais (bens jurídicos), essenciais à existência de toda sociedade, isto é, os interesses 31

BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 42. 32 BARATA, Alessandro. Idem. p. 42/43. 33 BARATA, Alessandro. Idem. p. 42 34 BARATA, Alessandro Idem. p. 43.

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protegidos pelo Direito Penal são comuns a todos os cidadãos. Apenas uma pequena parcela dos delitos representa violação de ―determinados arranjos políticos e econômicos, e é punida em função da consolidação destes (delitos artificiais)‖35. À vista disso, o Sistema de Justiça Criminal atua nos limites das matrizes legais do Direito Penal e realiza a função declarada (legitimada pelo discurso oficial da teoria jurídica do crime) de garantir uma ordem social ―justa‖, protegendo bem jurídicos gerais e, assim, promove o ―bem comum‖.36

2.2.2 Funções Reais As funções reais do Direito Penal atestam a noção de que este é um instrumento do Estado e da classe dominante para manter e perpetuar a ordem social e econômica existente37. Diz-se isso porque as funções declaradas do Direito Penal não coincidem com o que as instituições realizam na sociedade, de modo que não se presta a resolver os problemas práticos a que se propôs. Cirino dos Santos38 afirma que a definição dos objetivos reais permite compreender o seu significado político no controle social nas sociedades contemporâneas. Assim, os objetivos reais, encobertos pelos objetivos declarados, pelo discurso jurídico oficial, revelam o significado político do Direito Penal como ―instituição de garantia e de reprodução da estrutura de classes da sociedade, da desigualdade entre as classes sociais, da exploração e da opressão das classes sociais subalternas pelas classes dominantes‖39. A ilusão proposta pelo discurso oficial passa, segundo Baratta40, pelo mito da igualdade no sistema penal, que é fundamento da ideologia penal da defesa social. Esse mito afirma que o Direito Penal protege igualmente todos os cidadãos contra ofensas aos bens essenciais, e, ainda, que suas sanções se aplicam de forma homogênea aos violadores das normas sociais.

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BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 43. 36 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. p. 10. 37 QUINNEY, Richard. O controle do crime na sociedade capitalista: uma filosofia crítica da ordem legal. p.245. 38 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. Cit. p. 6. 39 SANTOS, Juarez Cirino dos. Idem. p.8. 40 BARATA, Alessandro. Op. Cit. p. 162.

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Todavia, Baratta41 enxerga que os postulados oficiais são dissonantes da prática Penal. Nesse sentido é possível expor a crítica do autor em três eixos principais: a) O Direito Penal não defende todos e somente os bens essenciais da sociedade e ―quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário‖42. b) A lei penal não é igual para todos pois o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos. c) A distribuição do status criminoso não respeita a danosidade social das ações e a gravidade das infrações à lei, no sentido de que ―estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade‖43. Zaffaroni44 expressa que, diante dessa renúncia à legalidade os órgãos do Sistema Penal são encarregados de um controle social militarizado e verticalizado, exercido sobre a maioria da população, que se estende além do alcance meramente repressivo, por ser ―substancialmente configurador da vida social”45. Tais dissonâncias levam à conclusão de que o Direito Penal “não é menos desigual do que os outros ramos do Direito Burguês, e que, contrariamente a toda aparência, é o direito desigual por excelência‖46. Vera Regina P. de Andrade47 ainda demonstra que não existe somente um fracasso histórico em relação às funções declaradas, mas também que, através das funções reais, o Direito Penal cumpre uma eficácia instrumental invertida, sustentada pela função simbólica legitimadora. Eficácia invertida pois comparando a programação normativa do sistema penal, isto é, os princípios constitucionais do Estado de Direito e do Direito Penal e Processual Penal Liberal com seu real funcionamento, conclui-se que, na maior parte dos casos, é um sistema de violação deles ao invés de proteção48. Simbólica porque o Direito Penal, através de seu

41

BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 162. 42 BARATA, Alessandro. Idem. p.163. 43 BARATA, Alessandro. Idem. Ibidem. 44 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.p. 23. 45 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Idem. p. 24. 46 BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 162. 47 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia. p. 222. 48 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. p. 289.

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discurso oficial, de suas normas e de sua aplicação demonstra outras funções instrumentais diversas das declaradas. Assim, preconiza a autora que: (...) há, no âmbito do sistema penal, um profundo déficit histórico de cumprimento das funções declaradas da Dogmática penal, ao mesmo tempo do cumprimento excessivo de outras funções (simbólicas e instrumentais) não apenas distintas, mas inversas às oficialmente declaradas, que seu próprio paradigma, latente e ambiguamente, tem 49 potencializado desde a sua gênese histórica.

Por tudo, é inegável que a função real do Direito Penal indica que o controle do crime na sociedade capitalista é realizado pelas instituições e agências oficiais, estabelecidas e administradas por uma elite governamental. Essa elite representa os interesses da classe dominante, com o objetivo de estabelecer e manter a ordem social e econômica vigente.50 Portanto, mais do que um instrumento de tutela de interesses e direitos particulares dos indivíduos (funções declaradas), o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica (legitimação) do sistema social global, ou seja, das relações de poder e propriedade existentes.51

2.2.3 Seletividade do Sistema Penal e Desigualdade Social Não se pode olvidar que as funções reais e a operacionalidade do sistema penal são instrumentadas por uma proteção seletiva dos bens jurídicos tutelados e por uma atuação estigmatizante em torno dos indivíduos excluídos das relações de produção. De acordo com as ideias de Baratta52, a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e especialmente o cárcere, é um momento estrutural essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade. Em que pese o discurso oficial da proteção de bens jurídicos gerais e comuns a todos os homens, a realidade penal demonstra que a proteção desses valores gerais se da de forma desigual. Tal afirmação se justifica no fato de que o 49

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. p. 223. 50 QUINNEY, Richard. O controle do crime na sociedade capitalista: uma filosofia crítica da ordem legal. p.245. 51 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. p. 284. 52 BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 166.

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Direito Penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes (e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista), de modo a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas53. Assim, conforme expõe Cirino dos Santos54, diante das definições legais de crimes e de penas, o legislador protege interesses e necessidades das classes e categorias sociais hegemônicas da formação social, incriminando condutas concentradas na criminalidade patrimonial comum e dirigindo a indivíduos do contingentes marginalizados do mercado de trabalho e do consumo social. Esta desigualdade de trato acontece através de uma seleção penalizante denominada como criminalização55 e não acontece por acaso, mas como resultado da gestão de um conjunto de agências que formam o sistema penal e se desenvolve em duas etapas, quais sejam, criminalização primária e secundária 56. A primeira delas diz respeito ao ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas, de maneira geral, são as agências políticas incumbidas de prescrever formalmente as normas penais. A segunda é o mecanismo de aplicação dessas normas, realização do programa estabelecido primariamente, portanto, a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas através das agências policiais, promotores, juízes e sistema prisional. 57 De toda forma, a desigualdade realizada pela criminalização é resultado da contradição fundamental entre igualdade formal dos sujeitos de direito e desigualdade substancial dos indivíduos, que se manifesta, nessa caso em relação às chances de serem definidos e controlados como desviantes58. Na seara da criminalização primária, ou seja, em relação à seleção dos bens protegidos e dos comportamentos lesivos, é possível perceber a imunização de certos comportamentos em detrimento de outros. Esses tipos penais imunizados estão ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista e, nos poucos 53

BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 165. 54 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. p. 11. 55 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; Et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 4ª Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 43. 56 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; Et al. Idem. p. 43. 57 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; Et al. Idem. p.44. 58 BARATA, Alessandro. Op. Cit. p. 164.

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casos em que são definidos pelo legislador, são tratados de modo vago e impreciso ou as penas cominadas são irrisórias59. Desta feita, prestam somente como forma simbólica e para satisfação retórica da opinião pública, como discurso encobridor das responsabilidades do capital financeiro internacional. Por tudo, ao se referir à seletividade realizada pela criminalização primária Baratta é categórico em afirmar que: Isto ocorre não somente com a escolha dos tipos de comportamentos descritos na lei, e com a diversa intensidade da ameaça penal, que frequentemente está em relação inversa com a danosidade social dos comportamentos, mas com a própria formulação técnica dos tipos legais. Quando se dirigem a comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes às classes subalternas, e que contradizem às relações de produção e de distribuição capitalistas, elas formam uma rede muito fina, enquanto a rede é frequentemente muito larga quando os tipos legais têm por objeto a criminalidade econômica, e outras formas de criminalidade típicas dos 60 indivíduos pertences às classes no poder.

Além disso, os mecanismos da criminalização secundária acentuam ainda mais o caráter seletivo do Direito Penal. É através dela que acontece a seleção dos indivíduos que vão fazer parte da ―população criminosa‖, já que as agências de criminalização secundária estão incumbidas de decidir quem são as pessoas criminalizadas e, ao mesmo tempo, as vítimas potencialmente protegidas. Isso ocorre porque, diante da imensidão do programa que discursivamente lhes é (legislativamente) recomendado, devem optar pela inatividade ou pela seleção.61 A seleção

secundária

provém

de

circunstâncias

conjunturais

variáveis,

primordialmente realizada pelas agências policiais e condicionada pelo poder de outras instituições, como poder judicial, comunicação social e agências políticas.62 Nesse entendimento, Baratta63 atesta que as maiores chances de ser selecionado para fazer parte da ―população criminosa” aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais). Assim, a posição precária que estes ocupam no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional, mercado informal), 59

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. Op. Cit.p.12. BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 165. 61 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; Et. al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. p. 44. 62 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; Et. al. Idem. p. 45. 63 BARATA, Alessandro. Op. Cit. p. 165. 60

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defeitos característicos dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, ―revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído”64. Portanto, a variável decisiva da criminalização secundária é a posição social do autor, integrada por indivíduos vulneráveis selecionados por estereótipos, preconceitos e outros mecanismos ideológicos dos agentes de controle social.65 Nilo Batista e Zaffaroni demonstram que a criminalização secundária provoca uma distribuição seletiva em forma de epidemia, que atinge apenas aqueles que têm baixas defesas perante o poder punitivo, porque: a) suas características pessoais se enquadram nos estereótipos criminais; b) sua educação só lhes permite realizar ações ilícitas toscas e, por conseguinte, de fácil detecção e c) porque a etiquetagem suscita a assunção do papel correspondente ao estereótipo, com o qual seu comportamento acaba correspondendo ao mesmo (a profecia que se autorealiza). Em suma, as agências acabam selecionando aqueles que circulam pelos espaços públicos com o figurino social dos delinquentes, prestando-se à criminalização – mediante suas obras toscas – como seu inesgotável 66 combustível.

Não por acaso, Wacquant67 identifica uma similitude entre o ―gueto e prisão‖, análise esta, pertinente também ao caso brasileiro entre as favelas e a prisão. Para o autor, essas duas instituições possuem fins semelhantes, sendo instituições de confinamento forçado, de tal maneira que o gueto é um modo de prisão social, enquanto a prisão funciona à maneira de um gueto judiciário. Portanto, tais instituições possuem a missão de ―confinar uma população estigmatizada de maneira a neutralizar a ameaça material e/ou simbólica que ela faz pesar sobre a sociedade da qual foi extirpada‖68. Por isso, o gueto e a prisão tendem a desenvolver padrões relacionados e formas culturais similares.69 Soma-se, ainda, a abissal disparidade entre o exercício de poder programado (criminalização primária) e a capacidade operativa dos órgãos (criminalização secundária). Essa disparidade causa a seletividade da atuação dos órgãos de repressão, pois as agências do sistema penal dispõem apenas de uma 64

BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 165. 65 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. p. 13. 66 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; Et. al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. p. 47. 67 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. p.108. 68 WACQUANT, Loic. Idem Ibidem. 69 69 WACQUANT, Loic. Idem. p.109.

