LER O POEMA: ENUNCIAÇÃO, COMUNIDADE DE SENTIDO E ENSINO

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LER O POEMA: ENUNCIAÇÃO, COMUNIDADE DE SENTIDO E ENSINO ENSAIO CRÍTICO - ALEXANDER MARTINS VIANNA Áreas abarcadas: História, Literatura, Linguística, Crítica Literária, Artes Visuais, Comunicação Social e Educação Exclusivamente para postagem na Academia.edu

LER O POEMA: ENUNCIAÇÃO, COMUNIDADE DE SENTIDO E ENSINO por Alexander Martins Vianna Novamente revisado em 15 de julho de 2015

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Arte: Ishmael Randall Weeks

INTRODUÇÃO Quem acompanhou algumas postagens de poemas do heterônimo poético Otton Bellucco, pôde perceber que ele criou alguns neologismos. Um deles é antiprecisianismo, numa série de três poemas: * ANTIPRECISIANISMO I: se preciso for sou contra ti p’ra ser a teu favor assim me funcionam a amizade e o amor se impreciso sou preciso fico contra teu fervor pois me amofinam o puritano e seu louvor sei q bom !bom mesmo! é a luta !não a briga! o trabalho !não a fadiga! pois no amor e na criação o bem e o mal coabitam me fazendo renascer longe a cada dia do horror do q é preciso *

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ANTIPRECISIANISMO II: 1 à medida q minha mãe se apaga mais ainda a sua vinda me acende poderia falar da boa morte e toda aquela parafernália conformista !mas nada disso me apazígua! ?por q deveria! 2 !é melíflua a mais rota das mentiras: essa brutal santificação do sacrifício! amiúda !ai como! amiúde essa vinda daninha: !a praga conformista q devasta multidões! ?por q aceitaria isso! 3 ela se enchia de muitos planos de lugares a conhecer e me alimentou com sua fome poderia falar da morte lenta de todo sonho em sua vida de adiamentos !mas nada disso me apazígua! ?por q deveria...

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* ANTIPRECISIANISMO III: Felicidade não se agrupa nem dança conforme a música, mas gosta de dançar... Não confundam não gostar de alguém com não gostar das coisas belas que ela é capaz de fazer... Não confundam amar alguém com submeter-se às rédeas vis do que ela diz ou faz... Felicidade não é estupidez, escombros ou desfaçatez... Não me confundam, por favor!...

* Há aqui a crítica às fábulas construídas coletivamente por meio da impermanente repetição cotidiana de hábitos que invisibilizam horrores autoimpostos ou impostos a outrem. No entanto, não tenho pretensão de falar de um “sentido exato” para o “antiprecisianismo” nos três poemas. Aliás, nem é possível dicionarizá-lo, pois isso já seria descontextualizá-lo de seu lugar de sentido na enunciação dos poemas. Se a enunciação do poema faz você sentir a sua força crítica, você já participa da energia dele – ou seja, você participa, em alguma medida, de sua comunidade estilística de sentido, mas não se engane: os poemas tardios de Otton Bellucco não são confessionais ou poemas de reminiscências; não falam como um velho bardo romântico saudoso do passado para iludir você de participar de sua intimidade confessional. Os três poemas foram feitos para estarem suficientemente abertos para vários tipos de leituras e leitores contemporâneos, mas não podem ser deslocados sem resistência, pois foram feitos de recursos específicos que os localizam num contexto e gênero de enunciação que exige certas habilidades e referências socioculturais. Como os três poemas são estruturalmente atos dialógicos, podemos dizer que há um modelo tácito de leitor neles – e que tal modelo exige certas habilidades culturais e, em certa medida, explicita padrões de legibilidade que nos possibilitam falar de uma “intenção enquanto efeito de enunciação”, o que é distinto de “intenção psicológica do autor”, nem sempre plenamente acessível ou consciente no próprio “autor” que, aliás, é um heterônimo autoconsciente de sua existência fictiva, diferentemente dos heterônimos de Fernando Pessoa. Daí, o leitor dos três poemas deve saber participar de seu jogo intertextual: Otton Bellucco informa que há uma série de três, o que significa que é um intertexto tríptico, uma analogia poética às pinturas conformistas para as naves das igrejas cristãs renascentistas. Formalmente, o poema “ANTIPRECISIANISMO II” é o tema principal, ocupando o centro do tríptico, enquanto os poemas laterais (I e III) são comentários paralelos que compõem o pathos crítico intertextual com o poema II. O contexto intertextual desses três poemas também pode ser expandido para outros poemas de Otton, como a série “Chandala” (seis

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poemas), devido às presenças trópicas e temáticas com o “Anticristo” de Friedrich Nietzsche. Visto neste conjunto, é como se os seis poemas formassem os conjuntos laterais de quadros de ascese da nave das igrejas cristãs renascentistas, mas com uma patente pretensão de criticar os valores conformistas e brutais da ascese cristã. Todavia, dizer isso é ainda insuficiente, pois cada poema está originalmente ancorado num recurso visual (pintura, fotografia artística, fotografia de escultura, etc), que participa de seus cortes de sentido. Não farei uma exposição específica sobre isso. Apenas digo que as âncoras iconotextuais dos poemas fazem parte do seu jogo de sentido e não foram ignoradas em minhas hipóteses interpretativas sobre o tríptico poemático de Otton Bellucco. Por fim, vem o desafio contextualizante mais complexo e difícil, nem sempre possível, devido aos riscos de simplificação de leituras reflexiológicas – geralmente, os estudantes de História dos períodos iniciais caem nisso. Tal desafio é tentar achar pistas (por meio de seus recursos e performances de enunciação) de referências extratextuais como chaves de sentido para o que é dito, como é dito e porque é dito. No entanto, vou abordar tais chaves metodológicas de contextualização como se fossem um único ato interpretativo, pois, quando produzimos sentido sobre artefatos culturais, somos mobilizados pelos recursos que levamos conosco e pelos recursos que os artefatos nos trazem ou nos provocam (em função dos recursos que já levamos conosco). Ao longo deste ensaio, especificamente este assunto abrirá várias brechas críticas para abordarmos os problemas estruturais e os desafios para o ensino das Artes Visuais, da Literatura e da História na estrutura atual de comunicação social configurada na escola pública e na carreira docente do Ensino Básico no Brasil. Não podemos ignorar que a precarização da carreira docente e a ênfase no ensino técnico têm empurrado nossos profissionais do ensino para uma identidade social (paradoxal) de iletrados e/ou “analfabetos estilísticos”, o que evidencia uma contradição estrutural na forma de conceber o papel da Educação Escolar Pública como fator de desenvolvimento humano. Neste momento, percebo que as Artes Visuais, a Literatura e a História são áreas de conhecimento cronicamente desperdiçadas em seu potencial dialético-dialógico de configuração de atos de aprendizagem escolar. A sua precarização ou subestimação social tem impedido que haja uma efetiva expansão do horizonte de experiências dos alunos numa direção que os torne adultos sociais leitores/produtores de diferentes gêneros de enunciação verbal, performática e visual. Comecemos, então, a nossa jornada por meio da tentativa de compreender a composição temática do tríptico poemático de Otton Bellucco, pois entendo que o seu conteúdo-forma carrega valores que se firmam ou se combatem por meio de seu gênero de enunciação. Contudo, como vocês perceberão, nossa jornada vai além disso, pois o tríptico poemático de Otton Bellucco nos empurra para além de seu muro da forma.

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SOBRE O ANTIPRECISIANISMO O antiprecisianismo de Otton Bellucco é uma reação aos valores, ideias e senso comuns “precisianistas”. O termo deriva de “precise”(em inglês), que no vocabulário shakespeariano é uma senha para se referir a “puritano cênico”. Tal assunto foi abordado por mim num artigo sobre a peça teatral “O Mercador de Veneza” e noutro sobre o espelho de príncipe “Basilikon Doron”. Um personagem “precise” ou precisianista tem algumas características marcantes, conforme o telos moral da enunciação: encontra satisfação social ou moral na negação do corpo, na postergação do sonho, no adiamento de si em nome do sacrifício por um bem maior (a sua salvação e/ou de outrem); ou na simples satisfação pessoal (vaidade) de se figurar em sociedade como “moralmente perfeito” ou “perfeitamente bom”, ou seja, acima da média daqueles que categorizaria como “réprobos”, “impuros”, “preguiçosos”, “menos esforçados” e, nesse sentido, “menos dignos de compartilhar o pão”. Tal explicação não visa a “fechar os poemas”, ou ser “preciso” a tal ponto, mas simplesmente abrir uma porta para que mais pessoas possam participar da enunciação do tríptico poemático de Otton Bellucco. O precisianista tem uma ilusão de bem ou de ser bom que implica em postergação de si. A sua autonegação tem um componente potencial recalcado de violência, que pode explodir em seu próprio corpo ou contra o corpo de outrem. A sua energia moral é a inveja/ciúme da energia e liberdade corporal dos outros. A própria ideia de o “valor de si” estar baseado na “postergação de si” é em si mesma cruel e desvitalizante, com grande potencial conformista e simplificador sobre a vida e as pessoas. No entanto, carrega também a possibilidade de uma satisfação centrada na distintividade social-moral, configurada em termos diferencialistas-monistas e/ou antitético-assimétricos: “eu” e “outro”; “bem” e “mal”; “puro” e “impuro”; “perfeito” e “imperfeito”; “resiliente sacrificial” e “hedonista”; etc. Tal lógica semântica antitético-assimétrica deixa de revelar o mundo enquanto ambiguidade e dialética, fazendo imperar o maniqueísmo, que é a porta de abertura para a perda do estranhamento em relação aos valores do cotidiano que fundamentam hábitos cruéis do ator social consigo mesmo e com o “próximo”. Daí, vemos Otton Bellucco jogar com os temas precisianistas para subvertê-los – ao estranhá-los – no seu tríptico poemático. O tríptico poemático “antiprecisianismo” é uma forma de crítica cultural a esta lógica perversa de valor. Não se trata de celebrar o “réprobo” em favor do “preciso”, mas de chamar a atenção para a própria lógica cultural que nos conduz a um repertório de categorias de sentido que nos levam a banalizar escolhas que oscilam entre tais polos, como se não houvesse outras possibilidades de sentido para a felicidade. Pensar em paradoxo é, nesse sentido, o grande desafio libertador, pois não oferece fugas fáceis, líricas, românticas, sacrificiais ou autoindulgentes. Nos três poemas, há um apelo crítico permanente para a responsabilidade coletiva sobre os hábitos micropolíticos e/ou biopolíticos de controle social sobre a consciência individual que mesclam felicidade com desvitalização intelectual do sujeito – i.e., a chave cristã de satisfação sacrificial, que é o avesso da celebração da vida na crítica de Friedrich Nietzsche aos “hábitos chandalas” em seu ensaio “O Anticristo”.

