Leques, abanos e armas Parte I

June 3, 2017 | Autor: Maria Luísa Pedroso | Categoria: History of the Portuguese Empire, Portugal (History), Fans
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Leques, abanos, armas ... Parte I por Maria Luísa Infante Pedroso

A palavra leque Esta palavra que teve em tempos muito recuados o significado de moeda, passou depois a designar unidade monetária e substituiu, a seu tempo, abano. Após o aparecimento do objecto desdobrável a que em definitivo se chamaria leque e durante um período, relativamente alargado, continuaria em simultâneo a ser usada para ambos os objectos de abanar, isto é, o abano com cabo e painel fixo e o de abrir e fechar, mas também ainda diria respeito a uma «certa arma antiga». Escrevi um livro, editado em 2014, «Brisas de Leques», que trata de abanos, ventarolas e leques, resultado de diversos anos de leitura, interpretação e comparação de documentos maioritariamente do século XVI. Várias dúvidas, que a partir dessa altura me têm acompanhado, resultaram tão ou mais importantes que as conclusões a que cheguei, que se por vezes corroboraram conceitos antigos outras vezes vieram desmistificar alguns erros ou falsas deduções que ao longo do tempo já se tinham transformado em certezas. Alguns destes erros já vinham mesmo de longínquas origens e outros, resultado de atribuições mais recentes, do meu ponto de vista igualmente careciam de justificação. Analisei o melhor que pude os elementos de estudo que fui encontrando, na maioria há muito conhecidos e publicados, com excepção de alguns, talvez até então inéditos quando encarados dentro deste tema, mas penso ter sido sobretudo a prática que adquiri em cerca de trinta anos a manusear, classificar, inventariar e especialmente apreciar leques de todos os tipos, que me permitiu a partir de certa altura formar com relativa facilidade uma ideia suficientemente clara de muitos destes objectos apenas a partir de descrições dos mesmos, como aliás pode ser o caso de qualquer outro coleccionador dedicado. Assim, dentro deste espírito, venho de novo expor ideias sobre estes adereços, que me são hoje tão caros mas que começaram como apenas um dos complementos de uma colecção de traje que me absorveu quase completamente as horas vagas durante muito tempo. Contudo, em 2004, decidi e penso ainda que bem, que leques, bolsas e luvas chegariam e sobrariam para me preencher a década seguinte e é portanto nestes que me encontro hoje em dia concentrada.

Leque, Léquias e a ilusória etimologia «Brisas de Leques» tem «abstract» onde pode ler-se: «Have many dictionaries been right, for at least two centuries, in connecting the etymology of «leque» with LyuKyu, the name used by the chinese for an archipelago located south of Japan?» A minha resposta para esta pergunta foi então e continua a ser que a identificação da palavra leque com as Ilhas Léquias, quando refere um objecto de abanar desdobrável, é só uma conjectura, aliás fácilmente identificável com o seu autor, o Cardeal Saraiva, que elaborou no princípio do século XIX um famoso Glossário, onde se pode encontrar a definição de leque que segue: « Leque - pequeno abano que se traz na traz na mão em tempos calmosos para com o seu movimento agitar e refrigerar o ar. He vocábulo da Asia chineza, e nos conjecturâmos que nos veio das Ilhas Lequias, onde se fabricavão excellentes abanos. Em Ormuz e outras partes da Persia corria huma moeda com o nome de leque.» E foi a partir desta conjectura que as maiores confusões se vieram a estabelecer e que pelos vistos ainda se não desfizeram. Note-se que o Cardeal se refere a um pequeno abano e ao fabrico nas «Ilhas Lequias de excellentes abanos». Se os abanos originários das Ilhas Léquias eram grandes ou pequenos, no século XVI , não me parece que se saiba ainda hoje, mas através de Tomé Pires soube-se sim que eram « avanos muito ricos e bem obrados»(1) e terão assim grandes hipóteses de terem sido abanos mas não leques. Mas também «certas armas antigas» foram chamadas leques. Leque, uma certa arma antiga LEQUE, s. m... Leque; certa arma antiga. P. da H. Gen. 4. 191 « Hum tinha cargo das armas;........ leques. E outros generos de armas.» in MORAESDICCIONARIO DA LINGUA PORTUGUESA- 1844. O que Moraes refere e leu nas Provas da História Genealógica foi o seguinte: «Memoria da Familia do Duque D. Theodosio I. Tirey-a do Cartorio da Serenissima Casa de Bragança. Os moços que serviam no guardaroupa Todos tinhão obrigação de dormir no guardaroupa, e servir nella em tudo o que era