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capacidade operacional ridiculamente pequena se comparada à magnitude do programa (parte especial do Código Penal). Portanto, conclusão lógica é a percepção de que uma grande parcela de comportamentos criminalmente ilícitos fica desconhecida pelas agências de repressão (cifra negra). Assim, os órgãos de repressão penal atuam seletivamente sobre a parcela de bens que julgar mais importante. Por tudo, percebe-se o fracasso histórico do Direito Penal para os fins de controle da criminalidade e de reinserção do desviante na sociedade, tendo em vista que se revela como um instrumento precípuo de produção e de reprodução de relações de desigualdade, de conservação da escala social vertical e das relações de subordinação e de exploração do homem pelo homem.70

2.3 CRISE DE LEGITIMIDADE - O SISTEMA PENAL ESTÁ NU

Conforme visto anteriormente, o sistema penal representa uma complexa manifestação do poder social. A construção do discurso oficial do Direito Penal pretende demonstrar uma racionalidade, sobretudo quanto ao seu exercício. Todavia, diante das contradições expostas e fins diversos dos declarados, possível vislumbra-se

uma

quebra

da

racionalidade

do

discurso

jurídico-penal, e,

consequentemente, da legitimidade do exercício de poder dos órgãos dos sistemas penais. Assim, é incontestável que a racionalidade do discurso jurídico penal tradicional e a consequente legitimidade do sistema penal tornaram-se utópicas e atemporais, de modo que ―não se realizarão em lugar algum e em tempo algum‖71. Nesse sentido, Zaffaroni afirma categoricamente que: A perversão do discurso jurídico-penal caracteriza-o como um ente que se enrosca em si mesmo de forma envolvente, a ponto de imobilizar frequentemente seus críticos mais inteligentes, especialmente quando estes possuem alguma relação com a prática dos órgãos judiciais e com a necessidade de defesa concreta e cotidiana dos direitos humanos na operacionalidade desses órgãos. Desta maneira, a perversão é a característica que cristaliza a dinâmica discursiva do discurso jurídico-penal, 72 apesar de sua evidente falsidade.

70

BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do direito penal. p. 207. 71 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. p. 19. 72 ZAFFARONI, Eugenio Raul. idem. p. 29.

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De maneira conclusiva e resumida, é possível demonstrar diversos fatores que contribuem para a perversão do discurso jurídico-penal e sua consequente deslegitimação: a) a contradição estrutural entre funções declaradas e funções reais; b) a incapacidade de cumprir o programa oficial de proteção de bens jurídicos, prevenir a criminalidade, promover segurança jurídica aos acusados e defesa social73; c) o fato de intervir somente em um número reduzidíssimo de situações (cifra negra); d) seu funcionamento seletivo com uma criminalização abertamente classicista, sexista e racista, de forma a imunizar sistematicamente as elites, reproduzindo em nível macro as desigualdades, as assimetrias e as discriminações sociais. Nessa toada, ―o sistema penal engendra mais problemas do que aqueles que se propõe a resolver, produzindo ‗sofrimentos desnecessários (estéreis)‖

74

; e)

do ponto de vista da vítima, o sistema se constrói a partir de uma relação adversarial autor e vítima, criminoso e cidadão, mantendo-se polarizado de maneira tal que ―rouba o conflito às vítimas‖75, não as escuta, não protege pessoas, mas somente o próprio sistema. Portanto, não resolve nem previne os conflitos e não apresenta efeito positivo algum sobre as pessoas envolvidas nos conflitos.76 Em virtude da crise de legitimidade e das múltiplas incapacidades77 e violências do poder do sistema penal é que se fala78 que o sistema penal está nu,

73

De acordo com Vera Regina Pereira de Andrade, o sistema penal não pode cumprir esse programa oficial ―porque sua função real não é o ‗combate‘, mas, inversamente, a ‗construção‘ (seletiva) da criminalidade (a criminalização); a função real da prisão não é a ‗ressocialização‘, mas, inversamente, a ‗construção‘ dos criminosos (labelling approach), a ‗fabricação dos criminosos‘ (Foucault)‖. (Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. p. 280) 74 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Idem. p. 281. 75 HULSMAN, Louk; BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Luam, 1993. p. 197. 76 HULSMAN, Louk; BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Idem. Ibidem. 77 Nesse sentido, o professor Juarez Cirino dos Santos afirma que: ―O Direito Penal é um sistema dinâmico desigual em todos os níveis de suas funções: a) ao nível da definição de crimes constitui proteção seletiva de bens jurídicos representativos das necessidades e interesses das classes hegemônicas nas relações de produção/circulação econômica e de poder político das sociedades capitalistas; b) ao nível da aplicação de penas constitui estigmatização seletiva de indivíduos excluídos das relações de produção e de poder político da formação social; c) ao nível da execução penal constitui repressão seletiva de marginalizados sociais do mercado de trabalho e, portanto, de sujeitos sem utilidade real nas relações de produção/distribuição material, mas com utilidade simbólica no processo de reprodução das condições sociais desiguais e opressivas do capitalismo‖. (Teoria da Pena. Curitiba: Lumen Juris: ICPC, 2005, p. 35.) 78 Tal afirmação é trazida, sobretudo, pela professora Vera Regina Pereira de Andrade, ao afirmar que ― A deslegitimação explicitada na teoria e na empiria constitui antes de mais nada a radical demonstração de que o poder do sistema está nu, pelo desvelamento de suas múltiplas incapacidades e violências; ela explicita a inteira nudez do sistema penal e particularmente da prisão, reduzida que está a espaço de neutralização e de extermínio indireto‖ (Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. p. 279)

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que todas as suas máscaras caíram e que agora exerce abertamente as suas funções reais. Destarte, não há solução de conflito que passe pelo crivo do sistema penal, ele é incapaz de gerar qualquer tipo de emancipação, de modo que só serve para legitimar a sociedade atual sexista, preconceituosa e seletiva. De tal forma, também não serve para o trato da violência doméstica e questões complexas historicamente construídas e que impregnam a própria atuação das agências repressivas, como a dominação masculina e a desigualdade de gênero, fatores ontologicamente existentes na sociedade e no próprio sistema criminal.

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3. DIREITO PENAL E GÊNERO: DO PATRIARCALISMO AO SISTEMA CRIMINAL “Precisamos de políticas que partam da margem e vão tão longe quanto seja aceitável (o que significa um longo caminho a percorrer), em vez de políticas que partam do centro e vão tão longe 79 quanto seja caridoso (que não é muito longe).” Jock Young

3.1 DOMINAÇÃO MASCULINA E ORDEM SEXUAL HIERÁRQUICA Inicialmente, relevante pontuar que não existe uma teoria crítica geral do pensamento feminista, mas sim correntes teóricas diversas, que, diante das teorias gerais, procuram compreender por que e como as mulheres ocupam uma condição/posição subordinada na sociedade80. De qualquer modo, na base de qualquer corrente feminista crítica há o reconhecimento de uma causa social e cultural para a condição feminina de subordinação e haverá sempre um denominador comum mínimo, o qual, no dizeres de Baratta81, é a ―demolição do modelo androcêntrico da ciência e a reconstrução de um alternativo‖. Destarte, buscam desconstruir o entendimento presente nas relações de sexo/gênero e a posição subordinada que as mulheres ocupam em uma dada sociedade. Portanto, o pensamento crítico feminista, de acordo com as noções de Lourdes Bandeira questiona as ―formas e as expressões das racionalidades científicas existentes e predominantes, portadoras de marcas cognitivas, éticas e politicas de seus criadores individuais e coletivos – os masculinos‖82. Para compreender a base desse pensamento, entender as causas sociais e a condição de subordinação do gênero feminino, pertinente as postulações, sobretudo, de Pierre Bourdieu e Simone de Beauvoir. Desse modo, busca-se estudar de que forma a soberania do homem se impôs, como se consagrou a visão

79

YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. p.50. 80 BANDEIRA, Lourdes. A contribuição da crítica feminista à ciência. In: Estudos Feministas. Florianópolis: Revista Estudos Feministas, 2008. p. 210. 81 BARATTA, ALESSANDRO. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. Trad. Ana Paula Zommer. In: Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p.21. 82 BARATTA, ALESSANDRO. Idem. p. 211.

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androcêntrica do mundo e por que ―as alavancas de comando do mundo nunca estiveram nas mãos das mulheres‖83. Para Bourdieu a dominação masculina se constrói através de uma violência simbólica, violência essa que atua de forma invisível a suas vítimas, que se realiza em nível espiritual, sem necessidade de uma coação física. Através da comunicação e do conhecimento, de uma construção social naturalizada e enraizada nas coisas e nos corpos, de modo que ―incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina‖84. Desta maneira, a divisão entre os sexos e seus distintos papéis dentro da sociedade são difundidos e legitimados artificialmente mediante uma construção social. A superioridade masculina foi forjada historicamente em diversas áreas do saber. O monopólio dos homens no campo ideológico afirma a abundância de discursos misóginos de maneira tal que a ordem social funciona como uma ―imensa máquina simbólica‖

85

, que tende a homologar a dominação masculina sobre a qual

se alicerça - a divisão social do trabalho, a distribuição das atividades entre os sexos, a dualidade força/emoção, os papéis atribuídos aos sexos nas diversas religiões. Nesse contexto, existe uma ―natural‖ justificativa para as diferenças entre os gêneros, consistente na distinção entre corpo masculino e corpo feminino, inclusive diante dos órgãos sexuais, demarcando as diferenças biológicas e anatômicas que ―explicam‖ a relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres. À vista disso, ―o mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes‖86. O autor em questão sustenta que a virilidade, em seu aspecto ético, princípio da conservação e do aumento da honra, mantém-se indissociável da virilidade física, sobretudo, das provas de potência sexual, compreendendo que o falo ―concentra todas as fantasias coletivas de potência fecundante‖87. A diferença anatômica do órgão feminino é tratada, nessa perspectiva, como um falo invertido, antagônico ao órgão reprodutor masculino, tomado como a medida de todas as coisas 88. Assim, 83

BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: Fatos e Mitos. 4ª ed. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970, vol. 1. p. 170. 84 BOURDIEU, Pierre. A dominação Masculina. 2ª ed. Trad. Maria helena kuhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p.15. 85 BOURDIEU, Pierre. Idem, p. 18. 86 BOURDIEU, Pierre. Idem, Ibidem. 87 BOURDIEU, Pierre. Idem, p. 20. 88 BOURDIEU, Pierre. Idem, p.23.

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demonstra as figuras sexuais de ativo (homem) e passivo (mulher), imputando às mulheres representações negativas do próprio sexo, ou seja, duas variantes, superior e inferior, da mesma fisiologia89, essencialmente hierarquizados. Bourdieu ainda demonstra que, a reprodução e manutenção do patriarcado foram garantidas pelas três instituições sociais fundantes da sociedade atual, quais sejam, a Família, a Igreja e a Escola. Cada uma à sua maneira reforçam a moral feminina e masculina, sobretudo porque agem sobre as estruturas do inconsciente 90. A moral feminina se impõe através de uma disciplina incessante, relativa a todas as partes do corpo, que se faz lembrar e se exerce continuamente diante da coação quanto aos trajes ou aos penteados. A submissão feminina encontra a sua tradução natural ―no fato de se inclinar, abaixar-se, curvar-se, de se submeter e na docilidade correlativa que se julga convir à mulher‖91. Já a masculina, é representada pela postura ereta, olhar elevado, semelhante a de um ―militar perfilado‖, prova de retidão. Desta maneira, os princípios antagônicos da identidade masculina e feminina se inscrevem, assim, ―sob forma de maneiras permanentes de se servir do corpo, ou de manter a postura‖92. Destarte, as mulheres ajustam suas aspirações às possibilidades impostas por esta moral institucionalizada que determina sua ―vocação‖ no sentido de que através da experiência de uma ordem social "sexualmente" ordenada e das chamadas à ordem explícitas que lhes são dirigidas por seus pais, seus professores e seus colegas, e dotadas de princípios de visão que elas próprias adquiriram em experiências de mundo semelhantes, as meninas incorporam, sob forma de esquemas de percepção e de avaliação dificilmente acessíveis à consciência, os princípios da visão dominante que as levam a achar normal, ou mesmo natural, a ordem social tal como é e a prever, de certo modo, o próprio destino, recusando as posições ou as carreiras de que estão sistematicamente excluídas e encaminhando-se para as que lhes são sistematicamente destinadas. A constância dos habitus que daí resulta é, assim, um dos fatores mais importantes da relativa constância 93 da estrutura da divisão sexual de trabalho.

Diante desse processo as mulheres ―aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser

89

BOURDIEU, Pierre. A dominação Masculina, p.24. BOURDIEU, Pierre. Idem, p. 35. 91 BOURDIEU, Pierre. Idem, p.38. 92 BOURDIEU, Pierre. Idem. Ibidem. 93 BOURDIEU, Pierre. Idem, p.114. 90

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vistas como naturais‖94 e é justamente nesse momento que a violência simbólica ocorre, naturalizando a relação de dominação, já que A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada 95 da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural;

Simone de Beauvoir, em apertada síntese, em sentido semelhante ao de Bourdieu, demonstra que a exclusão do feminino é um denominador comum nas civilizações. Forjada historicamente em diversas sociedades marcadas pela exclusão, submissão e dependência em relação às normas de conduta instituídas pelos homens em cada época. Para a autora, o gênero feminino é moldado e inventado a partir da compreensão do mundo, uma vez que ―é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo‖96. Portanto, a diferença de papéis e a posição social de cada gênero são construídas e impostas subjetivamente desde a infância97. Não por acaso, a autora afirma que Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como 98 sexualmente diferençada.

