levava-nos caminho até caminho novo. Recriação literária contemporânea do imaginário medieval

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levava-nos caminho até caminho novo: recriação literária contemporânea do imaginário medieval Introdução A narrativa o remorso de baltazar serapião (2006) de Valter Hugo Mãe recria ficcionalmente o contexto da sociedade feudal europeia, representando o lugar social da mulher através da reprodução de situações-limite de agressividade física e psicológica. Numa reflexão sobre “a violência a que historicamente a mulher foi sendo submetida por uma mentalidade machista dominante (Mãe, 2013: s/p)”, a narrativa centra-se na relação matrimonial de baltazar e ermesinda e, em particular, na violência à qual esta última é sujeita, evidenciando o recurso à dominação como estratégia de ostentação de poder. Ao longo da história, Valter Hugo Mãe retrata de forma progressivamente mais intensa a misoginia visceral do universo que descreve, exposta com uma brutalidade desconcertante. No final, “a humanidade perdeu. De pé só resta Sarga, a vaca, com sua inútil compaixão (Rodrigues, 2011)”.

Ana Rita Gonçalves Soares [email protected]

Congreso Internacional Viaxeiros: do Antigo ao Novo Mundo Universidade de Santiago de Compostela junho de 2015

Objetivos e Metodologia de Estudo Através do recurso a uma metodologia qualitativa que inclui a aplicação das propostas teóricas mais relevantes e atuais à narrativa, e a análise comparativa e específica do corpus literário, esta comunicação tem como objetivo analisar como são representados os modelos medievais na obra o remorso de baltazar serapião de Valter Hugo Mãe com particular destaque para o tópico da viagem. Tendo em conta a consecução deste objetivo, o presente estudo fragmenta-se em várias etapas: 1) pesquisa bibliográfica relacionada como os âmbitos histórico e literário, 2) seleção de um corpus complementar representativo dos temas em análise, 3) fundamentação e estabelecimento de vínculos entre conceitos de ordem teórica e 4) análise comparativa e específica do corpus literário.

Recriação literária contemporânea do imaginário medieval As constantes ressurgências da cenografia medieval parecem confirmar a “irradiação mítico-simbólica” (Pereira, 2008: 14) que a Idade Média potencia. A novela que é objeto desta comunicação é exemplo da aplicação contemporânea do discurso que se desenvolveu desde a Idade Média caracterizado nomeadamente pela: 1) Distância temporal e consequente sensação de alteridade provocada pela cultura medieval. Ao remeter a um universo tido como longínquo para a entidade leitora atual, os/as autores/as potenciam a confrontação entre o tempo projetado no romance e a sociedade contemporânea. 2) Mitificação dos seus elementos. O discurso ficcional sobre a Idade Média deve ser entendido como uma estratégia que fragmenta a realidade histórica, uma “representación […] de lo posible, bajo las premisas de una concepción postmoderna de la Historia, en la que se tiene en cuenta […] La substitución de la verdad por el mito (Gutiérrez García, 2008: 87)”. A medievalidade configura-se assim, frequentemente, como um mecanismo de apropriação do passado que incorpora motivações presentes (políticas, ideológicas, morais etc) um exercício que, paradoxalmente, “often tell us more about the age in which they were produced than the one revived or revised (Gentrup, 1999: IX)”.

Contribuindo para “a ilusão de estarmos ao tempo de uma idade média tardia, feita de alçapões morais e de uma brutalidade primária (Mãe, 2013: s/p)”, o autor inclui elementos que consolidam o universo medieval: 1) Personagens históricos reais: dom dinis. A opção de incluir a menção ao “Rei-Lavrador” (a única que permite localizar temporalmente a ambientação do romance) poderá estar relacionada com o valor mítico-simbólico do rei, distinguido como um dos mais emblemáticos da sua dinastia, potenciando consequentemente o seu reconhecimento por parte dos/as leitores/as preferenciais e atribuindo realismo aos demais personagens. 2) Personagens-tipo secundárias representativas de tipos medievais, entre os quais se destacam, por exemplo: a) a prostituta/ mendiga (teresa diaba), b) a bruxa/ mulher queimada (gertrudes), c) o curandeiro (senhor santiago), d) os pajens do rei ou e) o boticário.



dom afonso, o da casa, era-o por //////////herança de nome e vinha mesmo das famílias de sua majestade, com um sangue bom que alastrava por toda a sua linhagem. nobres senhores do país, terras a perder de vista, vassalos poderosos, gente esperta das coisas do nosso mundo e de todos os mundos vedados (Mãe, 2013: 15)”