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Nos poemas da fase final de Otton Bellucco, tropos e temas filosóficos/teológicos centrados na categoria necessidade são estranhados em nome da energia libertadora da contingência, que encontra na própria imprecisão ou na imperfeição uma via de responsabilização ou responsividade autorreflexiva do sujeito perante a vida, entendendo-se de antemão que sociedade desigual implica em responsabilidade desigual, mas que o ambiente de desigualdade configura um padrão interpessoal de relações sociais, de comportamentos e de valores consoladores que dialeticamente estruturam a consciência/identidade e a violência assimétrica recíproca que é constitutiva da relação “senhor/servo”. Esta assimetria relacional é um modelo entre vários outros possíveis abarcados pela crítica poética de Otton Bellucco. Tal potencial de sentido fica mais claro se analisarmos o tríptico poemático “antiprecisianismo” de Otton Bellucco à luz do intertexto com os seus seis poemas “chandalas” – que, aliás, guardam uma energia crítica semelhante à relação dialética (portanto, não maniqueísta) “senhor/servo” figurada em vários poemas-conto de Alberto Lins Caldas, embora, diferentemente de Alberto, Otton crie um tom de “discurso acusatório” direto, não simulando a voz de personagens que falam entre si alheios ao leitor (e que deixam este na posição de expectador constrangido a testar os seus monismos categóricos). Neste momento, basto-me em constatar isso como premissa de minha hipótese intertextual, pois não há espaço aqui para uma análise focada em Alberto Lins Caldas, que certamente merece nossa atenção crítica num estudo específico que espero ter fôlego para fazer futuramente. Então, deter-meei, agora, nos “chandalas” de Otton Bellucco: * CHANDALA I Andas tão cheia de Deus na boca, mas és tão vazia de Céu... A tua bondade é tão...tão má!... O teu alvitre é pura opressão!... O teu diapasão só desarmoniza... Tu te penitencias, jejuas, mas engordas, sorris, mas destroças e celebras o faquir... * CHANDALA II Pensei que entendias essa fúria incontida da crítica...

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Mas, agora, percebo: sou eu que não entendo o teu gozo chandala de engolidor de sapos... Sou eu que não entendo esse horror edulcorado com hora marcada, que te motiva a ser discreto, a te sentires tão especial, tão serviçal da opressão... Não vês?... É isso que embala, deflagra e propaga a compaixão rala, rala, rala... * CHANDALA III Se ao menos te ligasses a algo, se legasses algo além de ratos... Mas acordas, reclamas, suspiras e te acomodas de novo ao ciclo... Passam datas que nada significam, mas tu as cumpres assim, assim... feito o bom menino que esperam. Pouco a pouco no teu entorno tudo se desagrega, mas, mas..., certamente, fodes, tens filhos e segues o ciclo dos ratos... De vez em quando, bem certo, tu até te lembras de agradecer a Deus pela tua miséria..., não aquela dos andrajosos da qual pomposamente vives... É sempre bom ter por perto alguém pior com quem medires a tua bem cultivada caridade! Amém, irmão, amém!... Deus está contigo agora!... Mas tu dormes, sonhas e te vingas nas coisas pequeninas do dia-a-dia e te acomodas de novo ao ciclo...

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Reclamas da vida que não vives e impedes os outros que vivam... Não me venhas alugar o ouvido! Vida não me é ciclo ou passagem! Não vivo em subterrâneo de ratos! Vida é ímpeto, fogo e tempestade! * CHANDALA IV Toda essa desgraça assim começa porque tu, chandala, não te sentes merecedor... Encaras teu direito como se fosse favor e agradeces a caridade... Tu aceitas, desgraçado, que tanto embaraço seja estrada p'r'o Céu... Odeio o teu sofrimento, odeio que o aceites como fardo do universo. A tua revolta é burra! De que adianta cuspires na bebida do senhor?!... Tu logo esqueces o horror... Tiras vantagem do que dá e achas tudo tão normal... * CHANDALA V hienas sem savana hienas tão pequenas não Rio nunca do que devo lastimar é lastimável, hienas, que copa e carnaval tenham prioridade sobre escola e hospital é lastimável, hienas, que tanto gozo mal focado deixe tudo inacabado no mesmo lugar

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essa estranha ordem das sorridentes hienas é o próprio carnaval: inversão de prioridade aversão à consciência * CHANDALA VI essa pessoa que se amarra sem senhor ainda não nasceu essa pessoa que se destaca sem senhor ainda não nasceu essa pessoa que se engaja sem senhor ainda não nasceu essa pessoa que acaba com senhores ainda não nasceu até agora só essas pessoas portadoras de cruz nasceram... eu não cresci ainda... *

Ao final, o sujeito do poema não pretende ser uma jovem vanguarda bem intencionada de filhos da burguesia a falar em nome do “povo”; não quer ser a “voz intelectual” do pobre e desvalido, pois não acredita mais nesta forma de atuação sociopolítica. Esta seria a valência sociopolítica do artista modernista, muitos dos quais “comunistas” no Brasil. Envergonhado e reativo, o sujeito do poema se coloca no centro das relações sociais que o enojam, ou seja, vê-se como dialeticamente responsável por aquilo que critica – não há nele sinais de escapismo moral por meio da caridade burguesa ou vanguardista. Ele deploraria desculpas “cazuzescas” do tipo “sou burguês, mas sou artista”. A estrofe final do último poema “chandala” desmonta qualquer desculpa desta natureza: o seu grito contra as relações chandalas é autoacusatório, ou seja, o sujeito crítico não está numa posição de pureza moral acusatória – se fosse isto, não haveria diferença estilística entre ele e uma jeremiada puritana. É nesta sua complexidade ética – enfrentar o paradoxo de ser para este mundo revelado como

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ambiguidade –, sem maniqueísmos consoladores moralinas, que os seis poemas mais demonstram a sua conexão com a energia crítica dos poemas de Alberto Lins Caldas. O sujeito dos seis “chandalas” de Otton Bellucco não diz “não nasci”: na pausa reflexiva de cada palavra-verso, afirma para si mesmo em tom autocrítico que “eu/não/cresci/ainda”, ou seja, ainda está retido à ordem social a qual critica – i.e., a sua voz crítica, enquanto problema ao mundo em que habita, é um produto dele, mas também um acontecimento que demanda a sua superação estrutural. Tudo aponta para a figuração social de um sujeito literário que “nasceu” num ambiente social estruturado pela relação assimétrica “senhor/servo” – e, nesta relação, é possível que ele esteja no polo (filho de) “senhor”, aliás, como a maioria dos intelectuais e artistas modernistas da literatura e das artes visuais no Brasil. Contudo, há no sujeito do poema uma diferença marcante: o jovem abastado dos seis “chandalas” não tem um olhar pitoresco condescendente para os menos favorecidos; não pretende que sejam apenas um objeto estético passivo, concebido para solicitar a piedade dos “abastados”, como acontece no pathos dos quadros de Cândido Portinari sobre os “retirantes”. Pelo contrário, o sujeito do poema é crítico ao olhar caridoso porque se enraivece e se envergonha da própria dinâmica social que cria a necessidade do papel de burguês caridoso.

Na série de quadros “retirantes”, temos a conclusão pática com o tema da pietà sertaneja, mas toda a série não foi feita para o olhar do pobre, mas sim para suscitar a piedade burguesa, o que significa uma representação visual de solução moral-social para o conflito de classes no Brasil que poderíamos entender como mais eticamente owenista do que marxista ou liberal. Ora, o jovem sujeito abastado dos seis “chandalas” de Otton Bellucco é o exato antítipo desta possibilidade pática e, portanto, suscita outro tipo de sentimento ético e dilema crítico ao interpor o seu ódio contra a própria dinâmica social que gera a “moral chandala” que sustenta o ethos da relação dialética “senhor/servo” – ou “casa grande/senzala”, no caso do Brasil “muderno”.