necessário, de noite dormião, e de dia aguardavão. A cada hum dava o Duque cargo particular. Hum tinha cargo das armas, arnezes, saias de malha, da pessoa do Duque, assi arcabuzes, rodelas, montantes, leques e outros géneros de armas.» Adiante pretendo justificar a identificação dos leques atrás referidos com armas, por isso me dei ao trabalho de apresentar significados para todas as palavras que os acompanham na citação anterior, como segue e tirados da mesma fonte: ARCABÚZ, s.m. (do Arab. Alcabus, pistola) Arma de fogo, que tem a arca do cano mais larga, que as espingardas. ARNÉZ, s.m. (do Lat. Arnese, do Fr. Harnais) Armadura que cobre todo o corpo; e talvez a que cobre só o tronco ou partes do corpo; v g.: arnezez de pernas: a armadura de malha que as defendia. BAINHA, s.f. (do Latim, vagina) Funda, estojo, forro onde se recolhe a espada, faca tesoura, para a resguardar da humidade. BROQUÉL, s.m. Escudo pequeno de madeira forrado de couro forte, com seu brocal; no meio tem umbigo de metal ou diamante, que cobre a em braçadeira, que está por dentro, e por onde se segura. DIAMÀNTE, s.m. (por corrupção do Gr. Adamas, diamante, e que propriamente significa indomavel, formado do a privativo, e damâo, domar) - diamante da rodella: V. Copa: peça de aço ou diamantáda, que está no meio della. LEQUE, s.m. -...Leque; certa arma antiga. P. da H. Gen. 4.191. LIXA, s.f. (do lat. Lichen, aspereza da pelle) a pelle escabrosa e seca do cação com que se raspa a madeira, e de que se fazem estojos:- nnome de um peixe, cuja pelle aspera serve para lixar a madeira. PONTEIRA, s.f. O mesmo que Conteira. M.p. c. 124. « espadas de mais de 3 dedos de largo. com cabos, punhos e ponteiras de prata» MALHA, s.m. ( do Fr. maille) Saia de malha: armadura guarnecida de malha, que cobria o corpo. MONTÀNTE, s. m. Espada mui grande, que se jogava com ambas as mãos, para acutilar por alto: «Miguel de Arnide era tão agigantado, que trazia na cinta hum montante por espada ordinaria» Couto, 6.3. 1. RODÉLLAS, s.m. Escudo redondo, broquel. SAYO, s.m. Vestidura antiga, espécie de roupa larga, ou casacão usado pellos cavalleiros na guerra; e depois na paz. ROUPA, s.f. Roupas de jogo; vestidos de festa, e adornos; opposta aos vestidos de armar o corpo como erão as cotas de armas, malhas, couras, cambases, folhas de bufaro, laudeis d'acolchoados, caçotes, etc.

Foi por ter já andado de volta deste assunto que constituiu surpresa muito agradável encontrar pela primeira vez devidamente identificada uma arma denominada leque, ao ler « THE GLOBAL CITY ON THE STREETS OF RENAISSANCE LISBON». Este belíssimo e irresistível livro, editado por Annemarie Jordan Gschwend e K. J. Lowe em 2015, cuja existência conhecia mas que andei bastante tempo e a muito custo evitar adquirir, por não querer desviar a atenção de um novo projecto em que me tinha embrenhado e que se ía desenvolvendo lenta mas seguramente, acabou contudo por me ser oferecido por meu marido. Ao tomar com ele contacto a minha resistência inicial acabou por se revelar assaz limitada e nem um tão simpático como cauteloso «para quando tiveres tempo» que acompanhou a entrega surtiu qualquer efeito. Pior ainda foi ver-me, logo que o abri, diante da página 145, onde descobri um inédito e importantíssimo leque de marfim de Ceilão, ainda por cima «brisé» e portanto diferente na forma dos dois únicos outros desta origem e possível época que já conhecia. Era mais do que conseguia aguentar e a tentação da leitura foi superior... É em consequência dessa leitura que volto de novo ao assunto dos leques que admito serem armas mas já com o conhecimento adquirido neste livro, que percorri interessada e cuidadosamente e muito apreciei. A primeira referência a leques que nele encontrei considera-os como objectos de abanar desdobráveis e está na página 79 como segue: «On their return to Malacca they mainly transported “great quantities of raw silk, and quantities of assorted lenghts of many coloured silks”. But there were other goods involved in these shipments- seed pearls, musk in « powder or sacks» ... and also large quantities of coffers and abanos léquios ( Ryukiu fans, which the Portuguese would style “leques”. fig.66)» Na mesma página é também ilustrado um raro exemplar japonês com folha dourada e armação de madeira, de finais do século XVII, portanto período «Edo», que contudo serve e bem para dar ideia do que teria sido aproximadamente um leque de finais do período «Muromachi», que a seguir igualmente se mostra.