Desta feita, o trabalho de socialização do gênero feminino é produzido a partir da imposição de limites, de maneira que, lentamente, se interioriza as normas de condutas femininas tais como a moral, a maneira de se portar, a maneira de se vestir, de mostrar o rosto, olhar e etc., enfim, tendem a interiorizar e normalizar a postura de submissão em uma espécie de confinamento simbólico.

94

BOURDIEU, Pierre. A dominação Masculina. p.46. BOURDIEU, Pierre. Idem. p. 47. 96 BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: A experiência vivida. 2ª ed. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, vol. 2. p.9. 97 BEAUVOIR, Simone de. Idem, p.9. 98 BEAUVOIR, Simone de. Idem. Ibidem. 95

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Beavouir ainda completa que a ausência de uma identidade de classe também é fator determinante para a situação de dominação das mulheres. Diante disso, as mulheres, ―salvo em certos congressos que permanecem manifestações abstratas, não dizem ‗nós‘.‖99 Deste modo, a ação das mulheres possui caráter de agitação simbólica e, de fato, ―só ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram‖. Tal fato, segundo a autora, acontece porque existe uma ligação subjetiva que a conecta ao seu opressor, ou seja, não têm os meios concretos de se reunir em uma unidade que se afirmaria em se opondo. Não têm passado, não têm história, nem religião própria; não têm, como os proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses; não há sequer entre elas essa promiscuidade espacial que faz dos negros dos E.U.A., dos judeus dos guetos, dos operários de Saint-Denis ou das fábricas Renault uma comunidade. Vivem dispersas entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social a certos homens — pai ou marido — mais estreitamente do que as outras mulheres.(...) O laço que a une a seus opressores não é 100 comparável a nenhum outro.

Portanto, de acordo com a visão de Beauvoir, a história mostrou que os homens sempre detiveram os poderes concretos e, desde os primórdios tempos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência e assim foi que ela se constituiu concretamente como outro.101 Nessa esteira de pensamento a obediência feminina ao homem representa regra inquebrável, e somente a fertilidade confere à mulher algum prestígio, pois, historicamente, o exercício da sexualidade da mulher foi condicionado a ser exercido somente com a finalidade de reprodução. Em perspectiva um pouco diferente, Alexandra Kolontai entende que houve certa inclusão das mulheres na vida econômica e social, todavia esta se deu em decorrência das necessidades do capitalismo contemporâneo. Assim, algumas mulheres se adequariam à disciplina do trabalho, enquanto outras, ―frágeis‖ e impróprias para o trabalho, permaneceriam vinculadas ao lar. Diante dessa compreensão, Kolontai afirma que: O mundo capitalista só recebe as mulheres que souberam desprezar, a tempo, as virtudes femininas e que assimilaram a filosofia da luta pela vida. Para as inadaptadas, isto é, para aquelas mulheres pertencentes ao tipo antigo, não há lugar nas fileiras das hostes trabalhadoras. Cria-se desta forma, uma espécie de seleção natural entre as mulheres das diversas 99

BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: Fatos e Mitos. p.13. BEAUVOIR, Simone de. Idem. p.13. 101 BEAUVOIR, Simone de. Idem, p. 178. 100

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camadas sociais. As fileiras das trabalhadoras são sempre formadas pelas mais fortes e resistentes, pelas mulheres de espírito mais disciplinado. As 102 de natureza frágil e passiva continuam fortemente vinculadas ao lar.

Kolontai ainda atesta que as relações de gênero estão permeadas pela ―ideia do direito de propriedade de um ser sobre o outro e o preconceito secular da desigualdade entre os sexos em todas as esferas da vida‖ 103. Essa ideia da propriedade inviolável do esposo, segundo a feminista em questão, foi cultivada com todo o cuidado pelo código moral da classe burguesa, com a família encerrada em si mesma, construída totalmente sobre as bases da propriedade privada 104. Por conseguinte, a burguesia, com o objetivo de reforçar os fundamentos da família e para assegurar sua estabilidade e seu predomínio social, cultivou o ideal da posse absoluta, ou seja, uma posse ―não só do eu físico, mas também do eu espiritual por parte do esposo, o ideal, que admite uma reivindicação de direitos de propriedade sobre o mundo espiritual e moral do ser amado‖.105 Por tudo, possível perceber que a diferença de gênero é construída socialmente e permeada pela dominação de um sexo pelo outro. Essa dominação se constrói historicamente de forma simbólica e se insere no imaginário feminino e da sociedade atual, desvelando os papéis que cada sexo exerce. Ainda, o gênero feminino, no processo histórico da humanidade não esteve presente ativamente, de forma que carece de uma identidade única e consistente. A participação social econômica da mulher, nos casos em que acontece, advém de uma necessidade capitalista de produção e não representa uma superação da dominação, ao contrário, representa a reprodução dos velhos padrões da burguesia. Esse fato é comprovado também pelo exemplo de que as mulheres ao saírem do ambiente privado do lar, recebem menores salários, sofrem diversos preconceitos e, em muitos casos, ainda cumprem a jornada dupla, pois não se desvinculam das tarefas privadas do lar. Vislumbra-se, portanto, que ao homem sempre coube o espaço público e a mulher foi confinada nos limites da família e do lar, ou seja, dois mundos distintos: um de dominação, externo, produtor, outro de submissão, interno, reprodutor, ambos 102

KOLONTAI, Alexandra. A nova Mulher e a Moral Sexual. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p. 18/19. 103 KOLONTAI, Alexandra. Idem, p.58. 104 KOLONTAI, Alexandra. Idem, p.59. 105 KOLONTAI, Alexandra. Idem. Ibidem.

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os universos, ativo e passivo, criam polos de dominação e submissão, gerando um verdadeiro código de honra.106 Nessa perspectiva, a violência doméstica é vista não apenas como violência individual, mas como parte da violência estrutural, um dos pilares do patriarcado, de modo que sem a violência intrafamiliar o patriarcado não se mantém.107 A partir da percepção desses fatos, os movimentos feministas intensificaram suas organizações e atuações a partir da década de 70, incluindo a violência de gênero, sobretudo a violência doméstica contra as mulheres, como uma das exigências prioritárias de atuação do poder público.

3.2 LEI MARIA DA PENHA - UMA CONQUISTA DA ―ADVOCACY‖ FEMINISTA

Um dos pontos centrais da teoria feminista é o da desconstrução do ideal de masculinidade que inferioriza e violenta as mulheres. A pauta originária das teorias (jurídicas) feministas é centrada na luta pela igualdade de gênero a partir da crítica aos papéis sociais designados às mulheres108. Assim, o movimento feminista, a partir dos anos 70 e 80, começa a expor à sociedade as formas pelas quais a naturalização de uma estrutura social hierarquizada, representada pela família tradicional excluiu as mulheres das esferas públicas, confinando-as em papéis estanques como de esposas e de mães. Em sentido semelhante, é possível afirmar que ao movimento feminista coube o papel de dar visibilidade e trazer ao debate o modelo patriarcal que estrutura a sociedade ocidental, com o objetivo de ―desconstruir os discursos

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DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 19. 107 Nesse sentido, Carmen Hein de Campos, a partir dos estudos de Del Martin, traz a ideia de que a violência contra a mulher se exerce para que os homens possam controlar a conduta das mulheres dentro dos parâmetros de feminilidade que eles mesmos têm estabelecido. É um produto do sistema patriarcal, isto é, o conjunto de dogmas religiosos, leis, ciências de comportamento, etc, que fazem com que a supremacia masculina seja considerada sagrada, justa e natural. Essas instituições, além de legitimarem a autoridade do marido no lar, reconhecem que estes recorram à força física para castigar uma esposa desobediente. (O discurso Feminista Criminalizante no Brasil: limites e possibilidades. Dissertação de Mestrado em Direito- Faculdade de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, p. 57). 108 CARVALHO, Salo de. Sobre as possibilidades de uma criminologia queer. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito do Programa de Pós Graduação em Ciências Criminais PUC/RS. Porto Alegre, v. 4, n. 2, jul/dez 2012. p. 152.

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sexistas que culpabilizam, punibilizam ou vitimizam as mulheres, seja na qualidade de autoras ou vítimas de crimes‖109. Ao mesmo tempo, esse movimento passa a dar visibilidade à violência real praticada contra as mulheres, sobretudo no ambiente doméstico que lhes foi historicamente designado. No Brasil, a atuação do movimento feminista sob a violência real se intensificou na década de 80, de modo que a violência doméstica passou a ser o centro dos discursos e mobilizações feministas. De acordo com Wânia Pasinato e Cecília Macdowell Santos110, o processo de redemocratização contribuiu para criar ―oportunidades políticas‖ para a participação de alguns setores dos movimentos feministas e de mulheres nas novas instituições do Estado. Nesse contexto, esses movimentos se organizaram para denunciar casos em que mulheres estavam sendo mortas por seus parceiros íntimos e ficavam impunes, amparados da ―legítima defesa da honra‖ e, ainda, o descaso com que a polícia tratava os casos de violência cometida contra as mulheres, principalmente a violência doméstica e sexual. 111 Imperioso ressalvar que, desde o início, a agenda desses movimentos era ampla e a alternativa era não apenas criminalizar a violência, mas também conscientizar as mulheres e politizar um problema que, aos olhos do Estado e da sociedade, era considerado privado e normal. Neste sentido sempre abrangeu as questões do trabalho, da renda, da participação política e social, da saúde, da sexualidade, do aborto, da discriminação ético-racial, do acesso à terra, do direito a uma vida sem violência, dentre outros temas e outras questões que precisavam ser incluídos na arena pública.112 Diante desse cenário, durante o governo de Franco Montoro (MDB, 19821985), houve a criação, em 1983, do Conselho Estadual da Condição Feminina do Estado de São Paulo (CECF), o primeiro conselho de gênero no país, se espalhando, posteriormente a outros estados113. No âmbito federal, em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), primeiro órgão do Estado brasileiro a tratar especificamente das mulheres, cabendo-lhe formular 109

CARVALHO, Salo de. Criminologia cultural, complexidade e as fronteiras de pesquisa nas ciências criminais. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 81, ano 17, nov/dez 2009. p. 312. 110 PASINATO, Wânia; SANTOS, Cecília MacDowell. Mapeamento das Delegacias da Mulher no Brasil. Núcleo de Estudos de Gênero PAGU. Campinas: PAGU/UNICAMP, 2008. p. 9. 111 PASINATO, Wânia; SANTOS, Cecília MacDowell. Idem. p. 10. 112 BASTERD, Leila Linhares. Lei Maria da Penha: uma experiência bem-sucedida de advocacy feminista. In: CAMPOS, Carmen Hein de. (Org.) Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 14. 113 PASINATO, Wânia; SANTOS, Cecília MacDowell. Op. Cit. p. 10.

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propostas de políticas para as mulheres. Além disso, no governo de Montoro, a partir de negociações entre feministas, governo e a Polícia Civil, em 1985, foi criada a primeira delegacia da mulher do Brasil, com o objetivo de investigar determinados ―delitos contra a pessoa do sexo feminino‖, previstos no Código Penal.114 Mais do que sua especialização em crimes contra as mulheres, o atendimento deveria ser prestado por policiais do sexo feminino e especializado. Assim, as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) ou Delegacias Especializas de Atendimento às Mulheres (DEAM) se difundiram em diversos estados e foram criadas para defender as mulheres enquanto titulares de direitos civis, em larga medida, como uma resposta às reivindicações dos movimentos femininas empenhados em expor as relações de poder e dominação que permeiam a vida familiar 115. Essas políticas de proteção às mulheres, bem como as Delegacias recém implantadas, impulsionaram as lutas dos movimentos feministas. Isso porque a criação de conselhos e a atuação das Delegacias nos recebimentos das queixas demonstraram que os maus-tratos e a violência sexual contra as mulheres (assédios, estupros e abusos em geral) ocorriam muito mais frequentes do que se pensava.116 A continuidade dessa luta possibilitou a aprovação da Lei Maria da Penha, marcando o exercício de uma cidadania ativa expressa no discurso e na atuação das feministas no espaço público, fruto de organização e de mobilização política de organizações e movimentos feministas. O caso Maria da Penha Fernandes foi o mote e o exemplo necessário que os movimentos precisavam para denunciar as violações de direitos humanos aos órgãos internacionais, especialmente junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos. 117 Nessa toada, para Leila Linhares Basterd118, a aprovação da Lei em questão foi resultado de uma ―ação de advocacy feminista‖, ao apontar que:

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DEBERT, Guita; GREGORI, Maria Filomena. As delegacias especiais de polícia e o projeto Gênero e Cidadania. In: CORRÊA, M. (org.). Gênero & Cidadania. Campinas: PAGU/UNICAMP, 2002. P. 11. 115 DEBERT, Guita Grin; OLIVEIRA, Marcella Beraldo de. Os Modelos conciliatórios de resolução de conflitos e a “violência doméstica”. Cadernos PAGU. Campinas, n. 29, jul/dez de 2007. p. 310. 116 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 82. 117 BASTERD, Leila Linhares. Lei Maria da Penha: uma experiência bem-sucedida de advocacy feminista. p.15. 118 BASTERD, Leila Linhares. Idem. p.16.