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No movimento dos seis poemas, podemos identificar uma mudança de conteúdoforma que nos evidencia a introdução de maior comedimento reflexivo no sujeito do poema. Os três primeiros poemas são odes/ódios panfletários (portanto, estão mais próximos da prosa), o que significa que os poemas, enquanto acontecimentos estéticos, são deliberadamente submetidos ao acontecimento ético que pretendem suscitar. Portanto, o fenômeno estético neles cede lugar ao ético, evidenciando a urgência do grito como conteúdoforma. Por isso, a poética lírica cede à prosa ódica nos três primeiros poemas. Nos três últimos poemas, o compasso estrófico regular altera o tom e funde as pessoas estilísticas, tornando-os acontecimentos ético-estéticos. Tal deslocamento na forma evidencia a mudança na entonação: os três últimos poemas não são gritados (ao modo de panfletos ou sermões admoestativos), mas sim (auto-)reflexivos: o dedo indicador do sujeito do poema é apontado para o mundo “chandala”, mas o seu polegar está voltado para si mesmo. Na contraposição tonal entre as três prosas ódicas e as três poéticas líricas, temos o desenho de muros picturais poemáticos que se convergem tematicamente na direção do tríptico antiprecisianista de Otton Bellucco. Por isso, sustento a hipótese intertextual de que os nove poemas conjuntamente formariam uma figura pictural de nave de igreja, mas, em vez de ascese cristã sacrificial-conformista, desfere contra esta a sua energia iconoclasta antichandala.

OS COMBATES PELA LINGUAGEM Outras categorias de percepção e avaliação são criticamente desgastadas neste processo ético-estético dos seis “chandalas” na sua interface com o tríptico poemático antiprecisianista de Otton Bellucco: os tropos de “necessidade” ou “destino” são combatidos. Por quê? Porque podem delegar a responsabilidade sobre as mazelas da vida ao Outro Intangível (deus, destino, a ordem das coisas, a natureza, raça, o sistema, etc) ou ao Inimigo Objetivo – o “judeu”, o “cristão”, o “PM”, a “Dilma”, o “Aécio”, os “vândalos”, os “ciganos”, o “traficante”, o “muçulmano”, o “gay”, o “negro”, o “poeta” (lembro aqui das reações fundamentalistas cristãs contra um livro para crianças de Paulo Bentancur, no qual um menino tinha um capetinha como amigo em suas diabruras), o “mercado”, o “comunismo”, etc. Reparem que uso “artigo definido”, pois o “inimigo objetivo” quase sempre é metonímico na enunciação, o que cria a ilusão de identificar e referir a sua presença com “precisão”, mas, na verdade, é a ausência de contornos palpáveis que alimenta o imaginário da ameaça onipresente. O uso recursivo recorrente do adverso metonímico condensa num ponto indiciário a responsabilidade pelos males comunais, refundando fronteiras cruéis de ignorância, exclusão e simplificação sobre a vida, o que pode energizar ritos individuais, focais ou coletivos de violência expiatória. Não por acaso, como antítipo cultural dessa lógica, o tema da liminaridade está presente em vários poemas de Otton Bellucco nas fases média e tardia – e

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também está no fato de ele, Olívia Grassa e H.G. Bellucco se enunciarem como heterônimos conscientes de si e que sabem um do outro. Contra os hábitos culturais opressivos e com toda a força fictiva de seu cansado coração, Otton se levantou poeticamente nos combates pela linguagem, antes de Olívia Grassa (ex-esposa) e de seu filho Horácio (H.G. Bellucco). Ao final, na postagem intitulada “OTTON A HORÁCIO”, de 3 de agosto de 2014, a sua morte é enunciada a seu filho Horácio em chave trágica hamletiana antimonumental: * Não sou poeta... O que há num nome? Se não há nada, poeta não sou... Aqui me lego à contingência... "Economia, Horácio, economia!", o aço foi envenenado, e meu legado agora finda, mas não a loucura deste mundo... Se morro, morro e acolho, sem acordo, a diferença que não me agrida, que se enterneça, que me metaboliza que me deixa e me contingencia a aprender mais sobre mim mesmo e testa a unidade do que sou, como sou e o que faço no instante em que não me deixo ser o nada-além-do-nome. Morro, preciso morrer p'ra não ser cânone... *

Aqui, não há consolo metafísico ou apaziguamento do espírito – ele não quis o conformismo da “boa morte” (ars moriendi). Parafraseando a poeta Pat Lau (Patrícia Laura Figueiredo), eu diria que ele morre inquieto porque dói com o mundo doendo, liberando uma energia empática aprendida com a forma de composição de Pat Lau. Em seguida, em “EPÍLOGO”, de 5 de agosto de 2014, Horácio lembra que o seu pai se entrega à vida como

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adubo (i.e., ainda está vivo no ciclo vital do mundo), não como monumento ou cânone, que é desviver: * agradeço a todos q se entregaram a esta jornada agradeço pela atenção sedenta sensível ou qualificada agradeço pelos q lamentam nossa perda embora bem seja ganho o poeta vai os poemas dele ficam tal como ele os pensava: sem monumento sem vaidade entrega gratuita aposta da semente do dente-de-leão poema-abertura negócio sem mercado pouso ao soldado acolhimento ao peregrino mesmo sabendo q os desvitaliza a sombra do medo esse pobre alimento da barbárie civilizada Otton Bellucco finda p’ra ficar na vida como adubo *

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Por isso, tal como a vida, Otton Bellucco se contingencia, na sua descontinuação poemática, por meio da chegada da ex-esposa e do filho ao espaço adubado que deixa em seu “perfil no Facebook” (em si mesmo, um mecanismo que potencializa o sentido do heterônimo numa chave sequer imaginada na época de Fernando Pessoa). Assim, temos um quadro vital bem complexo: a felicidade não pode ser um episódio fortuito de um “conto de natal” e prescinde de monumentos. Exige muito mais trabalho (não fadiga), mais luta (não briga), menos vaidade (na morte, ele se desmonumentaliza, é simplesmente adubo...). Por isso, ao morrer, ele se vitaliza, enquanto o mundo doendo do qual se despede, paradoxalmente, vive se desvitalizando. Há uma presença muito grande dos diálogos poemáticos com Pat Lau na figuração final de si proposta por Otton Bellucco, basta observar a recorrência (e data de postagem) de Pat Lau na “linha do tempo” de Otton no Facebook. Observamos a contaminação progressiva do ritmo dos versos e da energia empático-poemática de Pat Lau em Otton, o que está ausente em seus poemas iniciais – antiquados, líricos, testemunhais e previsíveis na forma de composição. Nos três poemas “antiprecisianistas”, toda a específica dinâmica sociocultural de distintividade precisianista foi corrosivamente questionada por Otton. Os três poemas entendem que qualquer comportamento conformista antivital (“chandala”, segundo Nietzsche em “O Anticristo”) posto em chave de destino (“a vida é assim mesmo...”; “a vida é o que é”; “ela/ele se sacrificou por nós”; etc) é uma forma de bloquear o estranhamento em relação aos pequenos horrores cotidianos habituais que nos impomos, ou impomos aos outros sem perceber. Otton combate a possibilidade pior que isso contém: Alguém encontrar no sacrifício dadivoso uma forma de ser feliz ou de ter satisfação, o que é simplesmente desviver, é bloquear questionamentos básicos (Como se chegou à “necessidade” do sacrifício? O que há de opressivo e o que exige em troca?). A antropologia da dádiva nos informa: a subordinação. Os poemas antiprecisianistas de Otton Bellucco são gritos que provocam estranhamento. Assim, se você se sentiu mexido pelos seus últimos suspiros poéticos, então, estes já cumpriram o seu objetivo de provocar deslocamentos de valores, pois a sua ideia não é que o leitor saísse indiferente ou incólume da leitura, mas que tomasse consciência das fábulas individuais apaziguadoras que escolhe para si e que possibilitam tolerar ou invisibilizar o horror. Neste objetivo crítico, há também muito do poeta Alberto Lins Caldas nas fases média e final de Otton Bellucco. Os poemas tardios do velho Otton são engajados sem ser ingênuos; são antiniilistas, anticéticos e críticos a teleologias fáceis e fósseis, sabendo de antemão que teleologia é da ordem da narrativa, mas que o poema a desafia enquanto atuar como revelador das ambiguidades do mundo doendo.