Leque japonês atribuído a Kano Tanshin Morimasa ( 1653- 1718) Materiais: folha de papel coberta a folha de ouro e varetas de madeira. Dimensões: Comprimento da folha-17 cm Comprimento total – 32,5 cm Abertura máxima- 140.º @ Trustees of the British Museum

Encontrar aquela referência da página 79 de «THE GLOBAL CITY», que traduzo na parte que aqui interessa como «abanos léquios (leques das Ryukyu que os portugueses iriam chamar leques)», aliada a uma imagem dum leque dourado japonês, na verdade não me trouxe bom presságio para o que se seguiria. Com efeito, mais adiante na página 130 do Capítulo 8, encontrei quatro «lleques de Japão», que constam do « inventário de partilhas do espólio de Simão de Melo», cuja transcrição está no Appendix 6 da obra, a serem também identificados com o mesmo leque japonês da figura 66 , dizendo-se:

«The most surprising objects by far recorded in Melo´s inventory are the four Japonese fans (lleque de Japão) dating from the last decades of the Muromachi period ( fig. 66).53 Three extremely expensive examples take pride of place in the bequests he made for his eldest sons. Francisco was given a fan that was part of a set, comprising also a knife and a stylus, all with gold fittings and partially enamelled in different colours, encased in a gold « sheath» and valued at 30,000 reais. He received a second set with a fan, knife and puncher, all with gold fittings, contained in a ray or sharkskin sheath, valued at 14,000 reais. His younger brother Garcia was left a nielloed (anilado) gold fan with a heavy gold chain also valued at 30,000 reais. The fourth, more modest but larger in size, was a brass fan with its gilded sheath, which was left to Melo´s widow (2,000 reais). Undoubtely, these very special, peculiar fans were objects made with expensive materials that only a high-ranking Japonese samurai or daimyo (war lord) would have commissioned (see fig. 133). They are similar to large folding military fans (gunsen),54 having wooden blades covered with gilded paper, comparable to Melo´s examples of matching utility knives (kozuka) and awls, encased in sword-style mountings.» As últimas palavras deste parágrafo, poderão querer significar «encaixados ou embainhados como uma espada» mas não consigo disso ter a certeza. A verdade é que quaisquer traduções valem o que valem, as minhas incluídas. Por outro lado, nenhum leque que conheço pode ser descrito como tendo «blades» isto é, «sticks» ou em português, «varetas que se apresentassem cobertas com papel dourado» dado que a folha de papel não cobre nunca aquelas, mas é sim suportada por finos prolongamentos, que se denominam flechas e em inglês «slips». Falando-se na anterior citação de «quatro lleques de Japão», parecer-me-ia relevante que se trouxesse à colação um outro leque, já que está incluído no Appendix da obra como constando do inventário post-mortem de Afonso de Castelo Branco(2) mas que contudo nela não é posto em paralelo com aqueles. De facto um leque da Índia, inventariado como (375), com punho, bocal e conteira de prata, acredito que só pode ter correspondido efectivamente a uma arma a coberto da descrição que lhe é feita: «(…)(375) Item huu lleque da Imdia com punho e boquall e comteyra tudo de prata- mil e duzentos reais. (...)»(2) Senão vejamos: a conteira pode-se afirmar ser uma peça de metal, com a qual se reforçavam bainhas de espadas, (punhais, adagas, facas, alfanges, etc) e o bocal a peça por onde se embebia o punho destas armas. A expressão corrente «roçar as conteiras» significava até «fazer a acção de brigar, desafiar-se».