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Em resumo, a ação de advocacy feminista para a elaboração da Lei Maria da Penha, na sua tramitação, promulgação e na mobilização para sua implementação, teve por base o contexto político democrático, o avanço da legislação internacional de proteção aos direitos humanos com a perspectiva de gênero e, especialmente, a existência de organizações feministas atuantes. Essas organizações puseram em marcha uma grande mobilização junto ao Estado e à sociedade para a aprovação de uma legislação voltada para a proteção das mulheres e para a fim da impunidade 119 de seus agressores.

O projeto de Lei nº 4.559, que deu origem à Lei Maria da Penha, teve início ainda em 2002 e foi submetido a diversas alterações até a promulgação da Lei 11.340/2006. Assim, em 07 de Agosto de 2006, inspirada na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, surge a Lei 11.340/2006. Batizada como Lei Maria da Penha, em homenagem à Maria da Penha Fernandes, que sofreu tentativa de homicídio por duas vezes por seu cônjuge, a primeira, com um tiro nas costas, Maria da Penha ficou paraplégica e, na segunda, foi eletrocutada no chuveiro. O episódio chegou à ONU e à OEA, sendo considerado, pela primeira vez na história, um crime de violência doméstica.120 Tal legislação trouxe uma nova forma de tratamento da violência de gênero ocorrida no ambiente doméstico e reconhece os direitos das mulheres como direitos humanos. Assim sendo, reconhece a violência de gênero no ambiente doméstico como violação dos direitos humanos das mulheres. Não há dúvidas de que a Lei representou avanços no tratamento do tema na ordem jurídica. Todavia, as denúncias realizadas pelas mulheres também revelam uma enorme margem da vitimização sexual feminina que permanecia oculta (violência dos maridos, pais, padrastos, chefes e etc.), desvelando uma demanda, denominada por Andrade121, de ―publicização-penalização‖ do espaço privado. Segundo Andrade122 isso significa que determinados problemas antes definidos como privados, como a violência sexual no lar (doméstica) e no trabalho, converteram-se, mediante campanhas mobilizadas pelas mulheres, em problemas públicos e alguns deles se converteram e estão se convertendo em problemas 119

BASTERD, Leila Linhares. Lei Maria da Penha: uma experiência bem-sucedida de advocacy feminista. p. 17. 120 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. p. 15/17. 121 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. p. 83. 122 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Idem. Ibidem.

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penais (crimes), mediante forte demanda (neo)criminalizadora, fenômeno analisado a diante.

3.3 LEI MARIA DA PENHA E A DEMANDA (NEO)CRIMINALIZADORA A partir das denúncias dos movimentos feministas e dos alarmantes casos de violência doméstica, constatados pelas estatísticas colhidas pelos órgãos governamentais recém implementados, é compreensível entender como se desenvolve a busca dos movimentos pelo rigor punitivo, ou seja, apresentar como estratégia de consolidação dos direitos humanos das mulheres a punição. Para parte dos movimentos feministas a criminalização da violência doméstica tem o condão de trazer a possibilidade de oferecer respostas mais efetivas para aquelas mulheres que vivem em situações reais e cotidianas de violência no contexto familiar. Bárbara Soares, ao referir à criminalização da violência doméstica, afirma que: Era preciso definir politicamente essa violência como um crime que exigia punição. Demarcar como todo o rigor a fronteira que separava inocentes e culpados, vítimas de agressores e superpor essa demarcação ao recorte de gênero era quase uma necessidade lógica, pois essas distinções eram, em 123 certa medidas instauradoras da problemática que se queria denunciar.

Este movimento nacional de criminalização da violência contra as mulheres, de acordo com Wânia Pasinato124, não ocorreu de forma alheia ao que vinha se desenrolando no cenário internacional. Deste modo, as mudanças propostas pelas convenções e tratados internacionais voltados para a ampliação e garantia dos direitos das mulheres foram rapidamente incorporados ao discurso militante 125. A luta pelo fim da impunidade e pelo direito à vida sem violência serviram como mote para tornar visível e punível os atos de violências contra as mulheres. Para embasar a criminalização, é argumentado que a falta de legislação que regulasse a esfera privada da mesma forma que a pública produzia o efeito de relegar a mulher a uma condição inferior o que acontece na esfera privada, ou seja, o Estado, ao renunciar sua intervenção, mantém uma relação de poder desigual, 123

PASINATO, Wânia. Violência contra as mulheres e legislação especial, ter ou não ter? Eis uma questão. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 70, jan/fev de 2008.p.326. 124 PASINATO, Wânia. Idem. p. 327. 125 PASINATO, Wânia. Idem. Ibidem.

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implicando, no âmbito da família, deixar a mulher submetida ao marido. 126 Em outras palavras, tal concepção preconiza que não criminalizar a violência doméstica é valorar negativamente a integridade física e emocional das mulheres, mantendo intacto o poder masculino baseado na força. De acordo com Andrade127, a justificativa para esta ―(neo)criminalização‖ é a função simbólica do Direito Penal. Explica a autora que, os movimentos que a sustenta postulam não estar interessados no castigo, mas na utilização do Direito Penal como ―meio declaratório‖, ou seja, trazer a ―discussão e a conscientização públicas acerca do caráter nocivo da violência e, a seguir, a mudança da percepção pública a respeito‖128, sendo que o Direito Penal deve cumprir a função positiva de plasmar os valores da ―nova moral feminista‖. Para Zaffaroni129 e Baratta130, o discurso punitivo é atraente a todos os movimentos progressistas, tais como o movimento negro, movimento ambientalista, movimento LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), pois enxergam com esperança a atuação do poder punitivo, ignorando por vezes as contradições desta escolha. Especificamente ao envolvimento do movimento feminista com o poder punitivo, Zaffaroni é conclusivo ao explicar que: Este poder tiende la trampa de un contacto envolvente del feminismo con el poder punitivo para neutralizar su carácter profundamente transformador. El discurso feminista, discurso antidiscriminatorio por excelencia, corre el riesgo, entonces, de verse entrampado en un contacto no suficientemente 131 sagaz o hábil con el discurso legitimante del poder punitivo.

Zaffaroni132 ainda assevera que esses movimentos, à medida que, juntamente com a opinião pública, postulam por aumento do poder punitivo estão reclamando por uma maior vigilância punitiva. Esse poder de vigilância, segundo o 126

CAMPOS, Carmen Hein de Campos. A contribuição da criminologia feminista ao movimento de mulheres no Brasil. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Verso e reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, v.2. p. 141. 127 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. p. 83. 128 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Idem. p. 84. 129 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El discurso feminista y el poder punitivo. In: SANTAMARÍA, Ramiro Ávila (Org.) El género en el derecho. Ensayos críticos. Quito, Equador: Ministério de justicia y Derechos Humanos, 2009. 130 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. 131 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. Cit. p. 321. 132 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La mujer y el poder punitivo. Disponível em: . Acesso em 2 Ago. 2014. p. 4.

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autor, carrega efeitos negativos, tais como a redução dos espaços sociais, das possibilidades de diálogo, de coalização, de resistência e etc. Em referência ao aumento da vigilância punitiva, Zaffaroni certifica que: La vigilancia es un poder formidable y con perspectivas cercanas terriblemente inquietantes. En esencia, es el poder verticalizante del modelo corporativo de sociedad, regido conforme a vínculos de autoridad y, consiguientemente, com progresiva exclusión de vínculos horizontales o de simpatía, propios del modelo comunitario de sociedad. El avance del poder de vigilancia implica la reducción de los espacios sociales, de las posibilidades de diálogo, de coalición, de resistencia, etc. El poder de vigilância pulveriza la sociedad; su ideal es que cada brizna polvorosa se vincule únicamente com su "superior", que no haya trama sino jerarquía 133 social.

Em sentido semelhante, Karam134 sustenta que essas reivindicações repressoras são corolários da nova ―esquerda punitiva‖, de maneira que ―descobrem‖ o aparato penal como aliado na luta pela igualdade, na luta pela concretização de direitos humanos de grupos específicos. Para a autora, ao optar pela falsa e fácil solução penal, esses movimentos ―não enxergam a contradição entre a pretendida utilização de um mecanismo provocador de um problema como solução para este mesmo problema‖135. Ao referir à ―esquerda punitiva‖ Karam define que: O primeiro momento de interesse da esquerda pela repressão à criminalidade é marcado por reivindicações de extensão da reação punitiva a condutas tradicionalmente imunes à intervenção do sistema penal, surgindo fundamentalmente com a atuação de movimentos populares, portadores de aspirações de grupos sociais específicos. (...) O quadro vivido neste novo tempo, proporcionando campo extremamente fértil para a intensificação do controle social, proporciona e alimenta o crescimento da demanda de maior repressão, de maior rigor punitivo, de maior intervenção do sistema penal, trazendo desmedida ampliação do poder punitivo do 136 estado.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La mujer y el poder punitivo. p. 3. KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ICC, ano 1, n. 1, 1º semestre de 1996., p. 79-92. 135 KARAM, Maria Lúcia. Idem, p.85. 136 KARAM, Maria Lúcia. Idem, p.79/81. 134

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Por fim, Nilo Batista137 é firme em definir que a Lei Maria da Penha, ao consagrar a criminalização da violência doméstica, faz uma opção ―retributivistaaflitiva‖. Nesse sentido, o autor é categórico em afirmar que: A lei nº 11.340, de 7/ago.06, inspirada diretamente na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, tem como principal característica político-criminal exprimir uma demanda clara por sofrimento penal físico. Quando veda a aplicação do que coloquialmente chama de ―penas de cesta básica‖, bem como de ―prestação pecuniária‖ e de multa substitutiva (art. 17), ou quando declara inaplicável a lei nº 9.099, de 26. set.95 (art. 41), ou quando eleva a pena máxima da lesão corporal doméstica (para retirar-lhe a condição de menor potencial ofensivo – art. 44), a lei faz uma opção retributivista-aflitiva que recusa o sofrimento penal moral ou patrimonial na sanção dirigida ao autor de delito 138 caracterizável como violência doméstica.

Por tudo, é possível perceber que o ―mito do Direito Penal igualitário‖139, referido por Baratta, também é ideologicamente sedutor ao movimento feminista e com forte apelo legitimador (da proteção, prevenção, solução). Essa demanda pelo sistema acaba por reunir o movimento de mulheres, um dos movimentos mais progressistas do País, com um dos movimentos mais conservadores e reacionários, que é o movimento de ―Lei e ordem‖. Ambos acabam unidos por um elo por mais repressão, mais castigo, mais punição140, como se, à edição de cada nova lei penal, fosse ―mecanicamente sendo cumprido o pacto mudo que opera o translado da barbárie ao paraíso‖141.

3.4 SISTEMA PENAL E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: PROTEÇÃO OU DUPLICAÇÃO DA VITIMAÇÃO FEMININA?

Não se pode olvidar que, embora a lei Maria da Penha tenha representado certos avanços no tratamento do tema na ordem jurídica brasileira, deve-se analisar criticamente a sua dinâmica de funcionamento diante de suas implicações e capacidades de compreensão e transformação das relações de gênero. É 137

BATISTA. Nilo. Só Carolina não viu – violência doméstica e políticas criminais no Brasil. In: MELLO, Adriana Ramos de. (Org). Comentários à Lei de Violência e Familiar contra a Mulher. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p.11. 138 BATISTA. Nilo. Idem. p.11. 139 Vide primeiro capítulo, sobretudo ponto 1.2.2. 140 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. p. 117 141 ANDRADE, Vera Regina Pereira. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. p.135.