LER O POEMA: UM ATO SOCIAL É no fato de você conseguir se deixar levar pelo poema que este passa a ser esteticamente seu. Se você se sentiu mobilizado ou tocado em algum grau pelos poemas de

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Otton Bellucco, isso significa que você participa, em alguma medida, de sua comunidade referencial de sentido e de gênero de enunciação, tendo, portanto, algum domínio do (ou treino social sobre) o seu gênero de enunciação e temas ou tropos enunciados. O que por vezes se acha “mais fácil de ler” tem menos haver com domínio de vocabulário – obviamente este tem alguma interferência, mas menor do que geralmente se imagina – do que com a formação social de habilidade de entendimento para certos gêneros de enunciação. Basta lembrar que a criança aprende a entender um idioma por meio de performances de enunciação (i.e., a atuação sintática do gênero) mais do que pelo domínio de vocábulos (i.e., o fator morfológico). No entanto, ao falar tudo isso, corro o risco de fazer você se perder do principal: o estudante de História Social da Arte ou da Cultura deve também aprender a viver a performance genética do poema para participar de sua comunidade estilística de sentido. O poema contemporâneo – aliás, qualquer gênero enunciativo – exige uma educação estética específica, ou solicita, tacitamente, alguma formação social de habilidade de leitura para certos gêneros de enunciação. Como sabemos, a habilidade da leitura não é um dado da natureza, mas sim um processo social de estruturação de sujeitos e de habilidades muito exigente de recursos materiais e imateriais específicos, considerando o fato primordial de que se aprende ler na escola, hoje, com línguas vivas figuradas como patrimônio nacional. Ora, se as línguas estão vivas, não estão acabadas, ou seja, são um processo aberto, embora a gramática e os dicionários deem a impressão (antiquária) do contrário. Na educação escolar de linguagens, infelizmente, ainda há um ranço oitocentista de achar que as “línguas nacionais” estão nas gramáticas e nos dicionários, os quais são agentes fossilizantes, desvitalizantes e descontextualizadores da língua viva. Gramáticas e dicionários de línguas vernaculares vivas foram originalmente concebidos a partir dos modelos antigos de estudos filológicos de línguas mortas indo-europeias, o que explica, por vezes, o descompasso estrutural entre gramática (o elemento supostamente estático) e estilística (o seu elemento estruturalmente dinâmico) nos estudos das línguas vernaculares vivas. Neste ponto, acato plenamente as críticas de Mikhail Bakhtin a Ferdinand de Saussure. Se a língua está viva, se ela se impulsiona pelo uso em diferentes contextos de enunciação, ela não é igual a si mesma no tempo e no espaço, o que significa que falar, por exemplo, em “língua portuguesa” no singular é pura ilusão antiquária e nacionalista. Como consequência dessa premissa crítica, entendo que a experiência social se condensa, em alguma medida, nas várias manifestações da língua – o dicionário, portanto, fala de apenas um lugar de sentido sobre a língua, mas também de concepções e pretensões de atuação com a língua que não se dão em vazios de poder e relações sociais. Por outro lado, se a língua está viva, falar em neologismo só faz sentido se você pressupõe que a língua válida é aquela da gramática ou aquela fossilizada no dicionário. Se um ator social enuncia ou percebe algo como neologismo, isso nos aponta para a dinâmica viva da língua e também pode ser uma forma de registro ou indício de ruptura com um horizonte de sentido ou de expectativa referido a práticas e experiências sociais historicamente localizadas. Então, quando se fala em

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neologismo, devemos perguntar: Para quem? Em relação a qual horizonte de sentido e recursos materiais e imateriais? Tudo isso é importante, particularmente de pensarmos na educação infantil e nos primeiros letramentos escolares. Quando uma criança sai da família ou da comunidade vicinal imediata para entrar no regime de sentido de uso da língua na educação escolar, muita coisa para ela é nova – i.e., “neologos” ainda sem vivência anterior em seu processo social específico de desenvolvimento da linguagem. Daí, embora não se deva considerar a criança um papel em branco, o processo de aprendizagem na escola não deve simplesmente ser um exercício de reconhecimento, mas sim de expansão de experiências e horizontes de expectativas, o que não ocorrerá sem formas controladas (didáticas) de operação cognitivo-afetiva de estranhamentos por meio da comunicação/expressão do processo de letramento escolar; caso contrário, a escola não provocaria a ampliação de repertórios e habilidades cognitivas, afetivas, culturais e sociais nas crianças, perdendo o seu papel social na “sociedade dos indivíduos” (Norbert Elias). Não podemos ignorar o óbvio: a escola e a família configuram processos civilizatórios que provocam, reconfiguram, disputam e/ou anulam habilidades, conforme os seus recursos materiais e imateriais. Lembro de uma fala importante da professora Betzaida Mata num contexto de crítica ao fundamentalismo cristão contra um livro infantil de Paulo Bentancur. Sabiamente, ela disse: “Literatura não é manual de boas maneiras. A sua importância fundamental reside naquilo que só cabe a ela comunicar: revelar o mundo como ambiguidade". Para o heterônimo Otton Bellucco da fase tardia, poema não é rima bonitinha, sonoridade oca, jogo decorativo de memória ou rito confessional. Tal compreensão nós não desejamos hoje para a literatura a ser ensinada nas escolas, mas isso não é uma compreensão crítica que existiu desde sempre a respeito do papel social da literatura ensinada. De fato, houve vários gêneros literários do passado que foram concebidos para efetivamente serem “manuais de boas maneiras”, uma preparação meramente adaptativa-conformista para vida “tal como ela [supostamente] é”. Certamente, considerando os adultos que tenho visto por aí, a escola pública não educa para o tempo do poema, para uma leitura intensiva que revele o mundo enquanto ambiguidade. Não há horizonte para isso quando há ênfase numa educação técnica voltada para o mercado e quando os professores do Ensino Básico são tão profissionalmente precarizados em sua carreira e tão socialmente degradados que deixam de ser vistos como intelectuais e letrados; deixam de ser vistos como profissionais que precisam de tempo para manter uma formação permanente justamente porque a vida é impermanente. Estruturalmente, nossos alunos não têm professores educados para sentirem-se cidadãos para as artes em geral. Por outro lado, ninguém é obrigado a gostar de “arte” porque um conselho estrelar canonizou, fossilizou e curriculou uma dada concepção de arte. Mais do que ensinar arte, a escola deve provocar arte! E arte é uma categoria em disputa permanente. Que bom! A exposição a diferentes estímulos estéticos é fundamental para a educação desde a infância. A preparação social para a cultura escrita, por meio da exposição estética às provocações de um poema, por exemplo, pode se tornar educação política pelo simples fato

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de provocar formas de empatia que desenergizam valores ligados ao ethos do mercado e ao conformismo social “chandala” denunciado por Otton Bellucco, tal como também podemos observar exemplarmente nos poemas de Patrícia Laura Figueiredo (Pat Lau). Por isso, não se deve ler um poema contemporâneo como se lê uma crônica, um conto ou uma notícia de jornal; ou achar que há poema somente quando há rima. O poema contemporâneo não é a representação de um evento – a crônica ou a notícia de jornal tem tal função genética. O poema é o evento estético referido a um contexto de enunciação que determina a sua forma. Daí, aprender a ler o poema depende da exposição sociocultural à sua enunciação, ou seja, da construção social e política de ambientes de comunicação social que o favoreçam enquanto bem cultural compartilhável, pois aprendemos a ler conforme a nossa exposição a diferentes gêneros de enunciação. Disso decorre que “aprender a ler” os artefatos culturais não tem necessariamente relação com alfabetização: em Londres dos séculos XVI e XVII, por exemplo, as pessoas analfabetas tinham “ouvidos” para determinados gêneros poéticos porque estavam socialmente expostas à sua oralização nos teatros e nas igrejas, participando de seu horizonte de sentido. Por isso, hoje, podemos dizer que muitas pessoas podem ser tecnicamente alfabetizadas (i.e., dominam a cultura escrita escolarizada), mas isso não significa que necessariamente saberão ler determinados gêneros literários – ou seja, podemos falar, no plural, de “analfabetismos estilísticos”. Raras são as exceções de pessoas que não tenham algum “analfabetismo estilístico”. Portanto, este não tem relação necessária com falta de vocabulário. É prova de “analfabetismo estilístico”, por exemplo, ler um poema contemporâneo como se estivesse lendo uma notícia de jornal ou aforismo de autoajuda – isso acontece muito no mundo dos compartilhamentos do Facebook. Por outro lado, uma poesia pode ser feita hoje, mas não necessariamente é poema contemporâneo, ou seja, pode ser apenas a retomada de formas habituais antigas de gênero às quais uma pessoa tenha sido mais exposta desde cedo em sua vida e, portanto, tem maior treino sociocultural nelas – i.e., em relação a elas não é um “analfabeto estilístico”. Geralmente, devido à exposição à forma escolarizada de literatura, moldada segundo os cânones da tradição crítica romântica nacionalista, a geração no Brasil que se escolarizou adequadamente até a década de 1980 tem mais domínio/familiaridade com os padrões líricos de composição – e uma familiaridade muito tangencial com os “modernistas”. Daí, muitas vezes gostar de certa “obra/autor” tem relação com uma familiaridade de gênero socialmente aprendida na família ou no processo de escolarização a que uma pessoa foi submetida. Quem ignora as expectativas de legibilidades ligadas aos códigos estético-culturais das literaturas não participa efetivamente de sua comunidade estilística de sentido porque ainda não desenvolveu habilidade sociocultural para ler seus artefatos – em outras palavras, é um “analfabeto estilístico”. Até que o “analfabetismo estilístico” seja superado, tal leitor pode simplesmente ler artefatos literários sem o contexto ou o decoro tácito de seu gênero e, assim, cometer anacronismos estilísticos. É importante que não se confunda: dominar o