Não se pode razoavelmente conotar tal leque com um abano da Índia, já que então teria forçosamente apenas cabo e painel nele fixo, nem com muita fantasia se consegue encaixar na sua descrição algum dos de marfim cíngalo-portugueses, tão raros que, como atrás digo, só tomei conhecimento da existência de um terceiro através deste mesmo livro. Nestas condições ficam-me em concreto as dúvidas que seguem: 1.ª Porque não é o lleque da Índia (375) comentado e englobado na mesma categoria que os lleques de Japão se a descrição é essencialmente idêntica, como a seguir se verá na inventariação destes últimos onde igualmente vêm mencionandos « bocal, punho e conteira» ? 2.ª O que terá retirado o autor da transcrição dos documentos já mencionados que lhe permitiu associar os lleques do Japão com os leques objectos desdobráveis de abanar mas não ter feito o mesmo no caso do da Índia? Serão armas ou leques? Mas vejamos agora como estão em concreto inventariados os dois leques do espólio de Simão de Mello, do total de quatro do Japão, que couberam em «Pagamento de Francisco de Mello (19-X-1570)»: «…(422) Item per hum leque do Japão guarneçido d´ouro punho e bocal e conteira com uma huma faca e alimpador tudo guarneçido d´ouro esmaltado em parte de cores que foi avalljado em trinta mill reais (423) Item per outro lleque de Japão com a bainha de pelle de llixa guarneçido d´ouro com sua ffaca e furador que ffoi avalljado em catorze mil reais ...» Importa salientar que o item que se segue é: «...(424) Item per huma adagua das duas comtheudas no ynventairo que tem os cabos e punho de cristal guarneçidas d'ouro bocal e conteira e hua delas tem a cruz quebrada e lhe dão aquy/ f. 187v) a sãa que foi aualjada em nove mill reais.» porque tem interesse para o raciocínio que desenvolvo adiante. Estas descrições serviram-me para equacionar convenientemente este assunto, por serem razoavelmente pormenorizadas, contudo delas nada consegui retirar que as permita ligar a leques, nem semelhança com a forma de descrever um leque japonês de final do século XVII. Também não encontrei assim razão para qualificar aqueles quatro objectos como de longe os mais surpreendentes de um tão extenso e

importante inventário, a não ser que estivesse comprovado terem chegado a Lisboa com Simão de Melo no seu regresso em 1548, o que não se verifica, já que como penso tratar-se de armas japonesas, seriam naquela data então razoávelmente «surpreendentes». No entanto no livro expressa-se a seguinte opinião com a qual não posso concordar: «The most surprising objects by far recorded in Melo´s inventory are the four Japonese fans (lleques de Japão) dating from the last decades of the Muromachi period (fig. 66)». Por tudo o que atrás vem dito o que me parece é o seguinte: No item (422) do pagamento em causa, vem referido um leque do Japão, com punho, bocal e conteira, que se trata na realidade de uma arma, acompanhada com uma faca e alimpador, tudo guarnecido de ouro esmaltado em parte de cores. O alimpador, no caso de arma japonesa, podia corresponder ao «Kogai» (hair dressing implement), também conhecido como «Kami-Kaki», um instrumento usado para compor o cabelo e ocasionalmente, limpar as orelhas quando se usava um capacete denominado «Kanmury». A faca utilitária ( kozuka) e o alimpador (kogai) tudo guarneçido de ouro esmaltado em parte a cores, tinham hipóteses de estar acomodados numa mesma bainha (3). Quanto ao item (423) «Outro lleque do Japão com a bainha de pele de lixa», mais uma vez me parece óbvio tratar-se de uma arma, com sua faca e furador. A pele de lixa mencionada era de cação, escamosa e seca, servindo para forrar bainhas. A faca e furador não tinham obrigatoriamente de estar contidos na mesma bainha, podendo como frequentemente acontecia ser usadas no lado oposto. Aliás, como já disse, o item (424) inventariado no seguimento, corresponde sem dúvida a uma das duas adagas deste espólio, que têm cabos e punho de cristal guarnecidos de ouro no bocal e conteira, sendo que uma adaga é uma arma curta, ponteaguda como um punhal, que se trazia à cinta do lado oposto àquele em que se usava a espada. Assim consegui apenas encontrar um claro paralelismo entre as descrições destas diversas armas mas nada que as relacione com um leque japonês, nem mesmo de carácter militar. No entanto e por mera curiosidade, encontrei o mesmo paralelismo numa arma que pertenceu ao rei D. Filipe II de Espanha, I de Portugal, bastante pormenorizada num inventário de bens deste rei, a coberto de «Alfanges y cuchillos turcos»(4) como segue:

3.444. Un alfange, hecho en la India de Portugal, com la cuchilla combada y de un corte y el puño de oro, hecho de unos óbalos redondos, que hacen punta, y encima de ellos un follage de oro mate enlazado, sembradas sobre él diversas savandijas, ramos e hojas de plata blanca y hierro pavonado de escuro com bayna de madera de la Yndia, laqueada, dorada; com cuchilo y punzón, el punzón y el cabo del cuchillo dorado, com brocal, contera y un gancho, de que cuelga en la cinta n. 13, Tasado por los ditos setenta ducados.»