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necessário discutir se a opção punitiva é capaz de cumprir papel relevante diante da complexidade do tema, ou seja, a capacidade resolutória do sistema penal em proteger e prevenir, se é possível compatibilizar as demandas das mulheres com a lógica do sistema penal. A discussão, portanto, circunscreve o problema da punição à violência doméstica e a forma que adentra ao aparato repressor estatal. Outrossim, essencial verificar se a Lei Penal em questão, ao contrário do pretendido, vem cumprindo função inversa às declaradas. Se, ao invés de proteger a mulher e proporcionar visibilidade à causa feminina, converge-a para um sistema essencialmente desigual, seletivo e patriarcalmente construído, recriador e reprodutor de estereótipos morais e sexuais, e que só guarda um lugar a ela – o da vítima, a mulher como sujeito passivo, como objeto da violência.142 3.4.1 Ordem Sexual Hierárquica e Controle Formal – Da violência informal à violência institucional A partir da noção de que o direito penal é um subsistema de controle social institucional e que ao instituir a sua política de controle reproduz a formação estrutural de poder de grupos dominantes e dominados143, não se pode ignorar que a ordem sexual hierárquica e o próprio patriarcalismo, como na maioria das instituições sociais, também condicionam a construção linguística, estrutural e cultural do direito.144 Nesse sentido, foram construídas algumas teorias para compreender e estudar essa relação entre patriarcalismo e direito. Alessandro Baratta145 as divide as em três grandes blocos. O primeiro deles envolve as noções trazidas pela teoria do empirismo feminista146 que nega a ―sexualidade do direito‖. Demonstram que o

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ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. p. 116. 143 Essa ideia foi desenvolvida e estudada ao longo do primeiro capítulo, sobretudo no ponto 1.1 ao tratar sobre Direito Penal, controle social e estrutura de poder. 144 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. p.25. 145 BARATTA, Alessandro. Idem. Ibidem. 146 De acordo com Soraia de Rosa Mendes, o empirismo feminista surge no campo da biologia e das ciências sociais e representa, de uma forma geral, a primeira vertente crítica feminista da ciência. Conforme com essa corrente, sexismo e androcentrismo são componentes da ciência e se localizam no contexto da justificação, ou seja, no momento da comprovação da hipótese e da interpretação dos dados, de maneira que não há androcentrismo no momento em que se identificam e definem os problemas. O empirismo, portanto, busca corrigir o que se conhece como ‗má ciência‘, isto é, as regras metodológicas tradicionais permanecem intactas, tão somente agrega-se a perspectiva de gênero. (Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 78)

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tendencialismo sexual e o androcentrismo constituem distorções socialmente condicionantes que podem ser corrigidas através de uma mais minuciosa aplicação das regras da pesquisa científica já existentes, ou seja, bastaria assegurar o acesso e a paridade das mulheres na comunidade científica e o correto uso da metodologia para alcançar uma maior objetividade da imagem do mundo criado pela ciência 147. Por conseguinte, a estratégia feminista deve consistir na pressão sobre o sistema, com ações de grupos ou indivíduos, para que ele funcione segundo os seus próprios princípios, sem discriminações de sexo. De maneira diferente, o segundo grupo de teorias se fundo no reconhecimento do caráter estruturalmente masculino dos sistemas modernos da ciência e do direito. Tem como estratégia concorrer com a ciência e com o direito androcêntrico, fazendo valer ―o ponto de vista‖, os conceitos e as qualidades especificamente femininas148, ou seja, a maneira de enxergar das mulheres pode ser tornar um ―ponto de vista‖, uma base moral cientificamente mais aceitável para explicações aos fenômenos sociais. Por isso, esses grupos de teorias foram nomeados como o ponto de vista feminista (standpoint)149. De acordo com Baratta150, essas teorias (standpoint) reconhecem o caráter masculino dos conceitos que dominam o direito, mas nega-lhes a hierarquia. Portanto, a tese de fundo da teoria do ponto de vista feminista é que o predomínio social dos homens tem como consequência concessões e representações parciais e pervertidas, enquanto as mulheres, com base na sua posição subordinada, possuem capacidade de desenvolver representações mais completas e menos pervertidas. Essa lógica demonstra que o direito é sexuado e quando do confronto entre homem e mulher, não é que não consegue aplicar ao sujeito feminino os critérios objetivos, mas, ao contrário, aplica exatamente tais critérios, e, estes são masculinos. 151 De tal modo, o direito reproduz todo o sistema dicotômico de conceitos imperantes na sociedade patriarcal, quais sejam: ativo-passivo, reflexivo-emotivo, competentesensitivo, poder-simpatia, objetivo-subjetivo e etc. Em cada um deles, o primeiro 147

BARATTA, O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. p. 26. BARATTA, Alessandro. Idem, p. 29. 149 De acordo com Mendes, essa teoria não se configura somente como uma perspectiva, mas indica uma posição que se obtém em vinculação com a luta política. Também estudada por Harding, esta epistemologia, que parte do pensamento hegeliano sobre amo/escravo desenvolvida por Engels, Lukács e Marx, partilha espaço na teoria crítica e tem pretensão de deslegitimar a visão androcêntrica estabelecida na realidade social. (Criminologia feminista: novos paradigmas. p. 79) 150 BARATTA, Alessandro. Op. Cit, p. 29. 151 BARATTA, Alessandro. Idem. p. 30. 148

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representa o masculino, portanto pertencente a uma categoria superior à do segundo, expondo que o direito sempre desenvolve-se sob o império de conceitos masculinos152. Por último, ainda é possível fazer referência a um terceiro grupo de teorias, que se desenrola sem uma completa ruptura da convicção de que o sistema da ciência e do direito são caraterizados pela prevalência de qualidades e valores atribuíveis ao gênero masculino. Trata-se do feminismo pós-moderno153, que visa desconstruir para construir, que desmistifica as grandes narrações da ciência e da cultura dominante, para reconstruir um conhecimento que resgata a sabedoria feminina e a popular154. A estratégia de tais teorias é resgatar e revalorar, no processo de transformação do direito, as qualidades femininas até o momento reprimidas ou marginalizadas na periferia do direito. De acordo com Mendes 155, a reflexão dessas teorias é no sentido da (des)construção social e discursiva do gênero ou do sexo. Outrossim, esses estudos possibilitam uma noção sobre o gênero subjetivo muito mais flexível, e que não venha estabelecido por fatores biológicos, psicológicos ou sociais ligados ao sexo. Segundo os estudos de Baratta156, esse conjunto de conhecimentos, deseja (...) desconstruir as reificações essenciais que estão na base das dicotomias, das qualidades e dos valores, assim como o seu emprego polarizante na construção social dos gêneros, das esferas de vida (pública e privada), da ciência e das instituições de controle comportamental (direito, 157 justiça penal) e do seu objeto (crimes, penas).

A análise, mesmo que de forma breve, desses grupos de teorias indica que, apesar das peculiaridades de cada uma e suas distintas visões sobre a relação entre direito e ordem sexual hierárquica, nenhuma delas nega que o patriarcalismo e a dicotomia entre os sexos são fatores que, de uma forma ou outra, influenciam o Direito Penal. Seja na aplicação defeituosa das regras científicas de determinado

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BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. p. 27. Mendes afirma que o pensamento pós-moderno abarca uma diversidade significativa de autores/as, que questionam qualquer tentativa de universalidade e totalidade no conhecimento e é, sobretudo, desconstrutivista.(Criminologia feminista: novos paradigmas. p. 82) 154 BARATTA, Alessandro. Op. Cit. p. 36. 155 MENDES, Soraia da Rosa. Op. Cit. p. 82. 156 BARATTA, Alessandro. Op. Cit. p. 36. 157 BARATTA, Alessandro. Idem. Ibidem. 153

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saber (empirismo feminista) ou no condicionamento da própria estrutura ontológica do Direito Penal, isto é, considera-lo como parte do sistema de dominação masculina e ao mesmo tempo fundador e reprodutor destes preceitos (standpoint e feminismo pós moderno), insistir na igualdade, na neutralidade e na objetividade do Direito Penal é, ironicamente, o mesmo que insistir em ser julgado através dos valores masculinos. Por isso é que se afirma que o Direito Penal não é campo hábil para o trato da questão, isto porque se trata de um subsistema de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas 158. Desta maneira, ao incidir sobre a mulher, a sua lógica de controle social, que exterioriza um controle que inicia na família e na sociedade como um todo, o sistema penal exerce uma violência institucional e, ao longo do controle social formal submete-a à vivência de toda uma cultura de discriminação, humilhação e estereotipia, sobretudo nos crimes de ordem sexual. Diante do exposto, não é possível negar que as formas pela quais os sistemas de controle e seus agentes concebem o comportamento das mulheres criam e reproduzem os estereótipos de gênero. Desta feita, se de um lado o controle a que estão submetidas as mulheres na família, escola, trabalho, meios de comunicação não é propriamente jurídico, por outro, o sistema penal cumpre também uma função disciplinadora para manter a subordinação feminina. O controle formal e informal, assim ―se alimentam entre si para perpetuar e legitimar a subordinação das mulheres‖159. Nessa toada, Andrade160 afirma que a mulher está imersa em um ―continuum criminológico” ao passar pela interação entre o controle social informal (exercido nas relações sociais em geral, sobretudo família, religião e emprego) que violenta e discrimina a mulher, e pelo controle formal institucionalizado através Direito Penal. 3.4.2 Eficácia Invertida – Da Pretensa Proteção à Duplicação da Violência Ao longo da história, o sistema penal demonstrou não cumprir a sua promessa de segurança, vislumbrando a frustação da função preventiva. Além disso, é caracterizado com um sistema seletivo, que não parte de princípios igualitários. Ao 158

ANDRADE, Vera Regina Pereira. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. p.131. 159 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. p.165. 160 ANDRADE, Vera Regina Pereira. Op. Cit. p.132.

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aderir ao Direito Penal, está-se transferindo as mulheres dos braços dos homens para os do sistema penal, igualmente discriminatório e, ainda, que atua de forma seletiva. Quando trabalha somente sobre a ameaça da pena, o sistema demonstra que é estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher pois ―como a única resposta que está capacitada a acionar – o castigo – é desigualmente distribuída e não cumpre as funções preventivas (intimidatória e reabilitadora que se lhe atribui)‖161 não resta a quem recorrer. Nesta crítica, percebe-se a incapacidade protetora da Lei Maria da Penha ao reproduzir a lógica de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres. Andrade162 demonstra que o patriarcado e o sistema capitalista são matrizes históricas do sistema de justiça criminal e, por isso, determinam o sentido da seleção do sistema criminal. São por excelência instrumentos de consagração ou cristalização de desigualdades de direitos em todas as sociedades. Assim, a autora afirma que: Evidentemente que um tal funcionamento interno do sistema de justiça criminal e do controle social somente adquire sua significação plena quando reconduzido ao sistema social (à dimensão macrossociolófica) e inserido nas estruturas profundas em ação condicionadas, a saber, pelo capitalismo e pelo patriarcado, que ele expressa e contribui para reproduzir e relegitimar, aparecendo, desde sua gênese, como um controle seletivo classista e sexista (ademais de racista), no qual a estrutura e o simbolismo de gênero operam desde as entranhas de sua estrutura conceitual, de seu saber legitimador, de suas instituições, a começar pela linguagem: eis o 163 sentido da seletividade.

Há ainda a questão da vitimização, pois se qualquer mulher pode ser vítima da violência, a distribuição desta vitimização pelo sistema penal é seletiva de acordo com estereótipos de vítima, pois a intervenção estereotipada do sistema penal age tanto sobre a ―vítima‖, como sobre o ―delinquente‖. Todos são tratados da mesma maneira.164 Exemplo claro dessa política é a atuação sobre a criminalização das condutas sexuais, que partem da ―lógica da honestidade‖ da mulher em questão, ou seja, o referencial para a distribuição da vitimização sexual feminina é a moral 161

ANDRADE. Vera Regina Pereira de. O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher: a soberania patriarcal. In: Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, n. 15. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2007. p. 168. 162 ANDRADE. Vera Regina Pereira de. Idem. p. 173. 163 ANDRADE. Vera Regina Pereira de. ANDRADE. Vera Regina Pereira de. O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher: a soberania patriarcal. p.173. 164 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. p. 97.