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gênero é a porta de entrada na comunidade de legibilidade de uma obra, mas isso não a esgota. Por outro lado, as recepções (ou esquecimentos) de uma obra podem ser menos livres do que imagina o ator social da “sociedade dos indivíduos”, porque o interesse por uma obra/autor é condicionado pelos campos institucionais-sociais que configuram comunidades de leituras/leitores em torno de um gênero de enunciação encarnado por um “autor/obra” socialmente sancionado(a) num momento histórico específico. Em tais comunidades de leituras/leitores, um leitor assíduo se torna hábil em perceber a resistência da matéria que forma um gênero de enunciação e, assim, aprende a encontrar satisfação em participar do seu jogo estético – se é um jogo, tem regras, não se trata de um “tudo vale” ou “tudo pode” solipsista do leitor. Se um leitor chama um poema de Alberto Lins Caldas de “lírico”, não se trata de uma interpretação validada pela “sua” livre recepção, mas de erro estilístico na recepção, ou seja, trata-se de um sintoma sociocultural de falta de habilidade de leitura de um gênero de enunciação. Como um poema contemporâneo pode condensar subestilos com fins críticos, fazendo discursos indiretos referidos a certa “obra/autor” e/ou gênero, isso pode criar uma falsa-familiaridade num leitor acostumado com tais subestilos, que então faz uma leitura “familiar” sem conseguir pescar, no contexto do gênero enunciado, a ironia que o corrói. Ou seja, tal leitor não percebeu as tensões e disputas de campo social materializadas num poema que ironiza outros gêneros de enunciação (e, portanto, os seus “leitores/audiência”). Fazer uma deliberada inflexão genética em tropo irônico é diferente da simples ignorância genética de quem recorta um trecho do poema e, em vez de evidenciá-lo, simplesmente o recontextualiza de um jeito que o mata enquanto singular horizonte estilístico de sentido. Na era da hipertextualização flexível, apressada e superficial do Facebook, muitos poemas são deslocados e retalhados para se tornarem desvitalizados aforismos de autoajuda. Nesse caso, a descontextualização de seu enunciado genético em prol de seu deslocamento para o centro de outro enunciado simplesmente anula o seu horizonte estilístico de sentido. Um “conteúdo” não permanece o mesmo quando é destituído do contexto de sua forma. Infelizmente, muitos historiadores sociais ainda estão condicionados a interpretar artefatos escritos e visuais em busca de “conteúdo social” sem considerar a “forma”; no outro extremo, há a cepa dos críticos literários desconstrucionistas-solipsistas que, ignorando os lugares de enunciação dos artefatos literários, dão crédito demais ao individualismo solipsista do leitor do livre mercado (na verdade, tacitamente à sua leitura autorizada), achando que podem suprimir o peso do lugar de enunciação dialógica do gênero e dobrar as obras à sua arrogante vontade de ensaísta. Ora, se querem escrever algo partindo da inspiração de uma obra/autor, faça-o livremente e com coragem, não se escudem na autoridade de um nome consolidado num campo para legitimar sua fala! A mim interessa os esforços intelectuais daqueles que, ao estudarem as artes de outrem, não suprimem o peso de seus materiais genético-contextuais; pelo contrário, esforçam-se em enfrentá-los para participar, com alguma propriedade, de seu jogo de sentido e horizontes de experiências.

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Estamos perdendo leitores de poemas... E os velhos críticos adoram repetir os velhos nomes autorizados, já escolarizados, canônicos ou curriculados. Isso é grave! Isso é uma pena! Isso cria imobilidade intelectual! A perda da habilidade ou interesse de leitura de novos poemas reflete-se num mercado editorial que mistura talentos primorosos e originais com rimadores e remadores da velha ordem, pois não ultrapassam os cânones escolarizados alçados como modelos de relevância. O resultado disso já sabemos: estagnação criativa e pouca projeção editorial de trabalhos que efetivamente sejam agentes de renovação estética em literatura.

O RISCO DO DESVIVER DAS ARTES NO ENSINO E NA PESQUISA O meu entendimento de História Social da Cultura tem por foco a reconstituição de olhares e legibilidades de artefatos literários e artísticos em geral, ponderando o estatuto social das artes e dos artistas em cada época e local; como é seu processo de formação ou campo social de experiências; a tradição dos códigos estéticos, temas, técnicas e métodos; o seu repertório recorrente e concepção de papel ou função na sociedade; as dinâmica e disputas, em seu campo social, a respeito de cânones ou paradigmas de mérito, valor ou competência estética; o regime representativo de gênero formador de olhar ou percepção na/para/sobre a obra; modelos de performances de sujeitos na/para a enunciação da obra; e, se possível, rastrear o contexto extratextual de enunciação e interlocução que norteou a concepção genética da obra. Tudo isso é necessário porque quanto mais distante no tempo e no espaço for um artefato maior é o desafio para o historiador de conseguir minimamente se deixar mobilizar esteticamente pelo ato enunciativo do artefato, ou seja, não separar forma de conteúdo para vitalizar a sua leitura sem cair em imaginações solipsistas que retiram todo o peso histórico do material analisado. Supor que há uma espécie de arte universal que pode ser lida a partir dos paradigmas dos críticos de arte nascidos na Europa do século XIX não apenas é um erro metodológico de premissa, mas também equívoco estético e histórico de um desavergonhado etnocentrismo. Em nosso trabalho, se a distância cultural e temporal de um artefato já não provoca prazer ou interesse estético no presente, mas somente estranhamento, é dessa energia que podemos partir, pois o estranhamento é necessariamente dialético no processo investigativo das artes do passado: no processo investigativo, o fato de estranharmos o que parece adverso aos nossos hábitos de entendimento ou percepção já é uma aventura de descoberta – e, revelando o “outro”, revelamos a nós mesmos, aprendendo mais de nós com o “adverso”. Assim, percebemos que não são precisas, acabadas, naturais ou universais as categorias com as quais percebemos e avaliamos o mundo. Desde a década de 1980, Carlo Ginzburg repetiu inúmeras vezes que há um autor – Michael Baxandall – sobre o qual não demos ainda a devida atenção metodológica, em larga medida, assim penso, devido ao labirinto cético e cômodo anglo-saxão em que muitos se

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colocaram ao centrarem-se num modelo retórico-narrativista focado no inventário de trópicos de discurso (análise formal-estática do gênero de enunciação e não do processo social implicado na configuração e/ou uso estilístico dinâmico do gênero de enunciação); e devido ao patente formalismo modernizante nos parâmetros críticos de seleção e relevância da História da Arte, por estar ainda marcada por um modelo narrativo cujo imperativo categórico tácito é a emergência da modernidade por meio da emancipação da tradição e da figuração do individualismo nas artes e no artista. Portanto, os próprios modelos de crítica de arte devem ser objetos de estranhamento cultural nos estudos históricos sobre arte. A crítica de arte é um gênero de enunciação referido a contextos específicos de disputas sociais e simbólicas. Não podemos, portanto, ignorar isso, nem tomar sem problematizar as suas categorias de percepção e de avaliação do que seja arte. A crítica de arte, como todo gênero de enunciação, tem localização histórica. Notem que o estranhamento o qual podemos ter em relação a um objeto estético (ou à crítica do objeto estético) significa que ainda estamos tendo com ele alguma conexão, mesmo que o situemos em nosso nicho de sentido como um “adverso”. Tal estranhamento carrega uma potencial energia criativa que é desperdiçada pela escola pública tal como hoje é estruturada. Para ser melhor aproveitada, a energia criativa do estranhamento demandaria outra compreensão social e simbólica do papel do docente, do tempo para sua formação permanente e da estrutura e dinâmica de sua carreira. Hoje, o que temos é uma escola pública que desperdiça a energia criativa do estranhamento, que só pensa em apaziguamento ou acomodação (i.e., um meio-termo oco entre tese e antítese, em vez da superação dialética na síntese), o que logo se desloca para a indiferença investigativa, a preguiça criativa, ou para a mera reprodução de valores, premissas ou cânones preexistentes, sem questionar os arranjos de sentidos escolarizados, os seus parâmetros de mérito e competência e se há condições estruturais na vida social, na carreira docente e na rotina escolar discente para provocar as habilidades criativas exigidas por tais critérios de mérito e competência. A lógica social disso é dura e cruel: os alunos são estruturalmente subestimados em suas capacidades criativas porque os seus professores foram socialmente subestimados antes deles em seu processo de formação. Pior mesmo é quando nem se tem mais a energia criativa do estranhamento para provocar algum vínculo de atenção estética, ou seja, quando Jackson Pollock se torna apenas uma “mancha na parede”.