Um alfange feito na Índia de Portugal está acima descrito como tendo bainha de madeira da Índia lacada e dourada e em separado também uma faca e um punção, este e o cabo da faca dourados, com bocal, conteira e um gancho pelo qual se pendura à cinta. A faca e o punção não estariam inseridos na bainha da espada, mas tem a possibilidade de terem estado juntos numa outra com o bocal, conteira e um gancho, tal como referido acima. Mas, ainda a coberto do acima referido «Pagamento de Garçia de Mello» lê-se na página 260: «(…)(471) Item per hum lleque do Japão guarnecido d'ouro anillado que tem huma cadea d'ouro baixo que ffoi tudo aualliado em trjnta mill reais...» A avaliação tão elevada deste leque do Japão deveu-se muito possivelmente ao seu valor artístico, pelo trabalho de ouro anillado a que se poderia ainda somar o do ouro baixo da cadeia por onde se suspenderia à cinta. Também um punhal da Índia apresentado na página 134 nesta mesma obra, (fig. 118 cat.7), com punho de ouro rubis e diamantes, apresenta na parte superior da bainha um anel destinado a suspenção no cinto, como o autor indica. Por outro lado, no «Pagamento da terça do defunto, Sjmão de Mello» há ainda: «(…)(528) Item per hum leque grande guarneçido de llatão com ha bainha baja e dourada feito em japão que foi avalljado em dous mill reais.» Aqui a indicação mais relevante é a referência ao tamanho do leque, igualmente feito no Japão, que se distingue dos três anteriores pela sua maior dimensão e por materiais de qualidade inferior como o latão e ter bainha dourada, possívelmente feita de uma liga considerada baixa, o que se reflete no preço comparativamente módico deste objecto. Falar-se numa bainha reforça neste caso a associação com uma arma, visto que no Japão os leques desdobráveis com folha de papel, «Ogi», não se usaram como na China introduzidos em longos estojos ou bainhas(5) mas sim na mão, tal como os leques destinados a sinalização durante exercícios militares ou batalha, «gunsen».

Estes últimos e os «tessen», que tinham guardas de ferro e por vezes também varetas deste material, mas a folha de papel e os «gumbai uchiwa», em forma de abano, portanto de painel fixo, feitos de materiais robustos como a madeira lacada ou ferro, faziam parte de um conjunto, completado com bastão de comando, trombeta e tambor, que se destinava a sinalização militar. Por vezes, em retratos de samurais sentados, pode-se observar que os «gunsen» ou os «tessen» eram entalados no cinto. Considero igualmente interessante recordar a este propósito o sabre japonês de D. Filipe I de Portugal que lhe foi oferecido pelos emissários de três grandes «daimios», Otono do Bungo, Arima e Omura de Hizen, quatro jovens aristocratas japoneses convertidos ao cristianismo, membros duma embaixada promovida pelo padre visitador Jesuíta Alessandro Valignano e que se encontra-se hoje depositado na Real Armeria, com a descrição que segue: «G. 176. Sable japonés, del siglo XVI, pertenecciente á uma de las armaduras de aquel país regaladas al rey D. Filipe II, y que se quemaram en el incendio de 1884 (Véase E. 133). Es la hoja gruesa, algo curva, de un corte y lomo biselado. Largo O, T30. La guarda es de hierro, plana, esculpida y com incrustaciones de oro, y su largo puño, de piel de zapa, entretecido com tiras de cuero negro. Obervese com cuánto acierto y habilidad colocó el artífice um reptil fantástico, deslizándo-se entre dicho tejido, para evitar que el arma se escapasse de la mano. La vaina es de madera laqueada en negro, com bocal, abrazadera y contera de hierro cincelado, com incrustaciones de oro.» Mas, voltando ao «Pagamento de Garçia de Mello ( 25-X-1570)» ainda aí se pode encontrar: «(...)(472) Item per hua ffaca a fejção de lleque da China guarneçido d'ouro baixo por bocal e punho e contejra que ffoi aualjado em dous mil e quinhentos reais e não tem ouro na conteyra» Sobre isto diz-se em «THE GLOBAL CITY» na página 127 : «Melo left bequests to each of his three children: «..., to Isabel a chinese folding table (110 cm width) with its silver fittings and hindges (20,0000 reais),... and a fan-shaped knife with a gold hilt ( 2,500 reais);...». Portanto aqui chama-se a atenção para «uma faca na forma de leque com um cabo ou punho de ouro» Como a numeração deste inventário não vem reproduzida no livro de forma a poderse fazer correspondência com o que dele se transcreve e porque se trata da tradução de documentos portugueses do século XVI para a língua inglesa e ainda porque não encontrei entre os items publicados do « pagameto de dona Isabel » nenhum objecto que se possa identificar com a mencionada «fan-shaped knife», não posso estar certa se esta seria, ou não, semelhante ao item (472) incluído no pagamento de seu irmão Garcia e assim foi apenas este último que tentei interpretar o melhor que pude e que também separo do anterior (471), porque a descrição deste me deu mais que