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sexual dominante simbolizada no conceito de ―mulher honesta‖, de modo que só a moral das ―mulheres honestas‖, maiores ou menores de idade, é protegida, influenciando no tratamento penal a reputação sexual da mulher. Percebe-se ―a vitimação seletiva das mulheres obedecendo à proteção seletiva do bem jurídico moral sexual‖165. Para além dos crimes sexuais, não são poucos os casos em que os inquéritos policiais e os processos penais vasculham a moralidade da vítima e sua ―possível contribuição‖ e ―merecimento‖ da violência perpetrada. Assim, no que diz respeito às mulheres, o sistema também é seletivo, criminalizante e vitimizante. Nesses aspectos, a Lei 11.340/2006 replica a lógica e a função real de todo mecanismo de controle social que opera de forma distinta da declarada e se presta somente para à manutenção do status quo social. Assim, em nível micro, implica ser um exercício de poder e de produção de subjetividades (seleção binária, entre bem e mal, homem e mulher); em nível macro, implica ser um exercício de poder (de homens e mulheres) reprodutor de estruturas, instituições, simbolismos, de maneira a perpetuar a sociedade verticalizada.166 Ademais, a tratativa penal para a questão da violência de gênero, sobretudo diante da ―Lei Maria da Penha‖, não proporciona o empoderamento das mulheres, restringindo, inclusive, o manuseio de seu direito de representação, colocando a mulher como posição de tutelada. Desta feita, a crítica anteriormente construída para o Direito Penal e suas falidas capacidades resolutórias, preventiva e protetora, também se aplicam ao caso dos institutos penais reafirmados pela Lei Maria da Penha. Tal legislação não só é ineficaz para proteger as mulheres como também exerce funções invertidas ao duplicar a violência (violência institucional) e a vitimação feminina e reproduzir um controle classista e sexista. O poder punitivo opera sempre seletivamente, atuando conforme a vulnerabilidade e com base em estereótipos, e aqui não seria diferente. Pertinentes, mais uma vez, as palavras de Andrade, que sintetiza de forma esclarecedora parte dos argumentos acima expostos: (...) O sistema penal é ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência porque, entre outros argumentos, não previne novas violências,

165

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. p. 98. 166 ANDRADE. Vera Regina Pereira de. O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher: a soberania patriarcal. p. 168.

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não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência (...). (...) O sistema penal (salvo situações contingentes, empíricas e excepcionais) não é apenas um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência, como também duplica a violência exercida contra elas e as divide, sendo uma estratégia excludente que afeta a própria unidade (já complexa) do movimento feminista. Isto porque se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu 167 poder e seu impacto também sobre as vítimas.

3.5 SISTEMA PENAL E CIDADANIA FEMININA: DA MULHER COMO VÍTIMA À MULHER COMO SUJEITO DE CONSTRUÇÃO DE CIDADANIA O aumento do rigor punitivo trazido pela ―Lei Maria da Penha‖ certifica a escolha do legislador por um sistema repressivo que está a demandar novas soluções para a consolidação dos direitos humanos e dos laços de solidariedade social. Logo, não há como crer que punir com rigor a violência doméstica significa combatê-la, acreditar que punir os agressores representa alterar as relações de poder presentes na sociedade é posicionamento cômodo e simplista. Nesse aspecto, valiosas as lições de Andrade quando afirma que: O sistema penal não pode, portanto, ser um fator de coesão e unidade entre as mulheres porque atua, ao contrário, como um fator de dispersão e com uma estratégia excludente, recriando as desigualdades e preconceitos sociais. O que importa salientar, nesta perspectiva, é que redimensionar um problema, e reconstruir um problema privado como um problema social, não significa que o melhor meio de responder a este problema seja convertê-lo, quase que automaticamente, em um problema penal, ou seja, em um 168 crime.

Todavia, por motivos óbvios, não se pode negar a proteção devida e manter o déficit de proteção do qual as mulheres historicamente são vítimas. A crítica que se faz é que o sistema se ocupa em encarcerar ou ameaçar o agressor, aquele que viola o bem jurídico, mas não se ocupa em nada com o sujeito titular do bem jurídico transgredido169, de modo que o campo penal é, de todas as áreas do Direito, a mais

167

ANDRADE, Vera Regina Pereira. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. p.. 131. 168 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Da mulher como vítima à mulher como sujeito. In: Carmen Hein de Campos (Org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 114. 169 BUGLIONE, Samantha. A mulher enquanto metáfora do direito penal. In: Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos/ICC, ano 5, v. 9/10, 1º e 2º semestres de 2000. p. 214.

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violenta, mais onerosa, e, por isso, a menos adequada para ―a luta potencializadora de conquistas‖170. Carmen Hein de Campos171 defende que a Lei Maria da Penha opera com um conceito de ―mulher vítima‖ que permanece estanque, oferecendo as mesmas soluções legais às diversas situações vivenciadas pelas mulheres, de modo a deixar pouca ou nenhuma margem para articular outras respostas que pudessem ultrapassar os limites legais previstos. Nesse sentido, a ―heterogeneidade‖ da categoria mulheres fica diluída no conceito de uma vítima unificada, comprometendo uma perspectiva não normatizadora172. Da mesma forma como são múltiplas as formas, físicas ou simbólicas, de violência contra as mulheres, também são múltiplas as formas pelas quais desejariam respondê-la. Afastar o agressor do lar, finalizar o conflito e viver pacificamente sob o mesmo teto, ter apoio psicológico e familiar, abandoná-los, ou, enfim, vê-los atrás das grades, são maneiras diversas de enxergar a solução da violência de gênero e que não estão abarcadas pela legislação em questão. A transformação da mulher como vítima à mulher como sujeito é necessária e certamente não passa pelo sistema penal. Nesse sentido, Andrade173 afirma que o Direito Penal é, por excelência, o campo da negatividade, da repressividade, da supressão duplicada de direitos, enquanto ―outros campos do Direito constituem, mal ou bem, um campo de positividade, em que o homem e a mulher podem, enquanto ‗sujeitos‘, reivindicar, positivamente, direitos‖174. Para a autora em questão, a ―arena jurídica‖ mais adequada para a luta é a do Direito Constitucional porque constitui campo de positividade, com potencial de recolocá-las na condição de sujeitos.175 A multidisciplinariedade do tema não pode ser ignorada, as políticas públicas e os juizados que tratam da violência doméstica devem funcionar de maneira integrada, de forma a auxiliar as mulheres num momento de transição da situação em que se encontram (violência) para outra (de não violência). Tratar do fortalecimento emocional da mulher, de sua autoestima, na conscientização sobre as

170

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. p. 123. 171 CAMPOS, Carmen Hein de. Violência de gênero e o novo sujeito do feminismo criminológico. Trabalho apresentado ao Encontro Fazendo Gênero 9. Florianópolis, IEF/UFSC, 23-26 Ago/2010. 172 CAMPOS, Carmen Hein de. Violência de gênero e o novo sujeito do feminismo criminológico, p. 5. 173 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit. p.123. 174 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Idem. Ibidem. 175 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Idem. p. 124.

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diferenças sociais na construção dos papéis de gênero, o papel das mulheres como reprodutoras do modelo de comportamento violento para os homens e de apassivamento para as elas176. Enfim, dar voz aos sujeitos da violência, uma ―coresponsabilização e co-superação na mecânica da violência‖177, incluir os homens e as mulheres, como sujeitos, nas relações de violência e sua percepção; entender, sobretudo, que não existe um único problema e uma única solução, tampouco uma única mulher e uma única violência. Interessante a perspectiva trazida por Mendes178, ao afirmar que talvez uma das alternativas seja dar real significado às formas de atuação punitiva comunitária desenvolvidas pelas próprias mulheres (e que pode ser realizada em parceria com o poder público), de maneira a não dispensar o Direito Penal completamente, mas mostrar ser possível diminuir muito sua esfera de incidência. Tais atuações podem ser complementadas pelo poder público, no sentido de proporcionar medidas integrais de proteção dos direitos, com visitas a residências, atendimentos psicológicos, reuniões com vítimas e com agressores. De todo modo, diante da complexidade da questão, não se tem a pretensão de trazer à tona uma solução pronta para o tema, mas sim de demonstrar a insuficiência das medidas penais que vêm sendo aplicadas nos juizados de violência doméstica, a necessidade da superação da lógica punitiva com mudança da perspectiva penal no sentido de dar ―voz‖ aos sujeitos da violência. Um exemplo claro dessa atuação meramente penal é o funcionamento do Juizado da Violência Doméstica em Curitiba que vem reproduzindo a seletividade penal tão comum ao sistema de justiça criminal. Nesse sentido, necessário também verificar quem são os réus da Lei Maria da Penha, quais as suas relações com mulheres em situação de violência, quem é sua ―clientela‖, de maneira a perceber, sobretudo, se, no caso da lei em questão, a seletividade também é fator operante. É o que se passa a analisar no próximo capítulo.

176

PASINATO, Wânia. Violência contra as mulheres e legislação especial, ter ou não ter? Eis uma questão. p.351. 177 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher: a soberania patriarcal. 178 Sobre o tema, Mendes faz extensa análise sobre um exemplo prático da medida, o tratamento da violência doméstica a partir da ótica do Grupo de ‗Mulheres Cidadania Feminina‘, organização não governamental que atua no Recife- PE. Para tanto, consultar: MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. p. 176 ss.

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4. AGRESSORES OU FRACASSADOS? PESQUISA DO PERFIL DO RÉU DA LEI MARIA DA PENHA NO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE CURITIBA

4.1 METODOLOGIA

A metodologia escolhida para a presente pesquisa foi o estudo quantitativo de dados e características dos réus da Lei Maria da Penha. Através da amostragem aleatória simples foram catalogados, analisados e tabulados 300 (trezentos) processos em trâmite na 13° Vara Criminal de Curitiba (vara competente para processar e julgar crimes atinentes à Lei 11.340/2006). A pesquisa teve duração de, aproximadamente, dois meses (junho e julho de 2014), verificando processos que apuram fatos ocorridos a partir de 2011. Importante destacar que os dados utilizados são públicos e não foram manuseados processos ou quaisquer dados acobertados pelo segredo de justiça. Os processos foram assinalados numericamente e demarcados somente com as iniciais do nome, de maneira a evitar a possibilidade de identificação. Os dados foram colhidos com a aplicação do formulário em anexo (anexo 1), individualmente a cada processo. As informações foram obtidas a partir das qualificações,

interrogatórios

e

depoimentos

nos

inquéritos

policiais

e/ou

informações das atas de audiência. Após a colheita dos dados, estes foram analisados e entabulados, extraindo-se os dados estatísticos necessários. O objetivo precípuo da pesquisa era identificar o perfil socioeconômico dos réus. Para tanto, foram analisados aspectos como escolaridade, renda, cor da pele, local de moradia, e, ainda, quais crimes cometeram, suas relações com as vítimas, se possuem algum vício e etc. Assim, buscou-se compreender quem é a ―clientela‖ da Lei Maria da Penha, quem são os ―agressores‖ tratados diariamente pelo sistema de justiça criminal paranaense.

4.2 PERFIL E RESULTADOS

A ideia de estudar o perfil socioeconômico dos réus da Lei Maria da Penha surgiu a partir de algumas inquietações com o contato prático no Juizado de

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Violência Doméstica de Curitiba. As observações diárias indicavam que a maioria desses homens era de baixa renda, morador de bairro periférico, negro, reincidente na Lei Maria da Penha e/ou já respondia por outros crimes e usuário de droga (sobretudo álcool e ―Crack‖). De maneira geral, o perfil desses homens se assemelhava em muito com o perfil dos presos no Brasil, provenientes de classes sociais desfavorecidas. A partir do estudo quantitativo, foi possível verificar a veracidade dessas percepções.

4.2.1 Do Bairro de Moradia Diante da pesquisa realizada, foi possível perceber que os ―agressores‖, em sua maioria, são residentes dos 10 (dez) bairros mais pobres de Curitiba. Para tal conclusão foram considerados os dados do Censo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e IPPUC (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba). De acordo com o último Censo disponível179, os 10 (dez) bairros com menor rendimento mensal médio por responsáveis dos domicílios são: Cidade Industrial, Tatuquara, Pinheirinho, Caximba, Capão Raso, Campo Santana, Cajuru, Uberaba, Fazendinha, Prado Velho. Diante dos dados, foi constatado que 195 (cento e noventa e cinco) dos 300 (trezentos) réus, ou seja, 65% (sessenta e cinco por cento) são moradores de uma dessas regiões.