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Isso ocorre porque todo produto artístico tem um contexto de enunciação que exige, como dissemos antes, alguma prévia “alfabetização estilística”. Afinal, ver ou perceber não é apenas um ato fisiológico, mas sociocultural, como pensava Michael Baxandall. É a exposição social significativa a contextos criativos de enunciação que cria domínio de sentido sobre determinados recursos estéticos acionados nos campos sociais. Se a escola pública do Ensino Básico no Brasil não tem professores que consigam participar da comunidade estilística de sentido de Jackson Pollock, os seus alunos verão apenas “mancha na parede”, não saberão ler o ato de sentido de sua pintura enquanto enunciação que se dirige a algo ou alguém – afirmando algo e negando algo. Se todo produto artístico é uma forma de enunciação, participa dele quem foi socialmente treinado para percebê-lo, pois foi feito para ser percebido segundo certas habilidades socialmente construídas. Se não há um contexto social de comunicação que o favoreça, “Jackson Pollock” é apenas “mancha na parede” (“meu filho de seis anos pinta melhor que ele”, diria um pai estilisticamente analfabeto). Considerando o que foi dito até agora, podemos nos perguntar retoricamente: As escolas públicas do Ensino Básico no Brasil têm sido contextos sociais de comunicação que favoreçam o fruir crítico-histórico das artes? As escolas públicas do Ensino Básico no Brasil e as carreiras docentes estão impossibilitando estruturalmente a criação de contextos sociais de comunicação que viabilizem a expansão das categorias de percepção e avaliação de seus alunos para um entendimento de mundo enquanto ambiguidade, diálogo e estranhamento por meio das artes – isso se reflete, por exemplo, na figura da analogia (presentista) como principal recurso ou meio didatizante de ensino em História. Uma cultura escolar do estranhamento favoreceria todas as áreas escolarizadas de saber; mas penso, aqui, que tal cultura do estranhamento energizaria particularmente o Ensino de História. Afinal, as nossas categorias de percepção e avaliação não são “coisas dadas”, mas processos, tal como a língua também o é, pois é testada, reconfigurada e remarginada semanticamente nos processos históricos da vida social. Não se percebe a sua dimensão coletiva, mutável e viva sem a perspectiva do distanciamento sociocultural do tempo histórico. Diversas camadas de experiências e sentidos se impregnam nos artefatos culturais materiais e imateriais da sociedade ao longo do tempo. Saber lê-las é nosso grande desafio intelectual.

O PAPEL CRÍTICO DO ENSINO DE HISTÓRIA Línguas (e seus processos constitutivos) são aprendidas em contextos sociais de enunciação de sentidos, mas somente compreendemos a sua dimensão socialmente “feita” (i.e., não “dada”) quando o Ensino de História energiza o estranhamento por meio da alteridade cultural inscrita na distância provocada pelo tempo histórico. É assim que línguas, literaturas e culturas saem do singular pátrio e são percebidas como processos disputáveis de paradigmas de sentido. O paradigma de história ensinada, hoje, é indício de um pensamento histórico marcado pelo cronótopo moderno, o que torna sem sentido a figura da analogia ser

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pensada como o principal recurso linguístico didatizante para o Ensino de História quando se defende “conteúdos” de uma “História Viva” supostamente mais “próximos do cotidiano” do aluno. Ora, a percepção de que algo parece distante ou estranho depende de uma noção de tempo histórico marcado pelo horizonte de sentido processual-evolutivo, ou seja, o entendimento iluminista de que cada época é qualitativamente distinta de outra, de que não há “repetição histórica”, mas uma “diferença” que se inscreve no tempo. Os modelos de didática da história de Jörn Rüsen, as suas análises sobre pensamento histórico e o seu debate sobre narratividade em história são formados, por exemplo, pelo cronótopo moderno iluminista kantiano. A forma curricular de aprendizagem histórica concebida para a escola pública no Brasil também é moldada pelo cronótopo moderno, que é coetâneo não apenas à ressemantização de palavras e gêneros antigos, mas também à criação de palavras e gêneros novos para enfrentar o desafio de novos horizontes de experiências progressivamente aceleradas pela positivação da novidade no universo urbano-industrial. Ora, antes do Iluminismo ou da Revolução Francesa, se tomarmos a Europa como referência, a novidade era representada como algo ameaçador, pouco confiável e negativo, ou seja, a própria ideia de que o novo é necessariamente bom está implicada com uma ressemantização recente do conceito, que não pode deixar de ser referida ao contexto de configuração do liberalismo (e da crítica ao liberalismo) como paradigma civilizacional. Por isso, devemos ter clareza ética sobre o que se quer com determinada forma de aprendizagem histórica na Escola, mas sabendo, de antemão, que tal reflexão não se dá fora do campo da Teoria da História (incluo neste a História da Historiografia ou do Pensamento Histórico), pois é onde mais se especializa a reflexão sobre formas de enunciados históricos e seus contextos. Por tal viés, quem estuda e pratica reflexivamente aprendizagem histórica atua em/com Teoria da História, mas numa determinada direção, porque o seu modelo de leitor/ouvinte/audiência é outro. Considerando isso, Mikhail Bakhtin se torna um importante agregador metodológico de campo, pois sabia que o espaço escolar não poderia ficar apenas retido no enunciado cotidiano; pelo contrário, deveria provocar, em vários momentos, descontinuação para criar deslocamento reflexivo em relação aos hábitos domésticos dos alunos. No entanto, se a escola não poderia ser a extensão da casa, da rua ou do mercado, tampouco poderia ser insensível a tais esferas. A percepção da distinção, da conexão ou da descontinuação e o estranhamento são fundamentais para se criar um primeiro ato hermenêutico histórico-temporalizador em nosso aluno em termos modernos. A figura da analogia vai na contramão dessa possibilidade. A enunciação literária – tal como a histórica, a artística e a científica – dos campos letrados não pode ser apagada em sua diferença em nome da suposta aproximação do cotidiano. Para Bakhtin, tal diferença não pode ser apagada porque eliminaria o salutar estranhamento entre as formas escolarizadas de conhecimento (científico, histórico e artístico) e os enunciados cotidianos. Consciente de sua singularidade quando os seus combates nas décadas de 1920 e 1930 eram contra os formalistas russos e aquilo que chamava de “estética

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psicológica”, Bakhtin demarcava a singularidade dos enunciados literários em relação aos “falares cotidianos” não para nivelá-los no espaço escolar, mas para responder como ambas as formas de enunciação, como partes de línguas vivas, estavam referidas (de forma não mecânica e simples) a seus contextos sociais, por serem, estruturalmente, atos específicos de comunicação feitos por meio de dispositivos linguísticos contextualizantes distintos. Portanto, o que vulgarmente se tem chamado de “História Viva” – confundindo-se tal premissa com a “aproximação do cotidiano” por meio de “conteúdos próximos e atrativos” abordados quase sempre na chave da analogia – alimenta um presentismo anti-intelectual na forma de conceber relevância e eficácia para “conteúdos históricos” curriculados. Daí, é importante perceber que, em relação ao Ensino de História, não há o “conteúdo em si”, pois este não está separado de sua forma de modalização quando nosso objetivo é refletir sobre o tipo desejado de aprendizagem histórica na escola. Não quero dizer com isso que devemos ignorar os necessários embates sobre a direção que as relações de identidade devem ter na escolha de currículo, mas apontar para a necessidade de uma densa reflexão sobre a modalização da aprendizagem histórica desejada (que o campo da Teoria da História nos possibilita), pois cria sentido e forma para tal “conteúdo”, dos quais o docente deve estar consciente quando concebe atos hermenêuticos de aprendizagem histórica em sala de aula por meio de recursos específicos que provoquem interesse investigativo no discente. Por que digo tudo isso? Porque se ignorarmos os parâmetros de modalização do “conteúdo” em História e o papel docente de modalizador investigativo em relação ao interesse pelo “conteúdo” de História; se não ponderarmos a importante reflexão intelectual sobre formas historiográficas na interface das discussões sobre formas de aprendizagem histórica na escola, ficaremos num nível superficial de percepção do protagonismo intelectual do professor em sala de aula como ator dos atos hermenêuticos de aprendizagem histórica. Nesse sentido, precisamos de um preparo intelectual permanente – e tempo qualificado e vitalizado para tanto, tempo para criação, não tempo para o sacrifício. E também estendo isso para um debate denso sobre currículo que não seja centrado em escolhas pragmáticas que visam apenas à adaptação à precariedade escolar preexistente. Precisamos criar horizontes críticos de expectativas que provoquem novas experiências sociais, políticas e institucionais na (e a partir da) escola. A questão da “História Viva” não pode se restringir apenas a uma escolha de “conteúdo mais próxima da realidade do aluno” – debochadamente, eu chamaria de “História Populista” como uma falsa solução para a “História Elitista”. Afinal, depois de instituídos, os seus “conteúdos” sequer precisariam de professor. Bastaria haver uma televisão e seus recursos de dramatização televisual, pois, certamente, tais recursos vão trazer o “conteúdo” para o “cotidiano” em um “pathosformelen” bem mais eficaz – no sentido mercadológico de “próximo” e “atrativo” que prende a atenção por meio de dispositivos infantilizantes e presentistas de percepção e avaliação de mundo – do que qualquer professor de história em sala de aula. Provocativamente, eu diria que, em si mesmo, nada garante que um aluno no Brasil terá mais ou menos interesse por História pelo fato de o "conteúdo" ser, por exemplo,

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História da África e não dos Vikings. A entrada massiva do cinema norte-americano durante a ditadura militar no Brasil prova bem isso. Os elementos de modalização temporalizada da linguagem histórica (e da linguagem em geral), se tomados como abertos e vivos (e não apenas como fórmulas para serem aplicadas ou estudadas sem historicidade, ao modo do formalismo russo combatido por Bakhtin), levam-nos a pensar que não se esgotaram as possibilidades de construção de outros parâmetros de convergência entre Teoria e Ensino de História; que as linguagens históricas (cotidianas e letradas) precisam se expandir em categorias porque se referem à vida (i.e., a esta relação significativa disputável entre passado, presente e futuro, que a consciência da morte nos dá enquanto espécie portadora de sistema simbólico complexo, aberto, coletivo e vivo – e, portanto, localizável, reconfigurável e diversificado no espaço e no tempo). A linguagem histórica escolarizada se expande para a vida porque provoca enfrentamentos culturais específicos, por conta de sua singularidade expressiva, categorial e enunciativa. A linguagem histórica escolarizada não se expande mais para a vida somente por conta de supostos "conteúdos mais próximos dos alunos”, mas pelas “formas de concebê-los” na negociação social de semelhança e estranhamento entre comunidades de sentidos, que devem ser tomadas igualmente como processos sociais abertos e não como essências acabadas. Desse modo, ficamos coerentes com a questão da linguagem viva em Bakhtin, que não é apenas aquela dos enunciados cotidianos, mas também a artística e científica em sua relação tensa, circular e de relativa autonomia de forma e sentido em relação aos falares cotidianos, para justamente provocar densa perspectivação reflexiva e estranhamento em relação aos mesmos. Bakhtin tinha o entendimento, próprio de sua geração intelectual, do papel político e cultural formador de consciências das artes e das ciências, sem as quais não haveria adensamento de reflexões sensíveis sobre a vida. E sabia que os vários processos sociais e culturais do passado deixavam traços e rastros nos usos das línguas em seus diferentes gêneros de enunciação – mas as formas culturais de enunciação não se reduzem apenas aos gêneros verbais de enunciação. Ele sabia disso, embora tenham se dedicado mais a estudar as formas verbais. Portanto, podemos potencializar as suas observações para outras formas de enunciação.