pensar. Trata-se sem dúvida de uma faca, mas note-se que a origem da faca não é referida, mas sim a sua forma característica «à feição de lleque da China guarneçido....», a concordar portanto com leque e não com faca. Neste caso também se menciona bocal e punho e conteira, guarnecidos de ouro baixo e ainda que não tem ouro na conteira, o que é curioso, parecendo não existir necessidade de reforço metálico na ponta da bainha. Tudo somado, não consigo imaginar como seria a faca acima descrita sob o número (472). O meu conhecimento de punhais-leques resume-se aos «tanto-fans» de origem japonesa dos quais nunca encontrei qualquer exemplar completo de época tão recuada, apesar de muitas viagens por grandes e pequenos museus, virtuais e físicas, nem sequer incluído em qualquer das espantosas exposições com que os japoneses nos têm vindo a maravilhar recentemente por esse mundo fora . Este tipo de lequearma, destinado a defesa pessoal, terá sido igualmente denominado como «arma traçoeira» com compreensível razão. Como nota, «Tanto» significa lâmina curta ou «short blade».

Leque-faca «Tanto-fan» ou «Dagger-fan»

Segundo John Irons(6), estes instrumentos sinistros estavam mais relacionados com os fabricantes de espadas do que com os de leques e apresenta dois belos exemplares destas armas camufladas de leques que denomina letais, nas páginas 90 e 91 do seu muito conhecido e apreciado livro. Acrescenta ainda que estes objectos terão acabado por ser banidos na China e no Japão e formula a teoria que o «Suyehiro Ogi» terá sido inventado para que os leques de corte, ao adotarem essa forma, fossem fáceis de distinguir dos punhais-leques. «Suehiro Ogi» é a denominação japonesa para um tipo de leque de folha plissada, «suehiro» significando aberto até ao fim, que mesmo quando fechado tem a forma de Y, por as guardas ou varetas mestras terem uma inclinação para o exterior, apropriada a acomodar uma folha dupla e volumosa.

Leque japonês do tipo Suehiro

Não conheço as fontes em que este autor se terá baseado para referir o banimento da China destes objectos, visto infelizmente as não indicar, como era muito comum na altura, mas diz mesmo assim: «... These secret weapons are little known and were made by request, one appears in the Book os Treasures of Itsukushima where it is refered to as Tanto (Dagger). This lethal «fans» were banned both in China and Japan and the Komoro or Suyehiro Ogi was invented so that court fans could be easily recognized and the tanto immediately detected before it was allowed to carry out its murderous purpose.» Os «Suehiro Ogi» terão sido introduzidos na corte desde o século XV, e usados ainda por actores do teatro clássico japonês, o «Noh» e também por samurais, já que eram instruídos de forma muito completa, constituída por estudos militares, proficiência na arte da cavalaria, manejo da espada e do arco, complementada ainda com actividades nas quais se incluía curiosamente esse teatro «Noh», espectáculo musical constituído por representação, canto e dança. A tradição ou lenda associa ainda o uso da faca-leque ou punhal a velhos Samurais ou a pessoas que não quereriam que lhes fosse detectado o uso de uma arma, como mulheres, monges ou médicos, mas que dela poderiam necessitar. Pensando ser agora altura de ordenar ideias e relembrando o já conhecido «(…)( 472) Item per hua ffaca a feição de lleque da China guarneçido d'ouro baixo por bocal e punho e contejra que foi avaliado em dous mil e quinhentos reais e não tem ouro na

contejra ( 473)... » permito-me formular duas hipóteses:

1.ª - Admito ter a faca deste item (472) sido semelhante a um «tanto-fan» e que o punho da mesma simulasse a parte inferior da armação de um leque da China, que encaixaria numa bainha trabalhada de forma a ser confundida com a folha de um leque fechado e a parte superior das varetas mestras. O bocal seria assim a peça por onde se embebia o cabo da faca e o punho a parte desta que a mão empunhava para a desembainhar. Eram ambos guarnecidos «d´ouro baixo», mas a conteira ou ponteira não tinha ouro e considero esta especificação importante por a associar à seguinte possibilidade: a de não ser preciso existir neste objecto um reforço metálico na ponta da bainha, por esta consistir num «trompe l´oeil», que em conjunto com o cabo simulavam um leque fechado. Alguns exemplares, sobreviventes dos séculos XVIII e XIX, são de qualidade razoável, atingindo o objectivo de serem confundidos a pouca distância com um leque, mas outros, continuadamente vendidos no Japão até aos dias de hoje, são meros objectos curiosos, dedicados ao comprador estrangeiro, de aspecto tosco e lâminas de inferior qualidade. 2.ª - A de que esta faca à feição de leque da China não seja comparável a um leque desta origem quando fechado, portanto a uma faca-leque (tanto-fan), mas que no século XVI também desse modo se tenha denominado uma outra arma de origem chinesa, na forma de faca e com características que a individualizariam, como igualmente terá acontecido com o leque-arma da Índia e os leques-armas do Japão que até aqui me trouxeram. Parece-me ser esta probabilidade a menor mas quem sabe se alguém terá conhecimento de um documento coevo que descreva com suficiente detalhe, o que seria precioso, um objecto que se possa identificar com esta segunda hipótese? Por enquanto a referência mais antiga que conheço a leque da China é a constante da tão importante e incontornável, para este assunto e muitos mais, «relação de bens embarcados em Goa em 1559 para o Reino»(7): «Huum leque da China com suas baynhas» a que se segue ainda o item «tres pãos de avanos de / (fol 2) Cambaya de abanos laurados de madreperola e hum de pão preto» Portanto depois do «leque da China com suas baynhas» é inventariado um item com três paus de abanos, dois deles de Cambaya lavrados de madrepérola..., trabalho este necessáriamente valioso e delicado da costa de Guzarate e um de pau preto.

Nesta relação de bens encontram-se importantes referências a abanos de pé de Ormuz, paus de abanos de Cambaia, abanos dos Léquios, abanos do Japão e a um leque da China, o que por si só é notável, mas tal como em muitos outros inventários de datas anteriores e posteriores, não existe neste uma ordem aparentemente lógica. No caso de cargas de navio as coisas vinham relacionadas de modo ainda mais aleatório dando muito que pensar sobre como se conseguia encontrar a melhor forma de acondicionar objectos tão diferenciados, alguns deles muito frágeis. É exemplo disso, neste mesmo documento: «item dous baretes mouriscos de Cananor item huma porcelana dourada dentro delles» A palavra leque surge, na mesma relação de bens da «Nau Garça», antes de conotada com a China e quando a li pela primeira vez na íntegra, uma menção a bainhas fez-me encarar a hipótese de « huuns leques com suas bainhas pera o senhor D. Antonio » terem grande possibilidade de serem da China e não do Japão, visto os japoneses como atrás digo não terem a tradição chinesa de proteger leques com longos estojos de seda. Finalmente pode ainda ser interessante observar onde e em que companhia os leques para o Senhor D. Antonio e mesmo os abanos para o Doutor «Fernand Alvarez» são acondicionados para que cada um tire as suas próprias conclusões sobre este assunto: Esta cayxa ficou assim jnteyra na não Garça na camara do carpenteiro

item huma capa de catifa vermelha seuastro de brocadilho vermelho franjada e forrada de seda pera São Christouam item huum frontal da dita catifa e doutra seda da China pera Nosa Senhora da Esperança item hua vestimenta de seda pera Nosa Senhora com sua alua e comprimentos ainda por benzer item tres alcatifas finas item huma encomenda de Nosa Senhora de Castro item a encomenda pera Lionor de Abreu em Semide item huuma encomenda pera Alfonso de Cuniga item