4.2.2 Da Cor de Pele

Para a classificação desse quesito foram utilizadas as categorias do IBGE para as possíveis cores de pele. Assim, de acordo com a percepção de cada réu, a cor da cútis foi classificada em ―parda‖, ―preta‖ ou ―branca‖. Para fins didáticos de exposição, foram agrupados em dois grupos: ―brancos‖ e pardos/pretos‖. Os dados demonstraram uma maioria quantitativa de brancos, sendo que 160 (cento e sessenta) se declaram dessa forma, o que resulta na porcentagem de 53,3% 179

O último Censo disponível é o Censo IBGE- IPPUC de 2010 que calcula o rendimento mensal médio por responsáveis dos domicílios em reais. Tal pesquisa também classifica os bairros com maior incidência de habitantes com renda per capita de até R$ 70,00 (setenta reais). Esses indicadores podem ser encontrados em: , < http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_bairros_de_Curitiba> e , acesso em 08/10/2014.

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(cinquenta e três vírgula três por cento) de brancos e 46,7% (quarenta e seis vírgula sete por cento) de pardos/pretos (140 réus). A princípio, os dados contrariam a noção de que os réus são formados em sua maioria por pardos/pretos, todavia não se pode olvidar a quantidade dessas pessoas na sociedade curitibana. Portanto, os dados só ganham relevância quando inseridos no contexto municipal. De acordo com informações da Prefeitura de Curitiba180, os dados colhidos pelo Censo IBGE/2010 apontam que somente 19,7% (dezenove vírgula sete por cento) da sociedade curitibana se declara pardo ou preto. Diante disso, percebe-se que a porcentagem de réus pretos/pardos da Lei Maria da Penha supera em mais que o dobro a porcentagem dessas mesmas pessoas na cidade de Curitiba.

4.2.3 Escolaridade

Embora o IBGE utilize a quantidade de anos de estudo das pessoas para analisar a escolaridade, na presente pesquisa, foram agrupados nos seguintes intervalos: ensino fundamental, ensino médio e ensino superior. Como na maioria dos casos não era possível verificar se o indivíduo concluiu o respectivo grau, os poucos casos em que havia a informação de ―incompleto‖ foram agrupados no respectivo grau inferior, ou seja, se determinado réu informou ―ensino médio incompleto‖ foi agrupado na categoria ―ensino fundamental‖. Destarte, extraiu-se que 7,3% (sete vírgula três por cento) declararam sedr analfabetos, 42,3% (quarenta e dois vírgula três por cento) declaram possuir ensino fundamental completo, 43,6% (quarenta e três vírgula seis por cento) afirmam ter completado o ensino médio e apenas 6,6% (seis vírgula seis por cento) concluíram o ensino superior. Percebe-se uma maioria apertada dos réus com ensino médio completo, destacando-se também a grande quantidade de réus que possuem somente o ensino fundamental completo. Relevante, ainda, notar que a quantidade de analfabetos é maior que a quantidade de réus com ensino superior completo. Para facilitar a visualização, foi gerado o seguinte gráfico quantitativo:

180

Disponível em: acesso em 08/10/2014.

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Escolaridade 140 120 100 80 60 40 20 0 Ensino Superior Completo

Ensino Médio Completo

Ensino fundamental Completo

Analfabeto

4.2.4 Renda Percebida Nesse aspecto, foi utilizado como base o salário mínimo (S.M) nacional 181 à época da extração dos dados, ou seja, R$ 724,00 (setecentos e vinte e quatro reais). A grande quantidade de processos analisados impediu de considerar o salário mínimo nacional à época da ocorrência dos fatos. Diante dos elementos colhidos decidiu-se por dividir os réus em três grupos. O primeiro considera os réus que percebem renda maior que dois salários mínimos, portanto, renda superior a R$ 1.448,00 (um mil quatrocentos e quarenta e oito reais); o segundo, os réus que auferem renda entre um e dois salários mínimos, ou seja, valores maiores que R$ 724,00 (setecentos e vinte e quatro reais), todavia menores que R$ 1.448,00 (um mil quatrocentos e quarenta e oito reais) e o último abrange os réus que ganham um salário mínimo ou menos, isto é, valores menores ou iguais a R$ 724,00 (setecentos e vinte e quatro reais), inclusive os desempregados. Assim, chegou-se a seguintes porcentagens: somente 19% (dezenove por cento) dos réus auferem renda maior que dois salários mínimos. Quantitativamente, esse valor corresponde a 57 (cinquenta e sete) réus, desses, somente 17 (dezessete) percebem renda maior que três salários mínimos (R$ 2.172,00), à vista disso, somente 5,6% (cinco vírgula seis por cento) dos 300 réus somam quantias maiores que três salários mínimos. O maior grupo foi observado nos réus que ganham entre um e dois salários mínimos, sendo 43,6% (quarenta e três vírgula seis por cento) do total. Expressivo também o número de réus que estão desempregados 181

Valor obtido no portal eletrônico do Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), disponível em: , acesso em: 08/10/2014.

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ou percebem renda igual ou inferior a um salário mínimo, sendo 37,3% (trinta e sete vírgula três por cento) do total. Por consequência, somando-se o segundo e o terceiro grupo (réus que percebem renda entre um e dois salários mínimos e os que percebem renda inferior ou igual a um salário mínimo) chega-se à inconteste maioria, 80,1% (oitenta vírgula um por cento), de modo a demonstrar que a grande maioria dos réus ganha menos de dois salários mínimos (valor inferior a R$ 1.448,00). Para efeitos visuais, foi construído o gráfico:

Renda Percebida 140 120 100 80 60 40 20 0 Grupo 1 ( mais de 2 S.M)

Grupo 2 (Valor entre 1 e 2 S.M)

Grupo 3 (Desempregados, valores inferiores a 1 S.M)

4.2.5 Quantidade de Filhos

Além da implicação na renda percebida, a quantidade de filhos é quesito essencial também para a compreensão da complexidade da relação com a denunciante. A existência de descendentes, em muito dos casos, afirma um maior vínculo entre os envolvidos na violência, bem como certa dependência financeira da mulher em relação ao homem, que tem o papel de sustento desses descendentes. Nos casos em que os filhos são frutos de outro relacionamento, ainda existe, em algumas situações, o impacto financeiro negativo da pensão. Nessa toada, foi detectado que 74% (setenta e quatro por cento) dos réus possuem filho e somente 26% (vinte e seis por cento) não possuem filho. Da mesma maneira, foi possível vislumbrar que 26,6% (vinte e seis vírgula seis por cento) dos réus possuem três filhos ou mais e 47,4% (quarenta e sete vírgula quatro por cento) possuem um ou dois filhos.

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4.2.6 Dependência Química

Outro fator observado com a aplicação dos formulários foi a relação dos réus com as drogas e com o álcool. Diante dos motivos que geram a violência doméstica, a utilização de drogas e álcool está entre os fatores predominantes182. Nesse quesito, foi considerado somente os casos em que os familiares, a vítima ou os próprios réus afirmavam a dependência química, ou seja, fazem o uso frequente dessas substâncias ao ponto de se reconhecerem como ―dependentes‖, excluindose os casos em que o réu faz o uso esporádico de álcool ou estava sob os efeitos de álcool no momento do fato. Diante disso, constatou-se que 56,6% (cinquenta e seis vírgula seis por cento) dos réus são dependentes químicos, sendo que 33,6% (trinta e três vírgula seis por cento) são ―alcoólatras‖ e 23% (vinte e três por cento) são dependentes de substâncias ilícitas. As drogas mais utilizadas pelos agressores são, em ordem decrescente: ―crack‖, ―maconha‖ e por último a ―cocaína‖. Destaca-se que a maior incidência da droga ―crack‖ é sintomática para a configuração social dessas pessoas. Diz-se isso porque esta droga é utilizada majoritariamente por pessoas das classes mais desfavorecidas e apontada pelo seu alto poder destrutivo.

4.2.7 Da Relação com a Denunciante

Também foi objeto de estudo da pesquisa a relação dos réus com as denunciantes de violência doméstica. Importante pontuar que o relacionamento é algo difícil de ser declarado, sobretudo no momento em que o homem está preso, já que este não sabe como ficará a relação dali para frente, todavia, a partir das declarações gerais, foi possível obter alguns dados. Para tanto, foram classificados em seis grupos diferentes com porcentagens expressivas. O primeiro deles é o grupo em que os réus possuem relação de convivência ou são cônjuges das denunciantes, sendo todos eles coabitantes dessas mulheres. Essa situação representa a maioria dos réus, expondo a porcentagem de 63% (sessenta e três). O segundo grupo aponta os réus que são filhos dessas supostas vítimas, chegando-se a porcentagem de 9,3% (nove vírgula três por cento). Ainda, atingiu taxa relevante o 182

Dentro os motivos que geram a violência, alcoolismo e o ciúme aparecem em todas as pesquisas como os maiores índices. Fonte: Instituto AVON/IPSOS (2011) e Fundação Perseu Abramo (2010).

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grupo de réus que são apenas namorados das denunciantes, sendo 8,3% (oito vírgula três por cento). Constatou-se também que existe uma parcela dos réus que à época da violência não tinham mais relacionamento amoroso com as denunciantes, portanto, ―ex-namorados‖, ―ex-cônjuges/conviventes‖, alcançando 8,6% (oito vírgula seis por cento) dos total. Por último, extraiu-se que 6% dos réus são irmãos das delatoras. Nesse sentido, sobra um grupo de 4,6% (quatro vírgula seis por cento) dos réus que possuem relações diversas com as vítimas, mas que não formaram um grupo expressivo, tais como tios, pais, primos e etc.

4.2.8 Do Crime Praticado

Para a compreensão desse elemento, não se pode perder de vista que, em muito dos casos, o efeito subjetivo da violência acaba sendo maior do que o próprio efeito físico dessa, ou seja, o impacto psicológico, nas relações de convivência, confiança, medo e impotência são mais nefastos que a própria lesão deixada pelo agressor. Com a ressalva, foram estudados os tipos objetivos praticados pelos réus. Os crimes foram agrupados a partir de suas incidências na pesquisa. Assim, o crime mais praticado é o de lesão corporal leve em concurso com ameaça, que foi constatado em 35,6 % (trinta e cinco vírgula seis por cento dos casos), seguido da prática de somente ameaça, 26,6% (vinte e seis vírgula seis por cento), somente lesão corporal leve, 23,3% (vinte e três vírgula três por cento), e, por último, a contravenção penal de vias de fato, 9,6% (nove vírgula seis por cento dos casos). Ainda, relevante pontuar a incidência de um caso de homicídio e um caso de lesão corporal grave, somando, juntos, 0,8% (zero vírgula oito por cento) dos casos. Os outros 4% (quatro por cento) são referentes a casos diversos, tais como violação de domicílio, desobediência, resistência à prisão, injúria e etc. Para uma melhor compreensão do tema tem-se o gráfico quantitativo:

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Crimes Praticados 120 100 80 60 40 20 0 Lesão Leve e Ameaça

Ameaça

Lesão Leve

Vias de Fato Homicídio ou Lesão Grave

Outros

Conveniente a observação de que o crime de lesão corporal leve é apenado com detenção de três meses a um ano (Artigo 129 do Código Penal) e a ameaça apenada com detenção de um a seis meses, ou multa. Considerando a possibilidade da progressão da pena com o cumprimento de 1/3 (um terço) é possível concluir que esses réus, em grande número, já respondem à pena antes mesmo da condenação judicial ao final do processo, pois, em muitos casos, chegam a ficar presos preventivamente por 4 (quatro) meses.

4.2.9 Antecedentes Criminais

Fator também observado foi o envolvimento do réu em outros processos penais. Nesse aspecto, foram unificados os casos em que foi possível perceber reincidência (condenação penal transitada em julgado) ou hipóteses em que estes figuram como réu em outros processos. Tal unificação ocorreu em virtude da dificuldade de observar a reincidência propriamente dita ou casos em que ainda não houve condenação. Para se chegar aos valores, utilizaram-se as informações processuais da pesquisa de antecedentes e, até mesmo, as informações contidas nas declarações dos réus quando afirmaram que já foram acusados penalmente. Os crimes que mais figuram nos maus antecedentes são furto/roubo, tráfico e crimes praticados no contexto doméstico. Com esse método, chegou-se à taxa de 48% (quarenta e oito por cento) dos réus que já foram condenados penalmente ou estão sendo processados pela prática

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de outros crimes e, consequentemente, 52% (cinquenta e dois por cento) dos réus que não foram denunciados ou condenados por nenhum crime.