ARTE, SOCIEDADE E ENSINO Disse tantos truísmos até aqui porque, tal como Michael Baxandall, penso que deveríamos aceitar o desafio intelectual da reconstituição de padrões de legibilidades ou horizontes de sentidos referidos a contextos específicos de enunciação das artes. Deslocamentos semânticos – e as artes visuais – apontam para uma experiência do “olhar” sobre o mundo, pessoas e coisas. As suas marcas epocais de sentido se fixam na forma como e para que/quem uma enunciação verbal, performática e visual foi concebida. Nesse sentido, o que diferencia Jackson Pollock da mancha na parede é que não se trata de um ato

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descontrolado sem referência comunicativa; trata-se de um enunciado sem palavra, mas é um enunciado porque está referido a uma expectativa de interlocução em dado contexto de crítica das artes plásticas. Se você não consegue entrar nesse contexto e compreendê-lo, o quadro de Jackson Pollock não tem valor para você: É apenas tinta “sem sentido” (i.e., “sem sentido figurativo”, se você está socialmente condicionado a achar sentido ou valor apenas na arte figurativa mimética). Por outro lado, uma “mancha” dita nos poemas de reminiscências de Paulo Bentancur, ou de Magda L. Carvalho, ou os espaços “vazios” em “Madame Bovary” podem ser marcas metonímicas de tempo, que reportam para um todo que é mostrado por meio do indício. A meu ver, em nossa cultura, os tropos metonímicos funcionam melhor com o adulto social, pois exigem um repertório de experiências e habilidades que o possibilitem ser conduzido pelo indício e encontrar satisfação na surpresa revelada com algum esforço psíquico venatórioindiciário; por outro lado, os tropos analógicos, que são reinterativos, funcionam melhor para a nossa criança social. E a escola não deve alimentar apenas a “criança”, mas o potencial “adulto” na criança, para não se tornar uma adulto infantilizado. No entanto, não existe uma característica intrínseca “adulta” ou “infantil” nos recursos trópicos. O contexto de enunciação e seu tom deslocam sentidos para os recursos trópicos. As “manchas” de Paulo Bentancur e de Magda L. Carvalho não são apenas manchas, como os quadros de Jackson Pollock também não são manchas. Os espaços em branco em “Madame Bovary” não são erros de edição, mas marcas invisíveis de sentido (i.e., o avesso da visibilidade das letras) que participam da enunciação do tempo em página (e da atuação não mostrada dos amantes) da novela de Gustave Flaubert. Um poeta que tenha grande consciência trópica das linguagens em sua cultura (e/ou dos padrões editoriais, no caso de Gustave Flaubert) poderá jogar conscientemente com as expectativas de sentidos em torno de certos recursos trópicos e editorias de uma cultura letrada livresca, para criar uma enunciação com certas palavras (ou com a deliberada ausência delas, no caso de Gustave Flaubert), fazendo o leitor/interlocutor olhar com estranhamento para seus próprios hábitos de leitura, percepção e valores. É raro que eventos de autorreflexão sobre o próprio ato poético se inscrevam num poema, mas, quando identificamos um, podemos celebrá-lo em duplo sentido: enquanto historiadores culturais, pois acabam nos indiciando determinados hábitos de leitura, concepção de leitor e de arte em certo campo social que ficariam menos evidenciados sem sua pista linguística explícita; enquanto evento estético, pois fazer o poema falar de si mesmo (sem assassiná-lo numa prosa explicativa) exige grande engenho artístico e amadurecimento intelectual. Geralmente, tais poemas falam para poucos: exigem leitores iniciados, com mais recursos metalinguísticos, treino de “olhar” e habilidades do campo das artes a que se referem. Outra característica é que são geralmente dirigidos para outros poetas ou para críticos literários. Mais engenhoso é o poeta que faz isso conseguindo ser inclusivo: fala para um leitor “outsider”, mas dá piscadelas para seu colega “insider”. No entanto, não cabe ao poeta contemporâneo bancar J.-J.Rousseau e ensinar o leitor a lê-lo. Geralmente, é o crítico literário que tem tal pretensão e, por vezes, acaba

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atuando na configuração de comunidade de leitores e leituras para certos autores. Se o poeta explicasse seu poema, isso mataria o poema, que deixaria de revelar o mundo enquanto ambiguidade para ser reduzido a um falso reflexo de poeta enquanto intenção psicológica unívoca individual. Se a própria consciência e o pensamento são dialógicos, quem acredita que o poeta está sozinho em seu ato de criação apenas ratifica os mitos da crítica romântica sobre a unicidade causal entre “obra”, “autor” e “contexto”. No entanto, se um poema não se esgota num leitor e no autor, tampouco isso significa que a liberdade e a autonomia constitutiva do autor/leitor contemporâneo do “livre mercado” deva se confundir com descontrole trópico, voluntarismo verborrágico, imperativo individual-solipsista na determinação de sentido, palavrório rimado inconsistente ou hermetismo gratuito. Nada disso é prova de competência na feitura ou leitura de um poema contemporâneo. Como todo pintor competente sabe, a distorção eficaz como crítica cultural depende do pleno domínio do que se considera “normal” ou “belo” numa comunidade de sentido. Em outras palavras, um artista que pretenda atuar como agente de inovação no campo das artes não pode ser um “analfabeto estilístico” em relação à forma de arte que nega para afirmar a sua. Edgar Degas, por exemplo, desenvolveu o impressionismo porque sabia fazer pintura acadêmica, ou seja, porque foi educado nesta, tinha pleno domínio dos seus parâmetros estéticos e, portanto, soube refletir sobre como e o que de valor subverter no olhar burguês oitocentista sobre a pintura, inventando relevância inovadora para certos temas e reinventando a forma de representar o olhar.

A pintura acadêmica seguia um imperativo de olhar monumentalizante, escolhendo palhetas de cores e temas relacionados a um regime representativo de verossimilhança que tendia a sacralizar temas históricos laicos por meio da técnica da pintura sacra rafaelita. Edgar Degas, por sua vez, mantém a mesma preocupação com ordem e proporção da pintura acadêmica, mas reduz a escala de seus quadros, substitui o traço escultural pelo esfumado e os temas clássicos ou “históricos” dão lugar a situações ordinárias da vida cotidiana. Em Edgar Degas, o esfumaçamento de cores, formas e luzes evoca o presente em sua fugidia diluição. Em contraste com as poses dos temas monumentalizantes das pinturas acadêmicas que pretendem “deter o tempo”, Edgar Degas representa o “movimento espontâneo” das

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“pessoas comuns ao natural” – e, portanto, o tempo como movimento e não como monumento. Aqui, o “natural” só tem sentido enquanto contraposição conceitual e estilística ao “monumental” da pintura acadêmica. Portanto, a enunciação estilística está condicionada por aquilo que Edgar Degas pretende negar ao afirmar o regime de verossimilhança específico de sua arte. Se ignorarmos o que ele nega ao se afirmar como artista, não participamos plenamente de sua comunidade estilística de sentido, ou seja, permanecemos, em relação à sua arte, “analfabetos estilísticos”. O poema contemporâneo também tem a sua comunidade estilística de sentido, mas, infelizmente, o processo atual de escolarização da literatura e das artes no Ensino Básico não possibilita que esta seja muito ampla. Pode-se falar um continente em cinco linhas, como, por vezes, faz Carlos Moreira, mas poucos leitores efetivamente têm olhar e ouvido para seus poemas. Aliás, tenho como hipótese pessoal que precisamos mais de olhar do que ouvido para seus poemas. Os seus melhores poemas demandam leitura silenciosa e contato visual com as palavras nas estrofes e versos. Quem simplesmente o ouve não percebe o principal de sua estilística – o que torna os saraus literários um desperdício de tempo para a fruição de seus poemas. A arquitetura poética de Carlos Moreira filosofa e consegue reduzir o poema ao que ele entende ser o essencial ou forma estrutural, provocando saltos inesperados de sentidos por meio de tropos analógicos que revelam o potencial plástico da linguagem, expandindo a sua vitalidade e nosso campo crítico de percepção, tal como neste poema: * o mar me recebe lambendo meus pés salta em meus joelhos pousa no meu peito sua pequena pata úmida pede que me deite mais suave que a chuva e tudo que somos é bonito simples e antigo