huns leques com suas baynhas pera senhor Dom Antonio

item

huuns abanos pera doutor Fernand Aluarez

À parte da relação acima seguem-se ainda «dous bancaes de Cambaya», que eram tapetes ou cobertas que se punham sobre bancos, « tres chaudeis» ou seja panos vistosos de Bengala, «huum aratel de linhas de Coromandel pera laurar» e huum saquinho de erva lombrigueira, e huma encomenda pera Alfonso de Cuniga», Desta forma penso que a primeira hipótese que apresento se vê reforçada em relação com a interpretação do objecto descrito no item (472), a «faca a feyção de lleque da China» por se ter começado por chamar leques aos da China e que igualmente possa agora mais fácilmente aceitar a comparação desta faca com um leque da China fechado. Mas se alguém conhecer alguma outra referência a leques da China que melhor nos permita avançar neste ou noutro sentido com maior segurança, agradeceria penhorada que me fosse facultada tal informação. Sobra-me ainda neste âmbito pelo menos mais uma dúvida mas também ainda me falta lembrar aqui um leque que encontrei no testamento, datado de 1576, de D. Duarte, Duque de Guimarães e Condestável de Portugal: «Lembranças de algumas couzas que me deraõ. E o que acerca disso desponho» « Ao senhor Princepe de Parma, meu irmaõ deixo o meu leque de ouro. Meu tio D. Constantino que nosso Senhor tem me deu um escravo Turco, duas tendas, um cavalo, e hum leque douro, peço a Senhora Duqueza, minha Avo por merce, e a Senhora D.Maria minha Tia, que me perdoe se lhe lhe sou por estas couzas em algum encargo.» Já noutro tempo me debruçei demoradamente sobre este leque de ouro de D. Duarte e acabei por dizer(8): « Vejo-me assim compelida a chegar a este ponto como começei, no que se refere a uma apreciação genérica do «leque de ouro» que foi presente de D. Constantino a seu sobrinho D. Duarte: leque ou abano foi certamente, de ouro ou dourado não posso afirmar e quanto a origens teria pelo menos, três possíveis, a saber: a China, o Japão ou Ceilão.» Agora, perante novos dados, abriria o meu leque de possibilidades a que possa ter sido «uma certa arma antiga chamada leque», continuando no entanto com origem desconhecida mas agora acrescentada da da Índia. Ponho hoje esta hipótese em primeiro lugar, não podendo contudo ainda excluir as outras.

NOTAS (1) Pedroso, Maria Luísa, Brisas de Leques, pp. 127-128 (2) The Global City, Appendix 6, DOCUMENT 2, Copy of Afonso de Castelo Branco's post-mortem inventory..., Transcription by Hugo Miguel Crespo, DGLAB/TT, Casa de Santa Maria, Caixa10, Documento 107, ff.1-13v (3) Art of the Samurai: Japonese Arms and Armor, 1156-1868-The Metropolitan Museum of Art Exhibition Catalogue , pp. 236-246. (4) Sanchez Cantón, F.J., ARCHIVO DOCUMENTAL ESPAÑOL PUBLICADO POR LA ACADEMIA DE LA HISTORIA, TOMO XI, INVENTARIOS REALES / BIENES QUE PERTENECIERAN A FELIPE II, VOLUMEN II, p.158 (5) Tsang, Ko Bo, More than Keeping Cool, p. 262 onde se lê: Shen Defu (1578~1642) publicou Wanli yehuo bian em 1606 onde diz que damas da corte e eunucos nessa altura usavam um estojo para leque desdobrável nos vestidos para quando o leque não estava em uso vide Chuang Shen, Shanzi yu Zhongguo wenhua, pag. 97 (6) Irons, Neville John, Fans of Imperial Japan, 1981 (7) Revista das Artes Decorativas, 2, 2008, pp. 237-254. Maxime 237- 24 (Doc. 1), «Um olhar sobre a decoração e o efémero no Oriente: relação dos bens embarcados em Goa em 1559 para o Reino, o inventário dos bens do vice-rei D. Martim Afonso de Castro, falecido em Malaca, em 1607, e a relação da entrada do vice-rei D. Jerónimo de Azevedo em Goa, em 1612» (8) Pedroso, Maria Luísa, Brisas de Leques, pp. 158 a 161

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