3) Tópicos recorrentes das recriações medievalizantes como o sistema feudal, a viagem e o castelo que contribuem para a caracterização de um topos medieval de contornos fantasiosos.



terra batida levava-nos caminho até //////////caminho novo constante. e entre cada bifurcação muito se pensava e aguardava por decisão acertada. por vezes atendíamos por alguém que aparecesse com informação que nos desenganasse e estávamos como se não nos tivéssemos perdido, e por isso estávamos satisfeitos e céleres conforme podíamos. mas muito nos atrasaria a viagem, coisas grandes que viriam para nosso encontro em surpresa e perigo (Mãe, 2013: 145)”

A viagem é um tópico recorrente nos relatos medievais e nas recriações literárias medievalizantes. No âmbito da banda desenhada de temática medieval, por exemplo, verifica-se com frequência a associação da viagem ao conceito de aventura, um enquadramento que permite ao protagonista/ herói exaltar as suas virtudes (Galván Freile, 2008: 149). Frequentemente associada no âmbito literário ao seu caráter formador e/ou transformador, a viagem representa um ponto de viragem na história de baltazar. Depois da visita do rei às terras de dom afonso, aldegundes serapião é convidado a visitá-lo com o objetivo de produzir as suas pinturas no castelo real. Os dois irmãos serapião, acompanhados por gertrudes, partem assim em direção à residência de dom dinis. Pelo caminho sucedem-se as bifurcações e os encontros casuais com desconhecidos, elementos típicos da configuração do tópico da viagem. Como contexto propenso a “surpresa e perigo”, é durante a viagem que baltazar e aldegundes são amaldiçoados pela bruxa gertrudes, ação que potencia o desenlace da história. A viagem está também associada a um dos elementos mais paradigmáticos dos séculos medievais, que assume frequentemente a função de caracterizador dos espaços fantásticos: o castelo. No âmbito literário, o castelo, assim como o bosque, parece ser uma característica-chave das representações medievalizantes.

Conclusões O universo da narrativa de Valter Hugo Mãe é construído graças à recriação de um topos verossímil, potencialmente reconhecível pela entidade leitora, que reproduz, paradoxalmente, uma imagem dos séculos médios mitificada e estereotipada. Para manter o/a leitor/a na “ilusão de estarmos ao tempo de uma idade média tardia (Mãe, 2013: s/p)”, anunciada na contracapa do livro, o autor inclui vários tipos e motivos que contribuem para a configuração do contexto medieval. O tópico da viagem, por exemplo, é recriado de modo a proporcionar um ambiente de maior imprevisibilidade, evocando a imagem simbólica do tortuoso caminho pelo bosque em direção ao castelo que se ergue entre as montanhas. Como se pode concluir, a imagem da Idade Média que Valter Hugo Mãe apresenta reflete sobretudo uma consciência do presente, que lhe permite jogar com o imaginário e com as expectativas do/a leitor/a, incitando à reflexão sobre a sociedade contemporânea.

Referências Bibliográficas BIDDICK, Kathleen (1998), The Shock of Medievalism, Duke: Duke University Press. D'ARCENS, Louise (2014), Comic Medievalism, Laughing at the Middle Ages, Cambridge: D. S. Brewer. D'ARCENS, Louise, LYNCH, Andrew (2014), International Medievalism and Popular Culture, Amherst: Cambria Press. ECO, Umberto (1986), “Dreaming the Middle Ages”, Travels in Hyperreality, New York: Harcourt Brace, pp. 61-72. GENTRUP, William (1998), Reinventing the Middle Ages and the Renaissance, Constructions of the Medieval and Early Modern Periods, Turnhout: Brepols.

HEERS, Jacques (1995), La invención de la Edad Media, Barcelona: Crítica. MÃE, Valter Hugo (2013), o remorso de baltazar serapião, Carnaxide: Alfaguara. MANZINI, Mario et al (2006), 1616. El Mundo Medieval en la literatura contemporánea, nº12. PEREIRA, Paulo Alexandre et al (2008), Revista de Poética Medieval. Medievalismo/s. De la disciplina y otros espacios imaginados (II), nº21. RODRIGUES, Sérgio (2011), “Avacalhando preconceitos: o remorso de baltazar serapião”, Veja. SIMMONS, Clare (2001), Medievalism and the Quest for the 'Real' Middle Ages, London: Frank Cass.

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