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o mar é o meu cão favorito *

Como não ver nesta analogia um sintoma de época, mas que carrega uma originalidade estética surpreendente? Os oito últimos versos fazem desmoronar toda a expectativa contida no início do poema: o que o inicia é, de fato, o resto de engano que o poema evidencia, ao final, com a metáfora do “cão”; o terceto final, paradoxalmente, poderia ser o “caput” revelador da crítica e não a “coda” do poema que nos causa a surpresa. Imaginemos – com o ônus de eliminar o pathos da surpresa do poema – o último terceto sendo deslocado para o início do poema para entendermos o seu efeito intercambiável entre “coda” e “caput”: * o mar é o meu cão favorito me recebe lambendo meus pés salta em meus joelhos pousa no meu peito sua pequena pata úmida pede que me deite mais suave que a chuva e tudo que somos é bonito simples e antigo *

A possibilidade de troca entre “coda” e “caput” do terceto “o mar /é o meu cão/ favorito” é o mesmo entre “mar” e “cão” dentro do próprio terceto. Daí, a musicalidade contida no poema de Carlos Moreira enreda e engana: jogando com a expectativa inicial de escapismo na paisagem natural, o poema expõe, ao final, a violência da solidão urbana inerente à necessidade de escapismo na paisagem natural falsamente sugerida desde o começo, pois quem lambe, umedece e acolhe o sujeito do poema é o Mar (ou o Cão?). É a primeira vez que leio o mar ser metaforizado como cão. Não imagino tal analogia sendo

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pensável em outra época. Até que me provem o contrário, trata-se de uma metáfora contemporânea originalíssima! Não vejo a relação intercambiável entre “mar” e “cão” como uma simples escolha trópica (techné retórica) que visa a sustentar a coerência dos elementos que indiciam o caminho da analogia ao longo do poema (“lambe”, “salta”, “pousa”, “pata”, etc). Afinal, o “cão” do poema – este emblema literário de amizade e fidúcia – é também sintoma sociológico da doméstica compensação da solidão urbana atual, que não existe desde sempre em qualquer configuração social. Aqui, a experiência social se impregna e deixa seus traços ou pistas nas escolhas trópicas da língua estilisticamente viva de Carlos Moreira. Portanto, é impossível interpretar esta presença trópica sem pensar no seu contexto extratextual como condição de possibilidade para a sua escolha como recurso figurativo no conteúdo-forma do poema. O uso do verbo de ligação na metáfora que sustenta a analogia mantém uma ambiguidade referencial sintomática: O cão é o mar ou o mar é o cão? Quem é sujeito? Quem é predicativo do sujeito? “Mar” é o nome do “Cão”? A própria estrutura sintática da metáfora por meio do verbo “ser” deixa aberta tal possibilidade. Contudo, a estrutura do poema não permite que se diga qualquer coisa por conta de tal ambiguidade. O que é possível ser dito sobre o poema deve ser dito enquanto ambiguidade que a estrutura enunciativa do poema possibilita – fazer o contrário disso é desviver o poema ou descaracterizá-lo como gênero de enunciação. Infelizmente, teremos cada vez menos leitores para este tipo de vivência estética enquanto a estrutura de escola pública e carreira docente não mudar no Brasil.

DESCONCLUSÃO Atualmente, cultivo a interlocução com artistas, críticos e literatos que respiram acima do labirinto cético pós-moderno, do formalismo e do solipsismo. Autores que falam de capacidades de leitura e de escrita como se fossem meramente habilidades técnicas a serem aprendidas por meio de manuais de redação vendidos como autoajuda, que concebem métodos de ensino como se língua e sociedade fossem coisas inertes no tempo, não têm o meu respeito cidadão e acadêmico. Uma educação escolar para a formação de protagonistas não deve adestrar cumpridores de fórmulas feitas por outrem, como se fossem entes transcendentais fora do tempo. Tanta precisão técnica é desviver a língua e a arte... Nossos alunos precisam ser ambientados como protagonistas em diversas comunidades estilísticas de sentido – a escola pública, como um espaço de comunicação social, deve ser um desses ambientes qualificados de vivências estilísticas. Se for efetivamente um enunciado, um poema e uma pintura são, ao mesmo tempo, (1) atos estruturados dialógicos e (2) efeitos estruturantes de recepção, pois não se realizam em si mesmos ou apenas na consciência psicológica do “autor”, mas na forma estruturante da intenção comunicativa socialmente estruturada na negociação ou na tensão por sentidos na sociedade. Afinal, nem mesmo um monólogo é monológico. Portanto, poemas e pinturas materializam processos comunicativos impregnados por seu contexto de enunciação.

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Tudo isso é muito complicado, exige tempo para leitura, tempo para estudo, tempo para investigação, tempo para o aprendizado sócio-histórico da fruição nas artes. Contudo, há muitos por aí – por comodismo, preguiça, síndrome de Estocolmo ou, infelizmente, incapacidade – que não ousam mais conhecer o mistério desse processo sociocultural dinâmico, aberto e inacabado que se materializa pontualmente nos atos de enunciação verbais e/ou visuais das artes ao longo do tempo. Preferem que a reconstituição social de sentido do campo perceptual das artes seja apenas uma impossibilidade. Aqueles que se acomodaram ao labirinto cético e se dedicam apenas a descrever formas trópicas, regimes de semelhança e regimes estéticos sem a perspectivação processual sócio-histórica parecem ter derretido as suas asas antes mesmo de tentar voar! São avessos à ventura de Ícaro, preferem o Minotauro. Exigem, no fundo, controle e segurança de quem provoca medo e imobilidade. Para mim, é um falso-problema supor que o fim do positivismo ingênuo ou o “fim” de teleologias fáceis nos conduzam necessariamente ao labirinto cético do Minotauro, reconfigurado, desde a década de 1970, por “insiders” monistas, medrosos ou acomodados aos marcos críticos da linguistic turn norte-americana. Cera, pluma e um prudente voo nos livram da sina de Ícaro, mas não anulam o valor do movimento corajoso e engenhoso que o inspira: Sapere Aude, sem ingenuidade. Não é preciso trancar o poema no labirinto cético, ou no solipsismo do leitor do “livre mercado”, para mobilizar estudos ou interesses estéticos em sua direção. O labirinto cético é autorreferido, tal como o paradigma solipsista de leitor do “livre mercado”. Não quero isso como modelo para a educação escolar. Como profissionais do ensino com capacidade para aprender a fruir, ler e produzir arte, precisamos de mais e mais tempo para múltiplas alfabetizações estilísticas, entendendo que arte é necessariamente comunicativa, não a “mancha na parede”, pelo menos não até que seja formulada como figura estilística impregnada de intenções comunicativas. A impossibilidade de a palavra figurar o horror é a prova viva de que a língua não é uma estrutura abstrata autorreferida. Sabemos que o horror nunca poderá ser expresso plenamente num enunciado, pois há nele algo de inominável que provoca o silêncio (no sentido da impossibilidade de a palavra representá-lo), mas isso não impede que tentemos acionar – a pretexto do desafio dessa impossibilidade – uma energia empática de renovação crítica por meio das várias enunciações criativas dos campos das artes. Isso deveria ser o fundamento dos projetos institucionais de educação escolar. As artes produzem atos de enunciação, que pressupõem, no mínimo, um propósito, uma função e um contexto carregado de sentido pelos interlocutores que participam das escolhas e/ou feituras de suas formas de expressão. Entender esses atos de enunciação de gêneros artísticos e se deixar levar por eles, mas de dentro da sua comunidade estilística de sentido, implicariam em cultivar habilidade perceptual específica para entrar, por exemplo, no jogo poético de referências literárias que configuram a morte do heterônimo Otton Bellucco. A figuração de sua morte solicita do leitor capacidade ou repertório para conseguir fruir o jogo intertextual das figuras hamletianas contra a vanitas que criam o tom empático para a sua

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morte: “Otton Bellucco finda”, é dito no poema “EPÍLOGO”, mas fica na vida “como adubo”. Em relação ao tríptico poemático de Otton Bellucco, o leitor deve, por exemplo, saber fruir a ironia contida na “precisa” cadência estrófica dos versos dos três poemas antiprecisianistas. O conteúdo-forma do tríptico poemático de Otton Bellucco acaba nos sinalizando que não ser “precise” não implica ser “pusilânime”, mas sim combativo na arte do poema contra qualquer visão monista-conformista de mundo. Na figuração da morte do heterônimo Otton Bellucco, a sua energia empática me possibilita, como leitor, ser estimulado criativamente para desdobrar o poema, criando os meus próprios atos de arte (este ensaio, por exemplo) sem descaracterizar o poema. Posso, por exemplo, pensar que Otton é adubo como a língua é o rio que não termina no mar. Ele começa determinado por um continente, mas passa a ser os ventos e as correntes do mar... Ele é o ciclo da chuva, é a floresta que o retêm no subsolo, é o sol que o evapora... A sua circulação é incessante enquanto houver vida que o sinta e língua viva que o diga, pois o poeta-heterônimo que se desmonumentaliza – tal como a linguagem – não é coisa, mas processo inacabado e aberto de impermanente edificação. Assim, findo a minha exposição tal como Otton, que se findou, mas não é uma conclusão.

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