4.2.10 Defensor

Outro elemento interessante notado nas pesquisas foi quanto ao defensor do acusado. A defesa dos réus em sua maioria esmagadora é feita por defensores dativos nomeados após a denúncia. Assim, em 82% (oitenta e dois por cento) dos casos os réus não possuem advogados particulares, estes são nomeados pelo juiz. Somente 16% (dezesseis por cento) dos réus possuem advogado particular. A defesa dos outros 2% (dois por cento) é feita pela defensoria pública. Esses dados influenciam em grande medida na qualidade técnica da defesa desses acusados. Embora a defesa dativa seja de grande valia, de maneira geral, não apresentam grande qualidade técnica e preocupação com o acusado. Em regra, os réus, ficam sem defensor até o oferecimento da denúncia e, muitas vezes, carecem de pedido de liberdade provisória quando da prisão em flagrante e outras medidas necessárias, como, por exemplo, a defesa diante das medidas protetivas de afastamento do lar. Destaque também ao pequeno número de casos em que a Defensoria Pública faz a defesa desses réus, consequência direta do baixo investimento do Executivo nessa questão.

4.3 PERFIL GERAL

Por tudo, diante de todos os dados colhidos e com as porcentagens obtidas, a título ilustrativo, é possível chegar a um ―perfil comum‖ dos supostos agressores. Nota-se que o Sistema de Justiça Criminal dirige-se àqueles possuidores de papéis masculinos, para os quais não tenha sido suficiente a disciplina do trabalho ou aqueles que tenham ficado à margem do mercado oficial de trabalho e da economia formal.183 Não diferente, essa população está representada, na grande maioria, por homens provenientes de grupos sociais desfavorecidos, com déficit de instrução e formação,

183

com

posição

precária

no

mercado

de

trabalho,

negro/pardo,

BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. p. 49.

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toxicodependente e que fracassou em seu intento de ―sustentar a casa‖, de prover financeiramente o lar. Destarte, o ―homem comum‖ cliente da Maria da Penha de Curitiba recebe até dois salários mínimos, mora em um dos 10 (dez) bairros mais pobres de Curitiba, cursou somente o ensino médio (ou, ainda, somente o ensino fundamental), possui dois filhos, é dependente químico e tem grande chance de ser recrutado entre a parcela preta/parda da sociedade curitibana. Avançando, de maneira bem geral, é possível estimar uma renda média por habitante de uma família em conflito de violência doméstica (contando que a mulher não perceba renda e contabilizando os membros da família em dois filhos, pai e mãe) e, assim, chega-se ao valor de R$ 362,00 (trezentos e sessenta e dois reais) per capita. Esse valor demonstra a enorme dificuldade financeira em que essas famílias vivem, já que, essa renda individual deve abarcar todas as despesas pessoais, tais como alimentação, vestuário, despesas médicas, e, ainda, despesas gerais de moradia. Não se pode ignorar o fato de que a dificuldade financeira, a falta de condições mínimas existenciais, a dependência química e a baixa escolaridade são fatores que contribuem muito para o círculo da violência doméstica e a dificuldade de superação desses conflitos. Ademais, quando adentra o sistema penal, o réu tem defesa técnica grosseira e, muitas vezes, acaba esquecido preventivamente na prisão.

4.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE OS RÉUS

Inicialmente, é imperioso afirmar que ainda que se extraia um perfil comum dos supostos agressores, não é possível assegurar que há uma única masculinidade184. A compreensão do ―homem agressor‖ deve ir além da violência 184

A construção da masculinidade passa por uma série de contingências e complexidades. Ricardo Bortoli traz interessante ponto de vista quando trata da influência de algumas instituições no processo de construção do homem, tais como a família, escola, vida sociocultural e comunitária, de maneira que o modelo convencional destas instituições reforça uma norma social imposta como produto de uma narrativa convencional que, de certa forma, impõe aos homens modelos de comportamento que lhe são apropriados. Nesse sentido, afirma que: ―Nesta perspectiva, toda cultura possui uma definição de conduta e dos sentimentos apropriados aos homens. Estes são pressionados a agir e a sentir desta forma e a se distanciar do comportamento das mulheres, distinguindo-se enquanto oposto. A pressão em favor da conformidade vem das famílias, das escolas, da mídia e dos empregadores. Os homens internalizam esta norma social tendo como custo, frequentemente, a repressão dos sentimentos. Esses aspectos, ao responder a norma masculina, podem levar os homens à violência ou a apresentar dificuldades na convivência com as mulheres‖. (O processo de construção de si na

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perpetuada, já que diversas subjetividades estão presentes diante da violência de gênero.185 O contato com o Juizado de Violência Doméstica revelou aspectos dos réus e das vítimas que vão além, ultrapassando a visão de vítima e agressor, norteados pela lógica maniqueísta. Certamente, eles não são vítimas, todavia não podem ser compreendidos somente como ―agressores‖, são homens que (re)produzem uma forma de ser, que são parte de um conflito familiar. Nesse aspecto, importante as ponderações de Bárbara Musumeci Soares quando demonstra que: Não se trata apenas de definir vítimas e culpados, mas de refletir sobre as origens dos comportamentos que identificam, distinguem ou confundem esses personagens, de localizar as causas remotas e imediatas de suas atitudes e compreender a lógica e a natureza de suas ações. Trata-se, em última análise, de um esforço (carregado, certamente, de tensões e 186 conflitos) por atribuir-lhes um lugar no cenário social.

A hipótese ilusória da mulher como objeto de proteção e homem com agressor, mocinhas e bandidos, que demonstra o homem como bárbaro que pratica uma violência direcionada e somente porque é do sexo oposto dificulta a compreensão da violência e acaba por reproduzir o tão combatido patriarcalismo. O sistema criminal, ao tratar o réu da Lei Maria da Penha somente como ―agressor‖ transpassa a ideia que a violência é algo fundante e impregnado a ele, ou seja, associa-se a identidade do homem a uma ação que faz parte de uma característica imutável dele, ignora e não lida com outras dimensões da personalidade do homem, por exemplo, de ―bom pai‖, ―trabalhador‖. No contato com os depoimentos das mulheres, são comuns as referências de que o réu é bom pai, bom homem e que cumpre com o seu ―papel de homem‖, da tudo a ela, sustento e amor e que o problema surge quando ele bebe, mas que de forma alguma quer que ele fique preso ou seja denunciado. Assim, é possível perceber que o Sistema Penal não tem uma resposta a essa complexa relação de violência, pois se limita à objetividade de denunciar ou

narrativa de homens autores de agressões nos contextos da violência de gênero. Dissertação de Mestrado em Sociologia- Departamento de Ciências Sociais. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013.p. 119.) 185 BORTOLI, Ricardo. O processo de construção de si na narrativa de homens autores de agressões nos contextos da violência de gênero. p. 107. 186 SOARES, Bárbara Musumeci. Mulheres Invisíveis: Violência Conjugal e Novas Políticas de Segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. P. 115.

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não denunciar, declarar culpado ou inocente, ignorando todo um universo subjetivo do conflito doméstico.

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5. CONCLUSÃO

No decurso do presente trabalho, buscou-se interpretar o Sistema de Justiça Criminal no trato da violência doméstica e, de maneira geral, entender as relações de gênero que permeiam o Sistema Penal. A partir de um viés crítico, buscou-se demonstrar a insuficiência da escolha penal para o tratamento da violência contra a mulher em toda a sua completude, seja na compreensão da violência, no tratamento institucional da mulher, na capacidade preventiva e protetiva bem como no tratamento ao réu. Inicialmente, procurou-se demonstrar que o Direito Penal, em sua completude, não é capaz de resolver o problema da violência, pois é seletivo por essência. Foi possível a compreensão de que as formas jurídicas e os órgãos do poder do Estado instituem e garantem as condições materiais da vida social e são forjados pela classe dominante da sociedade, que impõe a sua vontade aos demais indivíduos. Nesse aspecto, estudou-se a íntima relação entre mercado de trabalho e sistema punitivo e a progressiva degeneração do Estado Social em Estado Penal. Destarte, percebeu-se que o Direito Penal, ilusoriamente, declara seu discurso para a proteção de bens jurídicos e valores ―relevantes‖ da sociedade. Nessa toada, diante da ideologia da defesa social, afirma-se como legitimo para garantir uma ordem social ―justa‖, aplicando-se igualmente para todos os transgressores. Todavia, demonstrou-se que, de forma diferente do alegado, em verdade, o Direito Penal é mais um instrumento seletivo do Estado e da classe dominante para manter e perpetuar a ordem social e econômica existente. Atestouse que a neutralidade do Direito Penal é um mito e que o direito penal não defende todos e somente os bens essenciais da sociedade, não é igual para todos, ou seja, a distribuição do status criminoso é desigual e também atua a partir da lógica dominante/dominado

e

de

interesses

hegemônicos,

operacionalizado

pela

criminalização primária e secundária. Da mesma forma, interpretou-se que, diante da crise de legitimidade e das múltiplas incapacidades, o Direito Penal tem funcionamento seletivo com uma criminalização abertamente classicista, sexista e racista e que engendra mais problemas do que aqueles que se propõe a resolver. Em um segundo momento compreendeu-se a dominação masculina como causa social e cultural da condição feminina na sociedade. Diante das postulações

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de Pierre Bourdieu e Simone de Beauvoir, foi estudado como a soberania do homem se impõe e como se consagrou a visão androcêntrica do mundo. Percebeu-se, também, que a reprodução e manutenção do patriarcado são garantidas pelas instituições sociais como a escola, Igreja e a Família. Compreendeu-se que a diferença de papéis e a posição social de cada gênero são construídas e impostas subjetivamente desde a infância. Diante dos estudos específicos da Lei Maria da Penha, vislumbrou-se que esta foi uma conquista dos movimentos feministas que, durante a década de 70 e 80, clamavam por maior proteção. Em sentido crítico, esta demanda legislativa penal foi estudada a partir da onda (neo)criminalizadora que, através do fracassado discurso punitivo, visa dar resposta simbólica à questão, ignorando as contradições inerentes desta escolha. Ainda, nesta mesma seara, foi analisado se a escolha penal é capaz de proteger a mulher ou gerar o efeito de duplicação da vitimização feminina. Concluise que, ao contrário do imaginado, a Lei em debate, ao reproduzir a lógica do controle formal, leva a mulher da violência informal à violência institucional do Sistema Penal, classista e sexista. Percebeu-se que o populismo penal através de sua intervenção punitiva, neutraliza a complexidade histórica das opressões de gênero e ilude a sociedade com a mera caracterização legal da violência doméstica. Portanto, a proposta dessa lei passa pela definição do opressor (agressor) e vítima indefesa (oprimida) para propor a solução viciada do cárcere e do estigma penal, ou seja, mais uma oportunidade de acesso ao sistema penal, mais do mesmo. Mostrou-se que é necessária a superação da vitimização da mulher, de maneira a dar voz às múltiplas formas de tratamento da violência, deixando para trás a arena da negatividade (Direito Penal) para se chegar a uma arena da positividade, como o Direito Constitucional. Deve-se respeitar a multidisciplinariedade do tema, sendo que as políticas públicas e os juizados precisam funcionar de maneira integrada, de forma a auxiliar as mulheres no momento de transição da situação em que se encontram (violência) para a situação de não violência. Esse funcionamento passa pelo fortalecimento emocional da mulher, da sua autoestima, na conscientização sobre as diferenças sociais na construção dos papéis de gênero, dentro outras possibilidades estudadas. Em última análise, foram expostos os resultados da pesquisa no Juizado de Violência Doméstica de Curitiba. Na oportunidade, foi possível concluir sobre quem

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são os réus da Lei Maria da Penha e de que forma a Lei vem tratando essas pessoas. Desta maneira, chegou-se a um perfil predominante, vislumbrando-se que esses indivíduos, em maioria, são de regiões periféricas, com baixa escolaridade, dependentes químicos, entre outros fatores tão comuns no Sistema Criminal. Por tudo, percebe-se que a Lei Penal é substancialmente sexista e reproduz a dominação masculina presente no corpo social. Além disso, diante de sua dualidade condenado/inocente não é capaz de compreender a tônica e a complexidade da violência doméstica. Não se pode ignorar os outros fatores que circundam a violência, a dinâmica da vida dos casais, deve-se dar voz aos sujeitos da violência, realizar balanços, uma ―coresponsabilização‖ e ―co-superação‖ na mecânica da violência, incluir homens e mulheres como sujeitos nas relações de violência e sua percepção, entender, sobretudo, que não existe um único problema e uma única solução, tampouco uma única mulher e um único homem.

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